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A extinção da Ordem do Templo e a criação da Ordem de Cristo à luz das fontes arquivísticas

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LEIRIA

DEZEMBRO DE 2017

15

Actas do 2.º Colóquio Internacional “Cister e os Templários”

realizado no dia 1 de Outubro de 2016 no auditório da Biblioteca Municipal de Alcobaça

seguidas das

Actas do III Colóquio da AMA subordinado ao tema “As Misericórdias”

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Título: CADERNOS DE ESTUDOS LEIRIENSES – 15

Editor: Carlos Fernandes

Coordenador Científico: Saul António Gomes

(Professor Associado com Agregação do Departamento de História, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)

Coordenadores desta edição: António Valério Maduro, Pedro Gomes Barbosa e Rui Rasquilho

Conselho Consultivo: Isabel Xavier, J. Pedro Tavares, Luciano Coelho Cristino, Mário Rui Simões Rodrigues, Miguel Portela, Pedro Redol e Ricardo Charters d’Azevedo

Concepção e arranjo da capa: Gonçalo Fernandes Colecção: CADERNOS – 15

Coedição: Textiverso, AMA - Associação dos Amigos do Mosteiro de Alcobaça, APOC - Associação Portuguesa de Cister e Município de Alcobaça

©Textiverso

Rua António Augusto da Costa, 4 Leiria Gare

2415-398 LEIRIA - PORTUGAL E-mail: textiverso@sapo.pt Site: www.textiverso.com

Revisão e coordenação editorial: Textiverso Montagem e concepção gráfica: Textiverso Impressão: Artipol

1.ª edição: Dezembro 2017

Edição 1195/17

Depósito Legal: 384489/14 ISSN 2183-4350

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A extinção da Ordem do Templo

e a criação da Ordem de Cristo

à luz das fontes arquivísticas

Giulia Rossi Vairo*

* Instituto de Estudos Medievais (IEM), NOVA/FCSH e Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), FBA/UL

O presente artigo trata o processo de extinção da Ordem do Templo e sucessiva criação da Ordem de Cristo a partir da análise da documentação arquivística, vaticana e portuguesa. Para este estudo foram examinadas di-versas fontes, algumas destas muito conhecidas e já editadas, outras já ex-ploradas, mas não transcritas na íntegra, outras ainda relativamente conheci-das e parcialmente publicaconheci-das, mas nunca relacionaconheci-das com o tema ao cen-tro deste estudo.

As fontes selecionadas foram interrogadas e indagadas sem preconcei-tos, detendo-se em passagens específicas e particularmente significativas, chegando a fornecer, para algumas delas, interpretações por vezes diferen-tes com respeito às que tem sido proporcionadas pelos historiadores até hoje, a partir da própria bula de fundação da Ordem de Cristo. Além disso, todas as fontes foram lidas à luz do contexto histórico e geopolítico de referência, isso é, o reino de Portugal dionisino da segunda e terceira década de Trezentos, e postas em relação com os muitos acontecimentos que ocorreram nesta altu-ra e os seus protagonistas.

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A bula de fundação da Ordem de Cristo vista de Avinhão e de Lisboa

A 14 de Março de 1319 remonta a bula de papa João XXII Ad ea ex quibus, com a qual, a instância do rei D. Dinis de Portugal, representado pe-los seus procuradores, João Lourenço de Monsaraz, cavaleiro, e Pedro Peres (ou Pires), cónego da Sé de Coimbra, era oficialmente estatuída a Ordo Militie Jhesu Christi, a Ordem de Cristo, herdeira de facto no reino de Portugal do património material e espiritual da Ordem do Templo1.

No início do documento, o papa declarava que decidira instituir uma nova militia, definida como de pugillum Christi («punhada» ou até «punho de Cris-to»), após ter ouvido os relatórios dos embaixadores do soberano português e a sugestão deles de criação de uma ordem militar. Perante à grave situação vivida no Algarve devida às incursões sarracenas, minuciosamente descrita pelos emissários régios, João XXII estabelecia que a missão da nova cavala-ria secavala-ria defender os súbditos do reino, contrastar os ataques dos infiéis e reconquistar as terras injustamente ocupadas por eles à honra de Deus e exaltação da Fé católica.

Por esta razão, acolhendo favoravelmente a proposta formulada pelos embaixadores, o papa fixava a sede da ordem em Castro Marim, na diocese de Silves, no reino do Algarve, que o rei se comprometera a doar para sem-pre à cavalaria caso se fosse concretizado o projecto de fundação. Tal loca-lidade tinha sido escolhida devido à sua colocação estratégica que lhe permi-tia um óptimo controlo sobre a fronteira de terra e sobre o litoral algarvio sul--oeste, e para a sua posição natural que a tornava «inexpugnável», como surge definida na bula.

Ao mesmo tempo, o pontífice concedia-lhe a igreja paroquial de Santa Maria, que se teria tornado a casa religiosa da ordem. A seguir, estabelecia que os cavaleiros professassem a Regra da Ordem de Calatrava, gozando dos mesmos privilégios, e nomeava primeiro mestre Gil Martins, antigo

Mes-1Monumenta Henricina, Coimbra 1960, I, doc. 61, pp. 97-110. Um resumo dos conteúdos da bula e

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tre da Ordem de Avis, professor da Ordem de Calatrava, louvando-o como homem íntegro e zelador na fé.

Para além disso, decretava que fossem confiados à nova milícia todos os bens, móveis e imóveis, tanto eclesiásticos como seculares, sendo elencadas as possessões principais (Castelo Branco, Longroiva, Tomar, Almourol), juntamente com as igrejas, as capelas e os oratórios que anterior-mente pertenciam à Ordem do Templo.

O abade de Santa Maria de Alcobaça, casa-mãe da Ordem de Cister no reino de Portugal, na diocese de Lisboa, era indicado como responsável do officium corretionis e encarregado de efectuar as visitações ao convento. Também ele deveria receber por parte do mestre eleito o juramento de fideli-dade ao papa e à Igreja de Roma, pronunciando uma fórmula preestabelecida, e na presença do rei.

Especialmente significativa é a passagem da bula que se segue, inteira-mente dedicada ao juramento e à homenagem que o mestre deveria prestar ao soberano. Nesta está especificado que ele, para além de jurar fidelidade e lealdade ao monarca, devia relatar-lhe caso tivesse tido conhecimento de enredos contra o rei ou contra o reino, para mais de impedir que lhe fosse feito dano2. Outrossim, refere-se que tal juramento era prestado não em

virtu-de dos bens recebidos, mas da própria pessoa que o tributava. Por esta ra-zão, em seguida o papa declarava que este pronunciamento não teria atribu-ído ao soberano algum direito sobre o património da nova ordem e estabele-cia que D. Dinis tinha dez dias para aceitá-lo, passados os quais o mestre era autorizado pela Sé Apostólica a exercer o seu magistério livremente3.

