1 PROPRIEDADES FÍSICAS DA ÁGUA 1.1 FLUIDOS–GASESELÍQUIDOS
Os fluidos são corpos sem forma própria que podem escoar-se, sofrendo grandes variações de forma, sob a acção de forças tanto mais fracas quanto mais lentas forem tais variações.
Tanto os líquidos como os gases são fluidos. Os líquidos ocupam um volume determinado, não resistem a tracções e são muito pouco compressíveis. Os gases também não resistem a tracções mas, ao contrário dos líquidos, ocupam sempre o máximo volume de que podem dispor e são muito compressíveis.
Alguns materiais (por exemplo, o asfalto ou solos) apresentam propriedades intermédias entre as propriedades dos sólidos e as dos fluidos, sendo estudados em disciplinas como Mecânica dos Solos e Reologia.
O estudo dos fluidos em repouso e em movimento (escoamento) faz-se na Mecânica dos Fluidos. Na disciplina de Hidráulica, embora os conceitos básicos sejam os da Mecânica de Fluidos, o estudo será concentrado sobre o fluido água.
1.2 SISTEMAINTERNACIONALDEUNIDADES(SI)
Durante cerca de 200 anos, as grandezas físicas eram expressas em unidades que variavam de país para país. Por exemplo, a Inglaterra usava o pé como unidade de comprimento ao passo que a Europa continental utilizava o metro; a temperatura expressa em graus Celsius ou Fahrenheit; o volume expresso em m3 ou em acre.pé.
Mas mesmo quando se utilizavam as mesmas unidades, havia divergências relativamente a quais as unidades fundamentais e quais as derivadas, nos chamados sistemas MLT ou FLT (conforme a unidade fundamental fosse a massa ou a força, para além do comprimento e do tempo).
O aumento dos contactos internacionais levou a que nos últimos 25 anos tenha sido adoptado de forma praticamente universal o Sistema Internacional de Unidades – SI. Este sistema é do tipo MLT, tendo como unidades fundamentais:
• comprimento – metro (m)
• massa – quilograma (kg)
• tempo – segundo (s)
• intensidade da corrente eléctrica – ampère (A)
• temperatura – kelvin (ºK)
• intensidade luminosa – candela (cd)
Cada uma destas unidades fundamentais tem uma definição rigorosa no SI. Todas as restantes grandezas físicas são expressas em unidades derivadas a partir das unidades fundamentais.
Na Hidráulica, as grandezas mais importantes, para além do comprimento, massa, tempo e temperatura1, são:
• área – metro quadrado (m2)
• volume – metro cúbico (m3)
• velocidade – m/s
• aceleração – m/s2
• força – newton (N) 1 N = 1 kg x 1 m/s2
• pressão – pascal (Pa) 1 Pa = 1 N/m2
• energia, trabalho – joule (J) 1 J = 1 N x 1 m
• potência – watt (W) 1 W = 1 J / s
• frequência – hertz (Hz) 1 Hz = 1 ciclo / s
• massa volúmica, massa específica ou densidade – kg/m3
• caudal – m3/s
Muitas das unidades em que as grandezas físicas se exprimem são utilizadas correntemente pela população pelo que a sua mudança encontra frequentemente grande resistência. Mesmo na área técnica, a força do hábito leva a que se continue a utilizar unidades que não as do SI.
Apresentam-se de seguida algumas dessas unidades com interesse para a Hidráulica e as suas equivalências para as unidades do SI.
• quilograma força – 1 kgf = 9.8 N
• bar – 1 bar = 105 Pa
• atmosfera – 1 atm = 1.034 x 105 Pa
• quilowatt hora – 1 kWh = 3.6 x 106 J
• cavalo vapor – 1 CV = 0.736 kW
• horsepower – 1 Hp = 0.75 kW
• caloria – 1 cal = 4.18 J
Para outras equivalências e factores de conversão, podem ser consultadas as tabelas 1 a 5 de LENCASTRE 1983.
1.3 MASSAESPECÍFICA,MASSAVOLÚMICAOUDENSIDADE
A massa específica, massa volúmica ou densidade ρρρρ é a massa contida na unidade de volume. A densidade da água varia relativamente pouco com a temperatura: 1000 kg/m3 entre 0 e 10 ºC; 998 a 20 ºC; 996 a 30 ºC; 992 a 40 ºC; e 958 a 100 ºC.
Devido à muito baixa compressibilidade da água, como adiante se verá, a densidade praticamente não varia com a pressão.
Por vezes é referida a densidade relativa, definida como a relação entre a densidade dum líquido e a densidade da água a 4 ºC. A densidade relativa da água é obviamente 1 (ou muito próximo). O álcool, menos denso que a água, tem uma densidade relativa de 0.8 ao passo que a água do mar pode ter uma densidade relativa de 1.04.
