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O Papel das Crenças Econômicas na Vida Política

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Academic year: 2020

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O Papel das Crenças Econômicas na Vida Política

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Ge o r g e s Ve d e l

Tradução de Maria de Lourdes L. Modiano

1. Serão os fatos objetivos ou serão as crenças, que, em últim a análise,

constituem o fator de causalidade essencial das estruturas e fenômenos sociais? T erão razão os m aterialistas ou, pelo contrário, estarão certos os idealistas? P o r estranho que pareça, a resposta a tais indagações não condiciona, de modo algum, na hora atual (nem certam ente num futuro próxim o) o desen­ volvimento da ciência política. Não é esta bastante rudim entar nem suficien­ tem ente desenvolvida para que o problem a fundam ental, assim evocado, nor­ teie seus trabalhos. É que o debate entre niaterialismo e idealismo consiste, no sentido próprio da palavra, antes em aspecto metafísico do que m etodo­ lógico. N ão se nega, num dos campos, que as representações subjetivas dos indivíduos vivendo em sociedade tenham papel prim ordial na produção dos fatos objetivos, mesmo de natureza m aterial; tam pouco se nega, no outro, que as idéias estejam na dependência mais ou menos estrita dos dados obje­ tivos. A discussão certam ente não fica encerrada, nem seu objetivo desapa­ rece; contudo, já não se tra ta de saber a qual dos dois elementos conside­ rados — objetivo ou subjetivo — cabe o papel primordial, essencial. T al questão é vital para um a ciência ainda em embrião que, dispondo apenas de reduzidíssimo núm ero de observações, está tôda entregue à especulação dedutiva. Sê-lo-ia, não menos, certam ente, para um a ciência plenam ente desenvolvida, próxima das sínteses finais e que, em sua idade m adura, se de­ fronta com os problem as ontológicos de onde partiu. T al questão, em com­ pensação, tem m uito menos im portância nessa idade interm ediária e como que adolescente, em que a ciência reune seu acervo de observações para ligá- las por meio de teorias coerentes m as fragm entárias, já sem a ilusão (ainda sem a am bição) de conformar-se com a Lei única.

N ão é êsse, porém, o estado atual da ciência política. Podemos estudar o problem a das crenças econômicas e de seu papel na vida política, sem ser­ mos forçados, previam ente ou em caminho, a tom ar partido acêrca de deter­ m inada filosofia da sociedade e da H istória. Parecsu-nos interessante frisar essa observação antes de entrarm os propriam ente em nosso tem a.

( * ) Ê ste artigo foi elaborado para a U N ESC O que confiou à R e v u e Française de

Science P o litiq u e a tarefa de garantir sua divulgação. A R e v is ta do Serviço P úblico con­

signa aqui seus agradecimentos à Embaixada da França, que lhe permitiu a presente tradução.

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Ci ê n c i a Po l í t i c a 4 3 1

2. U m a segünda observação deve ser feita no lim iar dêste estudo. O papel das crenças em geral, na vida política, tem sido estudado de diversos modos. As crenças religiosas ou morais, como elementos das estruturas polí­ ticas e como fatores da evolução histórica, suscitaram, nos vários países, numerosos e profundos trabalhos. Em compensação, as crenças econômicas têm sido, de um modo geral, esquecidas ou, pelo menos, seu estudo não tem sido feito m uitas vêzes com relação à influência que essas crenças exercem sôbre a vida política. As linhas que se seguem não poderiam, pois, sem pre­ tensão absurda, constituir verdadeiro estudo, mesmo breve, da questão. T ra ­ ta-se mais de form ular o problem a que de resolvê-lo.

3. Terem os caracterizado suficientemente nosso objetivo quando, a es­ tas duas prim eiras observações, acrescentarmos um a terceira, visando a comen­ ta r o título dêste estudo. Nosso objetivo é duplo: trata-se, prim eiram ente, de pesquisar o que são crenças econômicas. O têrm o “crença” foi empregado pro­ positadam ente e de preferência a “idéias”, mais restrito, que evocaria apenas as representações conscientes e coerentes. Como diremos adiante, desejaríamos abranger um conjunto de fenômenos de natureza subjetiva, interiores, do psiquismo dos indivíduos, m as que não são necessariamente pensados de modo consciente, nem integrados num sistema discursivo. E m compensação, deseja­ ríamos nos lim itar às crenças “econômicas”, isto é, às relativas à produção e à troca de bens e serviços.