João XXII estabelecia também que o mestre, o preceptor mor, o lugar--tenente e outros cavaleiros fossem admitidos na corte régia, podendo satis-fazer as funções antigamente desenvolvidas pelos membros da Ordem do Hospital de São João; e que, em caso de renúncia, morte ou outra causa de vacatura do mestre, o convento teria podido dotar-se de um novo que fosse ao mesmo tempo um militar e um religioso, elegendo-o entre os frades professos, seguindo o exemplo do que se passava na Ordem de Calatrava.

Encerrava o documento a promessa dos embaixadores que assegura-vam que D. Dinis teria aceitado e respeitado todas as resoluções papais de

2 Entrelinhas, podem entrever-se as desavenças do biénio 1316-1317 no seio da família real

portu-guesa: v. infra.

3Monumenta Henricina, cit., doc. 61, p. 107: Volumus supradicto nullumque ipsi Regi ex juramento vel

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acordo com o conteúdo da litera procurationis que o rei mandara redigir no dia 14 de Agosto de 1318, isto é, mais do que meio ano antes da emissão da própria bula, e que vinha transcrita no fim do texto4. Nesta o soberano

afirma-va que os seus procuradores eram enviados para Avinhão «ad tractandum, ordinandum et compositionem faciendum, seu componendum» a questão relativa à gestão do património português da Ordem do Templo, assim como aquela dos bens possuídos no reino por qualquer ordem militar, pedindo ao pontífice que atribuísse a tarefa da sua administração a um ou mais mestres. Ao ler com atenção esta passagem, reparamos que na carta do sobera-no português falta qualquer referência concreta à futura Ordem de Cristo, a começar pela própria denominação, o que sugere que, talvez, a escolha do próprio nome deva atribuir-se à Cúria pontifícia5. Muito pragmaticamente, o

monarca colocava a questão da administração do património de todas as ordens militares do reino, portanto não somente dos templários, remetendo-se em tudo e por tudo à obra dos remetendo-seus agentes e, ao mesmo tempo, às deci-sões do papa.

O documento encerra com a transcrição da fórmula de juramento que o mestre devia prestar ao abade de Alcobaça na qual é significativamente au-sente qualquer menção ao monarca e às suas eventuais prerrogativas sobre a nova cavalaria. Tal circunstância observa-se também na bula de 15 de Março, dirigida a Gil Martins, com a qual o papa nomeava-o oficialmente primeiro mestre da ordem6. Também neste caso não há qualquer referência à

obriga-ção de prestar homenagem de fidelidade e lealdade ao soberano.

Alguns meses depois, a 5 de Maio, D. Dinis ratificava a bula aceitando todas as resoluções tomadas por João XXII recebendo, sem condições, a ordinatio, como na terminologia papal surge definido o primeiro ordenamento de facto compilado para a ordem estatuída, confirmando a substância da sua vocação7. Entre os muitos testemunhos do auto oficial compareciam D.

Ge-4Ibidem I, doc. 58, pp. 88-89.

5 Esta hipótese parece encontrar confirmação nas palavras utilizadas pelo papa na bula de fundação

ao declarar «voluimus et in perpetuum volumus ordine milicie Jhesu Christi vocari». É interessante que o nome da nova ordem evoque a do Templo, diferenciando-se contudo ligeiramente desta. De facto, os templários são definidos Pauperes commilitones Christi, usando a palavra latina commilito, -onis, ou seja «companheiros, camaradas», enquanto, no caso da Ordem de Cristo, os cavaleiros são apelidados de milites Jhesu Christi, usando a palavra latina miles, militis, que deve ser traduzida com «soldado» mas, em latim medieval, também como cavaleiro.

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raldo Domingos, bispo de Évora e chanceler do rei, o infante D. Afonso Sanches, filho natural do soberano, senhor de Albuquerque e mordomo-mor do reino, e D. Juan Alfonso de La Cerda, genro do rei, mas não o herdeiro do trono, o infante D. Afonso. Além disso, embora sejamos conscientes de que se trate da aprovação e da ratificação da bula, no texto falta qualquer referên-cia à Ordem do Templo e qualquer revindicação a um papel espereferên-cial no âm-bito da nova instituição por parte do rei.

Chegados ao fim da análise destes primeiros textos, é curioso observar que na documentação “oficial” portuguesa produzida na altura e destinada à Sé Apostólica falta qualquer menção à Ordem do Templo e que a Ordem de Cristo é sempre definida como nova militia. A mesma circunstância pode cons-tatar-se ainda no instrumento notarial de 18 de novembro de 1319, redigido pelo tabelião Domingos Eanes a pedido do prior de Alcobaça, sendo vacante a cátedra abacial, no qual se relata a cerimónia canónica de fundação da nova ordem8. Oito meses após a emissão da bula, esta teve lugar no paço

régio de Santarém9. Nesta ocasião o rei recebeu o juramento de fidelidade do

primeiro mestre Gil Martins, na presença de uma pletora de testemunhos, eclesiásticos e leigos, devendo destacar-se, mais uma vez, a ausência do infante D. Afonso10.

Depois do listado de todos os assistentes, o ato relatava o pronuncia-mento do solene jurapronuncia-mento de fidelidade ao papa e à Santa Romana Igreja feito, conforme a fórmula preestabelecida, sem nunca mencionar a Ordem do Templo, por Gil Martins sobre os Santos Evangelhos recebidos das mãos do prior de Alcobaça.

8Monumenta Henricina, cit., doc. 67, pp. 126-128.

9 A final, a cerimónia do juramento solene teve lugar oito meses depois da recepção da bula, muito

mais tempo após a conclusão do prazo de dez dias estabelecido pelo pontífice.

10 Estiveram presentes na cerimónia: D. Gonçalo (sic), bispo de Évora, D. Martinho, bispo da Guarda,

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Não obstante, somente dois dias depois, a 20 de Novembro, foi redigido, pelo mesmo tabelião Domingos Eanes, um instrumento de quitação com o qual o mestre da Ordem de Cristo e convento cediam a D. Dinis, sem condi-ções e para sempre, todas as rendas – fuitos, rrenovos e rrendas – proveni-entes dos castelos, cidades e propriedades que pertenceram originalmente à desfeyta Ordem do Templo e transferidos para a Ordem de Cristo por deci-são do papa11. Tal iniciativa justificava-se com as ingentes despesas

susten-tadas pela Coroa para o confisco dos bens, executado na altura do processo aos templários, para a manutenção de tais propriedades depois da extinção da Ordem do Templo e para o envio dos procuradores à cúria pontifícia para tratar do destino do património templário.

