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OS SERTÕES SEGUNDO ROSA E GRACILIANO

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Academic year: 2021

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OS SERTÕES SEGUNDO ROSA E GRACILIANO

Flávia Maria Ferreira Branco (CES-JF)

O ambiente sertanejo retratado por João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos em obras literárias é marcado por influências otimista e pessimista, respectiva- mente, frente as experiências de cada um deles. Em uma leitura comparativa entre as suas obras, constatam-se as diferentes visões desses dois autores, a respeito do ser- tão e do homem sertanejo. O que implica dizer que será dada uma atenção especial às relações culturais de cada um dos autores citados, assim como suas dependências culturais, como forma de repensar a identidade que permeia suas obras. Nesse con- texto, cria-se um intercâmbio de idéias com base nas diferenças contextuais, caracte- rizando o lugar do discurso autoral.

Ambos os autores escreveram obras, tendo como cenário o sertão, po- rém percebe-se claramente que as abordagens dadas por eles a este espaço é dife- rente. De forma introdutória, vale dizer que Guimarães Rosa vê no sertão um ambien- te ideal para o homem, já que, segundo ele, o primitivismo e o regionalismo fazem com que o ser humano viva sua essência. A exemplo, o trecho a seguir:

A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade. (ROSA, 2001; p. 134)

Mas Graciliano Ramos, ao escrever, utilizando o sertão como cenário, sugere a seus leitores um ambiente extremamente austero, que faz daqueles aí vivem pessoas sofridas e esmagadas pela seca, e que seca a água, eliminando a possibilida- de de trabalho e alimento para os sertanejos, como se observa no seguinte trecho:

O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela desgraça.

A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés. (RAMOS, 2003; p. 10)

A partir das obras Grande Sertão Veredas e Vidas Secas, de Guima- rães Rosa e Graciliano Ramos respectivamente, é possível exemplificar as maneiras desses autores entenderem o sertão, tentando relacionar suas abordagens com suas identidades culturais.

Entende-se por tematologia o estudo de um determinado tema em obras

artísticas. A Literatura Comparada nomeia assim uma análise literária, na qual a esco-

lha de um tema é pesquisado à luz da comparação entre autores, época, obras de um

mesmo autor, etc. (estabelecendo um intercâmbio literário).

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Para que o leitor compreenda melhor uma obra, é importante que este saiba delinear alguns aspectos da linguagem do autor, e possa, ainda que superficial- mente, compreender o desenvolvimento deste. A forma como os temas são aborda- dos é um fator que pode determinar o “diálogo” entre escritor e leitor. Cada escritor traz consigo certas convicções, as quais tornam-se evidentes em suas obras literárias, como acontece, nos livros citados acima. Para tanto, quanto mais o leitor souber so- bre um escritor, maior será sua capacidade de compreendê-lo, mergulhando, assim, no seu universo textual. Isso, porque tais reflexos se fazem sentir na estrutura da obra, no estilo e na temática.

João Guimarães Rosa (1908-1967) nasceu em Cordisburgo, centro-nor- te de Minas. Fez o curso secundário em Belo Horizonte. Formou-se em Medicina e clinicou pelo interior de seu estado, recolhendo matérias para suas obras. Por essa época, foi autodidata em alemão e russo (foi um apaixonado pelo estudo de línguas, falando o francês, inglês, italiano, alemão; além de alguns conhecimentos em hún- garo, russo, persa, hindu, árabe, servo-croata, malaio, sueco, dinamarquês, latim e grego clássico e moderno).

Rosa se consagrou como escritor a partir de 1956, quando foi publicado Corpo de Baile e sua obra-prima, intitulada Grande Sertão: Veredas.

O autor, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos.

Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.

Na obra de Guimarães Rosa, o sertão não vai se limitar ao espaço ge- ográfico, mas simbolizar o próprio universo. O sertão é uma realidade geográfica, social, política, psicológica e metafísica.

