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A história da geometria não contada na escola

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Academic year: 2022

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A história da geometria não contada na escola

Pedro Paulo Scandiuzzi1

Resumo: Este trabalho aponta os resultados de uma pesquisa feita em área indígena. Para dar consta dos dados coletados tive de recorrer a história da matemática e a outras áreas das ciências. Deparo-me com aspectos da história da matemática esquecidos e/ou não mencionados no espaço escolar por motivos diversos, mas que pesquisadores como Seindenberg e Keller traz-nos informações de que este lado da geometria não esta esquecido.

Palavras chaves: história da matemática; geometria; etnomatemática; educação

Introdução:

A história da matemática nos espaços escolares tem nos auxiliado e muito para que o processo educacional se desenvolva a contento. Mais ainda enriquecedor tem sido a construção da história da matemática pelos alunos como metodologia de ensino.

Um dos primeiros indícios da existência de outra lógica no campo da geometria está sinalizado por Boyer (1974) quando nos diz que Heródoto dizia que a origem da geometria está na necessidade prática de fazer novas medidas de terra enquanto Aristóteles afirmava que a origem está no lazer sacerdotal e ritual e ambos não tem a audácia de sugerir o início antes dos povos egípcios.

Este caminhar da história da matemática e da metodologia de ensino como construção da história da matemática tem me levado a refletir em minhas pesquisas com povos indígenas: porque a construção histórica do pensamento geométrico dos povos indígenas não está contemplada nos livros de história da matemática? Que estes povos têm a dizem sobre geometria?

Diante destas perguntas este trabalho aporta o objetivo de fazer uma tentativa de trilhar este caminho desconhecido e por ele, validar a história que não nos foi contada nos espaços escolares. Trilhar este caminho só foi possível por causa da audácia exigida na pesquisa etnomatemática.

1 Doutor em Educação pela UNESP – Marília – SP e professor assistente na UNESP de São José do Rio Preto – SP.

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Desenvolvimento do tema:

Trabalhar em área indígena é desenvolver um olhar no individual e no coletivo do campo social / cultural.

Para desenvolver este olhar, uma pessoa graduada em matemática tem de deixar uma série de pré - conceitos e adentrar em uma nova forma de visualizar o mundo que o cerca. Neste trabalho, vou ater-me em uma figura geométrica – a hipérbole – não esquecendo as recomendações da antropóloga Ribeiro (1989): a) a interpretação do motivo ornamental pode não ser idêntica; b) cada grupo indígena imprime em sua arte a

singularidade do seu modo de ser e suas principais motivações e c) a arte indígena reflete um desejo de fruição estética e de comunicação de uma linguagem visual.

Também para este novo olhar devemos usufruir dos dizeres de Santos (1975):

“o mundo horizontal2 e o mundo da comunicação editorial vertical3 atuam por meio de elementos visuais, auditivos e táteis, mas entre eles a diferença é profunda.

O primeiro convenciona uma imagem mental, através destes três elementos que podem também ser transformados em escrita. O segundo cria, através destes três elementos, um conceito cuja atuação está colocada no mesmo elemento formal.

ELES NADA POSSUEM DE COMUM EM SEUS CÓDIGOS. ENTRE ELES, O ÚNICO ELEMENTO COMUNITÁRIO É O SER HUMANO”.

Em alguns indícios apontados por Carvalho (1979) a figura hiperbólica está relacionada ao mito dos gêmeos, e sabemos pela literatura que o mito gemelar é um código estruturado para uma informação datada de mais ou menos 6300 AC4.

Nos escritos de história da matemática, não encontrei a hipérbole como uma forma geométrica descrita antes dos estudos de Menaecmo, a não ser as observações características dos livros de História da Matemática, tais como estão nos dizeres de Boyer (1974; p.70,97,103-107) e de Domingues (1998,p.43).

O ponto de vista de Seidenberg (1960-1962) nos impulsiona a pensar que a geometria teve sua origem nos rituais, que existe uma distinção entre uso e origem e que os círculos e quadrados eram figuras sagradas e eram estudadas pelos sacerdotes tal qual eles estudavam as estrelas, nominalmente, para conhecer seus deuses melhor. Keller (1995)

2 mundo horizontal é o espaço entre o elemento mental e a forma convencional representada, com todos os riscos e a falta de garantia que este espaço representa em suas formas oral e escrita.

3 comunicação vertical é a edição do som, do gesto e do movimento.