Assim caracterizadas as crenças econômicas, restaria saber — e esta será nossa segunda tarefa — que relações (ou, melhor, que tipos de relações) ligarão essas crenças à produção de estruturas e fenômenos políticos. D a mes­ m a forma que, para definir o caráter “econômico” das crenças estudadas, acabam os de recorrer a um a acepção tirada da linguagem corrente mais que da ciência, entenderem os por “vida política” o conjunto dos fatos que inte­ ressam o govêrno das sociedades organizadas em Estados. T udo isso exigiria, é certo, precisões e, para sermos bem exatos, retificações. Sob pena de não chegarmos a passar do lim iar dêste estudo, precisamos ir para a frente e adm i­ tirm os que o leitor nos entenda suficientem ente quando escrevermos as pala­ vras “econômico” e “político”. Examinaremos, pois, sucessivamente:

— as características gerais das crenças econômicas; — a influência dessas crenças sôbre a vida política.

I

CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS CRENÇAS ECONÔMICAS

4. A primeira característica que se liga às crenças econômicas refere-se à sua m aneira de ser e, correlativam ente, à dificuldade de conhecê-las. É comum observar-se que todo indivíduo traz em si, conscientes ou inconscien­ tes, claras ou confusas, crenças morais ou metafísicas. D a m esm a forma, todo indivíduo traz em si, bem mais desenvolvidas do que geralm ente se supõe, certas crenças econômicas. Evidentem ente, raros são aquêles que poderão expor sistem àticam ente essas crenças ou mesmo sim plesm ente form ular de modo inteligível um a opinião. Isso, porém, não impede absolutam ente que a

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crença exista e desempenhe seu papel no comportam ento dêsse indivíduo, notadam ente no plano político. A reação comum de considerar todo funcio­ nário (mais precisamente, todo “burocrata” ) como inútil ou parasita implica, no íntimo, num a concepção de economia, realm ente existente e eficiente, senão exata, que traz à baila elementos fundam entais como a própria noção de “pro­ dução” e de “riqueza” . P or mais elsm entar que seja, a diferença que fazem inúmeros indivíduos entre a rem uneração do patrão metalurgista, analisada num a exploração, e a que percebe — o que é num èricam ente comparável — um a estrêla de cinema, considerada com indulgência como fruto da sorte e do talento combinados, baseia-se em crenças inconscientes, ricas e complexas, que envolvem, ao mesmo tempo, um a descrição dos mecanismos econômicos e um a prescrição de normas morais: o pressuposto da crença consciente é

ieoria e doutrina, ao mesmo tempo.

Segue-se que o conteúdo real e global das crenças econômicas da maio­ ria dos indivíduos não poderá ser apreendido de modo direto; será necessá­ rio recorrer-se a um a espécie de método indiciai. T al reação concreta, tal reflexão, tal comportam ento têm um a significação bem mais ampla que os próprios têrm os em que se apresentam . Seu sentido real somente se destacará mercê de um trabalho de extensão e aprofundam ento: de extensão, já que cada sinal deverá ligar-se a outros; de aprofundamento, já que será preciso, para cada sinal, descer até as raízes que o suportam. Essa análise assemelha- se muito a um a psicanálise; não se esquecerá mesmo da necessidade que existe, em muitos casos, de substituir-se a explicação elaborada e artificial que, de boa fé, o paciente dá de sua maneira de agir, pela explicação verda­ deira, menos clara e mais espontânea.

A não ser em casos excepcionais, a pesquisa das crenças econômicas focalizará um a massa de indivíduos caracterizada como grupo (geográfico, social, ideológico) m uito mais que êste ou aquêle indivíduo. Por isso é pre­ ciso que nos acautelem os a fim de não tomarmos as crenças dos elem entos dirigentes como representativas das crenças da massa dos indivíduos. E ntre umas e outras existem, certam ente, semelhanças e, não raro, identidade de conclusões no terreno prático. N a maioria dos casos, todavia, os dirigentes e a massa gravitam em universos diferentes. P ara recorrer a um exemplo (o das crenças econômicas em determ inado partido político), é interessante obser­ var que, na tribuna do Parlam ento ou do Congresso Nacional, a exposição das opiniões do partido é entregue a um técnico, especialista em economia ou finanças. M as quando se ouvem as discussões da seção do partido num a pe­ quena cidade, quando se lê o hebdomadário local, vê-se quão diferentes são as crenças da massa. Um a comparação nos ajudará neste ponto. Ninguém negará que, certam ente, não existam pontos comuns entre a idéia de um físico e a de um homem comum acêrca da energia atômica. Em Física, isso não tem grande importância, já que, afinal, somente a opinião do cientista influirá na técnica da produção da energia atômica. Em m atéria de crenças econômicas, pelo contrário, é a opinião do homem comum — pelo menos nos países democráticos — que, não raro, será decisiva.