Partindo do primitivo espaço do sertão, o autor de Grande Sertão: Ve- redas começa a delinear o seu aprendizado do mundo, seguindo o curso do rio, me- táfora da vida. Realizou uma viagem de três meses, com vaqueiros mineiros, o que foi fundamental para que compreendesse o homem, a linguagem e o sertão e, dessa essência primitiva, extraísse o seu material poético. Na verdade, em Guimarães o sertão é um espaço externo que contém o interno.

Guimarães Rosa nasceu numa região com isolamento à modernidade (rusticidade). Isso fez com que o autor escrevesse suas histórias com traços regionais marcantes e característicos. Apesar de ser no século XX, o valor da cultura era trans- mitido através da oralidade (histórias – “causos”), contação de histórias, que forma- vam uma rede de tradição cultural da região. Ele ouvia histórias desde menino – viveu em um “mundo mágico” – e as reproduzia. As histórias roseanas trazem algo dessa tradição oral, porém apresentam recursos literários sofisticados da língua literária do século XX.

Grande Sertão: Veredas conta a travessia de Riobaldo, narrador-perso-

nagem, desfiando as suas memórias a fim de narrar suas vivências a um forasteiro,

durante três dias. Travessia que Guimarães Rosa faz através do caráter insólito e am-

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- “o sertão é o mundo”. A narrativa se insere em um mundo sertanejo, com valores próprios do homem do sertão: “Aquele boiadeiro era homem sério, com palavra me- recida e vontade de estar bem com todos.” (ROSA, 2001; p. 338). O autor se mostra grande conhecedor do ambiente por ele descrito e valorizado: “O senhor tolere, isto é o sertão”.(ROSA, 2001; p. 23).

Nessa obra de Guimarães Rosa, nota-se grande interação entre os per- sonagens e o sertão, o que evidencia a visão extremamente positiva desse espaço, por parte do autor. Citações do tipo: “O sertão é do tamanho do mundo” e “O jagunço é o sertão” são idéias do autor diante de sua experiência e admiração pelo sertão.

Riobaldo, o protagonista, é um homem que busca, no vaivém de suas memórias e reflexões, negar a existência real do demônio com quem fez um pacto quando se propôs vencer o jagunço Hermógenes.

A contemplação e a descida às margens naturais da comunidade ser- taneja dão à história veracidade e sugere ao leitor que se entregue amorosamente à paisagem sertaneja. Como na passagem em que se refere ao rio São Francisco: “O São Francisco partiu minha vida em duas partes.” (ROSA, 2001; p. 326).

Dentro da narrativa, Guimarães Rosa insere algumas reflexões huma- nistas, as quais se relacionam facilmente com qualquer contexto social em qualquer tempo ( regional – universal):

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.

Esses homens. Todos puxam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas do seu mundo [...] o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas [...]” (ROSA, 2001; p. 32-3,39).

Vidas Secas, de Graciliano Ramos, conta a história de uma família de retirantes que foge da seca, impiedosa, a castigar sua região árida do sertão. Fabiano (marido), Sinhá Vitória (sua esposa) e os filhos: Menino mais velho e Menino mais novo são os personagens da história, além da cachorra Baleia, que os acompanha durante a longa caminhada em busca de trabalho, moradia e alimento.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas.(RAMOS, 2003; p. 9)

Diante da dificuldade da caminhada (faltava alimento e água), eles aca-

bam comendo um papagaio que haviam levado com eles por ser da família. As crian-

ças sofrem com a fome e com o cansaço. A cachorra caçava preás, para que todos

comessem, mas não era o suficiente; a fome estava sempre presente. Juntamente

com o medo de que todo aquele sacrifício fosse em vão e acabassem não encontran-

do melhores condições para viverem.

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A família de Fabiano acredita que um dia chegariam a um lugar civilizado e envelheceriam felizes. A história mostra a visão pessimista do autor em relação ao sertão, cujas dificuldades expulsam a família de sua região:

Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando.

Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. [...] Mudar-se–iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. [...] E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. [...] O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos”. (RAMOS, 2003; p. 127 –8).

