X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis
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O SURREALISMO E A LITERATURA:
ÁGUA VIVA,DE CLARICE LISPECTOR E A ESCRITA AUTOMÁTICA
Adriana Giarola Ferraz Figueiredo (Doutoranda – UEL/PR)
RESUMO: Abordar os aspectos vanguardistas na literatura consiste não apenas em desenvolver teorias acerca do campo literário. Mais que isso, de acordo com Ernesto Sampaio, trata-se de uma incursão pela possibilidade de “um efeito social da arte nos dias de hoje” (In: BÜRGER, 1993, p. 7), assim sendo, a verificação da relação da arte com os aspectos vitais da existência humana (a práxis-vital) e, concomitantemente, do estatuto artístico. No Brasil, as manifestações surrealistas também se fizeram presentes, extrapolando todo o seu contingente revolucionário e formador de um espírito literário inovador. O Modernismo, tendência vanguardista que rescinde com os modelos rigorosos e caminha para uma criação mais livre, é uma reação às escolas artísticas do passado, que começa a se desenvolver no país na Semana de Arte Moderna de 1922. A arte transforma-se na experiência do “eu”, acontece um monólogo interior e uma ruptura com a realidade. Há uma volta à origem, porque não há controle sobre o acaso. E é nesse ponto que Clarice Lispector se apresenta como foco de análise e de estudo. Em 1973, a autora publica Água Viva, romance que contempla um dos problemas centrais da escrita clariceana: a questão da fronteira da personalidade com a linguagem. Nas obras clariceanas, o que acontece não é mais um simples entendimento do texto como algo acabado e esgotado, quando analisado diante de determinado aspecto do mundo ou do ser humano. Clarice vai além. Seu discurso literário proporciona ao leitor a possibilidade de criar o mundo dentro de um texto.
PALAVRAS-CHAVE: Surrealismo; Clarice Lispector; Escrita Automática.
Abordar os aspectos vanguardistas na literatura consiste não apenas em desenvolver teorias acerca do campo literário. Mais que isso, de acordo com Ernesto Sampaio, trata-se de uma incursão pela possibilidade de “um efeito social da arte nos dias de hoje” (In: BÜRGER, 1993, p. 7). Assim sendo, a verificação da relação da arte com os aspectos vitais da existência humana (a práxis-vital) e, concomitantemente, do estatuto artístico.
A vanguarda surge, portanto, como uma instância autocrítica, não tanto da arte, mas da estrutura social em que a arte se dá. Não funcionou como crítica imanente ao sistema, actuando no seio da instituição, mas como autocrítica da instituição da arte na sua totalidade. (In: BÜRGER, 1993, p. 7)
As vanguardas questionam, de certa forma, a instituição arte. Todavia, mantêm a autonomia da mesma e buscam resgatar a sua relação com a vida. É o momento em que a arte quer ser apenas arte, sem deixar, no entanto, de referendar o mundo real. Um movimento diferente dos demais, em que o novo busca a recuperação do poder da arte em relação à práxis- vital. As vanguardas querem de volta a força dessa instituição na intervenção da vida.
O artista, nesse contexto, deixa de saber como será o seu produto final por apresentar- se desinteressado. E a experiência estética acontece no meio de uma transformação subjetiva.
Conforme Friedrich Schiller, o campo da criação é o próprio campo da liberdade, e o que há de mais humano é a capacidade de criação.
A vanguarda constitui uma ruptura para o novo, para a inovação e, por que não dizer, para o choque. Um emaranhado de mudanças, de movimentos emergentes que transformam valores, tendências ou conjuntos de tendências que propiciam variações de paradigmas.
Movimentos históricos de vanguarda como o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo foram imprescindíveis para o estabelecimento dessa nova concepção. No texto em questão, é o Surrealismo (suas características e suas implicações na literatura) que merecerá posição de destaque e que será alvo de questionamentos e de observações.
Segundo André Breton, o Surrealismo é:
Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética moral. (BRETON, 2001, p. 40).
Assim, trata-se de uma forma de automatismo psíquico pela qual certa pessoa se propõe a manifestar, seja verbalmente, por escrito ou de qualquer outra forma, o funcionamento real ou irreal do pensamento. Ser surrealista significa prestar-se à crença da autoridade do sonho e ao jogo abnegado do pensamento. É uma maneira de colocar-se diante da vida. É uma postura!