Como conhecer essa opinião? É um ponto que não pode ser ventilado aqui a não ser para assinalar a respectiva dificuldade. Limitemo-nos a afirm ar que as ciências sociais possuem técnicas comprovadas, já que tam bém se

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Ci ê n c i a Po l í t i c a 4 3 3 defrontaram com ò problem a relativam ente a outros tipos de crenças. Acres­ centemos, em compensação, que — conforme assinalamos — a adaptação dessas técnicas à pesquisa das crenças econômicas não está tão avançada como seria de desejar.

5. Segunda característica, que se deve reconhecer nas crenças econômi­

cas, pelo menos no tocante à maioria dos homens: a fraca dose de racionali­ dade e a forte dose de paixão que as mesmas encerram .

N ada é tão familiar, mas nada é tão estranho à massa dos indivíduos como o mundo econômico. É.com o um grande rio onde todos se banham mas que bem poucos exploram, pelo menos em pensamento. O resultado é que a maioria dos homens confiará ingenuam ente na própria aptidão para pene­ trar e compreender mecanismo e instituições com que constantem ente se depa­ raram. Ao mesmo tempo, a insuficiência dos elementos concretos de conheci­ m ento facilitará a irrupção dos fatores passionais déntro da crença. Isto quer dizer que as crenças econômicas, como tôdas as crenças pseudo-racionais, estarão eivadas de ilogismo e ilusões, e constituindo estas o único paliativo para aquêle.

A conseqüência im ediata dessa verificação está na extrema variabilidade das crenças econômicas de um meio para outro. Tôdas as diferenças ideoló­ gicas que separam os países, as classes, os partidos, repercutem fortem ente nas crenças econômicas, enquanto que a racionalidade alicerçada no caráter objetivo e completo do conhecimento não logra desem penhar seu papel uni- ficador.

São inúmeros os exemplos que poderíamos citar neste sentido. Um dos mais típicos é o que nos fornece o com portam ento dos círculos comerciais e industriais da França relativam ente à “liberdade econômica”. É dogma comu- m ente aceito nesses círculos e oficialmente enunciado por inúmeras organiza­ ções representativas, que tôda intervenção do Estado, no sentido de dirigir a vida econômica, é nefasta e gera resultados menos bons que os provocados pela abstenção. O aum ento do dirigismo, verificado nestes últimos trinta anos, é atribuído correntem ente a um a conspiração entre os partidos de esquerda e os funcionários, no intuito de furtar ao máximo a vida econômica à livre iniciativa. Contudo, individual ou coletivamente, os componentes dêsses mes­ mos círculos adm item ser dever elem entar do Poder Público proteger seu comércio ou sua indústria contra a concorrência estrangeira, e, m uito mais, protegê-la contra ela própria, em caso de superprodução. Está claro que cada indivíduo ou cada grupo só adm ite essa idéia no tocante ao setor econômico em que está interessado e que se reveste a seus olhos de im portância parti­ cular. Nesses mesmos espíritos coabitam duas crenças contraditórias — uma, Jigada ao dogma liberal, outra, aos benefícios da proteção estatal. Os elem en­ tos racionais fornecem a essas crenças revestim ento apenas verbal. É certo que as raízes dessas crenças são de natureza passional, resultando de forte m ovimento afetivo que visa à proteção dos próprios interêsses. Resume-se no desejo de aliar as vantagens da proteção estatal às da liberdade do comércio e da indústria. A conclusão racional seria a necessidade de escolher entre a liberdade e a proteção ou, se preferirmos, encontrar entre as m esm as um a linha de divisão que constituísse conclusão racional. E ntretanto, premissas passionais levam a um a conclusão passional, que engendra sua lógica própria.