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1.4 FORÇASEXTERIORES
Considere-se o volume V dum líquido limitado por uma superfície A conforme se representa na figura 1-1. As forças exteriores que actuam sobre esta massa líquida sujeita à acção da gravidade são de dois tipos:
Figura 1-1 – Forças exteriores que actuam sobre um volume de líquido
• Peso próprio – proporcional à massa. Se se considerar um volume elementar dV, o peso próprio é igual a ρ g dV.
• Forças de contacto – agem sobre a superfície A (superfície de fronteira). Se se considerar um elemento de área dA, a força de contacto será uma força elementar
dA P F
d = , em que P é a força de contacto por unidade de área.
A força de contacto dF pode ser decomposta numa componente normal dFn e numa componente tangencial dFt à superfície dA. A componente normal é dirigida para o interior do volume de líquido (já que os líquidos não resistem a tracções).
Designa-se por pressão p a grandeza escalar que representa o módulo da componente normal dFn por unidade de área.
dA
p=dFn (1.1)
A grandeza escalar que representa o módulo da componente tangencial por unidade de área é a tensão tangencial ττττ.
dA dFt
=
τ (1.2)
Nos líquidos em repouso não existem tensões tangenciais e, em qualquer ponto do líquido, a pressão é independente da orientação da área elementar dA em virtude dos líquidos em repouso serem meios isotrópicos.
Nos líquidos em movimento, embora a isotropia não seja perfeita continua a considerar-se que a pressão num ponto do líquido é independente da orientação da área elementar dA.
Surgem tensões tangenciais desde que o líquido seja viscoso.
ρρρρ. g. dV
dF dA
dA dFt
dFn dF
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1.5 COMPRESSIBILIDADE
Os fluidos são compressíveis mas esta propriedade é muito mais evidente nos gases do que nos líquidos.
Em termos gerais, define-se compressibilidade como a diminuição de volume (e consequente aumento de densidade) provocada por um aumento da pressão sobre o fluido.
Define-se coeficiente de compressibilidade αααα como a diminuição de volume por unidade de volume e por unidade de aumento de pressão. Exprime-se em m2/N
dp dV V
−1
=
α (1.3)
O módulo de elasticidade volumétrica εεεε é o inverso do coeficiente de compressibilidade e exprime-se como uma pressão.
No caso da água, os valores de α e ε são de 0.5 x 10 –9 m2/N e 2 x 10 9 N/m2 respectivamente.
A compressibilidade da água é praticamente desprezável em problemas práticos, excepto no caso de escoamento variável em condutas sob pressão (estudo do golpe de aríete).
1.6 VISCOSIDADE
Referiu-se anteriormente que os líquidos se adaptam à forma dos recipientes que os contêm.
É da experiência comum que certos líquidos se escoam dum recipiente para outro (deformam-se portanto) com maior facilidade que outros – a água ou o álcool escoam-se mais facilmente que o óleo ou o mel. Diz-se então que o óleo é mais viscoso que a água.
Podemos definir viscosidade como a resistência dos líquidos à deformação. Considere-se na figura 1-2 um escoamento plano (que se repete em planos paralelos) no plano OXY. A velocidade apenas tem componente na direcção X mas o seu valor varia ao longo do eixo OY.
Figura 1-2 – Efeito do diferencial de velocidades no escoamento V + dV
V. dt C
V B´
D´
A´
C´ V + dV
D
V
A B
dy ββββ
x, V y
Considere-se um rectângulo elementar de fluido ABCD que se move num intervalo de tempo dt da sua posição inicial para uma nova posição A’B’C’D’. O rectângulo inicial deforma-se para um paralelograma devido ao diferencial de velocidades entre o nível AB e o nível CD.
O ângulo β que mede a deformação angular ocorrida durante o tempo dt é dado pelo quociente entre o diferencial de deslocamento de CD para AB e dy. O diferencial de deslocamento é expresso por
(V + dV) dt – V dt = dV dt (1.4)
Donde
dy dt
= dV
β (1.5)
A velocidade de deformação angular será então
dy dV dt
dβ =
(1.6)
Pode-se imaginar AB e CD como sendo duas camadas de líquido movendo-se uma sobre a outra, sendo AB mais lenta e CD mais rápida. Então CD tende a exercer uma força de arrastamento sobre AB enquanto AB exerce sobre CD uma força de retardamento igual e oposta à força de arrastamento. Estas forças divididas pelas áreas sobre as quais se exercem dão tensões tangenciais ττττ.
Newton admitiu que, no movimento unidireccional dum líquido, a tensão tangencial é proporcional à velocidade de deformação angular
dy µdV
=
τ (1.7)
µ é o coeficiente de viscosidade dinâmica, sendo uma constante para cada líquido para uma dada temperatura. Exprime-se em kg .m-1.s -1.
Os líquidos que seguem a lei de Newton designam-se por líquidos newtonianos. Quando a temperatura aumenta, a viscosidade diminui.2
Frequentemente utiliza-se em lugar do coeficiente de viscosidade dinâmica a viscosidade cinemática νννν, definida por
ρ
= µ
ν (1.8)
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A viscosidade cinemática expressa-se em m2/s e varia significativamente com a temperatura, conforme se indica na tabela seguinte.