O prenunciador desse movimento na esfera literária foi o próprio André Breton. Surgido em Paris, nos anos 20, foi imediatamente inserido nas vanguardas europeias, que viriam a definir o Modernismo. A proposta do movimento é a de transformar o que é conhecido, o que é banal e o que é cotidiano em algo desconhecido. Segundo os manifestantes surrealistas, as artes devem se desapegar das instâncias da lógica e da razão e devem projetar-se para além da consciência cotidiana, expressando o inconsciente e os sonhos. Pois, em consonância com as ideias de Berger e de Luckmann, o cotidiano favorece essa reação.
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles (BERGER & LUCKMANN, 1976, p.
36).
No Brasil, as manifestações surrealistas também se fizeram presentes, extrapolando todo o seu contingente revolucionário e formador de um espírito literário inovador. O Modernismo, tendência vanguardista que rescinde com os modelos rigorosos e caminha para uma criação mais livre, é uma reação às escolas artísticas do passado, e começa a se desenvolver no país na Semana de Arte Moderna de 1922.
Mormente no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, as implicações surrealistas acontecem em três períodos diferentes: o primeiro ocorre em torno da revista Estética, do Movimento Antropofágico e da chegada de Benjamin Péret ao Brasil. O segundo constitiu-se diante da volta da artista Maria Martins e do grupo surrealista de São Paulo/Rio de Janeiro. O último, que teve início na Semana Surrealista, em 1985, centra-se no grupo surrealista de São Paulo/Fortaleza.
Em todos esses momentos, o que se percebe é a rejeição e a extrapolação do que é tradicional.
As poesias, os textos e a arte desse movimento são marcados pela livre associação de ideias, por frases montadas com palavras recortadas de revistas e de jornais e muitas imagens e noções do inconsciente.
De acordo com os ideários surrealistas aplicados tanto na Europa quanto no Brasil, no âmbito da literatura, só o “maravilhoso” é capaz de fecundar as obras pertencentes a um gênero inferior, como o romance e, de modo geral, tudo o que participa do gênero narrativo. Só o maravilhoso pode “salvar” o romance. No Manifesto do Surrealismo, escrito por Breton em 1924, o autor critica o romance e acredita ser a poesia a “grande arte”. Para ele, a arte romanesca nasce de uma postura positivista, por isso não é tão bem aceita. E a proposta, então, é transformar aquilo que é modelo em algo desconhecido, em algo libertário, porque “[...] o que está em jogo é muito mais do que a arte de fazer quadros ou de fazer versos, está em jogo é o destino do homem, seu sucesso ou sua ruína na Terra” (MICHELI, 1991, p. 152).
Diante dessas circunstâncias, situações como o “acaso”, o “automatismo” e a “escrita automática” surgem como pontos importantes aos moldes surrealistas.
O acaso não está presente apenas no Surrealismo. Apresenta-se nas vanguardas de um modo geral. Para Peter Bürger, o acaso como parte do papel criador assume uma função de muita relevância. A partir do Dadaísmo, torna-se muito presente e vem corroer com a ideia de que o artista é um gênio e controlador absoluto das suas produções. No Surrealismo, a ação
pautada no acaso coloca a arte e a práxis-vital juntas. Ele não está na ação em si, mas na vida, no cotidiano. E a busca pela liberdade acontece por dois meios: a revolução social e a mudança do homem. Para o escritor, o homem que se entrega ao acaso é aquele que “espera” sempre. E quem espera, tem “esperança”, que é a palavra-chave dentro do projeto surrealista, pois não há no Surrealismo a ideia de um mundo real.
Para reforçar esse conceito, Jacqueline Chénieux-Gendron fala do acaso objetivo, sob a pena de Breton, como uma manifestação externa concomitante ao desejo interno, que é uma necessidade natural e humana. O acaso objetivo é a manifestação do maravilhoso. Assim sendo, tem-se de encontrar o maravilhoso nesta vida. E isso acontece no campo da literatura, lugar em que pode acontecer, também, o automatismo e a escrita automática, momento em que a razão coloca-se a serviço do inconsciente e em que a polifonia acontece. A arte transforma-se na experiência do “eu”, acontece um monólogo interior e uma ruptura com a realidade. Há uma volta à origem, porque não há controle sobre o acaso.
E é nesse ponto que Clarice Lispector apresenta-se como foco de análise e de estudo.
Em 1973, a autora publica a obra Água Viva, romance que contempla um dos problemas centrais da escrita clariceana: a questão da fronteira da personalidade com a fronteira da linguagem.