A este ponto, é muito importante notar que neste documento a primeira comunidade da Ordem de Cristo, já constituída, estabelece uma concreta associação entre a antiga e a nova instituição, vindo a reconhecer-se, implici-tamente, como a herdeira “material” do Templo, mas que, ao mesmo tempo, somente as rendas do Templo e não os territórios eram concedidas ao rei, revelando a nova cavalaria não ter nenhuma consideração para com todas as iniciativas actuadas pelo monarca nos anos precedentes para incorporá-los no património da Coroa12.

Esta tomada de posição do mestre e convento da Ordem de Cristo en-contra a sua justificação no diploma régio de 24 de Junho de 1319, cronologi-camente anterior ao instrumento notarial, que é ainda mais interessante a esse respeito13

. De facto, neste documento, que começa com uma arenga, quase um ato de contrição por parte do soberano, D. Dinis não só menciona-va explicitamente a antiga e a nomenciona-va ordem em termos de continuidade entre uma e outra, mas também afirmava que a Ordem de Cristo era o produto da reformação («reforma») da Ordem do Templo14. Além disso, o rei renunciava

11Monumenta Henricina, cit., doc. 68, pp. 129-131. 12 V. infra.

13 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Ordem de Cristo-Convento de Tomar (OCCT), mss.

234, f. 136r-136v.; v. Apêndice documental.

14 A palavra reformação é utilizada duas vezes ao longo do texto. Saul Gomes, no seu estudo sobre

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totalmente ao património templário declarando categoricamente não ter al-gum direito de momento que este tinha sido atribuído à Coroa através de uma injusta sentença. Por esta razão, o monarca declarava a sua vontade de que-rer restituir («tornar») à nova ordem todas as terras e os castelos e motivava a sua decisão afirmando que queria corrigir e emendar todos os erros come-tidos e limpar a sua consciência, especificando que fazia isto para si próprio, mas também para o infante D. Afonso, herdeiro do reino.

Com esta admissão de responsabilidade e exame de consciência, D. Dinis punha termo ao debate sobre a posse do património da Ordem do Tem-plo em Portugal e a sua transferência para a Ordem de Cristo. Contudo, anos mais tarde, este teria sido reaberto pelo filho depois de ter subido ao trono e assumido o título de D. Afonso IV15.

A dissolução da Ordem do Templo

e a criação da Ordem de Cristo (1307-1319)

A bula de 14 de Março encerrava o demorado processo arrastado du-rante anos, caracterizado por intensas negociações diplomáticas, dentro e fora de Portugal, por causas judiciárias e tomadas de posições por parte da Coroa nem sempre pacíficas, iniciado a seguir à emissão da bula de papa Clemente V Vox in excelso com a qual declarava oficialmente extinta a Or-dem do Templo16.

circulavam entre os oficiais e redactores da chancelaria régia à época»: v. GOMES, Saul – “A Extinção da Ordem do Templo em Portugal”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 11 (2011), pp. 75-116; cf. p. 77.

15 AYALA MARTINEZ, “Las ordenes militares y los processos de afirmación monárquica”, cit., pp.

1301-1304, BAETA, D. João Lourenço, mestre da Ordem de Cavalaria, cit., pp. 62-68 e ROSSI VAIRO, Giulia“A guerra civil portuguesa, o almirante Manuel Pessanha e a criação da Ordem de Cristo”, in Fernandes, Isabel Cristina (coord.). Atas do VII Encontro Internacional sobre Ordens Militares Entre Deus e o Rei. O mundo das Ordens Militares, Palmela: GESoS – Câmara Municipal de Palmela, 2017 (no prelo).

16 Sobre o processo aos Templários: BARBER, Malcom – The Trial of the Templars, Cambridge: Cambridge

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Na realidade, desde 1307, portanto com grande antecipação com res-peito à data de emissão da bula (22 de Março de 1312), D. Dinis pusera em ato toda uma série de iniciativas com o objetivo de englobar no património da Coroa os bens portugueses do Templo que, nesta mesma altura, vivia tem-pos difíceis em todo o continente europeu17.

A Ordem do Templo era presente no território lusitano desde 1128, ain-da antes do nascimento do reino de Portugal (1144). Ao longo do tempo, os Templários tornaram-se uma potência militar e económica sendo senhores feudais de cidades e proprietários de terras, castelos e outras propriedades (em Soure, Idanha-a-Velha, Idanha-a-Nova, Pombal, Ega, Redinha, Tomar, Almourol, Salvaterra, Segura e outras), concentrados sobretudo no centro do País, a norte de Lisboa, nas antigas regiões da Beira Baixa, da Beira Interior, do Ribatejo e do Alto Alentejo18.

Ainda hoje a natureza das relações existentes entre a Ordem do Templo e a Monarquia portuguesa é objeto de debate historiográfico que vê, de uma lado, os que consideram o Templo português como um braço auxiliar e militar da Coroa19 e, do outro, os que, mais recentemente, tem sublinhado a posição

17 Sobre o processo aos Templários no reino de Portugal: LOPES, Félix – “Das actividades políticas

e religiosas de D. Fr. Estêvão, bispo que foi do Porto e de Lisboa, in Lusitânia Sacra, 6 (1962-1963), pp. 25-90; COSTA, Ricardo da – “D. Dinis e a supressão da Ordem do Templo (1312): o processo da formação da identidade nacional em Portugal”, in Cultura e Imaginário no Ocidente Medieval. Arra-baldes - Cadernos de História. Série I, Niteroi, 1996, pp. 90-95; PORRO, Clive – “Reassessing in the Dissolution of the Templars: King Dinis and their Suppression in Portugal”, in Burgtorf, Jurgen, Crawford, Paul, Nicholson, Helen (eds.), The Debate on the Trial of the Templars. Farnham-Burlington: Ashgate, 2010, pp. 171-182; GOMES, “A Extinção da Ordem do Templo em Portugal”, cit.; FARELO, Mário – “Pro defensione iuris regis. Les relations entre la Couronne portugaise et le pape Clément V à la lumière du procès des Templiers”, in Albuquerque Carreiras (ed.), A Extinção da Ordem do Templo, cit., pp. 63-109.

18 Sobre a história dos Templários em Portugal: OLIVEIRA, Luís Filipe – “Ordens Militares”, in

Vas-concelos e Sousa, Bernardo (dir.), Ordens Religiosas em Portugal: Das Origens a Trento. Guia His-tórico, Lisboa: Livros Horizonte, 2005, pp. 453-502; TOOMASPOEG, Kristjan, “L’Ordre du Temple en Occident et au Portugal”, in Albuquerque Carreiras (ed.), A Extinção da Ordem do Templo, cit., pp. 17-61; IDEM, “Historiographie de l’Ordre du Temple au Portugal: status quaestionis”, in Albuquerque Carreiras, José, Rossi Vairo, Giulia (eds.), I Colóquio Internacional. Cister, os Templários e a Ordem de Cristo. Actas. Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, 2012, pp. 171-191.

