VERSÕES DIFERENTES DE UM MESMO CONTO
Juliana SÃZva LOYOLA*
Os chamados c o n t o s de f a d a s vêm sendo a l v o de c o n s t a n t e s p e s q u i s a s p o r p a r t e de e s t u d i o s o s de vários campos do c o n h e c i m e n t o . De ura modo ge r a l , e s t e s t r a b a l h o s são unânimes em c o n s i d e r a r os c o n t o s um m a t e r i a l r i c o que o f e r e c e p o s s i b i l i . dades inesgotáveis de e s t u d o .
A o r i g e m dos c o n t o s de f a d a s , como é do co nhecimento da m a i o r i a , está na tradição o r a l po p u l a r е suas f o n t e s remetem a d i v e r s a s p a r t e s do mundo ( 3 ) . E s t a s histórias, c o n t a d a s p e l o povo е que p e r c o r r e r a m séculos, chamaram a atenção de a l g u n s e s t u d i o s o s que se empenharam num t r a b a l h o de compilação dos c o n t o s , c o l h e n d o - o s d i r e t a mente da tradição o r a l . Daí termos h o j e a nosso a l c a n c e algumas coletâneas de c o n t o s de f a d a s , merecendo d e s t a q u e , e n t r e t o d a s as c o n h e c i d a s , a de C h a r l e s P e r r a u l t - Contoò da Mãe Ganàa que d a t a de 1967 е a dos Irmãos W i l h e l m е Jacob
Grimm - Contoò de Fadab рала Сллапсал е Aduttob
c u j a p r i m e i r a publicação deu-se em 1812.
As coletâneas de C h a r l e s P e r r a u l t e dos I r . Grimm são c o n h e c i d a s mundialmente e apresentam semelhanças q u a n t o às histórias c o l e t a d a s . No en t a n t o , podemos v e r i f i c a r diferenças s i g n i f i c a t i vas quando observamos de que m a n e i r a cada a u t o r r e g i s t r o u t a i s histórias. É compreensível que e s t a s diferenças e x i s t a m dada a distância física e também cronológica (mais de um século) que se param P e r r a u l t dos I r . Grimm, sem c o n t a r os f a t o r e s sócio-histórico-culturais que, sem dúvida, i n t e r f e r e m demasiadamente n e s t e s c a s o s .
O tema p r o p o s t o p a r a e s t e t r a b a l h o r e f e r e -se ãs versões d i f e r e n t e s de um mesmo c o n t o e nes se s e n t i d o podemos e s t a r f a l a n d o , p o r exemplo, da versão que C. P e r r a u l t a p r e s e n t o u de um d e t e r minado c o n t o e da mesma história c o n t a d a p e l o s
I r . Grimm. Mas podemos f a l a r também em d i f e r e n t e s versões d e s t e s c o n t o s c u j a publicação c o n t o u com a d a p t a d o r e s , r e v i s o r e s , e t c , c o n t r a t a d o s pe l a s e d i t o r a s p a r a a "re-produção" dessas histó r i a s .
Os c o n t o s de fadas - que os e s p e c i a l i s t a s costumam chamar de L i t e r a t u r a I n f a n t i l Tradició n a l - sempre f i z e r a m p a r t e dos lançamentos edi. t o r i a i s no B r a s i l e podemos e n c o n t r a r , com d a t a s b a s t a n t e a n t i g a s , inúmeras coleções, sempre en
c a n t a d a s " , q u e , m i s t u r a n d o índios, s a c i s , b r u x a s e f a d a s , vêm p o v o a r a infância b r a s i l e i r a p e r c o r rendo um caminho que, f a t a l m e n t e , passa p e l a es c o l a - instituição que c o n s t i t u i um dos p i l a r e s sobre os q u a i s a L i t e r a t u r a I n f a n t i l e J u v e n i l no B r a s i l , nasce e d e s e n v o l v e - s e . É a esse t i p o de versão do c o n t o - a versão adaptada e conse qüentemente m o d i f i c a d a na sua forma o r i g i n a l
que nos dedicamos no p r e s e n t e t r a b a l h o .