Nas obras de Clarice Lispector, o que acontece não é mais um simples entendimento do texto como algo acabado e esgotado quando analisado diante de determinado aspecto do mundo ou do ser humano. Clarice vai além. Seu discurso literário proporciona ao leitor a possibilidade de criar o mundo dentro de um texto.
[...] Clarice mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece o tema), e o instrumento verbal (que institui a linguagem) se justificam antes de mais nada pelo fato de produzirem uma realidade própria, com a sua inteligibilidade específica (CANDIDO, 1987, p.
206).
Com essa postura, mudam-se as formas de escrever e, consequentemente, surge uma nova crítica, que agora lança suas considerações sobre um novo âmbito, deixando de lado
“inclusive a atitude disjuntiva (tema a ou tema b; direita ou esquerda; psicológico ou social)”
(CANDIDO, 1987, p. 206).
Nesse contexto, a obra clariceana surge intensa e reveladora, mostrando toda a capacidade da autora de desvendar a vida interior, bem como de se arriscar em caminhos até então desconhecidos, que a colocarão em um:
novo ritmo de ficção, numa pesquisa de linguagem para transmitir sua pessoal interpretação do mundo, por meio de um vocabulário, imagens e torneios que amoldem “às necessidades
de uma expressão sutil e tensa”, de tal maneira que a língua adquira o “mesmo caráter dramático que o entrecho” (SÁ, 1993, p. 25).
A escritora tem dentro de si forças interiores que lhe permitem enquadrar-se dentro do mais alto padrão ficcional. Sua capacidade de interpretar e de analisar paixões e os demais sentimentos, sua audácia na concepção, nas imagens, nas metáforas, nas comparações e nos jogos de palavras fluem como características próprias dessa que, com efeito, marcou seu nome na esfera da literatura brasileira.
Clarice diz, repetidamente, que deve ser entendida com o corpo, pois com ele escreve. Isto significa que sua escritura orienta-se para o pólo da sensibilidade e se coagula em superícones, esforçados por paranomásias, sinestesias, anagramas, aliterações (CANDIDO, 1987, p. 206).
Situações, todas essas, que são bem quistas pelo próprio Surrealismo.
A escrita de Clarice se apresenta totalmente instintiva, sensorial e intuitiva. No entanto, não deixa de ser cautelosa. A ficcionista sujeita o indivíduo e a linguagem a uma constante análise, e considera bem mais o que possa ecoar de um fato do que este propriamente dito, pois suas obras estão distantes do caráter “inventivo”. Portanto, a escritura clariceana pretende ser o correspondente entre a escuridade do mundo e sua monotonia mecânica dentro da ficção brasileira até então estabelecida.
Lispector tinha, certamente, a percepção da importância do seu trabalho, e apostou na elaboração de uma escrita “feita na linguagem, de linguagem e sobre a linguagem” (CANDIDO, 1987, p. 332), o que marcou também como uma colaboração que renovou os parâmetros do discurso literário.
Sua obra privilegia a função poética e metalinguística. Em língua portuguesa, está
“entre os raros para quem vida e linguagem se encontram, sob o signo da mesma paixão”
(CANDIDO, 1987, p. 332).
Como Clarice Lispector escrevia pelo simples fato de tentar compreender a si mesma e ao mundo, a palavra era para ela mais que um meio, uma passagem. Em algumas vezes tornava-se um tropeço, um obstáculo no meio do caminho. Com isso, a autora incute em nossa literatura essa preocupação com o ato de escrever, o que, certamente, torna-se uma das maiores contribuições da ficcionista ao discurso literário. Clarice não era uma escritora engajada, mas se preocupou em destacar determinadas temáticas sociais, numa visão muito abstrata e nebulosa, como afirmou Olga (SÁ, 1993, p. 333): “o sussurro dos fatos, não os fatos”.
Cabe ainda assegurar que a ficção clariceana não predispõe um estilo, mas sim uma forma. Sua obra compacta, realizada por meio das imagens e das metáforas, nos permite um entendimento da linguagem, que é geralmente referencial. Clarice ultrapassa as “coisas”, ela sempre idealiza uma relação entre elas e problematiza essas situações para delas absorver tudo quanto possível.
No romance Água Viva, texto escrito em forma de monólogo, a escritora deixa clara a sua grande preocupação constante: a busca pela linguagem. Por ser um livro que possibilita a desestruturação do gênero romance, Água Viva se transforma em um desafio. Emprega uma linguagem que não se perde no tempo, que é metafórica, e em que fatos, atos e sentimentos do dia a dia se transformam em divagações questionadoras sobre o sentido da existência e da vida.
