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Gangues da madrugada: práticas culturais e educativas dos pichadores de Fortaleza nas décadas de 1980 e 1990

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Academic year: 2018

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

NAIGLEISON FERREIRA SANTIAGO

GANGUES DA MADRUGADA: PRÁTICAS CULTURAIS E EDUCATIVAS DOS PICHADORES DE FORTALEZA NAS DÉCADAS DE 1980 E 1990

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NAIGLEISON FERREIRA SANTIAGO

GANGUES DA MADRUGADA: PRÁTICAS CULTURAIS E EDUCATIVAS DOS PICHADORES DE FORTALEZA NAS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Educação Brasileira da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará – UFC – para obtenção do título de Mestre em Educação

Orientador: Prof. Dr. José Gerardo Vasconcelos

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Dados Internacionais de catalogação na Fonte Universidade Federal do Ceará

NAIGLEISON FERREIRA SANTIAGO S 226 g Santiago, Naigleison Ferreira

Gangues da madrugada: práticas culturais e educativas dos pichadores de Fortaleza nas décadas de 1980 e 1990./ Naigleison Ferreira Santiago. – 2011.

95 f.: il. , color., enc. 30cm

Dissertação (mestrado)- Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, programa de Pós- Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2011.

Área de concentração: Educação em periferias urbanas

Orientador: Prof. Dr. José Gerardo Vasconcelos

Coorientadora: Profa. Dra. Cellina Rodrigues Muniz

1. 1.Arte de rua – Fortaleza(CE) – 1980-1990 . 2.Grafitos – Fortaleza(CE) – 1980-1990. 3.Vida urbana I.Título.

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NAIGLEISON FERREIRA SANTIAGO

GANGUES DA MADRUGADA: PRÁTICAS CULTURAIS E EDUCATIVAS DOS PICHADORES DE FORTALEZA NAS DÉCADAS DE 1980 E 1990

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Educação Brasileira da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará – UFC – para obtenção do título de Mestre em Educação

Aprovada em ___ / ___ / _____

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Prof. Dr. José Gerardo Vasconcelos (orientador)

______________________________________________________ Prof. Dra. Cellina Rodrigues Muniz (UFRN) (coorientadora)

______________________________________________________ Prof. Dr. João Ernani Furtado Filho (UFC)

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Muitas vezes, meus pais preocupados, com razão, com meu envolvimento na pichação gritavam a seguinte frase: “pichação, menino, é coisa sem futuro!” Dedico este trabalho a meus pais, Santiago Filho e Maria Ivani, que sempre dedicaram suas vidas para meu bem-viver. E atrevido que sou, também grito outra frase: “pichação teve futuro!”

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Agradecimentos

Algumas vezes ao combinar encontros formais e informais com amantes da pichação fortalezense, ouvia e percebia, sem querer ouvir ou perceber, reclames e xingamentos vindos de companheiras(os) ou pais que acabavam gerando brigas pelo envolvimento de tais com o movimento da pichação. Isso é coisa de vagabundo, de quem não tem o que fazer e que merecem é “peia” ou cadeia, diziam eles. Outras vezes percebia compreensão e até certo apoio pela paixão pela pichação de seus queridos, essa sim sentia mais conforto para ouvir, dava até prazer perceber tais posturas. Então, agradeço a sempre compreensão, apoio dedicado e envolvido de Adalcy Azevedo, querida, estimada e mãe de minha maior paixão Yasmin Santiago, minha linda e inquieta filha.

Agradeço também o apoio e paciência de meu orientador José Gerardo Vasconcelos e minha coorientadora Cellina Muniz. Ambos, estimados doutores, professores e pesquisadores errantes do errático.

São incontáveis os pichadores que cooperaram para a escrita desta dissertação, caso fosse nomear todos que estimo, correria o risco de faltar muitos em minha lista, então para não ser injusto com alguns, agradeço a todos os pichadores e amantes da pichação dedicados e comprometidos de corpo e alma com o movimento do charpi.

Agradeço também e não poderia deixar de agradecer a alguns amigos(as), parceiros(as), companheiros(as) a noventa graus, cooperadores diretos e indiretos de minha jornada de pesquisador e vivedor na UFC, entre muitos nomes possíveis e estimados destaco: Manuel Carlos, Dona Fátima Fonseca, Katia Cilene, Gadelha do Cordel, Emanuel Luís Roque, Aleksandra Previtalli, Dedé Calixto, Carol Fissurinha, Vicente de Paulo, Rafaela Florêncio, Favianni, Lia Fialho, Dalton Walbruni, Carlos Jorge, Claudio Pitmiler, Katia Malena, Pedrogas, Alexandre Gomes, João Paulo Punk e Buneto. Agradeço os divertidos e prazerosos momentos com a turma da hora do almoço no pátio da cantina da Gina. Almoços pagos ao final do mês, às vezes, dois, três meses... Mas, com certeza, pagos! Agradeço a todos eles: Gina, Pereira, Ramon, Gilmala, Zezé Aragão, Bicudinha, Alfiere, Suziane, Valmir, Dona Elem, Valdir.

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É noite; eis que se eleva mais alto a voz das fontes fervilhantes. E

minha alma é também uma fonte fervilhante.

É noite; eis que se despertam todas as canções dos amorosos, e

minha alma também é o canto de um amante.

Uma sede está em mim, insaciada e insaciável, que busca erguer a

voz. Um desejo de amor vive em mim, um desejo que fala a

linguagem do amor.

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RESUMO

O presente estudo apresenta e analisa determinadas práticas culturais e educativas construídas com o movimento das gangues de pichadores na cidade de Fortaleza, capital do Ceará, Brasil, nas décadas de 1980 e 1990. Esses sujeitos sociais ousados e transgressores se fazem presentes numa escrita com spray e sangue, carregada de vivacidade e aprendizados na cidade. A pesquisa infectada de parcialidade e paixão está na contramão das visões preconceituosas e moralistas que tratam esses sujeitos como vândalos, marginais e criminosos odiados que merecem a expurgação. Com o auxílio das reflexões de autores como Nietzsche e Foucault, de vontade de potência e genealogia; Maffesoli, em tribos errantes e emotivas; De Certeau, nas apropriações, dribles e astúcias na cidade, é possível lançar um olhar sobre esse movimento intrigante e desafiador. Quem são esses pichadores? Como agem? Como são estabelecidas suas práticas culturais e educativas? Quais os conflitos existentes? Quais as

motivações, inclusive, em riscos de vida, que levam os pichadores a marcar seus traços nos vitrais da cidade? São muitas as perguntas inquietantes sobre esse grupo social que são respondidas nesta dissertação intensa de vivências e experiências, percebidas em muitas

entrevistas e conversas com esses sujeitos, tendo também apoio nas páginas de periódicos que constantemente tratam do assunto e da escrita que esses pichadores escrevem à fina força nos muros, viadutos, marquises, placas e prédios, entendendo a própria cidade como um texto, documento vivo e latente de apropriação e pertencimento por parte desse grupo social repleto de emoção e ação.

Palavras-chave: Pichadores; gangues; vivências; paixão; práticas culturais e educativas;

cidade.

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ABSTRACT

This present study shows and analyzes certain cultural and educational practices built with gang graffiti movement in Fortaleza city, Ceará, Brazil, in 80’sand 90’s decades. These bold and lawless social people are present and written with a spray and blood, full of vivacity and learning in the city. This research, infected by passion and bias, is against the prejudiced views and moralists who treat these guys as thugs and criminals, who deserve hated purge. With reflections from authors such as Nietzsche and Foucault, about power and pedigree, Maffesoli about hordes and emotional; Certeau, the appropriations, tricks and gimmicks in the city, it´s possible to take a look at this intriguing and challenging movement. Who are these taggers? How do they act? How are cultural and educational practices? What are the conflicts? What are the motivations, even life-threatening, leading the graffiti to mark their features stained glass windows in the city? There

are many disturbing questions about this social group that are answered in this experiences and experiences intense study, perceived in many interviews and conversations with those guys, and also support in journals pages that deal constantly writing these taggers

write strength in thin walls, bridges, canopies, signs and buildings, considering the city itself as a text, latent and living document of ownership and belonging on part of this social group fully of emotion and action.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Foto 1 – Exemplos de Pichações. Embaixo da Pichação do Centro é Possível

