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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

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Academic year: 2019

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Almiro Petry1 (2008)2

1 Introdução

Nos últimos anos houve alguns eventos importantes que marcaram o processo da trajetória na busca da autonomia dos países da América Latina3, que expressam uma tendência de romper com o “pensamento único”4, “globalitário”, “ortodoxo” e hegemônico, implantado pelas antigas elites (locais e internacionais), através das reformas neoliberais da década dos anos noventa, com a aplicação do Consenso de Washington5, doutrina da qual Hugo Chávez quer

“descontaminar” o Mercosul. Esta doutrina apresentou-se como o “ponto de chegada” da História6, portanto, estabelecendo-se, pretensamente, como perene. Aliás, neste período, vários presidentes latino-americanos7 foram derrubados pelos movimentos populares ou pelos congressos nacionais como no Paraguai, Argentina, Peru, Bolívia, Haiti, Brasil, Venezuela, Guatemala, Nicarágua etc. Mais recentemente, forças surgidas das esquerdas conquistaram o

1 Mestre em Sociologia Rural (UFRGS) e Doutor em Ciências Sociais (Unisinos); Professor do Curso de

Ciências Sociais da Unisinos e do Departamento de Sociologia da UFRGS (almiro.petry@gmail.com).

2 Esta versão é uma atualização da publicada em janeiro de 2007.

3 Entende-se por dois critérios: a) a América Latina como o conjunto de países e nações que têm uma cultura e

uma formação histórica de origem latina, em especial seu idioma (espanhol, português e francês), localizados na América do Norte, na América Central e na América do Sul. São: Antígua e Barbuda; Argentina; Bolívia; Brasil; Chile; Colômbia; Costa Rica; Cuba; El Salvador; Equador; Guatemala; Haiti; Honduras; México; Nicarágua; Panamá; Paraguai; Peru; Rep. Dominicana; Uruguai e Venezuela. Este conceito é o mais tradicional e surgiu na Europa, já nos primórdios da colonização, identificando nações com o idioma.

b) o termo América Latina corresponde também a critérios geopolíticos e econômicos, com os quais se aproximam os Estados do Continente americano de profundas desigualdades sociais e de instabilidade política e econômica. Este critério inclui também nações oriundas das antigas possessões inglesas e holandesas. Neste caso, refere-se ao conjunto dos países do Terceiro Mundo do Ocidente. Ou seja, a América Latina é o Terceiro Mundo do Ocidente. Este tem sido o tratamento dado pelo Primeiro Mundo (e ainda permanece). Quanto à instabilidade política, de modo particular, os países desta região são referidos como “republiquetas de bananas”.

4 A expressão “pensamento único” foi cunhada pelo jornalista francês Ignácio Ramonet em artigo publicado no

Le Monde Diplomatique, em 1995. Dizia: “Essa doutrina é o pensamento único, o único autorizado por uma invisível e onipresente vigilância de opinião”.

5 O Consenso de Washington (1989), denominação cunhada pelo economista inglês John Williamson, refere-se a

um conjunto de dez medidas (reformas) que poderiam implementar o crescimento econômico dos países da América Latina. Essas reformas eram: disciplina fiscal; uma mudança nas prioridades para as despesas públicas; reforma tributária; liberalização do sistema financeiro; uma taxa de câmbio competitiva; liberalização comercial; liberalização da entrada do investimento direto; privatização das empresas estatais; desregulamentação das relações de trabalho e da economia e direito da propriedade assegurado. Além destas dez medidas, os governos ainda optaram pela “reforma previdenciária” em que os trabalhadores perderam muitos dos direitos historicamente (e heroicamente) conquistados.

6 A tese de Francis Fukuyama do “fim da história”, preconizada com a queda do muro de Berlim e do regime

soviético.

7 O termo latino-americano (latinoamericano, em espanhol) refere-se aos dois critérios apontados na Nota 3.

Entretanto, quando um norte-americano ou um europeu o aplicam ao homem e à mulher da América Latina (Latin American) ele é culturalmente pejorativo, pois se refere ao “caráter latino”, sendo portador do sentido de “malandro”, “fraco”, “duplamente perigoso”, “instável”, “mulherengo”, “ridiculamente infantil”, “orgulhoso”, “sensual”, “apaixonado”, “impetuoso”, “indiferente”, “desrespeitoso”, “extravagante na aparência”, etc. Portanto, o “latino-americano” não é só o habitante de um subcontinente, mas é um estigma.Ver: FERES JUNIOR, João. A História de “Latin América” nos Estados Unidos. Bauru/SP: EDUSC/ANPOCS, 2005.

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poder político no Brasil, na Venezuela, na Guatemala, na Nicarágua, no Uruguai, no Chile, na Bolívia e no Equador8.

Sinaliza-se com mudanças e esperanças. A América Latina não vive uma “época de mudanças, mas uma mudança de época”, como sabiamente afirmou Xavier Gorostiaga, idéia já muito repetida, inclusive por Rafael Correa, presidente do Equador, a partir do discurso da vitória eleitoral. A mudança de época é alimentadora de esperanças para milhões de latino-americanos que vivem na exclusão, sem as mínimas condições humanas de viver dignamente e quase a totalidade é subalterna e dependente de políticas públicas compensatórias. José Martins faz uma leitura desta realidade e a expressa em O fim da esperança sem fim9,

apontando que, nas últimas eleições presidenciais brasileiras (2006), o povo passa a ser protagonista de sua história, rompendo com a tradicional subalternidade. Segundo ele, aí se encerra o longo e vagaroso século 20, iniciado nos idos de 1888, tendo como marco inicial a abolição da escravatura negra, seguido pela proclamação da república. Ambas tardias em relação aos demais países do Continente.

Entretanto, a América Latina ingressou no século 21 com dois grandes problemas a resolver: a pobreza e a desigualdade. Calcula-se que mais de 40% de toda a população latino-americana - de 520 milhões de habitantes - não tenha suas necessidades básicas satisfeitas. A pobreza é ainda pior entre as crianças. Conforme o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 60% das crianças da região são pobres. A desigualdade se reflete nas baixas condições de saúde, de moradia e de escolaridade da população. Em países desenvolvidos, a mortalidade infantil média é menor de 10 em cada mil crianças nascidas vivas. Os índices na América Latina ainda são quatro vezes maiores.

Nestes apontamentos vamos concentrar nosso olhar, principalmente, nas desigualdades, nas mudanças e nas esperanças latino-americanas.

2 As desigualdades: houve mudanças? Há esperanças?

Entre os anos de 2005 e 2007, os seguintes países da América Latina elegeram e empossaram seus novos presidentes: Uruguai – Tabaré Vázquez (socialista), afastando as oligarquias

colorados e blancos, que estavam 174 anos no poder; Haiti – René Préval, o preferido dos

pobres, do país mais pobre da América Latina; Colômbia – Álvaro Uribe se reelege no primeiro turno; Chile – Michelle Bachelet Jeria (socialista) da Concertación, o terceiro

governo socialista após a ditadura de Pinochet; Costa Rica – Oscar Arias, ex-presidente

(1986-1990) e Prêmio Nobel da Paz de 1987; Peru – Alan Garcia, ex-presidente (1985-1990); Bolívia – Juan Evo Morales (Movimento ao Socialismo - MAS), do povo indígena aymara; México – Felipe Calderón (vitória com a margem de 0,58%, contestado pela oposição e os movimentos populares); Nicarágua – Daniel Ortega, ex-presidente da revolução nicaragüense; Equador – Rafael Correa, do Partido Socialista; Venezuela – Hugo Chávez, reeleito em primeiro turno; Brasil – Luiz Inácio Lula da Silva, reeleito no segundo turno; Guatemala – Álvaro Cólon Caballeros, da Unidad Nacional de la Esperanza (UNE) – eleito em segundo

turno e empossado em 2008.