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Os dois term os da contradição são fundidos num a síntese de natureza mágica. O que perm ite a coexistência das duas afirmações contraditórias é a repre­ sentação mais ou menos consciente de duas espécies de concorrência ou de superprodução — uma, que se sofre, malfazeja em suas intenções, nefasta em seus efeitos; outra, que se .exerce em outros setores, a serviço do bem-estar e da abundância. Ora demônio, ora anjo, form ulada num a diversidade passio­ nal à guisa de explicação, a concorrência (ou, em outros casos, a produção não dirigida) vale como signo mágico, muito mais que como fenômeno obje­ tivo .

O exemplo que acabamos de citar é ainda bastante abstrato. Poderíamos apresentar, no tocante a determ inado país, a descrição da “demonologia” de cada classe e de cada meio social, um a demonologia que teria, aliás, em con­ traposição, um a “angelogia”. O fisco, os funcionários, os ônus sociais, os lucros capitalistas, os judeus, os americanos, os comunistas são anjos ou demônios da economia conforme os grupos. Existe, é claro, nas crenças, um elemento de realidade objetiva e de racionalidade; é bem verdade que os lucros dos capi­ talistas ou os ônus sociais têm seu papel nos fenômenos econômicos. No ter­ reno das crenças, porém, cada um dêsses elementos passa a ter papel mágico, que podemos caracterizar por meio de um a fórmula tríplice: — tem de expli­ car o inexplicável; tem de resolver as contradições lógicas; atuando sôbre êle, resolvem-se problem as econômicos.

6. Uma terceira característica das crenças econômicas surge, ainda,

ligada às anteriores. Como — para a massa dos homens — são elas mais vividas que pensadas, mais ilusórias e passionais que racionais, as crenças econômicas são esquemáticas e simples. A complexidade e a imbricação dos fenômenos econômicos só poderiam ser exatam ente representadas com a consciência absolutam ente clara e atenta, m anifestando as exigências de pre­ cisão de tôda pesquisa científica.

Um a instituição como a moeda e os fenômenos cuja substância fornece, para serem representados com exatidão, exigem um a soma de conhecimentos já considerável e um a capacidade de atenção e m em ória acima da m édia. E n tre as diversas formas, as diversas funções da moeda, m ister se faz todo um delicado trabalho de classificação e correlação, ainda que se tra te de pes­ quisa elem entar. Que diremos, então, da complicação a que chegaremos, se quisermos estudar de modo dinâmico os mecanismos monetários!

As crenças econômicas relativas à moeda são, todavia, geralm ente muito mais simples. N um país como a França, onde a conversibilidade do papel- moeda em ouro representa reminisçência bem antiga e onde a prática da moeda escriturai está pouco desenvolvida entre as classes médias e popula­ res, operou-se na maioria dos espíritos um a esquematização vigorosa da ins­ tituição m onetária. A m oeda é um a criação estatal e, na ignorância quase absoluta das relações entre o Poder Público e o banco emissor, a massa do público está crente de que o Banco de França nada mais é que oficina gráfica de cédulas, acionada diretam ente pelo M inistro das Finanças. Relativam ente às relações entre a m oeda e os preços, a teoria aceita pelo comum dos fian- ceses é a quantidade em sua forma mais elem entar — o nível dos preços de­ pende da massa das cédulas em circulação.

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Ciê n c i a Po l í t i c a 4 3 5 Observemos de passagem que, segundo um a observação m uito freqüente, essa concepção caricatural da instituição e dos fenômenos monetários, em si falsa, pode, estranham ente, aproximar-se da verdade. O mesmo se poderá dizer, especialmente se a massa dos indivíduos a ela aderir e agir em conseqüência. A m oeda — já se disse — é um a crença social e o desenvolvimento das teorias psicológicas já colocou em primeiro plano certos fatores que explicam os fenô­ menos monetários, as crenças de que são êles objeto. T anto assim que, por um paradoxo aparente, a moeda (dentro de certos lim ites) é aquilo que se acredita que ela seja e acaba por se assem elhar à imagem que dela se forma. A opinião falsa não se torna verdadeira pelo fato de generalizar-se, m as trans­ form a a realidade.