4 Para maiores esclarecimentos ver Scandiuzzi (1997) e Scandiuzzi (2000).

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apresenta a construção geométrica como ritual e as formas geométricas como portadoras de símbolos.

O formato do campo de bola é hiperbólico, o túmulo dos caciques segue este mesmo formato, a pintura do cabelo do pajé... e os livros de história da matemática que não mencionam algo significativo... Todos esses dados aguçaram o meu olhar para esta figura. Sendo assim, fiquei atento ao jogo de bola, uma vez que o campo de jogo se diferenciava assustadoramente dos nossos campos.

O fato do mito dos gêmeos estar presente no jogo de bola e ter um campo hiperbólico fez-me deter nos movimentos do sol e da lua. O movimento do sol e da lua deveriam ser observados deste lugar específico da aldeia dos kuikuro. Estas afirmações solidificam o encaminhamento do programa de etnomatemática no caminho do respeito, solidariedade e cooperação.

Campos e Franchetto (1987) nos afirmam que o sol em seu movimento anual percorre o horizonte entre os dois solstícios, num angulo de 48º se olharmos da praça central e simétrico com o eixo leste – oeste, eixo este chamado pelos astrônomos de meridiano local. Vieira5, em um email de 20/04/00 afirma que este ângulo é na verdade de 46º (-23º a +23º) para o movimento do sol e de 56º (-28 a +28º) para o movimento da lua, durante o ano. Não consegui encontrar respostas de como é determinado o meridiano local pelo povo kuikuro, mas para eles é importante determiná-lo e o determinam!

Os indícios de que da casa dos homens o movimento do sol e da lua, durante o ano, forma o ângulo do meridiano local, sugere que, para construir a aldeia, este povo observa as sombras projetadas pelo sol e constrói a casa dos homens dentro do círculo. A porta central desta casa está perpendicular ao meridiano local e possibilitará a observação, quase que diária, do movimento do sol e de suas sombras. Talvez seja por este motivo que Campos e Franchetto (1987, p.263) explicam que este tipo de construção

integra o conhecimento dos kuikuro ao incorporar-se na arquitetura de suas aldeias pelo alinhamento este - oeste de três elementos: o local da luta, o banco de tora e a casa dos homens. Esta incorporação faz possível que funcione uma espécie de relógio solar, onde a casa funciona como abrigo aos raios solares, ao projetar-se sua sombra sobre a praça da aldeia. Até as três da tarde, quando a praça se encontra com sol, tem início a luta; e termina quando a sombra, inicialmente sobre a tora, cai sobre os lutadores”.

5 Fernando Vieira é astrônomo do planetário do Rio de Janeiro e seu endereço eletrônico é:

planetário_rio@hotmail.com

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Que observam os kuikuro, através das sombras durante o ano?

Apesar da pergunta estar falando no geral, para todo o povo kuikuro, sabemos que existem os especialistas observadores que passam estas informações nos diálogos diários. Não sei informar se as mulheres fazem observações deste tipo, mas pude perceber que os homens as fazem.

No dia dos dois solstícios – o do inverno e do verão – quando a curva feita pela sombra de algum objeto e que foi observada no percurso de um dia é a que se distancia mais deste objeto, perceberão que elas formam os dois lados da hipérbole6, enquanto que, no dia do equinócio7, - que acredito ser o das festas do quarup, pois estas festas são em setembro – eles vêem uma reta. O sol sai no horizonte, lança seus raios solares em direção à casa dos homens, passa pelo local do huka-huka, pela tora e pela porta central e segue seu caminho passando pela casa do chefe da casa dos homens. Neste dia do equinócio, a casa dos homens e a casa do chefe da casa dos homens receberão a luz do sol mais intensamente pela porta de entrada.

Estas observações solares e lunares, entre os solstícios e equinócios estão relacionadas com as colheitas e plantios uma vez que o povo kuikuro tem as estações da seca e das chuvas. Por exemplo, início da coleta dos ovos de tracajá é sinal de que as chuvas estão chegando, que o dia da passagem do sol pela porta central da casa dos homens, onde está a flauta kagoto, também está chegando. O equinócio da primavera se aproxima. Será nesta época que os arcos da hipérbole vão trocar o lado, mudar a sua posição em relação ao eixo de simetria, que, neste caso, é a sombra produzida pelo equinócio, e as sombras se projetarão simetricamente, até que volte ao equinócio do outono.

A simetria de reflexão ocasionada pelos movimentos do sol é observável no decorrer de um ano.