O fato novo deste quadro é que vários presidentes são apoiados por movimentos sociais e populares, com a profunda esperança de transformação da realidade econômica e social. No entanto, o desejo é de que não se repita o ocorrido no Brasil, pois, o “resultado das eleições de 2002 despertou grandes expectativas de transformação social. Aos poucos, o

8 Sendo de extrema esquerda H. Chávez , E. Morales, D. Ortega e R. Correa; os demais, de centro-esquerda. 9 Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno

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projeto de poder se sobrepõe à busca de um projeto de nação socialmente mais justa”10, apesar das políticas compensatórias aplicadas. As pressões dos segmentos sociais dominantes sobre o Estado são intensas, impedindo mudanças mais profundas que alterem a estrutura de poder e a composição das forças decisórias. Entretanto, sem profundas transformações estruturais, como Hugo Chávez da Venezuela, por exemplo, vem prometendo com o “socialismo do século 21”, ou o “novo socialismo”, as desigualdades se perpetuarão. O exemplo mais palpável é o do Chile, cujo acelerado crescimento econômico não as vem reduzindo, mesmo diminuindo significativamente a pobreza.

No início dos anos noventa, havia uma similitude entre as economias latino-americanas e as dos países asiáticos emergentes (China, Índia e Tigres asiáticos). Até fins de 2005, os latino-americanos duplicaram seu Produto Interno Bruto (PIB), enquanto aquelas economias mais do que quadruplicaram. De 1995 a 2005, segundo o Banco Mundial (BM), as economias latino-americanas cresceram, em média, 2,8% a.a. e as asiáticas, 5,3% a.a. Em 2005, os emergentes asiáticos captaram US$130 bilhões, contra os US$72 bilhões dos americanos. Há uma suspeita, por parte dos investidores estrangeiros, de que os latino-americanos estão dando uma guinada para a esquerda, que é, tradicionalmente, adversária do capital estrangeiro. Por isso, demandam nações que protegem tais investimentos, como os emergentes asiáticos. Esta atitude fundamenta-se em um preconceito de que a América Latina é homogênea, quando é diversificada e há países que respeitam a democracia e a economia de mercado. Esta “preocupação” por parte dos investidores em relação a “guinada à esquerda” da América Latina, é sugerida pelos resultados observados nas últimas eleições. Não há, contudo, um movimento homogêneo para modificar a ordem econômica vigente, exceto o que o jornalista argentino Andrés Oppenheimer chamou de “petropopulismo”, referindo-se aos movimentos liderados por Morales e Chávez, presidentes dos quais a população pobre espera uma rápida distribuição da riqueza proveniente do petróleo e do gás. Também o Financial Times espalhou, em inícios de 2007, de que com as estatizações na Venezuela e na Bolívia, a

América Latina “está migrando para o controle estatal da economia” o que pode retrair os investidores. Convém lembrar que no biênio 2006-2007 os brasileiros investiram mais fora do que no território nacional, fato que merece considerações específicas.

Entretanto, é preciso criar condições infra-estruturais e agências reguladoras para atrair novos investimentos. A Tabela 1 retrata as taxas de crescimento e de investimentos de alguns países destas áreas geográficas, possibilitando uma comparação histórica.

Tabela 1 – Taxas de crescimento e de investimentos11

País Crescimento do PIB

(%a.a.)c

Taxa de investimento (%a.a.)d

Brasil 2,2 19,5

Chile 4,2 23,3

China 8,9 35,3

Coréia do Sul 4,4 32,0

Índia 5,6 22,7

Ásia em desenvolvimento a 7,1 -

Ásia em desenvolvimento b 4,0 -

Mundo 3,9 -

Fonte: FMI e Banco Mundial

a) Exclui Japão e Coréia do Sul; b) Exclui os anteriores, China e Índia; c) 1996-2005; d) 1995-2004.

10CONFERÊNCIA Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Brasil: eleições 2006. Orientações. Sítio:

www.cpp.com.br; visita: 25-07-06.

11 LEVY, Paulo e VILLELA, Renato. Uma Agenda para o Crescimento Econômico e a Redução da Pobreza.

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As acima mencionadas diferenças entre latino-americanos e asiáticos resultaram, segundo os defensores do Consenso de Washington, das políticas e das práticas de inovações

desregulamentadoras no campo da economia e das finanças, no “mercado de trabalho”, na previdência social, que visam à “racionalidade de sistemas auto-regulados” aplicadas pelos países orientais. Na verdade, nos vários regimes daquela região, trata-se de crassa acumulação de capital (haja vista as desigualdades geradas), de um capitalismo que se rege desenfreadamente pelo lucro como também nos países latino-americanos que rezam por aquela cartilha (México, Chile, Argentina, Brasil e outros), tão benquista pelo BM e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Há, entretanto, claros indícios por parte de especialistas destes organismos de que tais princípios se tornaram insustentáveis, dando razão aos movimentos sociais, aos críticos do modelo e aos pensadores “não-ortodoxos”. Isto se evidencia cada vez mais, a tal ponto que, na atualidade, nenhum governante quer ser classificado de neoliberal.

Neste momento histórico de extrema pobreza e exclusão social, o historiador mexicano Enrique Krauze12 pensa que há riscos de ocorrência dos seguintes paradigmas político-institucionais na América Latina: o ressurgimento do populismo, com promessas

milagrosas para cativar as camadas sociais pobres e miseráveis, que no passado foi um obstáculo ao desenvolvimento pretendido pelas classes dominantes; uma volta do militarismo

que vê no uso da força e das armas uma alternativa legítima para conquistar o poder (no passado apoiado pelas correntes conservadoras); um retorno das ideologias revolucionárias,

na forma de guerrilhas, incrementadas com a ideologia nacionalista e a dos movimentos sociais contestatórios (movidos pela doutrina da justiça social); o renascimento do modelo de

economia fechada e estatizante para “recuperar” as perdas provocadas pelas reformas

neoliberais (um resgate do consenso keynesiano, uma alternativa ao neoliberalismo).

Os recentes fatos mais relevantes podem ser sumariados em algumas efemérides, como: a) A Cúpula América do Sul – Países Árabes, promovida pelo Brasil, que deixou os Estados Unidos da América (EUA) fora do jogo. Esta Cúpula pretende “uma globalização para o bem de todas as partes e não em favor de um só”; b) Cuba conseguiu na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) o apoio de 182 países em favor da suspensão do bloqueio econômico (somente os EUA, Israel, Palau e Ilhas Marshall votaram contra); c) a não-assinatura do acordo da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), em dezembro de 2005, o que significa o “solene enterro” deste projeto dos EUA; d) frente a esta posição, os EUA firmaram, durante o biênio 2006-2007, acordos comerciais bilaterais com vários países da América do Sul, da América Central e do Caribe; e) os Presidentes Lúcio Gutiérrez do Equador e Carlos Mesa da Bolívia foram depostos, retratando a instabilidade político-institucional ainda presente no Continente; f) na Venezuela, as sucessivas vitórias eleitorais de Chávez, após um período político conturbado, gerando “amor e ódio”13; g) no México, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) opta em depor as armas para promover uma ampla mobilização social, sem vínculo eleitoral; h) também no México, o movimento de Oaxaca expressa uma mobilização popular contra as oligarquias e o poder instituído; i) os blocos econômicos buscaram sua consolidação como o Mercosul, com a adesão da Venezuela, o Pacto Andino e o surgimento da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA); j) a realização da XIV Conferência dos Países Não-alinhados (118) em

12 Enrique Krauze é considerado um pensador, ensaísta e historiador liberal. Apud: VEJA, 15-02-06, p.63. 13 Em abril de 2002, um golpe derrubou o Presidente Hugo Chávez que foi recebido com euforia em

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setembro de 2006 na cidade de Havana e como Cuba manterá a presidência nos próximos três anos, está sendo visto como um símbolo de mudanças; k) as recentes eleições presidenciais podem sinalizar uma estabilização político-institucional democrática, na condição de não serem reduzidas a expressões de “democracias eleitorais”; l) o fortalecimento da rede de economia solidária que do conceito de “resistir e construir” passa para o de “reforçar o poder de ação dos povos”, como alternativa à economia de mercado; m) a Cúpula Ibero-americana, em novembro de 2006, declarou o ano de 2007 “o ano ibero-americano de alfabetização”; n) no caso do Brasil, a vigorosa reação dos movimentos sociais e da população em geral, contra o auto-aumento de 91% que os deputados federais se outorgaram, obrigando-os a retrocederem, sinaliza a esperança na crescente consciência popular e na participação da sociedade civil nas decisões institucionais.