Perceber Escrito Legível: desde 1988, Movimento Pichação... 14

Foto 2 P/ Slayer o Eterno... 20

Foto 3 “Charpi” e “Sigla” da Gangue... 23

Foto 4 – Elas só Querem Nossa Fama!!!... 31

Foto 5 – Charpi e “Sigla” da Gangue... 36

Foto 6 – Charpi com Dedicatória para o Mutreta G.U... 40

Foto 7 – Charpi Pichado na Reitoria da UFC, com Dedicatória para a Própria Universidade... 40

Foto 8 – Charpi com Dedicatória para Simone... 40

Foto 9 – Charpi com Dedicatória “para Júde Coração”, Também Pichado na Reitoria da UFC... 40

Foto 10 Charpi do Mutreta com Dedicatória para Dr. G... 41

Foto 11 Grafite de Naigleison... 41

Foto 12 Jornal Tribuna do Ceará, 14/11/1990, p.44... 43

Foto 13 Menores são Obrigados a Limpar suas Pichações... 45

Foto 14 Pichação, das Cavernas à Porcaria Moderna. Membro da Gangue... R.P.M. (Rebeldes Protestante da Madrugada) em Ação... 46

Foto 15 Charpi do Jr. Caveira A.B. com Numeração 01... 48

Foto 16 A melhor é Nós... 50

Foto 17 As Raízes da Onda. Glossário... 54

Foto 18 “É Nós!”...... 59

Foto 19 Exemplo de Publicação que Destaca a Figura de Slayer... 60

Foto 20 Exemplos de Corpos Tatuados por Charpis... 63

Foto 21 – Momento de uma Reunião-encontro na Atualidade em que se Percebe uma Viatura Policial ao Fundo... 64

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Foto 23 Momento de uma Reunião. Essa imagem é uma relíquia, encontrada em

comuni-dades do Orkut. Segundo relato de Pango e Fuga, que estão presentes nessa imagem, a foto foi captada em uma tarde na praça da avenida Treze de Maio, provavelmente captada em 1992 ao final de uma reunião, em que pode ser percebido ao centro, uma camisa branca aberta estampada com

o nome da gangue Geração Urbana... 68

Foto 24 A Cidade é Nossa!... 76

Foto 25 A vida é Desafio!... 78

Foto 26 Nem Ronda dá Jeito... 83

Foto 27 Fim de Tala... 84

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SUMÁRIO

1 BALANÇANDO A “TALA” E BOTANDO O “PITO:” INTRODUÇÃO... 14

1.1 Mural teórico... 18

1.2 Andanças nas ruas metodológicas da investigação... 20

2 MEMÓRIAS DE UM PICHADOR... 23

2.1 Trajetória de um pichador... 25

2.2 Surge um pichador-pesquisador na cidade... 33

3 GENEALOGIA DA PICHAÇÃO... 37

3.1 Com uma ideia na cabeça e uma “tala” na mão... 38

3.2 Marcas de aproximações e distanciamentos entre pichação e grafite... 42

3.3 1980-1990 a era de ouro do Charpi Fortalezense... 52

4 É NÓS! SOCIABILIDADES INTENSAS ENTRE OS PICHADORES FORTALEZENSES: ENCONTROS E REUNIÕES... 59

4.1 Reuniões-encontros na atualidade... 62

4.2 Encontros das antigas... 65

4.3 Reuniões das antigas... 66

4.4 Reencontros dos antigos pichadores... 69

5 PRÁTICAS EDUCATIVAS DOS PICHADORES FORTALEZENSES... 72

5.1 A cidade é nossa!... 73

5.2 Velozes criatividades... 76

5.3 A vida é desafio... 78

6 FIM DE “TALA”: CONSIDERAÇÕES FINAIS... 84

GLOSSÁRIO... 88

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1 BALANÇANDO A “TALA”1E BOTANDO O “PITO:” INTRODUÇÃO

No meio de uma madrugada silenciosa em 1989 numa grande avenida da cidade de Fortaleza, capital do Ceará, um grito é escutado: “Jousu nema, cialipo, reco!” Alguns segundos após esse grito alarmante em uma suposta língua estranha e desconhecida, são escutados tiros de arma de fogo e logo passam correndo três rapazes com a polícia em sua perseguição. Era mais um cotidiano em uma madrugada de uma cidade que é marcada pelo movimento dos pichadores.2 Essas pichações se fazem presentes nos muros, marquises, prédios e viadutos da cidade, com suas letras enroladas e supostamente indecifráveis para os alheios desse meio, muitas vezes tachadas pelos grandes veículos de comunicação e o senso comum como “coisa de vândalos e de marginais”. Movimento geralmente desconhecido em sua organização, marginalizado, punido e pouco estudado, muito comum na cidade de Fortaleza e em outras grandes metrópoles.

Foto 1 – Exemplos de Pichações. Embaixo da Pichação do Centro é Possível Perceber Escrito Legível: Desde 1988, Movimento Pichação

Fonte: Arquivo pessoal (2010).

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Os pichadores cearenses se utilizam de uma língua com as silabas ao contrário do uso formal, tala então significa lata, pichar – charpi (que também é o nome da pichação codnome que o pichador escreve), polícia - cialipo.

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Essas pichações que estão estampadas aos milhares na cidade de Fortaleza são o objeto de pesquisa que ouso estudar em uma dissertação de mestrado que adentra e desvenda

esse mundo que engloba muitos personagens, ações, façanhas e aprendizados. O que quer dizer esse grito em uma língua cifrada? O que são essas pichações? Quem são seus autores? Esses pichadores enfrentam os riscos das madrugadas de uma cidade bastante violenta, não faltando casos para ilustrar os perigos que correm tais sujeitos, sempre alvos constantes de armas de fogo de proprietários de imóveis, vigias noturnos e policiais que não hesitam em disparar tiros, não sendo raros casos de agressão, prisões e mortes. O que levou esses pichadores a aventurar-se pelas madrugadas da cidade para deixar suas marcas em letras enroladas? Esses são alguns problemas iniciais que norteiam minha pesquisa das práticas culturais e educativas dos pichadores de Fortaleza nas décadas de 1980 e 1990. Porém, ressalto que durante a pesquisa, aspectos dos grupos de pichadores do tempo presente também serão contemplados em vivências e reflexões.

Ao final da década de 1980, pichar tornou-se uma prática comum entre alguns sujeitos fortalezenses, numa socialização de indivíduos dos quatro cantos da cidade, que se uniram em um verdadeiro “boom” de grupos organizados, denominados por eles próprios de gangues de pichadores. Nesse período se estabeleceu e estruturou a organização dessas

primeiras gangues de pichadores, a que muitos sujeitos aderiram e ocorreu uma maior visibilidade da sociedade, gerando ações e debates que envolvem o movimento da pichação.

A mídia, programas televisivos de entrevistas ou policiais em âmbito local e nacional, deram grande atenção a ação das gangues de pichadores.

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percebendo um uso romântico-poético por parte dos primeiros pichadores, utilizo e agarro a poesia e a terminologia gangue, usada no período que pretendo estudar.

Essa terminologia gangue, usada entre os pichadores fortalezenses para denominar seus grupos sofre forte influência na divulgação constante em revistas e filmes, como o conhecido e apresentado na TV aberta brasileira na década de 1980 “Warriors, os selvagens da noite” (1979), direção de Walter Hill, que mostrava ações na madrugada das gangues e grafiteiros3 dos Estados Unidos, principalmente dos bairros negros como South Bronx que também usavam a terminologia gangs para se autodeterminar.

Pode-se dizer que a gangue é uma conceituação criada pela ideia de desvio, tendo em vista a expressão juvenil nos guetos de Chicago, de forma mais marcante, a partir dos anos 50. De outro modo, verifica-se que alguns agrupamentos juvenis auto-instituem-se gangue. (DIÓGENES, 1998, p. 114).

Fazendo parte de uma gangue, o pichador tem que seguir várias normas e regras construídas e estabelecidas entre sua gangue e entre todas as gangues de pichadores, dentre algumas, destaco a que cada integrante deve comparecer às reuniões de sua gangue, além de pichar muito e bem alto, divulgando suas marcas e gangues nos muros e “alturas” da cidade. Essas gangues têm intensas formas de sociabilidade, que consiste em eleger qual picha mais a cidade, numa proposta de disputa. Existindo, assim, uma hierarquização entre elas, baseada em integrantes que se destacam em sua ousadia ou por tais turmas resistirem ao tempo e consolidaram respeito entre os pares.