Ao colocar o romance clariceano em questão diante dos preceitos surrealistas, pode-se verificar que, propositadamente ou não, o título já foge dos modelos clássicos. Não se trata mais de um título descritivo ou longo, Água Viva remete à própria condição de confronto entre o automatismo e a vida, vida esta que não apresenta identidade e nem um rosto, assim como a própria água viva.
A questão que norteia os limites entre a personalidade e a linguagem surge nessa obra clariceana possibilitada pelas reflexões realizadas acerca da escrita automática surrealista, que permite a libertação do sujeito dos limites da consciência e a extrapolação de sua essência.
Nessa perspectiva, estar inspirado é sentir-se lascivo, é estar aberto, há um desregramento dos sentidos. Pode-se perceber que, conforme os conceitos de Breton, há a existência de um texto
“ditado pelo pensamento, na ausência de todo controle da razão, fora de toda preocupação estética e moral” (MICHELI, 1991, p. 157). Diante de uma edição romanesca extremamente metalinguística, a escrita automática de Lispector permite certa liberação e democratização, em que a subjetividade domina os fatos e a narradora é responsável pelo compasso do texto.
De forma precisa, Clarice abarca as questões do automatismo por meio da escrita automática, e a liberdade ocasionada por essa situação torna-se uma condição necessária e, paradoxalmente, exige certo controle da consciência. Parecendo agir de acordo com os conselhos de Breton, a escritura clariceana se encaixa nos princípios por ele disseminados no Primeiro Manifesto:
Façam com que lhe tragam o necessário para escrever depois de se terem acomodado no lugar mais favorável para a concentração do seu espírito em si mesmo. Coloquem-se no estado mais passivo ou receptivo possível. Façam abstração de seu gênio, das suas capacidades e das dos outros. Repitam a si mesmos que a literatura é um dos caminhos mais tristes que podem conduzir a qualquer coisa. Escrevam rapidamente, sem um tema
predisposto, tão rapidamente a ponto de não pararem e não serem tentados a reler. [...]
Continuem enquanto lhes agradar. Se o silêncio ameaçar estabelecer-se por um erro, mesmo pequeno, que tenha cometido, uma falta digamos, de desatenção, rabisquem a folha sem hesitar com uma linha muito clara. Depois da palavra de cuja origem suspeitam coloquem uma letra qualquer, e letra l por exemplo, sempre a letra l, e retornem ao arbítrio, impondo esta letra como inicial para a palavra seguinte” (In: MICHELI, 1991, p. 157-158).
Numa obra que deixa de lado todos os padrões tradicionais romanescos, uma protagonista feminina dirige-se a um interlocutor masculino, deixando transparecer os seus anseios diante da busca pela “quarta dimensão do instante-já”, tudo isso em função da percepção da autora da total inconstância do presente. A narradora-personagem sente necessidade de uma experiência “viva” do presente, que para ela nada mais é do que o cerne das demais coisas. No meio de uma escrita sem um enredo determinado, em que os temas se repetem substancialmente, revela:
[...] E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o meu é. [...] Meu tema é o instante?
Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim. Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante (LISPECTOR, 1978, p. 10).
A protagonista pintora apresenta-se em Água Viva envolvida na literatura, uma experiência que ela faz questão de relatar ao leitor. Clarice, nesse momento, estabelece uma relação sólida entre a pintura e a literatura: a personagem é uma pintora que escreve a alguém e fala da pintura, fazendo com que a demarcação de um traço ou de uma pincelada estejam presentes na obra, marcas físicas de um trabalho.
Outro ponto importante nesse contexto é a música, que acena também por trás da escritura clariceana. Há certa fadiga em relação à palavra, essa palavra que nunca a contenta.
Assim, durante toda a obra presencia-se a comparação e a confrontação entre a palavra, a pintura e a música. Esta acaba não representando nada no romance, pois serve apenas como pano de fundo para a pintura e a palavra que, respectivamente, seguem descompromissadas e figuram como objetos da narrativa.
Vejo que nunca te disse como escuto música – apóio de leve a mão na eletrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço a eletricidade da vibração, substrato último no domínio da realidade, o mundo treme nas minhas mãos.
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando, sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última (LISPECTOR, 1978, p. 11).