Tudo isto revela, como afirma James Petras14, que na atualidade a América Latina, sob o ponto de vista econômico, político e social apresenta um quadro complexo e contraditório. As esperanças depositadas nos partidos de esquerda pela população, ao conquistarem o poder em alguns países, se evanesceram. Como exemplos ele cita vários países com um ou outro tópico: a) A Venezuela aumentou os gastos públicos nos setores sociais favoráveis às classes populares, mas ainda não tocou no setor financeiro. Há uma política antiimperialista com forte matiz nacionalista. b) Na Colômbia o governo de direita de Uribe reprime os grupos civis, os sindicatos, os trabalhadores rurais, os indígenas e os guerrilheiros que lhe fazem oposição. Este governo recebe forte apoio dos EUA. c) No Equador os povos indígenas estão bem organizados e apoiaram a Rafael Correa que se apresenta para transformar estruturalmente o país. d) No Peru há grandes mobilizações populares, no entanto, o candidato destas facções não venceu as eleições e Alan Garcia representa a extrema direita com o apoio dos EUA. e) No México o fenômeno foi semelhante, mas houve uma decisão judicial que preteriu os movimentos populares em favor de Felipe Calderón, apoiado pelos EUA por ser defensor do NAFTA. f) Na Nicarágua Daniel Ortega resgata o “danielismo” frente ao antigo “sandinismo” da época da revolução, posição mais atenuada e menos radical. É uma retomada do poder com força popular. g) No caso do Brasil, do Uruguai, da Argentina e do Chile nos quais a esquerda está no poder, aliás, a ex-esquerda porque aplicam políticas neoliberais, favorecendo os grandes bancos e o sistema financeiro internacional, pagando a dívida externa, diante do alto grau de sofrimento do povo e não se avança nas reformas de base. A ilusão da esquerda é apresentar-se como centro-esquerda, arremata Petras.

Sem dúvida, neste contexto histórico, os países latino-americanos assumem a postura de quererem se afirmar como nações livres e soberanas. Querem trilhar seu próprio caminho (caminhante, no hay camino, se hace camino al andar)15, gerando uma consciência de que

podem atingir esta meta, apesar das imposições primeiromundistas, em especial dos EUA. Esta conduta manifesta-se, no plano comercial, nos organismos internacionais, de forma cada vez mais explícita. Em abril de 2005, a Organização Mundial do Comércio (OMC) deu ganho de causa ao Brasil na disputa com os EUA em relação aos subsídios ao algodão assim como já havia decidido a favor do Brasil contra a União Européia (UE) quanto aos subsídios concedidos à produção de açúcar (o caso do aço - EUA; o caso dos aviões – Canadá, etc.), entre outras conquistas. O mesmo vem ocorrendo, de forma incipiente, com a Argentina e demais países. Por outro lado, o fato de o Brasil ter, antecipadamente, devolvido o empréstimo feito junto ao FMI chamou a atenção do mundo econômico-financeiro e político. Esta atitude do governo Lula não foi consensual. Pelo contrário, houve mais críticas do que manifestações favoráveis, tendo como contexto o cenário latino-americano.

14 PETRAS, James. Las perspectivas de América Latina y las posiciones de gobierno y partidos de izquierda.

Disponível: http://www.lahaine.org/

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Na “Rodada de Doha” das Conferências da OMC16, que começou em Doha (Catar, 2001), passa por Cancun (México, 2003) e chega à Conferência de Hong Kong (2005), o G2017 não aceita o protecionismo comercial imposto pelos EUA, UE e o G818, bem como os subsídios agrícolas concedidos por aquelas nações19. Os EUA e a UE ainda tratam servilmente os países latino-americanos20. A ausência deste acordo foi fundamental para derrubar o projeto da ALCA, em dezembro de 2005 (Mar del Plata, Argentina). É preciso que os nossos representantes e negociadores mudem estas relações de poder e assumam o papel histórico de maior autonomia e soberania, defendendo os interesses e as necessidades de nossos povos. Os impasses continuaram durante o ano de 2006. Aumentaram as expectativas de êxitos em 2007, quando as negociações foram retomadas, uma esperança para os produtores e exportadores latino-americanos de bens agrícolas. Entretanto, o impasse foi postergado para 200821. Por outro lado, com o ingresso da Venezuela (em 2006) e a possível adesão da Bolívia, as dificuldades de integração do Mercosul aumentarão, porque ambos os países têm presidentes contrários à liberalização agrícola e à realização de acordos comerciais com os países capitalistas. Isto afetará o acordo Mercosul-UE.

Apesar do impasse gerado pelo G6 em relação à “Rodada de Doha” (2006-2007), os dirigentes da OMC a consideram ainda “uma prioridade” e tentarão, no futuro, consolidar um acordo. Enquanto isso, a União Européia reforçará, em sua agenda comercial, seus vínculos com a China e demais países asiáticos, ficando de lado as pretensões do Mercosul em ampliar suas relações comerciais com aquele conjunto de países. O impasse entre o Mercosul e a União Européia surgiu em fins de 2005, às vésperas da Cúpula das Américas, quando se evidenciava uma significativa divisão interna dos países membros em relação à ALCA. Retomadas as negociações no decorrer de 2006, mais uma vez foram suspensas em função das dificuldades comerciais surgidas entre Brasil e Argentina. A divergência básica gira em torno dos subsídios agrícolas que os europeus querem manter e o ingresso no mercado dos serviços que os latino-americanos não querem abrir. Por outro lado, a postura negociadora do Brasil privilegia a rodada de Doha da OMC (os representantes brasileiros pretendem um encaminhamento mais global) em detrimento das negociações entre o Mercosul e a União Européia. A interrupção da negociação multilateral significa, no entanto, um grande atraso na evolução do sistema global de comércio e exigirá do Brasil uma nova postura nas negociações, para não agravar os prejuízos já acumulados com a perda de novos contratos e negócios. A este cenário acrescem os sucessivos embargos impostos pela Rússia e UE à importação da carne bovina brasileira, alegando irregularidades sanitárias e de rastreamento.

16 A Organização Mundial do Comércio (nasceu da “Rodada do Uruguai” – 1994 – como sucedânea do GATT)

tem 149 países-membros e a sede é em Genebra (Suíça). Tem como objetivo de liberalizar, supervisionar e regular o comércio internacional. As decisões são tomadas por consenso. Os litígios são dirimidos pelo tribunal específico.

17 Compõem o G20: África do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Cuba, Egito, Filipinas, Guatemala,

Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Tailândia, Tanzânia, Venezuela e Zimbábue. Seu PIB agrícola soma US$507 bilhões, contra US$179 bilhões da EU e US$164 bilhões dos EUA. O G20 gera ¼ do PIB agrícola mundial.

18Compõem o G8: EUA, Canadá, Inglaterra, França, Alemanha, Japão, Itália e Rússia.

19Por exemplo, cada vaca européia recebe quase 3 dólares, por dia, na forma de subsídios; cada produtor rural

dos países ricos recebe em torno de 30 dólares por dia, na forma de subsídios; nos EUA ultrapassa os 43 dólares; na UE, esse valor atinge a 46 dólares e na Noruega sobe aos estratosféricos 123 dólares.

20 As negociações para a liberalização do comércio mundial entraram em colapso, em julho de 2006, quando o

G6: Brasil, Austrália, União Européia, Índia, Japão e EUA não chegaram a um acordo. Os principais conflitos são: a) Os países emergentes querem o fim dos subsídios agrícolas, negado pelos EUA e a União Européia; b) Os países industrializados pleiteiam um maior corte, por parte dos importadores, das alíquotas de importação. Os emergentes as julgam importantes para a “proteção” da indústria local; c) Os países industrializados pleiteiam a liberalização dos serviços de telefonia, dos transportes, dos correios e das licitações governamentais, não encontrando esta disposição nos emergentes.