7. Vejamos, finalmente, a quarta característica que podemos perceber

nas crenças econômicas. É bastante difícil apontá-la, pois não existe um a pala­ vra apropriada; digamos, por aproximação e sem elegância, que elas m er­ gulham num clima voluntarista. Entendem os com essa expressão que o m undo econômico aparece, através dessas crenças, como fàcilm ente subordinado à ação do homem, como m aleável sob os seus dedos. N este particular é m ister não nos deixarmos iludir pelo fato de as doutrinas liberais ainda terem notável público nos países do Ocidente e que, em sua essência, sejam elas a afirm a­ ção da existência e do valor dos mecanismos autom áticos de regulação. A objeção não tem base: primeiro porque, admitindo-se que um esforço consci­ ente do homem possa ressuscitar a era liberal, estamos justam ente afirmando a m aleabilidade do mundo econômico; depois, porque já não existem liberais puros e porque, sob o rótulo de liberal o que se preconiza é um tipo de ação consciente e voluntária sôbre a vida econômica; finalmente — e talvez prin­ cipalm ente — porque, tam bém neste caso, é preciso distinguir entre o pequeno núm ero daqueles para os quais o liberalismo é um sistema coerente de pensa­ m ento e a massa daqueles para os quais êle é um conjunto não coerente de crenças.

Fácil será observar, pelas características acima referidas, que esta aqui estudada delas decorre necessariamente. As crenças econômicas são mais vivi­ das que pensadas — são representadas já em têrm os de ação. Passionais e, sob certo aspecto, ilusórias, oferecem a imagem de um universo onde as con­ quistas se multiplicam. Simplificadoras, incentivam a ação e prom etem que esta não se perderá num labirinto de repercussões não previstas. N em tudo é fácil no universo econômico assim delineado, m as nêle nada é, a bem dizer,

im possível.

Ê preciso ir mais longe. Em que m edida existirão, para a m aioria dos homens, crenças econômicas que não sejam essencialmente a justificação de um a ação realizada ou desejada? Em que m edida não será o que fazemos ou o que desejaríamos fazer, que determ ina a crença no que existe? Problem a que surge, aliás, quanto a outras crenças além das economicas m as que, para estas, é praticam ente agudo.

Em todo caso, vemos como as crenças econômicas implicam necessària- gem-se à ação; nelas, teoria e doutrina se m isturam inextricàvelm eníe. A dis- gem-se à ação; nelas, teoria e doutrina se m isturam inextrincàvelm ente. A dis­ tinção lógica entre o que é e o que deveria ser não tem aí lugar garan tid o .

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8. Assim, cada homem traz dentro de si um universo econômico e um a das tarefas da ciência política é descrever-lhe o tipo segundo os grupos sociais considerados, as condições que lhe determinam a constituição e a evolução. É possível que, ao esboçar as características ligadas às crenças que compõem êsse universo, tenham os antecipado certos resultados ainda não adquiridos. Parece-nos, todavia, que a descrição que acabamos de dar não é por demais aventurosa.

Consideremo-la, pois, como aceitável, pelo menos em seus aspectos gerais. Quando — à época em que devem levar seus votos a urna — os cidadãos têm que aplicar-se às questões econômicas, é pelo revezamento dessas crenças e dessa cosmologia econômica que fazem suas escolhas, e é delas que depen­ derá em parte a vida política. De que forma? Eis o que nos empenharem os em explicar a seguir.

— II —

INFLUÊNCIA DAS CRENÇAS ECONÔMICAS SOBRE A VIDA POLÍTICA

9. No exame das questões com que nos vamos agora deparar existe um ponto que será preciso deixar de lado — o dos mecanismos institucionais, por intermédio dos quais as crenças econômicas influem na vida política. É certo, entretanto, que êsses mecanismos têm a máxima importância: o papel dessas crenças econômicas num Estado autoritário, será profundam ente dife­ rente do que elas exercerão numa democracia. E, neste último caso, a m aneira por que os cidadãos são chamados a opinar, isto é, o tipo constitucional da organização política considerada, tem em si o mais alto interêsse. Não pode­ mos, evidentem ente, entrar em minúcias neste exame. Para sermos breves no que se segue, reportar-nos-emos ao quadro institucional das democracias do tipo clássico, caracterizadas pela prática do regime representativo e pelo plu­ ralismo dos partidos políticos.

10. Mesmo assim delimitadas, as dimensões do problem a colocado parecem enormes e somente podemos tomar-lhe as medidas, apontando as indagações encontradas e, correlatam ente, segundo o método cartesiano, as divisões que devem ser introduzidas em nosso tema.