19 VALENTE, José – “The New Frontier. The Role of Knights Templar in the Establishment of Portugal

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de substancial autonomia da ordem relativamente ao poder central até ao último quartel do século XIII, ou seja, até à subida ao trono do rei Dinis, em fevereiro de 127920. A partir daquele momento, o soberano manifestou um

constante interesse pela ordem: em Agosto de 1279 lhe acordou a sua prote-ção21, confirmando, em 1285, todos os direitos e privilégios de que gozavam

os templários no reino22, intervindo em favor dos cavaleiros para dirimir

contenciosos locais (128523, 128624, 130225) e fazendo doações a Vasco

Fernandes (129826, 130427), ultimo mestre da ordem em funções desde 129328.

A situação sofreu uma mudança de rota na altura do processo aos templários, quando o monarca, perseguindo o objetivo de apoderar-se do ingente património do Templo, iniciou a actuar em várias frentes. Perante a difícil situação vivida pela milícia em toda Europa, querendo secundar as indi-cações da Sé Apostólica e aproveitando do facto que nas filas da ordem mi-litassem sobretudo portugueses29, entre os quais homens de sua confiança,

tentou sistematicamente de assumir o poder sobre as actividades e as terras templárias do reino, adoptando diversas estratégias e chegando a ordenar o confisco dos bens.

Para comprovar que as possessões templárias foram, na realidade, re-sultado de doações régias feitas não somente para servir Deus, mas também a Coroa, D. Dinis instituiu uma especial comissão, composta por alguns seus

considerações em torno das fontes para o seu estudo”, in Revista da Faculdade de Letras, História

(Porto), 8 (2007), pp. 409-420; EADEM, A Ordem do Templo em Portugal (das origens à extinção),

Dissertação de Doutoramento. Porto: Universidade do Porto, 2009.

20 OLIVEIRA, “Ordens Militares”, cit. e TOOMASPOEG, “L’Ordre du Temple”, cit. 21 1279, Agosto, 22: ANTT, Gavetas (Gav.) 7, maço 10, doc. 12.

22 1285, Maio, 30: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 (transcrição de 1318, Setembro, 30) e ANTT,

Leitura Nova-Livro de Mestrados, Livro de Mestrados (LN-LM), f. 23, cópia do séc. XV.

23 1285, Julho, 13: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 e ANTT, LN-LM, f. 24r, col. 2. 24 1286, Julho, 10: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 e ANTT, LN-LM, f. 25r, col. 1. 25 1302, Dezembro, 14: ANTT, Gav. 7, maço 9, doc. 16.

26 1298, Setembro, 27: ANTT, Gav. 7, maço 16, doc. 2 e ANTT, LN-LM, f. 25r, col. 2.

27 1304, Setembro, 14: in COSTA, Bernardo da – Historia da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus

Christo, Coimbra 1771. Malveira: Atelier “Sol Invictus”, 1988, doc. 80, p. 298.

28 Vasco Fenandes aparece pela primeira vez em 1293 como comendador templário em Santarém:

1293, Junho, 5: ANTT, OCCT, Documentos particulares, maço 1, doc. 29 e ANTT, OCCT, mss. 234, II, f. 13r-13v.

29 Assim parece dessumir-se das fontes: por exemplo, em Junho de 1293 (v. nota anterior)

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fiéis colaboradores, que julgasse em tribunal caso por caso a efetiva perten-ça dos do Templo português. Esta era constituída por: D. Martinho Pires de Oliveira, arcebispo de Braga, D. João Martins de Soalhães, bispo de Lisboa, D. João das Leis, doutor em lei, frei Estêvão Migueis, custódio da Província franciscana de Lisboa, e tal Rui Nunes30.

Entre 1307 e início de 1310, a comissão atribuiu ao soberano por sen-tença judicial todas as terras objecto de discussão, ignorando os protestos dos freires que contestavam a mesma instituição da comissão não a achando imparcial31.

A seguir, no dia 21 de Janeiro de 1310, Fernando IV, rei de Castela, e D. Dinis, assinavam o acordo através do qual se comprometiam a fazer frente comum contra a eventual decisão do Papado de destinar o património templário nos seus respectivos reinos à Ordem de São João de Jerusalém. Os dois soberanos afirmavam que, em caso de reivindicação por parte da Sé Apostó-lica, deveriam declarar que os bens tinham sido concedidos ao Templo para o serviço prestado a Deus e à Monarquia. No documento referia-se que tam-bém Jaime II, rei de Aragão, estava disposto a subscrever os acordos32.

No entanto, ainda em 1310 e depois em 1311, realizavam-se uma série de concílios provinciais – em Tordesillas (Abril) e em Salamanca (Outubro) – durante os quais os templários de Hispania foram convocados para defen-der-se das acusações que eram movidas contra eles. Os eclesiásticos portu-gueses chamados a participar na qualidade de inquisidores pontifícios deram conhecimento dos resultados dos inquéritos levados a cabo no território do reino de Portugal. Nestas ocasiões eles declararam a substancial inocência dos membros da ordem, deixando contudo qualquer decisão relativamente ao destino deles à decisão do papa. Nomeadamente, no concílio de Vienne, iniciado em 16 de Outubro de 1311 e concluído a 6 de Maio de 1312, portanto depois da publicação da bula de extinção da Ordem do Templo, os eclesiás-ticos dos reinos de Portugal, Castela, Aragão e Maiorca conseguiram obter um estatuto especial para o património templário local. De facto, na bula de 2 de Maio, Clemente V decretava a transferência dos bens do Templo para a Ordem de São João de Jerusalém com a excepção daqueles presentes nos

30 Sobre esta fase do processo aos Templários no reino de Portugal, v. FARELO, “Pro defensione

iuris regis”, cit., pp. 68-77.

31 LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 108-109.

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reinos ibéricos33; além disso, uns dias mais tarde, a 6 de Maio, o pontífice

estabelecia que os antigos frades fossem julgados a nível local durante sínodos provinciais34. Todavia, a 23 de Agosto de 1312, o papa escrevia aos

sobera-nos ibéricos voltando ao assunto e pedindo esclarecimentos sobre o destino que eles teriam dado aos bens do Templo e dando tempo de responder até dia 1 de Fevereiro de 131335.

Pelo explícito requerimento de Clemente V, deduz-se que, na altura, a questão templária em Portugal não era de todo encerrada nem resolvida em favor do soberano e que as conclusões da comissão estatuída por D. Dinis em 1307 não tinham sido levadas a sério pela Sé Apostólica, mas sim ignora-das e portanto nunca aprovaignora-das.