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O Mercosul, por sua vez, enfrenta sérios obstáculos de integração devido às assimetrias econômicas e políticas entre seus membros. Fundado pelo Tratado de Assunção (1991) com o objetivo de integrar suas economias, passados mais de quinze anos perdura a incompreensão de que integrar significa respeitar a diversidade. Os conflitos focam aquilo em que há similitudes: modelo industrial e modelo do agronegócio entre os dois maiores parceiros, por um lado, e pequeno porte econômico dos dois parceiros menores, por outro lado. É perfeitamente constatável de que o Mercosul mantém boas relações comerciais com os demais países da América do Sul, da Central e do Caribe. Entretanto, não são acordos entre o bloco e países, mas o parceiros realizam seus acordos com outros membros. Vige no Mercosul a tese do 4 + 1, ou seja, os quatro membros realizam o acordo com o novo parceiro, o que nem sempre é viável. Nos dois últimos três anos (2005-2007), os EUA foram bastante agressivos na assinatura de acordos comercias bilaterais, com o objetivo de quebrar uma possível hegemonia mercosulina na América do Sul. Isto deverá elevar a consciência regionalista da comunidade sul-americana. Neste contexto, com o desenrolar dos fatos, há uma indagação frente a presença da Venezuela no Mercosul, já que o presidente Chávez quer “descontaminar o Mercosul do neoliberalismo” e implantar o “socialismo do século 21” em toda a América do Sul.

Os dirigentes latino-americanos têm nos movimentos sociais (MST, EZLN, Cúpula dos Povos etc.) bons exemplos de que as grandes marchas e mobilizações são portadoras de propostas sérias e viáveis e que suas pressões se estendem também sobre os governos das outras nações. Não se pode apagar da memória coletiva as manifestações de Seatle (1999), Gênova (2001), Davós (vários anos), Cancun (2003), Hong Kong (2005) e Mar del Plata (2005) pelos valores simbólicos que são portadores na luta contra o neoliberalismo e o imperialismo. As mobilizações sociais são construtoras da consciência social individual e coletiva. Sem elas, não há transformações estruturais que venham ao encontro das camadas sociais desprivilegiadas e excluídas, que ainda ultrapassam os 40% da população latino-americana. Não se pode, por exemplo, pagar a dívida externa às custas do trabalho e de vidas dos pobres deste subcontinente.

Segundo Martins22, as saídas de capital da América Latina, no período de 1956 a 2004, superaram em 34% as entradas, que é a taxa de lucro dos investidores não-residentes. Saíram US$ 1,427 trilhão na forma de remessa de lucros, pagamentos de juros, serviços da dívida etc., contra US$ 1,061 trilhão de investimentos e empréstimos. Somente nos períodos de 1968 a 1981 e 1991 a 1998 as entradas superaram as saídas. O grande destaque é para o recente período de 1999 a 2004, quando as saídas superaram o dobro das entradas (US$ 462,2 bilhões x US$ 210,1 bilhões). Isto descapitaliza os países latino-americanos e implica no crescimento exponencial da dívida externa, que consome parte do precário crescimento econômico.

A tabela 2 demonstra as extremas desigualdades econômicas que se refletem nos indicadores sociais. Na comparação do PIB, a América do Norte desponta com 91,68% do PIB das Américas (os EUA detêm 88,48% e 81,12% de toda a América), contra 7,04% da América do Sul e 1,28% da América Central. Já com a população as proporções se alteram, com aparente equilíbrio entre o Norte (49,61%) e o Sul (42%), contra 8,39% da América Central. Estas disparidades têm seus reflexos negativos na distribuição interna da riqueza, na expectativa de vida etc. cujos indicadores sintéticos são o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Índice de Pobreza Humana (IPH).

22 MARTINS, Carlos Eduardo. Pensamento Social.

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Tabela 2:Continente das Américas

Dado América América do N. América Cen. América do Sul

Nº de países 35 3 20 12

Pop. (milhões) 874,2 433,6 73,5 367,1

Den.(hab/km2) 20,71 18,33 100,57 20,58

Pop. Urb. % - 80 77 81

Analfabet. % 6,9 1,1(a) 11,1 11,1

Mort. Infantil - 7 32 32

Cresc. Dem. % - 1,0 1,4 1,4

Natalidade %o 18,1 15,2 24,8 20,2

Mortalidade%o 7,2 7,6 7,3 6,7

PIB (US$ bi.) 12.799,344 11.734,630 162,932 901,782

R. p/cap.(US$) 15.143 27.900 2.301 2.549

Área (km2) 42.215.000 23.651.000 731.000 17.833.000 Fonte: ALMANAQUE ABRIL: Mundo 2005, p.122; dados referentes a 2003/2004.

(a) Sem o México.

No Panorama Social de América Latina 200723, a CEPAL afirma que, em 2006,

36,5% da população latino-americana encontra-se em “situação de pobreza” e 13,4% em “estado de indigência”, atingindo 194 milhões e 71 milhões de pessoas, respectivamente. Para 2007, a estimativa é de reduzir os pobres para 35,1% (190 milhões de pessoas) e os indigentes a 12,7% (69 milhões de pessoas). Tomando por base a evolução ocorrida no período de 1990 (48,3%; 22,55%, respectivamente) a 2006 (36,5%; 13,4%, respectivamente), os índices são alentadores para cumprir a primeira meta do milênio (reduzir à metade, até 2015, os índices de pobreza, tendo por base o ano de 1990), mas continuam insuficientes, perdurando, no conjunto dos países latino-americanos, a situação de pobreza e de miséria, porque persiste a concentração da riqueza, da renda, da terra e do poder. No relatório da CEPAL, o Brasil aparece com 33,3% e 9%, respectivamente de pobres e indigentes. O Chile desponta com 13,7% e 3,2%, respectivamente de pobres e indigentes, sendo o país mais próximo do êxito na conquista das metas do milênio. No caso da juventude, a ONU contabiliza 11,1% (16,6 milhões) que vivem na indigência (até 1 US$/dia) e 27,2% (40,8 milhões), vivendo abaixo da linha da pobreza (até 2 US$/dia)24.

Por outro lado, o processo da transição demográfica está se acentuando na América Latina e a CEPAL vem alertando sobre este fenômeno e afirma que cerca de 25% da população latino-americana têm entre 15 e 29 anos. Em 1970, por exemplo, 50% da população regional tinham menos de 19 anos; já em 2000, esta fração elevou-se a 25 anos. No futuro, a se manterem as atuais tendências demográficas, o envelhecimento populacional se acentuará e, em 2020, a idade média já será de 30 anos e, em 2050, será de 40. Neste cenário, o número de jovens (15 a 29 anos) por cada 100 adultos (30 a 64 anos) baixará de 80, em 2000, para 56, em 2020 e 46, em 2050. Atualmente, considerando que América Latina e o Caribe atingem quase os 600 milhões de habitantes, poder-se-ia dizer que os jovens representam 150 milhões de pessoas. Entretanto, esta não é uma população homogênea. A juventude latino-americana está caracterizada pela sua diversidade étnica, social, cultural e econômica. Além da diversidade, a juventude latino-americana representa uma oportunidade de desenvolvimento para cada região.

Entretanto, não há homogeneidade na região caracterizada pelas grandes desigualdades. Na Argentina houve significativa recuperação das condições de vida nas áreas

23 CEPAL: Panorama social 2007 de américa latina

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urbanas. O mesmo está ocorrendo no México e no Chile. Nos demais países, há avanços, como no Brasil, na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Costa Rica, na Colômbia etc. mas não são suficientes para debelar o mal-social que são a pobreza, a indigência e as

desigualdades25.

No estudo, na análise e na interpretação da pobreza toma-se, há vários anos, o conceito construído a partir das necessidades básicas não-satisfeitas, em vez do critério da renda per capita, que traz uma carga economicista e mecanicista. Com este conceito, a CEPAL26 traz os

seguintes dados:

1. Mais de 40% da população de 7 a 12 anos da Bolívia não têm acesso à escola; contra menos de 5% da Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

2. Mais de 20% da população da Bolívia e Honduras não têm os serviços sanitários básicos; contra menos de 5% da Argentina, Chile, Costa Rica, Equador, Paraguai, Rep. Dominicana e Uruguai.