A lua por sua vez estará produzindo uma mesma figura hiperbólica durante o ano, mas suas sombras podem ser observáveis somente na lua cheia, ou nos dias próximos a esta fase da lua. Será por causa das observações serem feitas a partir do sol e da

6 Estes dados, que garantem que as sombras no local da aldeia desenham uma hipérbole, foram confirmados por Vieira no email citado acima.

7 No hemisfério Sul, no ano 2000 o equinócio da primavera foi dia 22 de setembro as 17h27’ e equinócio de outono 20 de março as 07h35’. (site: http://www.if.ufrg.br/~kepler/fis207/estaçoes.htm)

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lua que a forma geométrica do círculo e da circunferência estão presentes? Podem também se juntar a estas observações as quatro fases da lua? Esta última interrogação é proveniente de que a observação lunar, durante as quatro fases da lua, também produz uma figura hiperbólica, com eixo central de reflexão na lua nova e seus extremos estão de uma lua cheia a outra, caracterizando o mês, por isso o uso de “meu filho tem x luas”.

Estas observações confirmam as conclusões de Carvalho (1979) a respeito da tríplice encruzilhada, quando discute o desenho feito por Steinen (1940). A tríplice encruzilhada se dá entre três círculos que se interceptam, produzindo três espaços definidos: o espaço que permite o relacionamento com pessoas e “coisas” que não pertencem à aldeia, chamado por Carvalho de “mundo exterior” geográfico; o outro espaço é o que simboliza o “mundo nosso”, mundo dos kuikuro. Estes dois espaços permitem a ida e vinda, enquanto o terceiro espaço, que é o espaço formado pelas curvas da hipérbole – espaço onde se dá o eixo da simetria da hipérbole, onde está o jogo da vida e morte, da lua e do sol – este não tem retorno.

Conclusão:

Os resultados desta pesquisa apontam para que um novo olhar de geometria deve ser lançado nos espaços escolares. A globalização e a holização nestes últimos anos nos direciona para este novo olhar. Falar de uma geometria que faz parte do cotidiano e que tem significado transcendente nas suas formas parece-me mais atraente do que elucidar a geometria euclidiana que limita o ser humano a racionalidade esquecendo do lado emotivo, afetivo, emocional que o complementa.

Também sugere que os pesquisadores em história da matemática devem estar atentos aos resultados das pesquisas que utilizam o caráter etnográfico, para possíveis inclusões nos livros de história da matemática destes resultados e assim construir a história da matemática produzida por povos até agora não reconhecidos.

Se esta construção acontecer, possivelmente a área educacional se transformará e poderá revitalizar o ensino da matemática.

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Referências Bibliográficas:

1. BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo. Edgard Blücher Ltda.

1974

2. CARVALHO, S. M. S. Onças míticas e jogo de bola. In: Revista de Antropologia.

VolXXII. 1979

3. DOMINGUES, H. H. Seções Cônicas: história e ensino. In: Revista de Educação Matemática. São Paulo. SBEM. Ano 6 nº4. 1998. P. 43- 49

4. FRANCHETTO, B. e CAMPOS, M. D. Kuikuru: integración cielo e tierra en la economia y en el ritual. In: DE GREIFF, J.A. e REICHEL, P. E. Etnoastronomias americanas. Bogotá. Ediciones de la Universidad Nacional de Colômbia. 1987 5. KELLER, O Préhistoire de la geométrie: l´étrange gestation d´une science d´après les

sources archéologiques et ethnographiques. In: La construction des savoirs mathématiques. Actes de la 6ème Université d´été interdisciplinaire sur l´histoire des mathémattiques. Bensançon. France. 1995 p.15 – 40

6. RIBEIRO, B. G. Arte Indígena, Linguagem Visual. Belo Horizonte – MG. Itatiaia.

São Paulo- SP Ed. Da USP. p.187 1989

7. SANTOS, Y. L. BARRACCO, H. B. e MYAZAKI, N. Textos - ritos do índio brasileiro: xinguano e kadiwéu. São Paulo. EBRAESP. 1975

8. SCANDIUZZI, P. P. Educação Indígena X Educação Escolar Indígena: uma relação etnocida em uma pesquisa etnomatemática. Marília.SP. FE-UNESP. 2000. (Tese de Doutorado)

9. SEIDENBERG, A. The Ritual Origin of Geometry. In Archive for History of Exact Sciences. Alemanha. p. 488-527 1960-1962

10. STEINEN, K. von den. Entre os aborígenes do Brasil Central. In: Revista do Arquivo Municipal. São Paulo. XXXIV – LVIII. 1894/1940

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