Esses pichadores vão, em pouco tempo, pichar os mais diversos e difíceis lugares da cidade, procurando assim integrar gangues destacadas entre os pichadores para assim

conquistarem respeito, tornando-se considerados e conhecidos. Seriam somente a busca da fama, reconhecimento e visibilidade social as razões deles se interessarem em pichar? A

formação e organização das gangues de pichadores incluíram uma grande porcentagem de sujeitos, principalmente, mas não exclusivamente de jovens.4 Tal como atesta a manchete do

3 A palavra grafite aqui é usada por não ser existir a palavra pichação na língua inglesa. A palavra grafite ou GRAFFITI vem do italiano GRAFFITI; que em sua origem latina (GRAFFIO) designava um instrumento cortante utilizado para gravar letras em placas de cera que precederam o papiro e o papel. Em sua vertente grega, temos a palavra GRAPHEIN, que significa escrever e desenhar. Já SGRAFFITO, ou ENTAILHE, é um termo que designou um procedimento nobre da decoração mural renascentista. Hoje o termo GRAFITE está ligado ao trabalho artístico com tintas, principalmente o spray, em imagens que muitas vezes são coloridas ou em mensagens de cunho crítico (GITAHY, 1999).

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jornal O Povode 12 de março de 1991: “Juizado de menores autua quatro grafiteiros por dia.” Fica evidente a quantidade de envolvidos nas gangues de pichadores, das quais, assumo, fiz parte.

Em minha empreitada de pesquisador sentia uma enorme necessidade de envolvimento com os pesquisados, nada de neutralidade, imparcialidade ou distanciamento, pelo contrário, me considero e sou considerado de dentro do movimento da pichação. Apaixonado, amante convicto, assim como muitos outros sujeitos se assumem do movimento da pichação. Pesquisador particip(ativo) e vivedor desse mundo. Por isso escrevo em primeira pessoa, assumindo de corpo e alma minha paixão e dissertação.

Creio que nenhum trabalho surge do acaso, mas sim da própria vida, de alguma das suas circunstâncias. A escolha do tema é sempre um processo que surge de nossas experiências, preocupações e paixões e que nos leva à busca, nos põe em movimento. (ADAD, 2006, p.126).

Nesse período muitos sujeitos conheciam, queriam conhecer ou integravam alguma gangue. Esses pichadores de diversas gangues também estabelecem espaços de encontro em praças e locais predeterminados de Fortaleza, onde esses sujeitos interagiam e trocavam experiências, aumentando significativamente a adesão à prática da pichação.

O pichador de Fortaleza inventa uma estética5, priorizando o risco, a emoção, a criatividade, o andar, o olhar, o conhecer, o escalar, o esconder-se, pois anda e conhece toda a cidade, apropriando-se verdadeira e ativamente dos seus espaços. Os pichadores constroem saberes intensos, em vários momentos de vivências nas socializações das ruas, becos, praças e avenidas de Fortaleza.

O movimento da pichação fortalezense é muito intenso e há tempos faz parte da dinâmica e leitura da cidade. Essa ação de pichar também ocorreu muito nas escolas e ônibus, pois pichador também “picha com canetas Piloto e giz de cera.” (O Povo, 11/03/1991, p. 12A), sendo encontradas muitas pichações em paredes, quadros-negros e cadeiras das escolas, assim como assentos no interior do transporte coletivo. O que justifica esse movimento merecer mais atenção e conhecimento, pois queiramos ou não, é bem presente, e muitos não sabem o que há por trás dessas pichações, sendo mais fácil taxar, desqualificar ou punir tal movimento citadino. Quantos alunos já foram expulsos de escolas com a justificativa de

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estarem pichando suas paredes! Quantos outros foram presos nas ruas! Quantos outros tiveram suas vidas ceifadas!

Partindo dessas primeiras percepções, acredito ser necessário apresentação e análise desse movimento que balança e rabisca a cidade. Uma relação que transforma vidas, apropriando-se da cidade de forma criativa e intensa. Uma pedagogia em que a indisciplina e a malandragem se fazem presentes entre grupos de pichadores, que escrevem sua linguagem no espaço urbano.

Este trabalho tem entre seus objetivos conhecer, compreender e analisar como essas gangues de pichadores surgem, como agem e expressam-se. Como se dá sua comunicação com seus diferentes códigos, signos e normas. Como se desenvolvem os discursos e como são tratados e travados os conflitos existentes e como se constrói uma dinâmica que constrói saberes que tem o drible, a astúcia, a velocidade, o destemor e a criatividade como elementos essenciais de sua constituição.

1.1 Mural teórico

Pensar em grupos que desenvolvem ações transgressoras no cotidiano urbano

requer diálogos com autores que tratem de temáticas relacionadas a práticas de sujeitos que alteram a ordem e intrigam o poder estabelecido. As cidades são repletas de grupos

transgressores no decorrer da história. Michelle Perrot (1992) registra a atuação de bandos denominados “apaches” que atuavam nas cidades francesas no início do século XX. Hobsbawn (1978), em “Rebeldes Primitivos” fala de “turbas urbanas” como movimentos de grupos, que aparentemente desorganizados, agitavam as cidades e alteravam a ordem no século XX.

Os apaches constituem uma microssociedade com sua geografia, sua hierarquia, sua linguagem, seu código. Eles reivindicam abertamente o direito a diferença e retomam a tradição dos submundos. Eles “desfiam o jarre”, a gíria, essa língua dos malfeitores a que diariamente acrescentam novas expressões, as vezes tipicamente pitorescas, e que todo dia modificam de modo a poder conversar despistando a “rinifle” (A polícia). (PERROT, 1992, p.322).

Na década de 1980 grandes cidades brasileiras são invadidas por mais um desses

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destinados a temática e pesquisa nas diversas áreas das ciências humanas sobre a atuação de outros grupos urbanos rebeldes e marginalizados. Entre muitos possíveis estudos, destaco os escritos da “pesquisadora das gangues de Fortaleza” Gloria Diógenes (1998), a pesquisadora é referência em reflexões sobre os grupos denominados de gangues que atuam em Fortaleza, sendo contemplados também, em seu trabalho, grupos de pichadores.

Entendendo ser a pichação um movimento intrigante, diferenciado, que incomoda as verdades absolutas dos moralistas, meu pensamento indicava que deveria prestigiar reflexões de algum filósofo que desconstruísse as verdades absolutas, queria estabelecer leituras com um pensador das diferenças, então, ninguém melhor que Friedrich Nietzsche (2006, 2007, 2008, 2009), suas críticas a moral cristã, suas reflexões sobre a vida e desejos como “vontade de potência” e seus estudos sobre genealogia estão presentes nesta dissertação.

Quando associo genealogia e Nietzsche, de imediato sou remetido aos estudos de Michel Foucault (2008, 2010). Este trabalho está amparado nas reflexões de Foucault, em sua perspectiva de História como jogo de forças e seus estudos sobre os excluídos e marginalizados, pois sobre eles caem os olhos vigilantes e punitivos.

Filio-me também a quem considero o pesquisador dos grupos “tribais” e “errantes” da contemporaneidade: Michel Maffesoli (1996, 2001, 2006) e seus estudos sobre a importância das relações afetuosas e emotivas na formação e manutenção de grupos “tribais transgressores”.

Percebendo o movimento da pichação como uma ação que demanda saberes, criatividades, apropriações, táticas, estratégias, astúcias que fazem o cotidiano das cidades, estabelecendo diálogos com os escritos de Michel De Certeau (2008).

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1.2 Andanças nas ruas metodológicas da investigação

Dentre tantos pichadores, destaco que alguns picham desde finais de 1980 até hoje, num verdadeiro “vício rebelde.”6

São tantos anos de atuação e envolvimento que alguns pichadores passam a ser referência para outros pichadores fortalezenses, como confirma essa dedicatória que um pichador faz para “SLAYER, O ETERNO” referindo-se aos muitos anos de atuação do afamado pichador líder da EDT (Espírito das Trevas).

Foto 2 – P/ Slayer o Eterno

Fonte: Arquivo pessoal, 2009.