3. Mais de 30% da população da Bolívia, Honduras e Nicarágua e mais de 20% da população da Guatemala e Peru não têm acesso à eletricidade; contra menos de 5% da Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, México e Venezuela.

4. Mais de 20% da população da Bolívia, El Salvador, Nicarágua e Peru não têm acesso à água potável; contra menos de 5% do Chile, Costa Rica e Uruguai.

5. Mais de 40% da população da Nicarágua e do Peru, mais de 30% da Bolívia e de Honduras e mais de 20% da população de El Salvador e Paraguai têm como piso residencial o chão-batido; contra menos de 5% do Chile, Costa Rica, Equador, Rep. Dominicana e Venezuela.

6. Com cinco ou menos anos de escolarização, temos o seguinte quadro da população: de 5 a 10% - Argentina e Equador; de 10 a 20% - Chile, Costa Rica, Panamá, Uruguai e Venezuela; de 20 a 30% - Bolívia, Colômbia, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru e Rep. Dominicana; de 30 a 40% - Brasil e Guatemala.

7. Com habitação inadequada (aglomerados, favelas, proporção de pessoas por cômodos, etc.) temos: até 5% da população no Uruguai; de 10 a 20% - Colômbia e Costa Rica; de 20 a 30% - Brasil e Rep. Dominicana; de 30 a 40% - Equador, México e Venezuela; mais de 40% - Bolívia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Paraguai.

8. Sistema inadequado de esgoto: até 5% da população da Argentina; de 10 a 20% - Chile e Colômbia; de 20 a 30% - México; de 30 a 40% - Costa Rica, Equador, Uruguai e Venezuela; mais de 40% - Bolívia, Brasil, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru e Rep. Dominicana.

Os países que apresentam os níveis mais elevados de pobreza e indigência: Bolívia, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Paraguai são também os que apresentam os percentuais mais elevados das necessidades básicas não-satisfeitas. Países como o Chile, Costa Rica e Uruguai que ostentam os melhores índices em relação à pobreza e à indigência, são os que, igualmente, apresentam elevados índices de satisfação das necessidades básicas. Persiste, entretanto, um imenso problema que é a distribuição interna da riqueza. As sociedades latino-americanas, com algumas honrosas exceções, são de extrema desigualdade interna. Um medidor da desigualdade é o Índice de Gini, que mostramos a seguir.

O índice de Gini abrange os valores de zero (maior igualdade) a um (maior desigualdade). Quanto mais próximo de zero for, melhor é distribuída a renda e quanto mais próximo de um, maiores são as desigualdades e a exclusão social. Assim, em 1999, segundo a CEPAL, o ranking era: Brasil (0,640), Bolívia (0,586), Nicarágua (0,584), Guatemala (0,582),

25 O tema da

pobreza será aprofundado no decorrer do semestre.

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Colômbia (0,572), Paraguai (0,565), Honduras (0,564), Chile (0,559), Panamá (0,557), Argentina (0,542), México (0,539), Equador (0,521), El Salvador (0,518), Venezuela (0,498), Costa Rica (0,473) e Uruguai (0,440). Para fins comparativos, o Índice de Gini era 0,247 na Dinamarca; 0,249 no Japão; 0,250 na Suécia; 0,250 na Bélgica; 0,254 na Rep. Tcheca; 0,283 na Alemanha; 0,316 na Coréia e 0,325 na Índia. Considerando os 10% mais ricos da população, eles se apropriam, no Brasil, de 46,7% da renda, contra os 7,7% dos 40% mais pobres. Na Dinamarca, por exemplo, os 10% mais ricos detêm tão-somente 21,3% da riqueza e os 40% mais pobres 23,0%. O Japão apresenta um quadro similar: 21,3% e 24,8%, respectivamente.

O Brasil ocupa uma posição muito desfavorável no conjunto dos países quanto à distribuição da renda. Apesar de se situar entre os países emergentes de renda per capita

média, todos os indicadores apontam para a enorme desigualdade. O Brasil “não é um país pobre”, mas “um país de muitos pobres” e a desigualdade pode ser considerada o principal problema do País.

O Brasil padece de problemas estruturais relacionados à dívida externa e interna. Nos últimos dois anos, o governo pagou aproximadamente 430 bilhões de reais para os serviços da dívida pública, enquanto que o conjunto dos gastos sociais foi de 178 bilhões de reais com segurança pública, saúde, educação, ciência e tecnologia, reforma agrária, transporte. O impasse da dívida requer que se proceda a uma auditoria pública em suas contas, aliás, já prevista na Constituição Federal.27

Quanto ao IDH28 temos o seguinte ranking, em ordem decrescente: Argentina (0,869), Chile (0,867), Uruguai (0,852), Costa Rica (0,846), Cuba (0,838), México (0,829), Antígua e Barbuda (0,815), Panamá (0,812), Brasil (0,800), Venezuela (0,792), Colômbia (0,791), Rep.Dominicana (0,779), Peru (0,773), Equador (0,772), Paraguai (0,755), El Salvador (0,750), Nicarágua (0,710), Honduras (0,700), Bolívia (0,695), Guatemala (0,689) e Haiti (0,529). O IPH confirma este ranking, na medida em que é um indicador que mede as

carências humanas. O IPH, que varia de 0 (melhor) a 100 (pior situação), considera se as

pessoas dispõem de escolhas e oportunidades básicas que lhes permitam atingir uma vida longa e saudável e gozarem de um padrão de vida aceitável29. Em 2002, a classificação da América Latina, em ordem crescente, era: Uruguai (3,9), Costa Rica (4,0), Chile (4,1), Cuba (4,1) .... Bolívia (16,3), El Salvador (18,1), Honduras (20,5), Guatemala (23,5), Nicarágua (24,4) e Haiti (42,3). O Brasil estava com 12,2; o México com 9,4 etc.

O Brasil, apesar de ser uma das 12 maiores economias do mundo, ocupa o 73º lugar no desenvolvimento humano, numa escala de 173 nações. Embora haja melhorias para alguns setores sociais e mesmo para os mais pobres, aumenta a concentração da produção de riqueza nas mãos de poucos.30

27 CNBB, op. cit.

28 ONU: Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 - Combater as alterações climáticas:

Solidariedade humana num mundo dividido

29 O IPH-1 mede-se em três variáveis: curta duração de vida (percentual da população cuja expectativa de vida

não atinge aos 40 anos); falta de educação elementar (percentual de população analfabeta); falta de acesso aos recursos públicos e privados (falta de acesso aos serviços de saúde, de água potável e de nutrição razoável). O IPH-2 mede a pobreza humana nos países industrializados onde: a) expectativa de vida (percentual da população que não atinge os 60 anos); b) educação (percentual da população cuja capacidade de ler e escrever não é suficiente para ser funcional); c) nível de renda (percentual da população com renda inferior a 50% da média nacional); emprego (percentual da população desempregada de longo prazo – para além de doze meses).