Primeira questão, primeira distinção: o nível social em que se situam

as crenças consideradas. P ara nos limitarmos à organização política acima indicada, seria m ister distinguir entre as crenças econômicas dos círculos diri­ gentes, as das massas e as dos círculos intermediários, que formam a moldura política ou sindical local. Isto feito, cum priria levar em conta a influência m aior ou menor que, no país, cabe a cada um dêsses grupos, sejam partidos, sejam sindicatos. Cumpriria, outrossim, não om itir o papel que poderá assu­ m ir esta ou aquela categoria, juridicam ente não dirigente, mas que, de fato, pode ter grande im portância na direção efetiva dos negócios. Nos países oci­ dentais será mister, neste ponto, atentar particularm ente nos jornalistas e funcionários. Um a das desculpas ou um a das censuras mais correntem ente aceitas na França, a respeito dos governos de esquerda, é a impossibilidade em que os mesmos se encontraram de descobrir técnicos em finanças e eco­ nomia, além dos que já foram conquistados, mercê das próprias origens e for­ mação, pelo capitalism o liberal.

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P ara determ inar o papel que cabe às crenças econômicas na vida política, impõe-se desde logo um a prim eira análise — a da fôrça de influência respec­ tiva dos vários grupos sociais em presença e já se podem imaginar, antecipa­ dam ente, seus inúmeros matizes. T erá de ser feita — se é que assim pode­ mos expressar-nos — vertical e horizontalmente, ao mesmo tempo, por isto que é preciso estudar concomitantem ente o com portam ento de cada grupo (no sentido lato da palavra) e, no interior de cada grupo, medir a impor­ tância dos vários elementos segundo o respectivo nível. Essa análise, aliás, não se aplica apenas às crenças econômicas, pois corresponde à indagação de qual grupo (e, nesse grupo, que fração) vem impor as suas representações à nação. Pode acontecer, porém, que aplicada às crenças econômicas essa análise venha a r.evelar particularidades dignas de registro. Certos povos — lembremos, por exemplo, a Alemanha — têm respeito pelos “técnicos” e em m atéria eco­ nômica êsse fato acarretará um abandono mais fácil das massas aos dirigentes. Alhures, pelo contrário, a técnica será olhada com desconfiança e as pressões da massa (das crenças desta, por conseguinte) serão m uito mais sensíveis: foi o que se observou na França, logo após a Libertação.

11. Segunda questão, segunda distinção: a im portância atribuída aos

problem as econômicos dentro do país, da classe, do meio, das organizações no m omento considerado. Neste ponto ainda devemos evitar o debate entre m aterialistas e idealistas. P ara os primeiros, mesmo que as preocupações de natureza econômica se escondam sob vestes de caráter religioso, moral ou polí­ tico, stricto sensu, elas apresentam sempre caráter determ inante. P ara os se­ gundos, pelo contrário, existe um a independência (pelo menos relativa) das demais crenças no tocante aos fatores econômicos. Lembremos ainda aqui que consideramos as crenças como fatos e não nos cabe dizer se “em últim a aná­ lise” elas serão determ inadas por êste ou aquêle dado objetivo, nem mesmo se serão redutíveis entre si. Uma vez novam ente acentuado êsse pònto de vista, não se negará que segundo os grupos e os momentos considerados, os proble­ m as percebidos subjetivam ente como problem as econômicos têm im portân­ cia e papel m uito variáveis.

No que acabam os de dizer, poderá introduzir-se um equívoco, que im­ porta desde logo dissipar. A “neutralização” das crenças econômicas não se liga única e exclusivamente, na m atéria que nos interessa, à prim azia dada nela mesma aos problem as políticos ou religiosos ou, de modo geral, extra-economi- cos. Pelo contrário, o interêsse votado aos aspectos econômicos da vida pode ss r forte sem que as crenças econômicas desempenhem por isso papel impor­ tan te na vida política, pelo menos de modo positivo. Se, por exemplo, a crença econômica dom inante focalizar a necessidade de separar o econômico do polí­ tico, ela se neutraliza por si como determ inante da vida política. N a Terceira República francesa (antes do desenvolvimento da esquerda socialista), duran­ te m uito tem po a vida dos partidos alimentou-se principalm ente de crenças extra-econômicas; o mesmo fenômeno se observou em certas épocas nos E s­ tados Unidos. Não quer isso dizer, que, nas épocas assim consideradas, os franceses ou os americanos se tivessem tornado espíritos puros, indiferentes à prosperidade m aterial. T rata-se apenas de constatar que aos mesmos se afi­ gurava não ser possível esperar por meio d a ação política m elhores soluções para êsses problemas.