Para entender as práticas culturais e educativas dos pichadores fortalezenses,

foram dedicados muitos momentos de conversas e entrevistas com esses atores sociais, principalmente pichadores que têm muitos anos de envolvimento na pichação e suas narrativas têm muito a falar sobre histórias, casos, fugas, prisões, escaladas, malandragens e relações com o universo marginal, onde pedagogias são criadas entre sujeitos que buscam aventuras e indisciplina na madrugada urbana. Nessa empreitada, apoio-me em uma fonte histórica rica de possibilidades de trabalho, a história oral, valorizando experiências, vozes e memórias dos pichadores.

Minha busca a esses sujeitos sociais foi facilitada por intermédio das redes sociais que se estabeleceram principalmente com o auxílio da Internet, vasculhando e

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conversando com centenas de atuais e ex-pichadores nas comunidades no Orkut, diálogos intensos e carregados de recordações sobre a memória da pichação não só fortalezense, mas de todo o Brasil.

Os pichadores são atores sociais que armazenam e divulgam memórias que podem ser escritas de várias formas no imenso espaço patrimonial, como afirma Barthes (1987):

A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos a nossa cidade, a cidade onde nós nos encontramos simplesmente quando a habitamos, a percorremos, a olharmos. (1987, p. 30).

Outra forma de perceber essas memórias é analisar as marcas, frases, dedicatórias,

afirmações e conflitos que estão estampados, aos milhares, na cidade. Os pichadores escrevem, deixam traços de sua cultura com spray e sangue nos vitrais da cidade e “agrada -me apenas o que alguém escreve com sangue e apreende que sangue é espírito.” (NIETZSCHE, 2008, p. 58). A cidade é um grande texto aberto para todos os olhares curiosos e atentos do pesquisador reflexivo, que ultrapassa o limite do visível na leitura do “mais desmesurado dos textos humanos, feita de lugares paroxísticos em relevos monumentais. O expectador pode ler aí um universo que se ergue no ar.” (CERTEAU, 2008, p. 169-170).

Portanto, procurar no espaço da cidade a visibilidade da sua historia é buscar a memória e a memória encontra-se nessa paisagem, conjunto de tudo que descortina pessoas, instituições, arte, literatura e que possa falar e construir a história desta cidade. Dessa forma, observamos a cidade, enquanto lugar de produção de sentidos, com um olhar plural verificando que o seu verdadeiro significado encontra-se na relação homem/lugar [...] A cidade é um texto com vozes que falam dos sinais da vida cotidiana, das necessidades e dos sonhos de cada um dos indivíduos e do conjunto de todos eles. Essas vozes, que falam da cidade, é que aos poucos, vão construindo a sua memória, uma memória que é social. (ARARIPE, 2003, p. 360-361).

Portanto, milhares de marcas, riscos e traços pichados nos espaços da cidade em muros, marquises, prédios, viadutos, muito evidenciam sobre a atuação de gangues de pichadores. Tanto que essa pesquisa está repleta de imagens, captadas em leituras da cidade de Fortaleza, que me auxiliam em reflexões e argumentações.

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não passavam despercebidas, sendo uma preocupação do poder público, não faltando opiniões de apoio e repulsa à audácia desses atores.

A proposta do vereador Klinger Mota que está preparando projeto de lei proibindo a venda de sprays a menores, e mesmo os maiores só adquirirem o produto mediante comprovação da idade. Seria uma forma de evitar as pichações que emporcalham a cidade, tornando deprimente o seu aspecto [...] Também já se fala que alguns proprietários de imóveis recém-pintados estariam orientando seus vigilantes a expulsarem, “a bala”, se for preciso, essa “molecada”. Na Tibúrcio Cavalcante, em um muro branco, o dono da casa deixou um recado aos grafiteiros, chamando-os de sujos, porcos e débeis mentais. A sociedade revida a agressão. (O Povo, 11 de março de 1991, p. 12A).

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2 MEMÓRIAS DE UM PICHADOR

Foto 3 –“Charpi”7e “Sigla” da Gangue

Fonte: Arquivo pessoal, 2010.

Como é possível perceber a memória de um grupo social altamente marginalizado, excluído e que sofre um intenso processo para silenciar-se, desencadeado por muitas forças e pancadas do poder dos “senhores da memória, do esquecimento e da história”? (POLLAK, 1989). Com certeza, as reminiscências de membros participantes de tais grupos são fontes importantíssimas para apresentação e compreensão de suas memórias. Não

que esse grupo se permita facilmente ou docilmente silenciar-se, pois a ousadia faz parte de sua filosofia e há tempos estabelecem uma disputa “subterrânea”, “escancarando” constantemente suas vozes (aparentemente incompreendidas) nas fuças do poder. Apresentam-se sem pedir licença nos suportes de controle e disciplina que o poder se utiliza para articular suas dominações, como nas empresas midiáticas ou na própria arquitetura imagética das cidades. Esse grupo comete assim dois “crimes”: o crime de ousar desafiar as leis instituídas pelo poder e o crime de não permitir silenciar-se por ele. Grupo “criminoso da palavra, como o rebelde, o que afronta o poder, como poeta do silêncio e que por isso merece ser ouvido, educando nossos ouvidos para ouvir não só a estridência das palavras, mas a melodia do silêncio.” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 106).

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Portanto, inicio este texto com a contemplação de uma das possibilidades dessas vozes serem ouvidas e percebidas, representada na foto 3, que corresponde a um charpi de minha própria autoria, tendo esse feito sido realizado numa provável madrugada de 1992, em uma grande avenida fortalezense, e que, passados dezenove anos, insiste em permanecer sem ser pintada, à espera de uma provável convocação para reflexões futuras, instigando o autor ao seu reencontro em busca de novos diálogos.

Entendo ser de fundamental importância, para um melhor entendimento dos caminhos que trilhei até chegar a esta pesquisa, partir de uma anamnese em relação a essa imagem e meu envolvimento com o tema de minha pesquisa. Exercício este, para espanto de muitos, ousado, transgressor, e por que não dizer audacioso, de escrever uma autobiográfica das reminiscências de minhas próprias vivências no meu trajeto como integrante das gangues de pichadores de Fortaleza nos inícios de 1990. Não consigo desprezar essas informações que estão cravadas em meu corpo, que aqui considero importantes, numa valorização da categoria experiência de um vivedor e pesquisador que vive o universo dos seus pesquisados, numa “preocupação em resgatar a noção de experiência e, consequentemente, resgatar uma concepção de história aberta, plural e carregada de humanidade.” (VASCONCELOS, 2010, p. 108). Muitas vezes, envolvimentos afetivos em pesquisas são negligenciados, usam a

desculpa antiga e ultrapassada de neutralidade das paixões ou imparcialidade científica. Medos e receios ainda circulam em atrevimentos metodológicos, pois:

A meu ver, o principal desafio para os historiadores orais na atualidade é encontrar meios de facilitar a união entre a teoria e a prática, a fim de que os debates sobre história e memória, sobre a relação na história oral, ou sobre os dilemas éticos e políticas de nosso ofício se fundamentem tanto nos novos meios de conhecimento quanto na experiência prática. (AMADO; FERREIRA, 2006, p. 72-73).

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aspectos. Entendo também que essa metodologia não é tarefa tão simples, pois reconheço individualidades e particularidades de cada trajetória. Mas, reafirmo, para não deixar dúvidas, haver grande coincidência de falas e aspectos em depoimentos sobre a trajetória de muitos pichadores.

2.1 Trajetória de um pichador

Quando tinha quatorze anos de idade, isso por volta de 1989, comecei a prestar atenção em algumas novas inscrições (até então indecifráveis para mim) estampadas com tinta spray nos muros do bairro fortalezense onde residia e também alertado por ouvir lamentos e queixas de um tio-avô que constantemente tinha o muro de sua casa como alvo de alguns dos autores de tais inscrições. Dizia ele, indignado, que iria esperar armado na madrugada, na esperança de surpreender os pichadores.

Percebi que tais inscrições também se encontravam espalhadas por diversos locais da cidade e a impulsionadora curiosidade aumentava em relação a tais pichações, a ponto de querer compreender e tentar decifrar tais códigos que se espalhavam por todos os bairros por onde costumava passar. O que era aquilo? Quem seriam seus autores? Por que pichavam?