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O quadro do IDH é um reflexo dos investimentos públicos nos setores sociais. A magnitude deste investimento varia muito de país para país. É, no entanto, um claro retrato das políticas públicas voltadas para o social. Assim, no período 2002-2003, ocorreram, conforme a CEPAL, os seguintes índices em relação ao PIB: Cuba (29,1%), Uruguai (20,9%), Argentina (19,4%), Brasil (19,1%), Costa Rica (18,6%), Panamá (17,3%), Chile (14,8%), Bolívia (13,6%), Colômbia (13,5%), Honduras (13,1%), Venezuela (11,7%), México (10,5%), Jamaica (9,6%), Paraguai (9,0%), Nicarágua (8,8%), Peru (8,0%), Rep. Dominicana (7,4%), El Salvador (7,1%), Guatemala (6,5%), Equador (5,7%) e Trinidad Tobago 5,5%). A média da América Latina foi 15,1%, contra 13,8%, entre 1996-1997 e 12,8%, entre 1990-1991. Convertendo este investimento social em dólares per capita, temos, no mesmo período,

as seguintes dimensões: Argentina (1.283), Uruguai (1.071), Cuba (782), Costa Rica (774), Chile (763), Panamá (683), Brasil (676), México (600), Venezuela (488), Trinidad Tobago (395), Jamaica (300), Colômbia (267), Rep. Dominicana (180), Peru (170), El Salvador (149), Bolívia (136), Honduras (126), Paraguai (114), Guatemala (109), Equador (76) e Nicarágua (68). A média da América Latina foi de US$610, contra 525, entre 1996-1997 e 440, entre 1990-1991. Numa perspectiva histórica houve alguns avanços, mas são insuficientes para recuperar o imenso atraso e sanar o mal-estar social latino-americano.

O crescimento econômico na América Latina, em 2005, segundo a CEPAL, teve o seguinte desempenho: Argentina (9,1%), Venezuela (9,0%), Rep. Dominicana (7,0%), Chile (6,0%), Uruguai (6,0%), Panamá (6,0%), Peru (6,0%), Colômbia (4,3%), Costa Rica (4,2%), Honduras (4,2%), Nicarágua (4,0%), Bolívia (3,8%), Guatemala (3,2%), México (3,0%), Equador (3,0%), Paraguai (3,0%), El Salvador (2,5%), Brasil (2,3%) e Haiti (1,5%). No entanto, o PIB da China cresceu 9,9%, dos EUA 3,5% e do Japão 2,8%. A UE teve um crescimento de 1,6%, baixo para as necessidades da zona do euro, moeda tão valorizada. Os

dados preliminares de 2006 apontam para a manutenção desta dinâmica, com um crescimento superior da UE.

No caso do Brasil, o IBGE apresenta os seguintes dados de crescimento do PIB, em relação a períodos anteriores: de 1996 – 2005, foi de 2,2%; de 2001 – 2005, foi de 2,2%; de 1995 – 1998, foi de 2,6%; de 1999 – 2002, foi de 2,1%; e de 2003 – 2005, foi de 2,6%. Isto significa que o crescimento econômico do Brasil foi pífio (como em muitos outros países, frente à média mundial ou de algumas regiões). Entre os países emergentes, os BRICs tiveram, no período de 2000-2006, um crescimento médio de: Brasil 2,7%, Rússia 6,7%, Índia 6,5% e China 9,4%. O Brasil está descompassado.

O Brasil possui imensos recursos naturais com a diversidade dos biomas, rios, lagos, plantas, florestas. No entanto, é brutalmente explorado ou extorquido, na busca de maiores lucros, em detrimento do bem social de toda a população31.

No contexto das eleições de 2006 havia a expectativa de propostas para a construção de um projeto de nação32, em torno da democratização do Estado e da ampliação da participação popular; da revisão do modelo econômico e do processo de mercantilização da vida; de ampliação das oportunidades de trabalho; de fortalecimento das exigências éticas em defesa da vida; do reforço da soberania da nação; da democratização do acesso à terra e ao solo urbano; da proteção ao meio ambiente e à Amazônia. Lamentavelmente se perdeu esta oportunidade histórica e a campanha política se reduziu a ferozes ataques pessoais e afirmações genéricas de intenções, sem a abordagem propositiva dos temas mencionados, o que provocou uma imensa frustração nacional e a perda de esperanças.

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Diante dos graves problemas de desemprego que o País enfrenta, desenha-se ainda o quadro da insuficiência ou da ausência de preparação para o competitivo mercado de trabalho. A seguinte caracterização ilustra estas dimensões e proporções.

Dos adolescentes e jovens brasileiros, 47% se encontram em situação de total despreparo para conseguir um serviço honesto, de qualidade. O quadro é mais cruel nos grandes conglomerados urbanos. Na região metropolitana de Recife, chega a 17,6%, em Salvador, 19,8% e São Paulo, 14,6%. Considere-se que esse percentual cresce ainda mais entre os jovens de18 a 24 anos.Teoricamente deveriam ter concluído o ensino médio profissionalizante para o ingresso no mercado de trabalho. A taxa de desocupação entre os jovens com esta faixa etária chega a 18% no país. Na Zona Metropolitana de Recife chega a 29,9% e na de Salvador a 33,7%.33

A precariedade da escolarização é retratada em diversos levantamentos anuais (censos escolares). Os resultados numéricos são assustadores considerando as necessidades atuais e futuras da nação. Este mapeamento reflete-se, igualmente, no nível de escolarização do eleitorado. Para os 127,7 milhões de eleitores habilitados para as eleições de 2008, somente 3,45% são portadores de um diploma de nível superior; 2,44% estão no nível de ‘superior incompleto’; 11,78% têm o segundo grau completo; 17,58%, o ‘segundo grau incompleto’; 7,83%, o primeiro grau completo; 34,3%, o ‘primeiro grau incompleto’; 16,13% estão na categoria de “lê e escreve” (sem freqüência escolar, que somam 20,59 milhões); e, 6,42% são analfabetos (8,19 milhões). Os demais não declararam seu estado escolar34. Este quadro revela a precariedade das possibilidades de um debate político mais crítico e consistente. As posições pessoais e as conseqüentes decisões são facilmente manipuláveis através da denominada opinião pública veiculada na mídia. Deve-se ter certa cautela em reproduzir

afirmações genéricas e vulgares do tipo vox populi, vox dei35, pois a vox populi pode ser

manipulada, frente à carência ou a absoluta ausência de um espírito crítico mais acurado.

Melhoramos indicadores quantitativos de criança na escola. Os indicadores de qualidade continuam precários. A repetência é alta e a evasão assustadora. De 100 crianças e adolescentes que se matriculam no ensino fundamental e chegam ao ensino médio, 50 não concluem a 8ª série. Mesmo com a matrícula garantida com os programas ‘escola para todos’, a maioria das crianças ‘vão pra frente’ sem saber ler, escrever ou fazer as quatro operações aritméticas. O Brasil não investe nos professores, nem na formação pedagógica moderna de ensino e aprendizado36.

Outro problema sério é o trabalho infantil associado às demais desigualdades. Houve avanços históricos, contudo esta ‘chaga social’ ainda se mantém. Isto depõe contra a nação no cenário internacional. Os seguintes dados ilustram a situação das crianças e adolescentes submetidas a tais condições de vida, situação agravada por estar ocorrendo sob a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O trabalho infantil é outro sinal da desigualdade. Não nos referimos às atividades caseiras que as crianças exercem no lar, como um aprendizado para a co-responsabilidade e solidariedade. Existe um trabalho que afeta o reto desenvolvimento de crianças e adolescentes. No Brasil, 5,1milhões de crianças e menores, entre 5 e 17 anos, trabalham. Se considerarmos entre 5 e 13 anos, 1,3 milhão de crianças trabalham. Pior: 38% das crianças que trabalham não recebem remuneração, e dentre

33 CNBB, op. cit.

34 JUSTIÇA Eleitoral: Sítio: www.tse.gov.br/ (Visita: 20-02-08) 35 A voz do povo é a voz de deus...

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as crianças, com 10 a 15 anos, 53,2% não são remuneradas. Geralmente estas crianças reforçam a mão de obra de seus pais. Para aumentar sua produtividade eles levam consigo um filho que lhe ajuda no trabalho destinado para um adulto. Daí o índice de repetência e abandono da vida escolar das crianças pobres37.

Persistindo o quadro acima descrito, o Brasil não alterará seu futuro, reproduzindo e mantendo a lamentável configuração social descrita a seguir.