A comprovar esta circunstância é o facto de que, ainda em Abril de 1314, o rei fez conduzir um ulterior inquérito de vinte e cinco questões em Soure, Castelo Branco, Montalvão e Nisa para provar que a origem dos bens templários constasse em doações régias desde os tempos do conde Afonso Henriques, depois D. Afonso I de Portugal. Contudo, tem que ser considera-do que, entre os ouviconsidera-dos, foram efectivamente antigos frades professos, mas também moradores ou pessoas que tinham vivido à volta das comendas templárias, assim como que muitas das afirmações dos testemunhos fossem mais baseadas na fama, na vox populi e na tradição oral, do que em autos e documentos realmente conservados. Poucos meses depois, a 15 de Novem-bro, o bispo de Lisboa ordenava um novo inquérito em Tomar com o mesmo objetivo36

.

Os resultados das duas inquirições muito provavelmente nunca chega-ram ao conhecimento da cúria pontifícia, de momento que Clemente V mor-reu a 20 de Abril de 1314 e a Sé Apostólica permaneceu vacante até à

elei-33Regestum Clementis Papae V, VI, Roma: Typographia Vaticana, 1887, docs. 7885-7886, pp. 65-71. 34Ibidem, doc. 8784, pp. 347-349.

35 LOPES, “Das actividades”, cit., p. 115.

36 Este inquérito é conhecido através de uma cópia achada num manuscrito de época moderna

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ção do sucessor, João XXII, a 7 de Agosto de 1316. Por esta razão, a questão templária ficou em suspenso durante todo este lapso de tempo.

Todavia, é necessário lembrar que, na altura das inquirições, um novo bispo tinha sido eleito para a diocese de Lisboa: o franciscano Estêvão Miguéis. Capelão, confessor, embaixador do rei, Estêvão Miguéis, originário de Évora, era um homem culto e bom letrado. Entre 1307 e 1310, como custódio da Província franciscana de Lisboa, fizera parte da comissão que tinha julgado a pertença régia de cidades e possessões templárias37. A seguir, em 1310,

tinha sido eleito bispo do Porto a pedido do rei D. Dinis38 e em 1313

transferi-do para a diocese de Lisboa, desta vez por explícita instância transferi-do pontífice39.

Pouco antes, em 1311, o mesmo Clemente V nomeava-o inquisidor pontifício no reino de Portugal durante o processo aos templários40. Nestas funções,

participara nos concílios de Tordesillas, Salamanca e Vienne. Além disso, em 1316, Estêvão Miguéis surge como administrador único do património da extinta Ordem do Templo em Portugal, sendo indicado para este encargo provavelmente já pelo defunto Clemente V.

Em todas estas ocasiões e incumbências, mesmo defendendo a causa do rei, o bispo de Lisboa respeitara sempre as instruções e indicações da Sé Apos-tólica. Não obstante, foi a partir de 1316, também em concomitância com alguns acontecimentos que envolveram membros da família do prelado, que as rela-ções entre Estêvão Miguéis e D. Dinis se deterioraram definitivamente41.

A instituição da Ordem de Cristo

nos primórdios do contexto da guerra civil (1317-1319)

Na realidade, na altura registava-se no reino um clima de fortes tensões, primeiras concretas manifestações do contraste entre o rei D. Dinis e o her-deiro do trono, o infante D. Afonso, que teria desbocado na guerra civil42. De

37 LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 106-110.

38 SÁNCHEZ DOMÍNGUEZ, Santiago – Documentos de Clemente V (1305-1314) referentes a España.

León: Universidad de León, 2014, doc. 618, pp. 625-626.

39Ibidem, doc. 1336, p. 1271.

40Ibidem, docs. 795-796, pp. 780-781 e doc. 897, pp. 884-885. 41 LOPES, “Das actividades”, cit., pp. 122 e sgs.

42 A guerra civil entre o rei D. Dinis e o infante D. Afonso foi estudada por: LOPES, Félix – “Santa

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facto, desde 1312, mas sobretudo ao longo do biénio 1316-1317, ocorreram alguns dramáticos episódios de que foram protagonistas aqueles que, pouco mais tarde, estariam no centro do conflito, isto é, o rei D. Dinis, o herdeiro do trono, o infante D. Afonso, a rainha consorte D. Isabel, os três filhos ilegítimos do monarca, D. Pedro Afonso, 3.º conde de Barcelos, D. Afonso Sanches, mordomo-mor do reino, e D. João Afonso, alferes-mor do reino43. Foi

justa-mente neste quadro de grande instabilidade, que emerge do estudo das crónicas e da documentação dionisina, afonsina e pontifícia daqueles anos, que a Ordem de Cristo viu a luz44.

Dá testemunho do estado de guerra que já em 1316 se devia viver em Portugal a série de cartas apostólicas de Junho de 1317 enviadas por um preocupado João XXII depois de ter tido conhecimento, através dos embai-xadores portugueses, das desavenças que abalavam a Monarquia.

Nesta primeira série de epístolas, o papa, se bem ameaçasse penas severas, entre as quais a excomunhão, contra quem perturbasse a paz do reino, não se expressava claramente sobre as pessoas envolvidas45.

Contu-do, na segunda séria de missivas, datadas de Março de 1318, motivadas, presumivelmente, por acontecimentos ocorridos ainda em 1317 e/ou no iní-cio do ano seguinte, não deixava espaço para dúvidas.

no reino de Portugal entre a Reconquista e a Expansão. Estado da questão”, in Revista da História das Ideias, 6 (1984), pp. 25-160, especialmente, pp. 112-120; MATTOSO, José – “A guerra civil de 1319-1324”, in Portugal medieval: novas interpretações, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moe-da,1992, pp. 293-308.

43 O tema da guerra civil foi recentemente revisitado, tendo sido proposta uma cronologia antecipada

do conflito fazendo remontar o seu início ao biénio 1316-1317: cf. ROSSI VAIRO, Giulia – “Isabelle d’Aragon, reine du Portugal, «constructrice de la paix» durant la guerre civile (1317-1322)? Étude critique des sources portugaises et des Regesta Vaticana”, in Sot, Michel (ed.), Médiation, paix et guerre au Moyen Âge. Paris: Comité des travaux historiques et scientifiques, 2012, pp. 97-107 ; EADEM – “Il protagonismo d’Isabel d’Aragona, regina del Portogallo, nella guerra civile alla luce delle fonti portoghesi, aragonesi e dei Regesta Vaticana (1321-1322)”, in García-Fernández, Miguel, Cernadas Martínez, Silvia (eds.), Reginae Iberiae. El poder régio feminino en los reinos medievales peninsulares. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2015, pp. 131-150; e, de forma mais extensa, em: EADEM – D. Dinis del Portogallo e Isabel d’Aragona in vita e in morte. Creazione e trasmissione della memoria nel contesto storico e artistico europeo. Tese de Doutoramento em História da Arte. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014, pp. 107-134 e 215-244.