Seriam do bairro onde eu morava? Onde esses sujeitos moravam? Que códigos e símbolos seriam aqueles? Sabia que era uma “onda” nova na cidade, pois até então só observava

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legíveis: Sony. Se fosse o meu “primeiro nome” seria muito denunciador, além da pouca habilidade que tinha em manusear a escrita com o spray. G nem nome tinha, dizia ele que na hora sairia alguma coisa, tornando-se agente do improviso. E foi isso que aconteceu, pichamos o muro respectivamente com os nomes Sony e Papa, resolvendo com muita inexperiência e nervosismo incrementar escrevendo palavrões e obscenidades, além de pichar próximo a pichações já existentes, chegando inclusive a pichar sobre algumas. Não sabíamos, mas tínhamos cometido dois erros graves perante as regras dos pichadores: escrever gratuitamente obscenidades/palavrões e ainda ter “atropelado” a pichação de outro. Isso foi revelado pelo próprio irmão de G que se apresentou como um pichador de nome Levado. Ele e mais quatro jovens também pichadores, entre eles uma mulher, nos repreenderam e ameaçaram por termos quebrado tais regras. Foi esse começo infeliz que levou Levado a querer nos iniciar na pichação. Levado nos revelou algumas regras e códigos, entre elas, a de que tínhamos que criar um codinome, um apelido, um charpi, teríamos que criar um alfabeto com uma letra estilizada, exclusiva; nem o codinome nem as letras poderiam ser semelhantes com outras que já existiam. Levado foi indicando nomes e posso dizer que não foi tarefa fácil escolher um apelido/codinome, pois, percebi que em Fortaleza, à época, já existia um número elevado de pichadores, chegando a ser relatado por Diógenes (1998, p. 152) como um “modo homogeneizado de prática juvenil”. Foi quando me ocorreu um codinome que segundo

Levado não existia: Mutreta. Iria pichar com esse codinome, nascia então o Mutreta. Nascia o

outro que estava em mim e queria sair, ser nômade, errante, aventureiro, numa vida múltipla, vivida em um mesmo corpo, diferente do que sugere todo um pensamento monoteísta cristão, que propõe, ou melhor, impõe uma só maneira de vivenciar a vida, como devendo exercer uma só função, cumprindo uma vocação única. Prefiro pensar como Maffesoli e assumir o politeísmo de que nos fala o autor, num sentimento que leva a vida a ser vivida de variadas formas, de várias intensidades. O estudante, o trabalhador, o “responsável” durante o dia, e o mesmo sujeito, o aventureiro, o transgressor, o “irresponsável” ou pichador das madrugadas. Facetas múltiplas que estão em todos nós, e a qualquer momento nos são reveladas para que possamos, em alguma brecha, sair de ordens impostas e estabelecidas.

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Levado fez, então, um esboço de alfabeto a ser adotado pelo Mutreta para que treinasse e desenvolvesse a fim de que o novo iniciado pudesse “meter seu nome” mais elaborado e “estilizado”. Levado assumia assim o papel de iniciador, como um professor que ensina a escrever as primeiras letras e palavras, que apresenta algumas práticas e normas, muito comum em relatos com diversos pichadores esses iniciadores. Eu, então, me transformo

em Mutreta, e junto com o G, ou melhor, o Papa, nos aprofundamos mais nas práticas

culturais e educativas que os grupos de pichadores fortalezenses constroem e reconstroem. A atravessar essas práticas, há a norma dos grupos de que deveríamos nos associar em uma gangue de pichadores.

Para formar uma gangue de pichador não há muito mistério, é preciso apenas se associar a outros sujeitos dispostos a pichar, formando assim uma irmandade clandestina onde todos ajudariam a divulgar o nome da gangue. Meu colega e eu fundamos, então, nossa própria gangue e sua sigla era A.G. (Anjos do Grafite), pois em nenhuma gangue formada, que já atuasse e fosse conhecida entre os pichadores seríamos bem-vindos ou convidados, por sermos iniciantes e desconhecidos. No início, só pichava no entorno do meu bairro e não tão de madrugada, era identificado na linguagem dos pichadores como um “pião”.

E é sendo um “pião” que se começa como pichador, e muitos não vão sair dessa condição, pichando somente nos arredores de sua própria casa, em espaços de pouco movimento de transeunte, como mostra o revelador e informativo relato de Pango8, sobre o

início de sua trajetória em momentos comuns a de muitos outros pichadores.

O meu primeiro “nome” era Vavão da V.M. (Vândalos da Madrugada), era uma

gangue aí, e o líder era o Pavão. Vavão era meio que “chupação” de Pavão,

parecia com o dele. Então nós encontramos o Carlin e pedimos para ele “bolar”

uma letra bem legal, pois ele sabia umas letras do Rio de Janeiro, isso por volta de 1989, eu via muito o Carlin e o Rape, nos já tínhamos a mizade com eles, todos andavam de skate pelas áreas, eles moravam perto de nós, eles nos condomínios e

eu da favela, aí eu disse, ei “chapa” da pra “bolar” um estilo de letras bem massa?

Aí ele “bolou” um alfabeto e me deu. Ai eu comecei a divulgar Vavão, aí eu tinha

um medo enorme, pegava na lata todo se tremendo, normal de quem estava

começando, eu era o mais medroso, a “galera” “metia os nomes” nas avenidas e eu queria “meter o nome” nos capins, aí a “galera” dizia que só quem ia ver meus “nomes” era os ratos e morcegos, só queria “meter o nome” dentro dos matos, eu

não podia ver um carro que me escondia, eu dizia pro Pavão que esse negócio de

pichação não era pra mim, eu era um “pião” mesmo de carteirinha. Aí eu fui perdendo o medo vendo o Pavão “fazendo” os prédios, escalando pelos combobos

onde tinha o nome do Sucata, o Pavão se garantia. Então a V.M. começou a

“detonar”, mas não chegava nem perto das gangues mais antigas como a F.G.

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(Feras dos Grafiteiros), G.U. (Geração Urbana) e R.M. (Rebeldes da Madrugada), era como um sonho impossível, eu pensava assim. Nós nem existíamos para esse negócio de pichação, a gente só pichava no bairro, que era o bairro de Fátima, só em uma rua lá onde passava o ônibus do bairro. Quando eu comecei a pichar tinha uns quatorze, quinze anos de idade, por essa faixa aí, na adolescência mesmo, hoje eu tenho 36 anos, eu não me lembro muito bem não, faz muito tempo. Foi quando chegou o Moela, isso por volta de 1990/91, e disse: o negócio é o seguinte, vamos formar uma gangue, a gente via a “galera” se encontrando nas reuniões nas praças sendo idolatrados, a gente via e achava que eles se garantiam, ai que fiquei com

mais vontade de “meter mais nomes”, e disse para o Pavão que tava com vontade de mudar o “nome”, então mudei pra Pango, e a “negrada” dizia que o meu P

parecia com o do Pafe que era uma bolona, então resolvi esticar o P, Nesse tempo

não podia nem imitar o “nome” do cara, podia rolar até conflito, dava maior

confusão. Foi o Carlin que “bolou” o Pango pra mim, o Rape não dava muita bola

pra gente não, com aquele jeitão de carioca, pra mim quem trouxe a pichação pra

cá foi o Rape, eu cheguei a ver quando ele “metia nome”, o cara era “considerado”, era como um Deus, todo mundo queria ver e conhecer. Ai o cara

vai aperfeiçoando mais o seu “nome”, começando a fazer umas coisas diferentes,

dando uma enrolada, ai comecei a “detonar” o charpi Pango. Então o Moela me

chamou para formar uma gangue, era eu, Pavão, Drek, Rosoi, Kakal, e mais alguns que agora não recordo. Aí o Moela me chamou pra “detonar”, eu me lembro da

primeira marquise que eu “botei” meu charpi, foi na Avenida Visconde do Rio

Branco, o Pavão subiu primeiro e eu fui depois. Sabe de uma coisa eu vou é

“arregaçar” agora! Nós formamos então a P.N.G. (Pichadores da Nova Geração) e

o líder era o Moela, o número 1, e o lema era o seguinte: vamos andar só a gente e

nós agora somos uma família, vamos divulgar a P.N.G. e vamos “pegar” umas marquises ai onde tem os dos “considerados” como o do Tango da E.R. (Esquadrão

Rebelde), Jr. Caveira da A.B. (Abandonados do Bairro), e começamos a fazer amizades. A P.N.G. começou a se espalhar para todos os bairros de Fortaleza. A

gente ia para os bailes funks e levava duas, três “talas”, e no meio do baile a gente

“saia” e “arregaçava”, saia uns para o lado da Avenida Dedé Brasil e outros para

o lado do Iguatemi, ia dois pra cada lado, se separávamos e “detonávamos” os

bairros divulgando a P.N.G. e nos andávamos por Fortaleza toda, ai começamos a

ser “considerados”. Eu aprendi e me estimulei com o Rape andando de skate e

“metendo nome”, e eu dizia que o cara era doido, cabelão, magrão, “paludo” ele

“metia” seu nome bem ligeirinho, ai eu ficava “invocado, isso foi que me

incentivou, garotão vendo aquilo ali, aquela ousadia, porra cara, eu vou puxar pro lado desse cara. (PANGO, entrevista em 14 de março de 2010).