Segundo os dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é doloroso constatar a triste realidade das pessoas adultas em nossa nação: 30,3% da população tem no máximo 3 anos de vida escolar, sendo considerados analfabetos funcionais. No Nordeste este índice atinge 47,5% da população adulta. Isto significa um contingente vivendo à margem do processo produtivo, que dificilmente será integrado ao mercado de trabalho, cada vez mais exigente do ponto de vista educacional. O analfabetismo de pessoas com mais de 15 anos atinge 11,6% da população. Evidenciam-se graves desigualdades regionais, que também se manifestam em outras esferas dos indicadores sociais. No Nordeste este índice atinge 23,2%, enquanto no Sul do País é de 6,4%. Isto mostra a necessidade de pensar a política nacional a partir das especificidades regionais, visando superar as dívidas históricas no interior da nação. É o Nordeste a região que traz com mais acentuação as marcas da escravidão e suas conseqüências. No Brasil, como citamos acima, os analfabetos funcionais são 30,3% da população adulta, mas entre os brancos são 18,4% e entre os negros 32,1%38.

A Cúpula Ibero-americana declarou, com relevância, o ano de 2007 como “o ano da alfabetização”. Que seja para alfabetizar: no ler e escrever (erradicar o analfabetismo do abecedário e da escrita); no entendimento e na compreensão da leitura (erradicar o analfabetismo funcional); e para a inclusão digital (eliminar o analfabetismo digital). Os três níveis são determinantes para a inclusão social e a inclusão política na sociedade do conhecimento e da informação, cada vez mais marcante na América Latina. No passado, a sociedade agrícola dispensava a leitura e a escrita. Já a sociedade industrial torna a leitura e a escrita, via escolarização, indispensáveis. A sociedade do conhecimento e da informação traz como pressuposto a elevação do nível de escolarização com a inclusão digital, acrescido da educação continuada.

3 Alguns aspectos históricos

No contexto do período histórico do pós Guerra Fria; das quedas do muro de Berlim e do regime soviético, que significou o fim do “socialismo real”39; do avanço avassalador da doutrina neoliberal, consolidada pelo Consenso de Washington (1989); da avalanche da

globalização econômico-financeira e comercial; da formação de blocos econômicos (UE, NAFTA, Mercosul e ALCA – em formação); da relevância dos países emergentes (com

destaque para os BRIC - Brasil, Rússia, Índia e China), a América Latina (AL) tenta, com extremas dificuldades, construir seu próprio caminho cultural, político e econômico.

37 CNBB, op. cit. 38 CNBB, op. cit.

39 O escritor e ensaísta imortal Mocyr Scliar classifica “os socialismos” em três, por ordem dos séculos: o do

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Como antecedentes ao recente período histórico, nas décadas de 1960-90, na AL evidenciava-se, por um lado, a questão da revolução popular, impulsionada pela revolução cubana (1959) e as guerrilhas rurais de Che Guevara, que se antagonizavam ao populismo, fomentado pela burguesia emergente e pelas oligarquias tradicionais; por outro lado, estes segmentos conservadores e oligárquicos aliaram-se às Forças Armadas estabelecendo férreas estratégias de regimes militares autoritários e ditatoriais. É o domínio do latifundismo, do militarismo e da repressão reacionária. Estes governos intensificam a industrialização, seguindo o modelo da substituição das importações iniciado em épocas anteriores, como no Brasil (modelo nacional-desenvolvimentista de Vargas) e na Argentina (modelo populista-justicialista de Perón). Este modelo acelera a urbanização que, na virada do século XX torna-se predominante (em 1965, o Brasil tinha 50% de sua população já residindo em cidades; em 2007, estima-se que sejam em torno de 87% da população; a América do Sul atinge a cifra de 81%). Ambos os processos - a industrialização e a urbanização - geram camadas sócio-econômicas excluídas e os governos revelam incapacidades em desenvolverem políticas sociais públicas capazes de incluí-las no mundo do trabalho, na moradia, no saneamento básico, na saúde e na educação.

Assim, no período acima referido, o declínio dos governos populistas (vistos com receio pelo capital estrangeiro monopolista) e a incapacidade oligárquica de manter suas posições privilegiadas (obriga as oligarquias a uma exploração maior da mão-de-obra, tanto urbana quanto rural), frente ao crescimento da organização política dos trabalhadores urbanos e rurais (intenso processo de sindicalização), geram alianças oligárquico-imperialistas, com forte repressão destes movimentos, para se assegurarem no poder. Disso resulta uma circulação de elites no poder, em vários países latino-americanos, conhecidos lá fora como “republiquetas de bananas”, onde o poder executivo usurpa os poderes do legislativo e do judiciário, deixando o povo à margem das decisões.

Instalam-se, em decorrência, as ditaduras movidas pela doutrina da Segurança Nacional, apoiadas pelos EUA, que ampliam o horizonte da Guerra Fria, englobando a AL, a partir da visão geopolítica e geoeconômica imperialista norte-americana, de caráter colonialista (atualmente, pretendem uma colonização tecnológica). É a estratégia de enfrentar a expansão geográfica do comunismo. Na década de 1970, o grande susto, para o imperialismo norte-americano, foi a ascensão ao poder do governo socialista de Allende (Chile), disposto a realizar profundas transformações, colocando em xeque toda a dominação já instalada. Era preciso deter este emergente processo, capaz de se disseminar pela AL, resultando no sangrento golpe militar de 1973 (“o 11 de setembro chileno”) e no mais draconiano regime militar da AL. O ditador Pinochet (1973-1990)40 veio a falecer em 2006 sem ser julgado e condenado por seus crimes horrendos, deixando centenas de famílias sem respostas sobre o desaparecimento de seus entes queridos: homens, mulheres, jovens e adultos.

Neste espaço de tempo, o sistema capitalista mundial sofre vários reveses como a questão energética – com os constantes aumentos do preço do petróleo; as competições entre os grupos monopolistas; o fim da guerra do Vietnã; o fim do áureo período fordista-taylorista; o surgimento do movimento dos direitos humanos, entre outros. Os custos destes reveses foram “transferidos” para os países emergentes e pobres na forma de dependência econômico-financeira, tecnológica e sofisticadas modalidades colonialistas. O sistema capitalista traz no seu bojo o vírus da crise que se periodiza em ciclos, entrelaçados com ciclos produtivos e de revoluções tecnológicas. Frente à escassez de recursos, o capital privilegia suas taxas de lucros em detrimento das forças sociais produtivas.

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Para Habermas (2002)41 a crise sistêmica surge “quando a estrutura de um sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessárias para a contínua existência do sistema”. Nesta perspectiva, as crises do sistema capitalista podem eclodir no sistema econômico, no político e no sócio-cultural. No sistema econômico a crise gira em torno dos insumos do trabalho, da produção, da tecnologia e da distribuição dos bens e serviços. A distribuição espelha as demandas e as quantidades conforme os extratos sociais do contexto histórico do sistema. As demandas (novas – induzidas pelo assistencialismo estatal ou políticas de redistribuição de renda – ou antigas) questionam a distribuição dos valores em conformidade com o sistema (a inconformidade com o sistema significa seu desequilíbrio e conseqüente crise) e que afetam a margem de lucro dos detentores do capital. Em muitas situações, o Estado “socorre” o capital para “compensar a tendência de queda da taxa de lucro”42. No entanto, “a tendência à crise econômica se afirmará também como uma crise social e levará a lutas políticas” onde o confronto entre proprietários do capital e das massas dependentes de salários se manifestará. O recente cenário latino-americano elucida esta crise com a intensa presença da doutrina neoliberal, quando o conflito entre o capital e o

trabalho exclui um número elevado de trabalhadores da formalidade e os despeja na informalidade, no subemprego e no desemprego para “garantir” a taxa de lucro pretendida.