44 Esta circunstância foi parcialmente abordada, mas não adequadamente desenvolvida, em: BAETA,

D. João Lourenço, mestre da Ordem de Cavalaria de Cristo, cit., pp. 48-53.

45 Para a transcrição das cartas apostólicas, cf. ROSSI VAIRO, D. Dinis del Portogallo e Isabel

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A 21 de Março de 1318 o pontífice dirigia quatro cartas ao rei, ao infante, à rainha consorte, estando a mãe e o filho mancomunados pelo ressentimen-to contra o monarca, e ao bispo de Lisboa, acusado de ter alimentado o mal--estar entre os membros da família real. Vale a pena destacar o facto de ter sido o próprio papa, o vigário de Cristo na terra, não um prelado qualquer, a intervir de forma directa para dirimir a controvérsia, em testemunho da gravi-dade e da evidência dos conflitos que grassavam no reino46.

Nomeadamente, em todas as cartas, o frade franciscano era indicado como quem semeara a discórdia. Além disso, se, por um lado, João XXII evitava fazer referência à função exercida pelo bispo na gestão do património templário, por outro era o próprio D. Dinis que, no meio da guerra civil, no primeiro dos três manifestos redigidos para denunciar o comportamento do infante rebelde e lidos nas públicas praças das cidades do reino47, recordava

explicitamente as malfeitorias do prelado, partidário do príncipe, e o papel por ele desenvolvido no feito dos beens do Tenpre48. Contudo, é curioso

obser-var que o pontífice, mesmo atribuindo ao franciscano precisas responsabili-dades, nunca tomou a decisão de removê-lo do seu lugar nem adoptou medi-das severas contra ele, embora o rei lho pedisse explicitamente49. Portanto,

no quadro das fortes confrontações vividas na altura em Portugal, deve inse-rir-se também o destino do património templário.

Comprova esta circunstância o protesto, redigido em latim, de 21 de Dezembro de 1317 posto por escrito em nome do infante D. Afonso pelo seu procurador Gomes Lourenço, um dos mais acessos e intrigantes seguidores do herdeiro, recordado como tal no segundo manifesto dionisino, datado de 15 de Maio de 132150, contra a concessão de Tomar, já casa-mãe do Templo

46Ibidem, docs. XV-XIX, pp. 419-425. As cartas dirigidas ao rei D. Dinis e à rainha D. Isabel

encon-tram-se transcrita em: LOPES, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit., pp. 29-32.

47 O texto do primeiro manifesto, datado de Santarém, 1 de Julho 1320, encontra-se publicado em:

LOPES, Felix – “O primeiro manifesto de el-Rei D. Dinis contra o Infante D. Afonso seu filho e herdei-ro”, em Itinerarium – Colecctânea de Estudos, XII, 55 (1967), pp. 17-45; o texto do segundo, datado de Lisboa, 5 de Maio 1321, em: IDEM, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit. pp. 34-40; o texto do terceiro, datado de Lisboa, 17 de Dezembro de 1321, em: Livro I de Místicos de Reis. Livro II dos Reis D. Dinis D. Afonso IV D. Pedro I. Documentos para a história da Cidade de Lisboa, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1947, pp. 135-146.

48 LOPES, “O primeiro manifesto”, cit., p. 145; a hostilidade do bispo de Lisboa é recordada

explicita-mente também no segundo manifesto: IDEM, “Santa Isabel e a larga contenda”, cit., p. 37.

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no reino, ao cardeal Bertrando de Montfavez, titular de Santa Maria in Aquiro, oficializada pelo pontífice justamente naquele ano.

No extenso instrumento notarial, redigido a rogo do príncipe e não do soberano, no meio de uma primeira violenta crise interna à família real – e, portanto, da Monarquia –, pela primeira vez, desde o início do processo de extinção do Templo português, vinham expostas as teses portuguesas sobre a origem do património templário e oficialmente apresentados à Sé Apostóli-ca os protestos e as revindiApostóli-cações da Coroa sobre os bens da antiga ordem, referindo, em boa substância, os conteúdos das inquirições de 1314, sem contudo mencioná-las51.

Hoje em dia ignora-se quais foram as motivações profundas que leva-ram o infante a actuar desta forma, para além de um forte interesse naquele território, rico e estratégico do ponto de vista geográfico. Igualmente, desco-nhece-se se o rei teve conhecimento das diligências do herdeiro, embora haja mais de uma razão para ter dúvidas a esse respeito, em primeiro lugar, considerando as relações tensas entre pai e filho, vividas justamente naquele ano e naquela altura52. Além disso, não há motivo para crer que o protesto foi

feito por interposta pessoa, isto é, ordenado pelo monarca, mas apresentado pelo procurador do infante, uma vez que esta atitude podia prejudicar e minar a auctoritas régia e, mais concretamente, frustrar todo o paciente trabalho diplomático levado a cabo até aquele momento pelo soberano através dos seus diversos embaixadores. Não obstante, quem pode ter sido informado desta iniciativa foi o próprio bispo de Lisboa, então publicamente alinhado com o príncipe rebelde, ao ponto do seu comportamento ser estigmatizado nas epístolas de Março de 131853, para além de ter mandado realizar o

inqué-rito em Tomar pouco mais de um mês antes, em 15 de Novembro de 131754

. A súbita aceleração do infante não deveu agradar ao soberano que, al-gum tempo antes, a dia 1 de Fevereiro de 1317, prosseguindo a sua ação diplomática na tentativa de perseguir o seu objetivo, nomeara o genovês Emanuele Pessagno almirante-mor do reino55.

51 ANTT, Gav. 7, maço 11, doc. 1 e ANTT, OCCT, mss. 234, II, fls. 4r-9r. 52 V. infra e nota 41.

53 V. nota 42. 54 V. infra e nota 33.

55 ANTT, Gav. 3, maço 1, doc. 7, publicado em: MARQUES, João Martins da Silva (ed.) –

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Emanuele Pessagno, ou Manuel Pessanha como aparece referido nas fontes portuguesas, era expoente de uma família de mercadores e navega-dores, homem conhecido e popular junto da cúria pontifícia56, irmão do bem

conhecido António, cavaleiro a serviço do rei de Inglaterra57.

Manuel Pessanha tinha sido contactado em Avinhão em 1316, a seguir ao afastamento de Nuno Fernandes Cogominho, chanceler e partidário do infante58, pelos emissários do soberano, os cavaleiros Vicente Eanes César

e João Lourenço, os mesmos que foram encarregados por D. Dinis de tratar a questão do destino do património templário e, em geral, de todas as ordens militares do reino, entre 1316 e 131759.