Nesse romance, Graciliano se mostra humano, preocupado com a situ- ação sofrida do homem sertanejo. Aproveita-se da narração em terceira pessoa para marcar o plano literário e não deixar dúvidas quanto à sua presença, ao descrever a vida de uma família de sertanejos fugitivos da seca, sem destino e sem outras pers- pectivas para além da sobrevivência e do eterno retorno. Às vezes, ele aparece do lado de fora dos personagens comentando a vida de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos meninos e da cachorra Baleia, às vezes aparece confundindo-se com os pensamentos de um ou de outro personagem e às vezes como a consciência coletiva do grupo.

Nessa narrativa de Graciliano Ramos nota-se um certo sentimento de rejeição que viria do contato do homem com a natureza ou com ele mesmo, a partir de um realismo crítico apresentado pelo autor. Isso se explica quando tomamos co- nhecimento da experiência desse no sertão. Seus pais se casaram e mudaram para uma fazenda em Pernambuco. Mas, ainda criança, Graciliano Ramos viu o gado de sua família morrer de fome e sede em virtude da seca que assolava a região. Diante das dificuldades encontradas, a família abandonou a terra sertaneja e forma para uma vila próxima. Esse sofrimento, causado pela realidade do sertão, é mostrado em sua obra Vidas Secas.

Fabiano, o herói, não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo, por isso ele nunca se mostra satisfeito com sua situação e coloca toda sua família para sair em busca de algo melhor, na visão do personagem.

A natureza, ou seja, o sertão, interessa ao romancista só enquanto pro- põe o momento da realidade hostil a que a personagem responderá, retirante de Vidas Secas; família de retirantes que vive em pleno agreste os sofrimentos da estiagem.

Vidas Secas abre ao leitor o universo mental pobre de um homem, uma mulher, uma cachorra e seus filhos marcados pela seca. Mostrando que o homem tra- va uma verdadeira luta contra a natureza. Leia-se: “A cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se na ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos do mulungu, o chão ficou todo coberto de cadáveres. [...] Aqueles malditos bichos é que lhe faziam medo”. (RAMOS, 2003; p. 113)

Numa leitura atenta desses dois discursos ficcionais, pode-se obser-

var, em Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, diferentes concepções do sertão.Para

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o diabo, onde tudo é possível. Isso, porque, segundo o próprio autor, o primitivismo do ambiente regionalista faz do homem um ser essencialmente verdadeiro e o torna capaz de assimilar as múltiplas possibilidades que a vida pode lhe oferecer, em tudo, aprendendo uma nova lição. Vale lembrar que Guimarães Rosa foi vaqueiro na sua cidade, Cordisburgo, Minas Gerais. Essa convivência com o sertão e o sertanejo con- tribuiu para a elaboração de um conceito múltiplo do sertão.

Para Graciliano Ramos, como podemos observar em Vidas Secas, o sertão oferece uma vida desgraçada aos que nele vivem. Um ambiente hostil e de difícil adaptação para o homem. A história de Fabiano e de sua família é um retrato da realidade das pessoas que vivem, ou sobrevivem, no sertão. Para o autor, o sertão se resume na seca e em todos os malefícios que esta proporciona aos sertanejos. Todo o sofrimento causado pela fome, sede e dificuldade de prosperar são evidências que o autor apresenta para mostrar sua visão sobre a realidade do sertão.

Em Vidas Secas, nota-se que Fabiano não conseguia expor seus pen- samentos, caracterizando a falta de discurso claro, uma vez que o ambiente austero e agreste do sertão o impede de viver dignamente, de se expressar. Já em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa mostra, no discurso do fluxo de consciência de Riobaldo, um sertão sem tamanho, onde tudo é possível, marcado pelas profundas reflexões do personagem principal da narrativa, sobre a perigosa arte de viver. Mais do que um espaço físico, o sertão roseano faz-se o próprio espaço existencial, onde sempre viver é perigoso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

CÂNDIDO, Antônio. Graciliano Ramos. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1996. (Nossos Clássicos; n53).

LITERATURA COMPARADA NA AMÉRICA LATINA: do etnocentrismo ao diálogo de culturas. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 1996. p. 67 – 74. (v. 3; n. 3).

NICOLA, José de. Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias. 15. ed. São Paulo: Scipione, 1998.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 89. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2003.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-

teira, 2001.

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