T (ºC) 4 10 20 30 50 80 100 νννν (m2/s) x 10 – 6 1.57 1.31 1.01 0.80 0.56 0.37 0.30
Quando um líquido se escoa sobre uma parede sólida, adere a ela. Há assim uma película de líquido que fica imobilizada enquanto o resto do fluido continua em movimento. À medida que a distância à parede aumenta, aumenta a velocidade do líquido.
Portanto uma parede sólida em contacto com um líquido a escoar-se paralelamente à parede provoca no líquido um gradiente de velocidade na direcção normal à parede e sofre, consequentemente, por parte do líquido uma tensão de arrastamento proporcional à viscosidade e à velocidade de deformação angular junto à parede. A tensão de arrastamento existe com valor variável em todo o líquido em movimento, resultando do gradiente de velocidade.
A força de arrastamento realiza trabalho o que implica que o líquido perde energia quando se escoa. A energia do líquido em movimento é energia mecânica (potencial e cinética) e a perda (dissipação) de energia faz-se por transformação da energia mecânica em energia térmica. A energia térmica provoca o aumento de temperatura do líquido (normalmente desprezável devido ao elevado calor específico dos líquidos) e é trocada com o meio envolvente (parede sólida, atmosfera).
1.7 TENSÃODESATURAÇÃODOVAPORDEUMLÍQUIDO
Considere o recipiente fechado representado na figura 1-3. No estado inicial fez-se vácuo no recipiente, mantendo o recipiente a uma temperatura constante.
Figura 1-3 – Trocas entre o estado líquido e gasoso na situação de equilíbrio
Foi-se introduzindo gradualmente um certo volume de líquido no recipiente o qual se vaporiza rapidamente. À medida que se continua a introduzir líquido, o processo de vaporização torna-se mais lento até se chegar a um estado de equilíbrio em que o volume de líquido no recipiente se mantém constante. Trata-se duma situação de equilíbrio dinâmico em
que o número de moléculas que passam para o estado gasoso é igual ao que passa para o estado líquido.
Designa-se como tensão de saturação do vapor do líquido a pressão a que o líquido está sujeito nessa situação de equilíbrio.
Se se aumentar a temperatura, verifica-se que a vaporização recomeça até se atingir uma nova situação de equilíbrio com um valor mais elevado da pressão – a tensão de saturação do vapor cresce com a temperatura.
A tabela seguinte apresenta valores da tensão de saturação do vapor da água para diferentes temperaturas.
T (ºC) 4 10 20 30 50 80 100
Tensão (kPa) 0.813 1.225 2.33 4.24 12.3 47.3 101.2 (= 1 atm)
Note-se que, para a temperatura de 100 ºC, a tensão de saturação de vapor iguala a pressão atmosférica normal.
A consideração da tensão de saturação do vapor da água é muito importante em certas condições de escoamento em que a pressão se torna extremamente baixa, podendo originar o fenómeno de cavitação.
1.8 CELERIDADE
Celeridade c é a velocidade de propagação duma perturbação no seio dum líquido. A celeridade pode ser calculada pela expressão
ρ
= ε
c (1.9)
Para a água a temperaturas habituais (10 a 30 ºC), a celeridade tem um valor de aproximadamente 1400 m/s.
1.9 SOLUBILIDADEDEGASESEMLÍQUIDOS
A solubilidade de gases em líquidos é expressa pela lei de Henry: a temperatura constante e em condições de saturação, a relação entre o volume de gás dissolvido e o volume de líquido é constante.
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Se num dado ponto do escoamento dum líquido a pressão aumentar, o volume do gás dissolvido diminui3 e uma quantidade adicional de gás pode ser dissolvida; inversamente, se a pressão diminuir, liberta-se uma certa quantidade de gás que pode formar uma bolsa ou cavidade no seio do líquido.
Para temperaturas normais, a concentração do ar dissolvido na água em condições de saturação é de cerca de 2%.
1.10 LÍQUIDOPERFEITOELÍQUIDOREAL
Denomina-se líquido perfeito ou ideal o líquido considerado incompressível e com viscosidade nula. Este líquido escoa-se sem que surjam tensões tangenciais, não havendo portanto perdas de energia. A assunção de líquido perfeito, simplificando a análise dos problemas, tem utilidade para a derivação de princípios básicos e em algumas situações particulares em que as hipóteses de incompressibilidade e viscosidade nula são aceitáveis.
Designa-se por líquido real aquele em que se entra em linha de conta com a viscosidade e com a compressibilidade. No entanto, como se referiu anteriormente, a compressibilidade pode ser ignorada na maioria dos problemas práticos.
3 Recorde-se que, pela lei de Gay-Lussac (p V = n R T), a uma dada temperatura constante a variação do volume dum gás é inversamente proporcional à variação da pressão.