56 Sobre a figura de Manuel Pessanha: DANERI, Angelo – Emanuele Pessagno. Dalla Val Graveglia

a Lisbona. Un “sabedor de mar” fra la nobiltà portoghese, Sestri Levante: Gammarò editori, 2008; ROSSI VAIRO, Giulia – “O genovês Micer Manuel Pessanha, Almirante d’El-Rei D. Dinis”, in

Medievalista 13 (2013), online; EADEM, “La Lisbona di Manuel Pessanha”, in Alessandrini, Nunziatella, Flor, Pedro, Russo, Mariagrazia, Sabatini, Gaetano (eds.), Le nove son tanto e tante buone che dir non se pò. Lisboa dos Italianos: Arte e História (sécs. XIV-XVIII), Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas "Alberto Benveniste" da Universidade de Lisboa, 2013, pp. 19-37; e EADEM, “Manuel Pessanha et l’organisation de la flotte portugaise au XIVe siècle”, in Balard, Michel (ed.), The Sea in History

-Medieval World II, Paris: Boydell & Brewer, 2017, pp. 321-330. Sobre as origens e os diversos mem-bros da família Pessagno: VECCHI, Augusto – “Una dinastia di ammiragli”, Rivista marittima, XIII, 1880, pp. 269-281; BELGRANO, Luigi Tommaso – “Documenti e genealogia dei Pessagno ammiragli del Portogallo”, in Atti della Società ligure di storia patria, Genova, 1881, tomo XV, pp. 241-316; PESSANHA, João Benedito d’Almeida – Noticia histórica dos Almirantes Pessanhas e sua descen-dência, Lisboa: Imprensa de Libánio da Silva, 1900; FERNANDES, Fátima – “Los genoveses en la armada portuguesa: los Pessanha”, Edad Media. Revista de Historia, 4, 2001, pp. 199-206.

57 Sobre a figura de António Pessagno: FRYDE, Natalie – “Antonio Pessagno of Genoa, King’s merchant

of Edward II of England”, in Studi in memoria di Federigo Melis, Napoli: Giannini, 1978, vol. II, pp. 159--178; AIRALDI, Gabriela – “Due fratelli genovesi: Manuele e Antonio Pessagno”, in Estudos em ho-menagem ao Professor Doutor José Marques, Porto: Universidade do Porto - Faculdade de Letras do Porto, 2006, vol. II, pp. 139-146; ROGER, Jean-Marc – “Antonio Pessagno”, in Bériou, Nicole e Josserand, Philippe (dir.) – Prier et combattre. Dictionnaire européen des ordres militaires au Moyen Âge, Paris: Fayard, 2009, p. 98.

58 Sobre Nuno Fernandes Cogominho: LOPES, “O primeiro manifesto”, cit., p. 27 em nota; GAYO,

Manuel José da Costa Felgueiras – Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga: Edição de Carvalho Basto, 1992, IV, pp. 414-415 e PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor – Linhagens medievais Portu-guesas. Genealogias e Estratégias (1279-1325), Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna, 1999, vol. II, pp. 62-64.

59 BRANDÃO, Francisco – Monarquia Lusitana. Sexta Parte, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da

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Manuel Pessanha, sabedor de mar, perito na navegação e na constru-ção naval, foi uma figura totalmente alheia às disputas e aos jogos de poder daqueles anos. A ele, fiel colaborador, conselheiro e embaixador do rei em delicadas missões diplomáticas, D. Dinis confiara a reforma da Marinha de guerra portuguesa, empresa em que teria investido homens e recursos finan-ceiros, acarinhando, talvez, o sonho de fazer reviver em terra lusitana o projecto da Ordem de Santa Maria de Espanha de Alfonso X de Castela, avô do mo-narca português60. De facto, durante a sua breve vida, a Ordem de Santa

Maria de Espanha (também conhecida nas fontes como Orden de Cartagena ou de Orden de la Estrella) representou “un original e inédito instituto direc-tamente diseñado y controlado por la realeza” (AYALA MARTINEZ, 1998, p. 1285), uma ordem militar “anómala” de vocação eminentemente marítima e secular, para a cabeça da qual o soberano castelhano nomeara um almiran-te, o infante Sancho. No entanto, a ordem, depois somente dez anos da sua instituição por parte do monarca, fracassou não tendo obtido a “bênção pa-pal”.

À luz destas considerações, não é de todo improvável que D. Dinis me-ditasse algo de parecido para a futura Ordem de Cristo, considerando a voca-ção marítima da nova cavalaria portuguesa, a missão que esta se propunha desenvolver – a defesa da fé católica e dos territórios do reino das agressões dos infiéis –, a colocação da sede da ordem no Sul do País, numa localidade estratégica em termos geopolíticos e defensivos, a escolha de um chefe leigo e perito na navegação a organizar e comandar uma armada – um almirante –, a sua filiação cisterciense e, finalmente, a sua estrita ligação, desde a sua concepção, à Coroa. Contudo, a diferença do projecto de Alfonso X, o sobe-rano português durante muitos anos, e antes da criação da nova milícia, pro-curou encontrar um acordo com o Papado, não querendo repetir os erros do avô – e do próprio pai, D. Afonso III, por certos aspectos –, compreendendo a

60 Sobre a Ordem de Santa Maria de Espanha: TORRES FONTES, Juan – “La Orden de Santa Maria

de España”, Miscelánea medieval murciana, 3, (1977), pp. 74-118; AYALA MARTÍNEZ, “Las orde-nes militares y los processos”, cit.; JOSSERAND, Philippe – Église et pouvoir dans la Péninsule Ibé-rique. Les ordres militaires dans le royaume de Castille (1252-1369), Madrid, 2004, pp. 621-626; TORRES FONTES, Juan – “Santa María de España”, in Beriou, Josserand (eds.), Prier et combattre,

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importância da aprovação apostólica e da necessidade de viver em harmonia com a Igreja para o futuro ou até a própria instituição da Ordem de Cristo61.

Independentemente destas hipóteses, o que é certo é que Manuel Pessanha, conselheiro e leal colaborador do monarca, esteve a par dos projectos do seu senhor, incluindo os propósitos régios acerca da nova milí-cia, vindo nalguns casos a Avinhão apresentá-los ao pontífice. Oferece teste-munho desta circunstância, a exposição do almirante-mor do reino, em mis-são junto da cúria papal, acerca da oportunidade de emancipar o ramo portu-guês da Ordem de Santiago do mestre de Castela que, para certos aspectos, ao comparar os textos, contem os mesmos argumentos à base da fundação da Ordem de Cristo62.

Após demoradas e complexas negociações e muitas embaixadas à pro-cura do compromisso mais vantajoso pelas partes envolvidas, finalmente, entre 1318 e 1319, a questão do destino do património templário viu a sua definitiva solução realizando-se, ao mesmo tempo, a criação da Ordem de Cristo.