Semelhante ao relatado por Pango, foram essas primeiras pichações, impulsionadoras para que eu conhecesse muitos outros pichadores, principalmente dos arredores do bairro em que morava. E na A.G., alguns pichadores, também iniciantes, começavam a se incorporar. Eu, como um dos lideres tinha, a tarefa de me destacar em número de pichações para poder divulgar meu charpi e gangue. Até que, com meu empenho em pichar a ponto do meu charpi começar a ser visível e envolver-me mais ainda na dinâmica do mundo da pichação, fui convidado a integrar a A.N. (Anarquia Noturna), gangue de mais “destaque” no meio dos pichadores, convite que na ocasião de imediato aceitei. Deveria comparecer numa reunião da A.N., na praça do bairro Tancredo Neves. Essa reunião, entre outras pautas, era para oficializar a entrada de novos pichadores na A.N., Mutreta, Blefoso e

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ainda mais, me apaixonei perdidamente pelo mundo da pichação, era uma instigante “vontade de potência” que florescia em minha pessoa.

A preeminência elementar às forças espontâneas, agressivas, conquistadoras, usurpadoras, transformadoras, e que sempre estão produzindo novas exegeses e novas direções, submetendo a suas leis à própria adaptação. (NIETZSCHE, 2009, p. 76).

Esse sentimento empolgante de paixão, de uma “vontade de potência”, se transforma em uma irresistível vontade em viver intensamente essa vida nas experiências dos grupos de pichadores, não importando leis moralistas ou punitivas, sentimento que não foi exclusividade só minha ou do Pango. Entre os pichadores e até pesquisadores do tema que mantive diálogo, era quase unanimidade afirmarem que, o mundo da pichação é contagiante, “viciante”, uma “encantadora juventude criminosa”. (OLIVEIRA, 2009).

E queria pichar, como os pichadores “considerados”, não só no entorno do bairro onde morava, tinha que conhecer mais códigos e regras, andar nos locais de encontro dos pichadores, me socializar, arriscar, enfrentar, me tornar realmente um pichador “destacado”, conhecido e conhecedor desse universo dos grupos organizados de pichadores fortalezenses. Se quisesse permanecer na gangue, tinha a tarefa de pichar muito e em diversas regiões da cidade, teria que fazer uma revolução em minha vida para poder sair nas madrugadas para pichar, dizia mentindo, muitas vezes para meus pais que iria dormir na casa de amigos da escola e na realidade frequentava baladas e bailes funk na cidade, muitas vezes dormia o começo da noite em cima de marquises de paradas de ônibus ou em prédios abandonados da cidade no intuito de “nos horários” sair andando por ruas e avenidas pichando, ou melhor, “detonando” meu charpi e o nome de minha gangue. “Detonei” tanto que fui contemplado com o convite de completar os 20 integrantes de outra gangue, ainda mais afamada entre os pichadores que a anterior: iria fazer parte então da Geração Urbana, nome de gangue inspirada na banda de rock nacional Legião Urbana que fazia enorme sucesso no período. A G.U. era uma das mais conhecidas e afamadas gangues de pichadores na época, gangue que disputava a liderança com as gangues R.M. (Rebeldes da Madrugada) e F.G. (Feras dos Grafiteiros) qual pichava mais a cidade.

G.U. Geração Urbana, uma das gangues mais expressivas do final dos anos 80 e

início dos 90, que teve no seu “cast” feras como Ramon, Wagner, Falcão, Secão,

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Fazia, então, parte da G.U. Senti-me o máximo, bastante orgulhoso por fazer parte de tal gangue. Nessa época, a vontade de pichar e os conflitos em casa aumentaram, e em mesmas proporções aumentaram minha reputação de pichador, amado e odiado na rua e na escola. Transformei-me em um pichador “famoso”, mais experiente a ponto de também estar incentivando, inspirando e ensinando outros a picharem. Andava em todos os locais de encontros de pichadores, em todos os dias da semana, gazeando aulas, (per)correndo a cidade, conhecendo e aprendendo com vivências em muitas praças e avenidas fortalezense e com cem novas amizades, muitos namoricos, diversões, transgressões, baladas (principalmente nos bailes funk), conflitos, “rodadas” em viaturas policiais, “escaladas de alturas”, orações em cima de marquises, com a polícia ou vigias embaixo, coragem, medos, aventuras, e uma “graduação no meio-do-mundo, graduando-se nas artes e manhas das ruas dessa Fortaleza cidade, já tão selvagem e bela.” (CALIXTO, 2007, p. 109).

No meio das socializações que envolviam o movimento da pichação, muitas vezes era reconhecido e respeitado. Era o que muitos pichadores procuram: a fama. O que me levava, inclusive, a assinar meu “autógrafo”, ou melhor, meu “charpi”, em dezenas de agendas por todos os cantos que frequentava, prática bastante difundida entre os amantes das pichações, como mostra o relato de Pango:

O que fico mais admirado é eu ter pego tanta fama, nunca imaginei, sério mesmo! Eu nunca imaginei! Eu não sou ator de novela, talvez seja até visto por parte da população como um bandido, a fama é impressionante, onde eu ando, criança nascendo hoje me vê na rua e diz: olha o Pango! O Pango quem é esse cara? Isso me impressiona, a fama que eu tenho e de ser conhecido na cidade todinha, nesse tempo não tinha internet, hoje é mais fácil, mas naquele tempo pra pessoa se

divulgar era “osso”, eu tive esse privilégio de ter sido divulgado antes da internet.

Conheço muita gente, muita gente vem aqui, me ver, para eu assinar agendas, gente de todo canto de Fortaleza, gente como o Falcão que eu tenho maior carinho. (PANGO, entrevista em 14 de março de 2010).

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Foto 4 – Elas só Querem Nossa Fama!!!

Fonte: Arquivo pessoal, 2009.

Era muita fama, a gente ficava conhecido. Era respeitado e tinha moral, além, é claro, de conseguir as gatinhas com mais facilidade. Tinha pichador que era feio

que doía, mas por “meter seu charpi nas alturas” as gatinhas gostavam e queriam

conhecer nós; todo mundo queria nos conhecer e pediam pra gente assinar nas agendas deles nas praças. (RABECÃO, entrevista em 06 de dezembro de 2009).

O privilegio é que eu sou da favela e nunca imaginei ficar com “filha de papaizinho”, de ir para um apartamento abandonado e me dá de bem lá, cheirosa,

só usava perfume da Natura, essa é uma vantagem na pichaçã o, eu da favela, ganho

spray das “gatas” pra botar uma dedicatória com o nome delas. Arrumei muita

namorada! Hoje sou um cara casado, com responsabilidade, ela é a que me pedi mais para parar, me dá conselho. (PANGO, entrevista em 20 de agosto de 2010).

Na G.U., cheguei a me tornar um dos “cabeças”, aumentando consideravelmente as badalações em diversos bairros de Fortaleza sem ser molestado ou incomodado por ser um pichador “famoso” da G.U., conhecia muitos cantos e gente da cidade em minhas andanças diurnas e noturnas, quantas vezes não escapei de assaltos, por ser conhecido e considerado pelos assaltantes, ou muitas vezes utilizar de brechas, dribles e astúcias apreendidas certamente com o movimento da pichação para escapar de possíveis sinistros nas ruas de Fortaleza. Muitas viagens, entrevistas à imprensa, ações envolvendo a pichação, cinemas, “roupas de marca”, lanches, sprays, “gatinhas” e tudo isso com pouquíssimo ou quase nenhum dinheiro. Muitas vezes só na “fama” e no privilégio de ser um pichador de uma gangue como a G.U.