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Existem, pois, duas espécies de “neutralidade” das crenças econômicas. A prim eira bem merece seu nome e resulta da indiferença dêsse ou daquêle grupo pelos aspectos econômicos da existência, considerados secundários. N a realidade, raram ente será essa a atitude das massas, mas num a sociedade for­ tem ente hierarquizada e dirigida, bastará que seja a opinião dos meios diri­ gentes, para que as crenças econômicas representem, afinal, um papel secun­ dário. Foi o que se verificou, sem dúvida, em larga escala, na sociedade medie­ val e não se ignora que o advento da capitalismo teve de ser acompanhado da idéia de que a riqueza e o lucro constituiam preocupações pouco louváveis. Pelo contrário, é possível que a “neutralidade” das crenças econômicas de ponto de vista político seja apenas proveniente do fato de se considerarem o político e o econômico como esferas separadas, com a possibilidade suple­ m entar, aliás, de que o primeiro daquele ponto de vista seja considerado secundário. N este caso, a pretensa neutralidade conduz a um a análise mais aprofundada. A crença econômica não é, na realidade, ineficaz. É apenas esta- bilizadora das estruturas econômicas, por suprim ir ou refrear um a das razões mais poderosas de as transform ar. Neste caso, as crenças econômicas têm efi­ ciência verdadeira, tal como o cimento de um a construção. Sua neutralidade deve entender-se apenas no sentido de efeito estabilizador.

12. Terceira questão, terceira distinção, para as quais aliás, nos encami­

nham as observações acim a: as crenças econômicas podem ser grupadas em certo núm ero de tipos, definidos não somente pelos respectivos elem entos constituintes, mas tam bém pelo gênero de ação que exercem sôbre a vida polí­ tica.

P a ra maior clareza limitar-nos-emos aqui aos dois tipos que formam o contraste mais nítido e se encontram nas duas extremidades da série: o m ito e o reílexo.

A crença-mito (a palavra m ito tom ada na acepção soreliana am pliada, e que se tornou corrente em F ran ça) caracteriza-se por três aspectos: ampli­ tude, valor explicativo, dinam ism o. O m ito econômico é, antes de tudo, um a crença que atua sôbre um vasto conjunto de fatos, e cuida na realidade, quase sempre, constituir um ponto de vista essencial a respeito do m undo econômico, È, aliás, por essa razão que raram ente pode apresentar-se como puram ente econômico. Abrangendo grande número de elementos, tende a integrar nos mesmos elem entos extra-econômicos. O valor explicativo — segunda caracte­ rística do m ito econômico — está ligado à sua amplitude. O conjunto de fatos abarcados pelo m ito é logicamente coordenado por um elemento explicativo, tanto na ordem positiva como na ordem dos valores. Finalm ente, o dinamismo do m ito provém do fato de que a extensão dos fenômenos que pretende domi­ nar e a simplicidade das explicações que dá para os mesmos, sugere açõesi aparentem ente fáceis, de êxito garantido.

A observação dos tem pos passados ou da vida contem porânea poderia oferecer inúmeros exemplos dessas crenças-mitos: “a livre iniciativa”, a “su­ pressão” da exploração do homem pelo homem forneceriam ocasião de veri­ ficar a definição dada. É possível que essa verificação seja ainda mais simples quando aplicada a um a crença-mito a que não se atribua bastante im portân­ cia por ter penetrado mais nas massas que nos meios dirigentes ou científicos:

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Ci ê n c i a Po l í t i c a 4 3 9

referimo-nos ao mito da “abundância” . Sua am plitude manifssta-se no fato de ser um mito que pretende apresentar um a visão m uito geral e válida para tôda a economia: o homem entrou num a fase de sua história em que já se; apoderou da possibilidade de satisfazer plenam ente a tôdas as suas necessi­ dades sem se sentir dominado pelo desenvolvimento constante das mesmas. O valor explicativo dêsse mito apresenta-se não somente na ordem positiva, senão tam bém na ordem normativa. N a ordem positiva, a história da economia, as estruturas passadas, a crise atual dessas estruturas encontram-se ou querem ser explicadas na m archa do progresso técnico. N a ordem normativa, o valor de um a sociedade é julgado pelo partido que a mesma sabe tirar das possibili­ dades de abundância. Finalm ente, o dinamismo do m ito resulta do fato de ser imensa a esperança que o mesmo faz nascer e, ainda, por parecerem sim­ ples os meios de atingí-lo. N este último ponto, porém, reportemo-nos ao que dissemos linhas acima acêrca dos casos em que o efeito da crença sôbre a vida política é de natureza estabilizadora. Seria longo demais estudarmos aqui a ação sugerida no plano político pelo mito da abundância; mas ela fornece­ ria um ótimo exemplo de crença englobando ao mesmo tem po tendências conservadoras e tendências revolucionárias em m atéria política.

13. O tipo de crença que se opõe de modo mais perfeito à crença-mito é a crença-reílexo. Neste caso, trata-se de mecanismos de caráter associacio- nista e “m ontados” por um a experiência vivida mais ou menos bem interpre­ tada. Nada, no caso, que lembre um a W eltanschauung econômica, um princí­ pio geral de explicação. O exemplo mais claro, sem dúvida, que se pode dar dêsse caso é o reflexo anti-inflacionário nascido na Alemanha, em conseqüên­ cia do desmoronamento do marco nos anos que se seguiram à prim eira guerra mundial. O reflexo consistia não no fato de ser a inflação considerada como fenômeno geralmente indesejável, o que teria sido apenas um a interpreta­ ção refletida, — consistia no fato de o público não se apegar às causas m ais ou menos admisSíveis, capazes de explicar o aum ento dos sinais monetários. Ademais, a grande massa atentava pura e simplesmente na quantidade de cédulas em circulação, ignorando as demais formas de inflação. Nascera, assim, um “reflexo condicionado” e os governantes alemães tiveram que levá- lo em conta, notadam ente nos anos que se seguiram à crise de 1931. Os diri­ gentes republicanos fizeram um a política sistem àticam ente deflacionária, eco­ nom icamente contestável, e os primórdios da experiência Schacht foram nor­ teados pelo desejo de evitar a todo custo o sinal da inflação (o aum ento das cédulas) que teria atuado como cam painha de alarm e e desencadeado o pânico. Foi m ister que se inventassem novas técnicas para desassociar um a política m onetária e econômica que não podia ser deflacionária e o índice a que estava ligado o mêdo ou a confiança da m assa.

As crenças-reflexos têm ação geralm ente m uito brutal sôbre a vida polí­ tica. Em épocas de eleições, podem provocar bruscas reviravoltas do corpo eleitoral. M as se as massas, no momento dado, não tiverem o exutório eleito­ ral à sua disposição, essas crenças podem ser a origem de m ovimentos popu­ lares violentos.

14. M ais ou menos ambiciosas em sua extensão, mais ou menos com­ plexas em seus elementos, mais ou menos brutais em seus efeitos, as crenças

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econômicas se escalonam desde a crença-mito até a crença-reflexo, num certo número de categoria que não se poderia precisar sem certa arbitrariedade.

Não tivemos a pretensão, já o dissemos, de fazer um estudo do assunto. Tratava-se apenas de apresentar um objeto de pesquisas e adivinhar alguns grandes aspectos que permanecem por verificar.

Um estudo sistemático e, para começar, analítico e monográfico, das crenças econômicas e de seu papel na vida política apresentaria grande utili­ dade, de cfois pontos de vista.

P ara começar, representaria por si um aum ento de nossos conhecimentos a respeito da vida do homem em sociedade.

A seguir, tal estudo provocaria talvez a descoberta dos meios de melhorar a representação, que faz a massa dos cidadãos, dos fenômenos e das estrutu­ ras econômicas. Inútil seria dizer por que essa melhoria seria de importância capital para o funcionamento das sociedades democráticas. Não se pode espe­ rar, sem dúvida, que cada cidadão seja dotado de um a representação verda­ deiram ente científica do mundo econômico. Poder-se-ia, no entanto, ajudá-lo a bosquejar as linhas gerais do mesmo, o que lhe evitaria incoerência e absurdos, e aproxim aria do m undo real o universo ilusório que êle por vêzes substitui àquele. Onde estiver o poder deve estar o conhecimento.

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