A historiografia portuguesa tem sempre saudado a instituição da nova cavalaria portuguesa como mais um sucesso diplomático de D. Dinis que, ao longo dos séculos, foi apelidado de várias maneiras, entre as quais de “Pai da Pátria”, e de que um ditado popular ainda hoje diz que D. Dinis fez tudo quan-to quis. Contudo, como muitas vezes acontece, o estudo dos factos e dos documentos contou-nos uma história diferente. Porque se é verdade que, no fim, o monarca português conseguiu apoderar-se do ingente património da extinta Ordem do Templo, é outro tanto verdade que obteve somente as ren-das ren-das terras templárias. Mas, sobretudo, à luz da reconstrução dos aconte-cimentos, com base na leitura e da análise das fontes proporcionadas neste texto, depreende-se que a criação da Ordem de Cristo que, à primeira vista, poderia aparecer como um processo linear e historicamente determinado, assim como a própria adesão da nova ordem à Monarquia portuguesa, na realidade foram bem mais complicados e muito menos óbvios de quanto te-nha sido descrito até hoje.

Além disso, deduz-se que tal operação não foi fácil, nem de êxito certo ou previsível a priori, circunstâncias que justificaram os repetidos câmbios de estratégias ao longo dos anos, nem, sobretudo, concebida, gerida e levada a

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cabo em autonomia pelo rei, antes pelo contrário. Pois se, sem alguma dúvi-da, D. Dinis foi um dos protagonistas do projecto de criação da Ordem de Cristo, junto a ele deve ser reconhecido o papel fundamental de muitas ou-tras figuras, em primeiro lugar o papa João XXII, sem a aprovação do qual a ordem nunca teria sido estatuída, que jogaram um papel decisivo durante todo o processo de concepção, gestação e concretização e cuja acção foi condicionante, no bem e no mal, para a sua conclusão.

APÊNDICE DOCUMENTAL

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Cristo-Convento de Tomar, mss. 234/2, fl. 136r-136v.

63Restituição que el Rey dom Dinis como christianissimo principe zeloso

e guardador da justiça fez a esta ordem de nosso Senhor Jesu Christo das villas, castellos e lugares da Redinha, Soure, Pombal e Ega na Estremadura do bispado de Coimbra, e das Idanhas Nova e Velha e Salvaterra, Segura, Proença, e Rosmaninhal do bispado da Guarda que lhe forão julgadas por sentença de sua relação sendo da ordem do Templo, contra aqual se come-çava demanda sobre as ditas villas e lugares e as sentenças se derão depois da dita ordem do Templo ser extincta, cujos bens pelo dito Senhor Rey e pelo Papa forão dados aesta ordem de Christo.

64

Em nome de Deos amen. Saibam quantos esta carta virem como eu dom Dinis pela graça de Deos Rey de Portugal e do Algarve, temendo Deos a cujo poder e juizo sou certo que hei de hir, e sabendo que as cousas que sã com verdade e com direita conciencia, que aquellas quer Deos, e leva adian-te e as outras non. E eu por esto aja firme desejo que nos meus dias, sejam per my corregidas e emmendadas aquellas cousas que eu souber e entender que ouve como non devia, por que as cousas non se podem também nem tão direitamente emmendar como per aquelle que as passa e as sabe. Desi er desejando que Deos que sempre levou adiante e acrecentou nos regnos de

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Portugal e do Algarve, e estremadamente nos meus dias, ho que lhe eu tenho em grande merce, que elle aja rezão de ho manteer e levar asi adiante, como atee aqui levou e acrecentou de bem em melhor depois dos meus dias, tambem ao Ifante dom Afonso meu filho, que os haa de herdar depos my querendo Deos, como a os outros que depos nos vierem. E sendo certo que metendo eu esto asi em obra que farei direito e ho que devo, e darei rezão de my ha Deos de comprir em esto ho meu desejo. Porende eu sobredito Rey dom Dinis entendendo e sabendo que as villas e castelos e lugares de Soure e de Ponbal e da Ega e da Redinha que são na estremadura no bispado de Coimbra. E outro si ha Idanha a Velha e Aidnha65 ha Nova e Salvaterra e Segura e

Proença, e ho Rosmarinhal que são na Beira no bispado da Guarda, sobre que ho meu procurador ganhou sentenças que ho meestre e hos freires que forão / da ordem do Tempre que hos aviam e hos traziam a sua mãao sem contenda nenhuuma des gram tempo. Tambe no tempo dos Reis dante my como no meu tempo. E veemdo em qual guisa has sentenças forão dadas sem parte e sabendo que como quer que quandolhes ho meu procurador começou a fazer ha demanda sobre hos ditos lugares, era ainda ha ordem com seu estado, que logo apouco tempo durando ha dita demanda, veo torvação e desasosego aadita ordem, tal per que foi desfeita, e que ho dito meestre nem hos freires non poderão seguir esta demanda, nem mostrar ho seu direito, de guisa que ante que has sentenças fossem dadas contra elles sobre estes lugares, e ao tempo que forão dadas eram jaa ho meestre e hos freires amoorados da terra e non poderão a este feito vijr. E veendo ha manei-ra das sentenças e qual guisa sobre esto forão dadas, e veendo has cartas das doaçooes dos freires dante my per que avião estes lugares e como sem-pre trouxerão e trazião hos ditos lugares sem contenda atee ho tempo da dita demanda que lhes ho meu procurador fez em tempo que elles non poderõ vijr defender nem poer ho seu direito. Esguardando hi ho de Deos e direito e verdadeira conciencia entendo que eu non hei direito nos ditos lugares e que se deve tornar a esta ordem que se agora haa de fazer em reformação da outra sobredicta que foy do Tempre, ha qual ho papa agora outorgou que ouvesse no meu senhorio, e aque elle outorgou e eu outrosi, todolos beens que hi ho Tempre avia tambem temporaes como spirituaaes. E de aqui adian-te renuncio desto e tolho de my toda posse e propriedade que eu ouve nos ditos lugares per aquelas sentenças, e quero que se tornem aadita ordem

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cujos entendo que são de direito. Ficando guardando amy e aos Reys que depos my veerem nas ditas vilas e lugares hos direitos e ho conhecimento de senhorio que ende sempre fezerom a my e aos Reys dante my em estes lugares e nos outros que ha dita ordem avia no meu senhorio quandoos ha dita ordem trazia a seu poder e asua mãao. En testemunho desto mandei dar esta minha carta aa ordem da cavalaria de Jesu Christo que se fez em reformação daquela que se desfez que foy do Tempre. E mandeia seelar do meu seelo do chumbo e soescrevi em ella meu nome com minha maão. Datis em Lixboa em dia de sam Joham vinte e quatro dia de Junho. ElRey ho man-dou. Joham Dominges ha fez. Era de mil CCC LVII annos.

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