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de fogo (de quantos não escapei!), ser pintado com o próprio spray (até por minha mãe!), suspensões e expulsões de escolas, quedas, prisões, punições e preconceitos os mais diversos. Vivenciei esse “vício rebelde”, dos quatorze aos dezoito anos, idade que muitos pichadores param, ou como preferem, se “aposentam”, por ser a punição mais rígida para quem é maior de idade, não sendo a regra, muitos outros pichadores mesmo em maioridade continuavam a pichar num verdadeiro vício, existindo assim pichadores e gangues que atuam ininterruptamente há mais de 20 anos em Fortaleza.

Pensei estar então “aposentado”, não queria mais nem saber de pichação! Mas não conseguia me distanciar tanto, a pichação está em minha vida, atrelada no meu corpo e às minhas memórias, que dribla e escapa à faculdade mental importantíssima: o esquecimento.

O esquecimento não é uma via inertiae, como crêem os supérfluos, antes é um poder ativo, uma faculdade moderadora, à qual devemos atribuir tudo quanto nos acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta a nossa consciência durante o estado da “digestão” (que poderia chamar-se absorção psíquica), do mesmo modo que o multíplice processo da assimilação corporal tampouco fatiga a consciência [...] eis aqui, repito, o ofício desta faculdade ativa, desta vigilante guarda encarregada de manter a ordem psíquica, a tranqüilidade, a etiqueta. Donde se colige que nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade de esquecimento. O homem em quem não funcione este complexo aparelho de retenção é um verdadeiro dispéptico, nunca conclui nada [...] Ora, este animal necessariamente esquecido, para quem o esquecimento é uma força e uma manifestação de robusta saúde, criou para si uma faculdade contrária, a memória, a qual desliga o esquecimento, e ainda em certos casos obtém a vitória. (NIETZSCHE, 2009, p. 57-58).

Memórias que se fazem presentes em muitos outros pichadores, através de lembranças que, segundo Ricoeur (2007), não necessitam de nenhum esforço para que sejam memoráveis, nesse passado que não consigo desconectar. Mesmo depois de me julgar “aposentado”, não parava de prestar atenção em pichações nos muros e alturas da cidade de Fortaleza, como um documento latente que me auxilia na observação de mudanças e permanências de códigos, regras, gangues e pichadores que insistiam em não se extinguir, amizades e envolvimentos com pessoas daquela época, junto sempre com conversas

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2.2 Surge um pichador-pesquisador na cidade

Na realidade, notei, com essa pesquisa, que o Mutreta não tinha se “aposentado”, tinha “dado um tempo”, e agora voltava a esse mundo! Mas agora também na condição de um pesquisador, realizando uma pesquisa que:

Foi deixar emergir a vida, a paixão que há em mim. Querer estudá-los, compreendê-los, vivenciá-los foi seguir o caminho derrubando mitos dos sistemas estereotipados, repressores e falsos em que vivemos, pela via da desconstrução das verdades já ditas; recuperar o que os sistemas não abrigam: mais que o sujo, o imundo; mais que o proibido, o interdito; mais que o violento, o terrível na difícil liberdade de recompor o mundo, reinventando tudo ao abdicar da limpeza, da piedade, da beleza. Cria, portanto, um corpo capaz de estranhar e se deixar afetar também pelas turbulências e multiplicidade da vida. Outra lógica, quem sabe, capaz de nos levar à construção de novas epistemologias, de novas estéticas e novas éticas. (ADAD, 2006, p. 129-130).

Revivi e reencontrei-me de corpo e alma com o Mutreta, e o utilizo como meu avatar, na esperança de mergulhar ainda mais no meio dessa cultura, em novas emoções e aprendizagens, inclusive de autoconhecimento, assumindo, após um longo período retraído e silenciado ser um pichador e pesquisador vivedor da pichação sem medo de moralismos ou retalhamentos. E, mais importante e impressionante, é perceber no convívio com os pichadores que muitos se atrevem, “escancaram” suas vozes, não recuam e se assumem descaradamente ser também pichadores, numa verdadeira invenção de si, exorcizando o silêncio que:

Pode representar a ausência de escuta, como também a vergonha, a dor, o medo de tornar públicas situações escusas, embaraçosas. Contudo, as falas também não estão imunes aos sentimentos, às correlações de força e de poder. Ou seja, o silêncio pode ser resultado de uma correlação de força histórica, como também pode estar relacionado aos sentimentos que a lembrança pode causar. (MESQUITA, 2001, p. 134).

Não tinha mais conhecimento com pichadores que estavam na “ativa”. Com o

Mutreta, poderia adentrar de novo no mundo dos pichadores, pois, entre tantas regras há a de

consideração e respeito a pichadores mais antigos, numa valorização da própria memória da

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Comecei a divulgar entre os amigos próximos que queria estabelecer diálogos com qualquer pichador. Até que em uma dessas procuras fui apresentado a um irmão de um pichador “destacado” e “da ativa” que me disse que o seu irmão teria maior prazer em conversar comigo, justamente por eu ser um pichador “das antigas” e que o meu “nome” era conhecido entre os pichadores. Na mesma hora combinei por telefone celular um encontro com o tal pichador, sem demora dirigi-me a casa dele, me apresentei como Mutreta da G.U. e minhas intenções de pesquisador a procura de qualquer informação. Ele disse que conhecia o meu nome, ou melhor, o meu charpi, mas não a mim pessoalmente, e que era um prazer e satisfação me conhecer e o que fosse possível ele ajudaria em minha empreitada. Seguimos em conversas e ele pediu para que eu assinasse meu charpi em sua agenda, aproveitei e dei uma olhada em seu conteúdo, como desconfiava, percebi que os nomes assinados dos pichadores “das antigas” eram muito valorizados, numa valorização, como afirmei, da memória da pichação. Esse meu primeiro contato foi com um pichador de charpi Delta da U.G. (União dos Grafiteiros) e que recentemente parou de pichar por ter sido aprovado no concurso da polícia militar cearense (que ironia, fugiu tanto da polícia e agora ia ser um policial!), era formado em Geografia pela Universidade Federal do Ceará e como ele mesmo afirmou nunca usou droga e era sim amante do movimento e história da pichação, relato esse

que possibilita uma desconstrução da imagem de pichador “vagabundo” ou “drogado”, muito presente em discursos preconcebidos, fabricados e divulgados. Ele também me mostrou um colete que disse ter usado por um tempo, devido a uma queda “escalando” um prédio, isso seguiu uma longa conversação sobre a memória da pichação em frente de um computador no qual ele me apresentou comunidades de redes sociais, principalmente do Orkut, onde se encontravam pichadores tanto “das antigas” como atuais, e que por ali eu poderia conectar-me a muitos outros pichadores. Aquilo tudo era surpreendente e motivador, estava diante de centenas de comunidades e blogs de muitos pichadores, inclusive alguns do período que “detonava” e com quem mantive muita amizade. Delta, de imediato, aconselhou-me a criar minha própria comunidade e página no Orkut para que pudesse estabelecer contato com os pichadores. No Orkut tinha acesso a imagens (inclusive da minha própria pichação – ver foto 3), memórias, debates, fóruns, músicas, matérias jornalísticas, entrevistas, e muito mais documentos que ali se encontram, inseridos por espontâneos arquivistas e amantes da memória da pichação.

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O Mutreta (re)nasce agora também na WEB, e logo começa a estabelecer contato com muitos outros pichadores e amigos que não via há muitos anos, e por causa dessa busca incessante por pichadores, novos aprendizados surgem do envolvimento com a pesquisa sobre a pichação, em que foi necessário aprender rápido a utilizar as não tão novas tecnologias, pois até então mal sabia enviar e-mail. Fui bem recebido nas comunidades, como mostram estes comentários de um internauta pichador que sabia inclusive meu “primeiro” nome.

Seja bem vindo Naigleison, ou melhor, Mutreta, você é remanescente dos primeiros e melhores períodos da pichação, espero que você possa contribuir com suas

lembranças daquelas primeiras “galeras” de todos os tempos ... Bem vindo, quero

aqui, como criador dessa comunidade, dar as boas vindas a Ramon, Mutreta e Kite, que vieram abrilhantar essa comunidade e colaborar com suas lembranças daquele primeiro período da pichação pela cidade. Já há algum tempo participo apenas como expectador, mas, não poderia deixar de registra r o ingresso dessa rapaziada. Até agora, junto com Russo, são sem dúvida nossos membros mais ilustres. Sejam bem vindos, utilizem esse espa ço para divertimento e resgate do passado, sejam fieis as suas lembranças. (REBELDE, acesso Orkut, 03 de fevereiro de 2010).