Dessa forma, a escrita automática no romance Água Viva acontece, conforme os moldes surrealistas, em função da busca do “ser”. Num monólogo interior, percebe-se a experiência do “eu”, aquele que idealiza um mundo em perfeita comunicação. As várias vozes presentes conduzem a obra para uma ruptura com a realidade e a perfeita ligação com o instante. E a narradora-personagem deixa clara a sua intenção de atingir a “liberdade”, o que acontece por meio do processo surrealista:
[...] Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.
[...] Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade (LISPECTOR, 1978, p. 22-23).
E a liberdade, segundo o prisma surrealista, é fundamental. O homem é ou deve ser livre, deve ter a capacidade de exercer a liberdade. Se a arte é “filha” da liberdade, é por meio dela que o indivíduo a alcançará. A arte liberta de toda e qualquer função pragmática.
A palavra liberdade é a única que ainda me exalta. Considero-a apta a sustentar, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Ela responde, sem dúvida alguma, a minha única aspiração legítima. No meio de todas as desgraças que herdamos, cumpre reconhecer que nos foi deixada a maior liberdade de espírito. Cabe-nos a nós não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à condição de escrava, ainda quando disso dependesse o que é grosseiramente chamado de felicidade, seria atraiçoar o supremo imperativo de justiça que se encontra no íntimo de cada um (BRETON, 2001, p. 17).
Por meio dessa liberdade e dessa experiência, o sujeito distancia-se da razão e dos padrões pré-estabelecidos. A transformação subjetiva acontece e estabelece um novo encadeamento para as ações: a razão, antes fixa, cede lugar ao novo, ao objeto da transformação. E é esse o principal ponto de intersecção entre a obra Água Viva de Clarice Lispector e a escrita automática de André Breton: a dissolução e a metamorfose da subjetividade.
No entanto, não se pode deixar de observar que, em determinados momentos, a narrativa clariceana não se deixa levar totalmente pelos caminhos da escrita. Como foi dito anteriormente, “a liberdade ocasionada por essa situação torna-se uma condição necessária e, paradoxalmente, exige certo controle da consciência”. Daí o fato de, em certas circunstâncias, a protagonista insurgir-se contra o fluxo do pensamento, mostrando uma reação da consciência, que tenta manter-se íntegra diante da iminência da dissolução.
Acabou-se agora a cena que minha liberdade criou.
Estou triste. Um mal-estar que vem do êxtase não caber na vida dos dias. Ao êxtase devia se seguir o dormir para atenuar a sua vibração de cristal ecoante. O êxtase tem que ser esquecido.
[...] Mas agora tenho vontade de dizer coisas que me confortam e que são um pouco livres.
[...]
[...] O pensamento primário pensa com palavras. O “liberdade” liberta-se da escravidão da palavra (LISPECTOR, 1978, p. 93).
Contudo, mesmo diante dessa insubordinação da consciência, a escrita automática bretoniana mostra-se fundamental no processo da escritura de Água Viva, livro em que “Clarice Lispector propõe que se escreva como quem pesca no desconhecido e se arrisca nesse jogo, nessa tarefa”, conforme afirmou Antonio Maura certa vez.
Chegando ao ponto final dessa incursão, pode-se concluir que o Surrealismo serviu à literatura brasileira, especificamente ao Modernismo, como uma possibilidade de
“desagarramento” dos modelos vigentes. A chegada dos movimentos de vanguarda no Brasil permitiu uma nova forma de escrita, na qual a noção de realidade absoluta é questionada. Aos surrealistas interessam criações provenientes do acaso, por meio de uma escrita automática,
“que garanta ao homem uma liberdade realizável de maneira positiva. [...] Em outras palavras, opõe ao anarquismo puro um sistema de conhecimento” (MICHELI, 1991, p. 151), o qual oferece aos sujeitos a possibilidade de liberdade, ou seja, de traçar seu caminho aos moldes de um projeto promissor e transformador.
Referências bibliográficas
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 3. ed. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1976.
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BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.
CANDIDO, Antonio. “A nova narrativa”. In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo:
Ática, 1987. p.199-215.
CHÉNIEUX-GENDRON, Jacqueline. O surrealismo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LIMA, Sérgio. “O automatismo e a escritura-automática”. In: A aventura surrealista. Tomo I.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP; São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 279- 322.
LISPECTOR, Clarice. Água Viva. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
MICHELI, Mário. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
NUNES, Benedito. “O mundo imaginário de Clarice Lispector”. In: O dorso do tigre. São Paulo:
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SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 2002.