No sistema político, requer-se uma lealdade tanto dos partidos que compõem a base governamental e que formularam um programa com vistas à governabilidade, quanto dos extratos sociais beneficiários do sistema e das políticas sociais públicas. Havendo um descompasso entre os componentes constituintes do sistema político (ou da relação de forças) configura-se uma crise de legitimidade, capaz de abalar a formalidade da representação

pretensamente democrática. “O sistema legitimante não tem êxito em manter o nível requerido de lealdade de massas, enquanto os imperativos de decisão, tomados do sistema econômico, forem executados” (Habermas, 2002, p.64). Na esfera política, o conflito de barganhas entre o poder (capacidade decisória) e a base do sistema (demandas e reivindicações), toma a forma de uma crise de racionalidade (decidir entre as demandas

ilimitadas e a limitação ou escassez de recursos), afetando a legitimidade do poder o que se

traduz numa crise de identidade (ideológico-programática e partidária). Quando há

componentes carismáticos envolvidos, eles tendem a desaparecerem, suplantados pelas rotinas administrativas que se regem por lógicas instrumentais e racionais visando a determinados fins. No capitalismo avançado cresce a demanda da racionalidade e do planejamento

administrativo “para assegurar a realização do capital”. Habermas entende que um déficit de

racionalidade e de legitimação na administração pública, limita o Estado em “conduzir adequadamente o sistema econômico”. No curso do desenvolvimento do capitalismo “o sistema político transfere seus limites não apenas para o sistema econômico como também rumo ao sistema sócio-cultural” (idem, p. 65).

41 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro,

2002.

42 Em 2007, no Brasil, por exemplo, o Governo Federal destinou em torno de R$ 21 bilhões aos diversos

programas sociais (o Bolsa Família foi contemplado com R$ 8,9 bilhões, para beneficiar mais de 11 milhões de famílias, abrangendo mais de 45 milhões de pessoas), enquanto que quatro bancos privados auferiram um lucro de R$ 21,777 bilhões, conforme os balancetes publicados até a presente data (20-02-08). Aquela “injeção” de recursos oxigenou a economia tanto do lado da procura quanto do da produção, ensejando novo ciclo de crescimento (beneficiando, diretamente, o capital).

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O sistema sócio-cultural, por sua vez, “recebe seu insumo dos sistemas econômicos e políticos na forma de bens e serviços demandáveis e adquiridos coletivamente, atos legais e administrativos, previdência pública e social, etc.” (idem, p. 66). A crise emerge quando as

estruturas normativas mudam e ameaçam a estabilidade da prestação de serviços e da oferta de bens consolidados. No cenário latino-americano de imposição da doutrina neoliberal, o Estado abandonou uma série de bens públicos (saúde, educação etc.) e se tornou incapaz de fazer frente às “novas necessidades” que o capitalismo cria e não pode (ou não quer) satisfazer. Nesta esfera se colocam as novas exigências tecnológicas de desenvolvimento de competências dos cidadãos, de programas educacionais, de planos de saúde etc. Esta incongruência arrasta para a crise sócio-cultural.

No contexto da crise capitalista e esgotamento dos regimes autoritários, despertam os movimentos de redemocratização na América Latina, com vistas à restauração das instituições democráticas, dilapidadas pelos regimes militares (Brasil – anistia e diretas já etc.). No entanto, o acentuado endividamento externo, as estatizações feitas, as alianças das oligarquias com o capital monopolista, a resistência dos grupos latifundiários etc., determinam uma redemocratização marcadamente conservadora, abrindo as portas para a emergente doutrina neoliberal, que apregoa as privatizações, o Estado mínimo, a economia de livre mercado etc. As instituições econômicas, políticas e sociais estavam “abertas” para governos “democraticamente eleitos” procederem às “grandes reformas”, estabelecendo regimes de direita.

De uma elevada esperança democratizante, este processo restringe-se a um formalismo eleitoral para dar sustentação a um modelo de democracia liberal representativa que mantém no poder as tradicionais elites econômicas e políticas, que circulam no poder repartindo entre si os benefícios. Elas, por sua vez, impedem que novos segmentos sociais surjam através de estratégias “modernizantes”. Quando novos setores sociais conseguem uma expressão política e elegem seus representantes, são cooptados pelos detentores do poder, corrompidos e arrastados para os “velhos vícios” do fisiologismo, do clientelismo, do populismo e do assistencialismo. Estas tendências permitem formular a tese de que são os políticos que corrompem o poder e não é o poder que corrompe os políticos. Os analistas são unânimes em afirmar que após as eleições presidenciais de 2006-2007, a AL consolidou uma “democracia eleitoral”, faltando-lhe as demais conquistas: a participação nas decisões, o acesso democrático às oportunidades, o usufruto dos resultados econômicos, a inclusão social e cultural. Parece que o palco do passado em que o poder executivo usurpava os poderes do legislativo e do judiciário se mantém e se continua reproduzindo num cenário que inclui alguns novos segmentos e sujeitos sociais como o sindicalismo de resultados, alguns setores produtivos e comerciais, de modo singular, o do agronegócio e o das exportações e importações.

Desta forma, as “reformas neoliberais” (privatizações, desnacionalizações – abertura das economias ao capital transnacional -, previdência social, educação, saúde etc.) foram promovidas - sob a égide do Consenso de Washington, a cartilha do FMI e do BM -, no

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Resistem, contudo, apesar das extremas dificuldades organizativas e repressões, movimentos sociais e movimentos revolucionários, constituídos nos períodos anteriores, como o EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional – México, conhecido como o Movimento de Chiapas); MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – Brasil); Sendero Luminoso (Peru); as FARC, o ELN e a AUC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia; Exército de Libertação Nacional; Autodefesas Unidas da Colômbia); e, mais recentemente, o Movimento de Oaxaca, entre muitos outros. Como movimentos suprancionais destacam-se a Via Campesina, a Rede de Economia Solidária, o Fórum Social Mundial (já na 8ª edição, em 2008) etc. que desenvolvem esforços no sentido de dar certa unidade aos movimentos, respeitando a diversidade tão peculiar nestes movimentos que constroem sujeitos coletivos.

Entretanto, os episódios na Venezuela – Hugo Chávez é deposto por um golpe militar e reconduzido pelo povo ao poder (2002, referendado em 2004; reeleito, em 2006; Chávez perde o referendo da mudança da constiuição, em 2007); no Equador – Lúcio Gutiérrez é cassado (2005); na Bolívia - Carlos Mesa renuncia (2005; a Bolívia detém o recorde de golpes e mudanças governamentais na AL; em 2007, alguns Departamentos se revoltam contra a mudança da Constituição, promovida por Morales, através da Assembléia Constituinte); no México a justiça eleitoral confirma a vitória de F. Calderón, apesar das denúncias de corrupção, entre outros, revelam as fragilidades latino-americanas em termos institucionais e expressam que os governos eleitos, por voto popular (nos moldes da liberal democracia representativa), não são capazes de aquilatar os graves problemas sociais e econômicos das extremas desigualdades de suas nações. É um mal endêmico, uma patologia social. Por outro lado, o cidadão e a cidadã, que são os depositários do poder, sofrem de uma forte dose de apatia política e de indiferença ideológica, a tal ponto que as teses de votar “no menos ruim” ou “não adianta votar, todos são iguais, nada vai mudar” ou até a campanha do “voto nulo”, prevalecem na eleição para o poder executivo (presidente, governador e prefeito) e para o poder legislativo (senador, deputado federal, deputado estadual e vereador), frente aos “mensaleiros”, aos “vampiros”, às “sanguessugas” (estima-se que, em 2006, em torno de um terço dos congressistas brasileiros estavam envolvidos em algum escândalo financeiro ou processo administrativo) e tantos outros indignos de exercer a representação popular, que se apresentam como candidatos, para submeterem seu nome ao sufrágio do eleitor. Neste clima, o voto torna-se uma “moeda” supervalorizada.

No Brasil, no dia 06-06-06, no mais violento ataque ao Congresso Nacional desde a ditadura militar, centenas de sem-terra, liderados pelo Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), mostram todo seu desprezo pelo símbolo da democracia - e recebem uma crítica apenas protocolar do PT e do presidente da República. Carregando pedras, galhos de árvores, pedaços de concreto eles invadiram a Câmara dos Deputados e destruíram um automóvel que estava em exibição para um sorteio dos funcionários, quebraram portas de vidro blindex, terminais de auto-atendimento, computadores, câmeras de circuito interno etc. Caso o “descontentamento” seja em relação ao precário desempenho da política de reforma agrária, o endereço deveria ter sido o Palácio do Planalto ou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e não o Congresso Nacional.

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Tabela 2: Continente das Américas

Referências

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