Voltei a estabelecer contatos, conversas, a frequentar reuniões, encontros/reencontros e comemorações com pichadores de variadas gerações. A convivência com pichadores se tornou tão intensa que acabei voltando a “meter uns nomes”, pichei em uma avenida movimentada de Fortaleza, fiz essa proeza na embriaguez das emoções e para fazer uma experiência, queria ver o que acontecia, principalmente nas comunidades de pichadores no Orkut, com o meu suposto retorno a pichar, esse ato rendeu debates e conversas com muito mais pichadores, perguntas do tipo: “você voltou mesmo, Mutreta?”. Inclusive de familiares. Ou convites para reuniões e “sair” para pichar com outros pichadores, como o proposto por Maxda U.G.: “Ei mano, bora combinar de “meter uns nomes”, cada um com

sua lata de tinta, é nós.”(MAX, acesso Orkut, 03 de fevereiro de 2010).

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Foto 5 –Charpi e “Sigla” da Gangue

Fonte: Arquivo pessoal, 2010.

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3 GENEALOGIA DA PICHAÇÃO

“Pichação!? Surge com a modernidade, com a invenção do spray! Surge nos guetos e nos metrôs dos Estados Unidos na década de 1970. Surge em Fortaleza por intermédio dos pichadores de São Paulo e Rio de Janeiro! Eu também já pichei!” Essas afirmações são constantemente mencionadas em nosso cotidiano. Muitos se atrevem, sem titubear, a logo opinar sobre algumas origens da pichação, que muitas vezes é logo seguida da afirmação que também já pichou em algum momento de sua vida, com mil formas, maneiras e razões, picharam com carvão, canetas, folhas de árvores, com giz de cera, spray, com rolos de tinta, na escola, em recados apaixonados para namoradas (os), para desafetos ou numa ação política partidária. O certo é que esse conhecimento em opiniões de supostas origens da pichação é muito presente e está na ponta da língua nas falas de muitos sujeitos. Será que esse conhecimento apoiado na História sobre alguma origem da pichação tem alguma relação com a experimentação de muitos em tal ação? Fazem assim uma busca na História por origens. Pode até dizer que iniciam uma busca genealógica, mas não passam daí, de um iniciar, pois lembram e recordam com suposta facilidade o que lhes é familiar, o que os emociona, o que liga seus corpos a História, entretanto, para além desse pressuposto, a busca genealógica é demorada, paciente, apoiado em pesquisa, documentos e como diz Nietzsche (2009), “uma faculdade que exige qualidades de vaca para ruminar leituras.” Se atrever na história genealógica é buscar:

Lá onde a alma pretende se unificar, lá onde o Eu inventa uma identidade ou uma coerência, o genealogista parte em busca do começo – dos começos inumeráveis que deixam esta suspeita de cor, esta marca quase apagada que não saberia enganar um olho, por pouco histórico que seja; a análise da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares e recantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos.

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Portanto, atrevo-me a construir uma genealogia da pichação, tarefa delicada, dedicada, porém, muito prazerosa, talvez por envolver tão fortemente meus sentidos, emoções, vivências e interpretações. O meu corpo pedia insistentemente para agir e escrever.

3.1 Com uma ideia na cabeça e uma “tala” na mão

Ao iniciar a construção deste texto, confesso ter ficado deprimido com certa carência de ânimo. Com a impaciência que é tão minha, veio à cabeça uma ideia para curar essa aflição e sair da mesmice dessemomento. Talvez uma ação ousada transgressora fosse o que faltava em minha vida. Uma “vontade de potência” por rebeldia fervilhava em meu corpo, como “aquele que o povo odeia, com o ódio do cão ao lobo, é o espírito livre, o inimigo das algemas, o descrente que apavora as florestas.” (NIETZSCHE, 2008, p. 141). Selecionei algumas “talas” que tinha em casa, surgindo uma incontrolável necessidade de usar essas invenções aperfeiçoadas do pós-Segunda Guerra Mundial. O meu corpo pedia para eu “meter um nome”, meu charpi e/ou fazer um grafite.

Era o Eu pesquisador que vivenciava a pesquisa e o Mutreta querendo ser visível, ser vivo e “da ativa” no meio da pichação fortalezense. Todos nós participamos ativamente da história no jogo da força e da vida que necessita de jogadores, aspectos próprios do fazer genealógico, os sentimentos, as angústias, as escolhas, as ações e

tudo que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo. Sobre o corpo se encontra o estigma dos tempos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os fortalecimentos e os erros; nele também eles se atuam e de repente se exprimem, mas nele também eles se destacam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito. (FOUCAULT, 2010, p. 22).

marcas que demarcam a intencionalidade na busca da história genealógica para se construir fatos e vidas.

A História genealógica articula corpo e acontecimento, corpo e linguagem, mostrando as marcas e as ruínas que o tempo produz em nossas carnes e nas imagens que temos de nós mesmos. A História pensada como jogo põe no centro de nosso campo as peripécias dos corpos, a análise do que eles fazem e de como explicam o que fazem, a descrição de suas atuações, deslocamentos, fraturas, indisposições, choques, atrações, desejos, seduções. Os corpos pensados como documentos, como pergaminhos em que vêm se escrever as memórias das múltiplas experiências que vivenciamos. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 175).

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admitindo que só se faz a História participando de seu próprio jogo, que não se pode escrever a História como um espectador, torcendo na arquibancada, sendo um historiador atleta e não um historiador assistente; se perceber que só se escreve a História suando a camisa, não a olhando de um binóculo de um camarote refrigerado. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 168).

Sendo assim, sem constrangimento e com uma ousada opção metodológica e de vida, narro uma experiência que muito vai contribuir em discussões pertinentes sobre momentos de “agitação do que se percebia imóvel, fragmentando o que se pensava unido, mostrando a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo.” (FOUCAULT, 2010, p. 21).

Retorno ao momento em que selecionara umas “talas” e estava incontroladamente disposto a fazer uma pichação ou grafite, sou, assim como meus pesquisados, sujeito múltiplo, pichador, grafiteiro, pesquisador, professor, artista, arteiro..., e saí desenfreado em direção aos muros de uma instituição que há tempos frequento. Mesmo apreensivo pichei meu

Mutreta no muro externo pretendido, “metendo” meu charpi na “cara de lata”, por ter essa

picha(ação) sido realizada em pleno meio-dia de uma quarta-feira em frente a vários observadores que passavam na grande avenida. Não é raro os pichadores picharem durante a luz do sol, tanto que costumam escrever ao lado de seus charpis indicações de “boa tarde” ou “bom dia.” Mas o corriqueiro é picharem na madrugada, momento em que a escuridão ajuda a escapar do olhar vigilante do poder.

O espaço escuro, o anteparo de escuridão que impede a total visibilidade de coisas, das pessoas, das veredas [...] Ora estes espaços imaginários são como a contra-figura das transparências e das visibilidades que se quer estabelecer. (FOUCAULT, 2010, p. 216).

Ao lado do meu charpi coloquei uma dedicatória para o meu (des)orientador Dr.

G. Essa prática é bastante difundida entre os pichadores, que além de escreverem frases com letras legíveis, colocam essas dedicatórias para amigos(as), familiares, outros pichadores(as) de diferentes ou mesma gangue. Endereçam também às namoradas(os), muitas vezes acompanhando um desenho de coração, sendo esses tipos de dedicatórias muito presentes na

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Foto 6 – Charpi com Dedicatória para o Mutreta G.U

Fonte: Arquivo pessoal, 2010.

Foto 7 Charpi Pichado na Reitoria da UFC, com Dedicatória para a Própria

Universidade

Fonte: Arquivo pessoal, 2010.

Foto 8 – Charpi com Dedicatória para Simone

Fonte: Arquivo Falcão, 1992.

Foto 9 Charpi com Dedicatória “para

Júde Coração”, Também Pichado na

Reitoria da UFC

Fonte: Arquivo pessoal, 2010.

Imagem

Foto 1  –  Exemplos de Pichações. Embaixo da Pichação do Centro é Possível   Perceber Escrito Legível: Desde 1988, Movimento Pichação
Foto 3 – “Charpi” 7  e “Sigla” da Gangue  Fonte: Arquivo pessoal, 2010.
Foto 4 – Elas só Querem Nossa Fama!!!
Foto 5 – Charpi e “Sigla” da Gangue  Fonte: Arquivo pessoal, 2010.
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Referências

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