A história m u n d i a l m e n t e c o n h e c i d a da l i n d a menina que só usava um Chapeuzinho Vermelho* -daí o seu nome - e da p e r i g o s a a v e n t u r a que v i . veu com o l o b o será o b j e t o de nossa atenção. As versões s e l e c i o n a d a s p a r a análise são: a) uma tradução do o r i g i n a l alemão de "Chapeuzinho Ver
* Há m u i t a s versões da história "Chapeuzinho Ver melho" e nesse s e n t i d o e x i s t e m o u t r o s t e x t o s que se e n c o n t r a m na mesma posição do t e x t o adaptado que s e l e c i o n a m o s p a r a análise; porém t o r n a - s e necessário que q u a l q u e r referência a t e x t o s adaptados p a r t a sempre do o r i g i n a l , daí elegermos em p r i m e i r o l u g a r uma tradução do o r i g i n a l , c o n s i d e r a n d o - a como uma das versões em questão. Chamaremos de t e x t o 1 a tradução do o r i g i n a l e de t e x t o 2 a versão adaptada de 1 9 5 1 .
melho", dos I r . Grimm, f e i t a p o r T a t i a n a B e l i n k y (4) e b) uma adaptação de "Chapeuzinho Vermelho" f e i t a p o r Leonardo A r r o y o e Fernão de Magalhães (1) .
Procuramos nos d e t e r nos t e x t o s t e n d o em v i s t a o o r i g i n a l ( t e x t o 1) como p o n t o de a p o i o p a r a as comparações com a adaptação ( t e x t o 2 ) . * *
É óbvio que as diferenças do t e x t o 2 em r e lação ao t e x t o 1 r e f l e t e m uma preocupação dos a d a p t a d o r e s em adequarem o t e x t o a um público v i _ sado p o r uma coleção d e s t i n a d a a crianças em i d a de e s c o l a r no início da década de 50. Mas nossa preocupação, sem c o n t u d o i g n o r a r m o s e s t e dado, não f o i a de d e t e c t a r através do t e x t o de Leonardo A r r o y o e Fernão de Magalhães o modelo de e s c o l a que p r e v a l e c i a em 1 9 5 1 , embora o t e x t o p o s s i b i l i t e também i s s o . 0 que t e n t a r e m o s mos t r a r é que quando a f a s t o u - s e do o r i g i n a l , m o d i f i cando-o, o t e x t o 2 p e r d e u em q u a l i d a d e literá r i a .
"Chapeuzinho Vermelho", o c o n t o mais d i v u l gado p e l o mundo t o d o segundo Bruno B e t t e l h e i m ( 2 ) , c o n t a a história de uma menina m u i t o l i n d a que
Os t e x t o s i n d i c a d o s a s e g u i r encontram-se em anexo.
ganhou de p r e s e n t e da avó um capuz de v e l u d o v e r melho. E p o r q u e sempre usava esse chapéu f i c o u c o n h e c i d a p e l o nome de Chapeuzinho Vermelho. Um d i a , enquanto l e v a v a b o l o e v i n h o p a r a a avó d o e n t e , e n c o n t r o u - s e com o l o b o - E s t e , p l a n e j a n do devorá-la e também ã avó, seduz a menina com o agradável c o n v i t e p a r a b r i n c a r na f l o r e s t a co l h e n d o f l o r e s e o u v i n d o os pássaros. Mesmo t e n d o s i d o a d v e r t i d a p e l a mãe, Chapeuzinho Vermelho d e s v i a - s e de sua missão e embrenha-se no mato em busca de f l o r e s p a r a a a v o z i n h a . Enquanto i s s o , o l o b o c o r r e na f r e n t e , d e v o r a a avó da menina, v e s t e - s e com as r o u p a s da v e l h a e f i c a ã e s p e r a de Chapeuzinho. Logo d e p o i s e l a chega e, p e r c e bendo a p o r t a a b e r t a , e s t r a n h a o f a t o . Aproximan do-se do l o b o disfarçado, após um b r e v e diálo go, Chapeuzinho Vermelho é e n g o l i d a p o r e l e . Um caçador que passava p o r a l i e s c u t a os r o n c o s do l o b o e e n c o n t r a - o a d o r m e c i d o . Com uma t e s o u r a , e l e c o r t a a b a r r i g a do a n i m a l e de lá s a l v a a menina e a v o v o z i n h a . Chapeuzinho c o l o c a p e d r a s na b a r r i g a do l o b o causando a s s i m a sua m o r t e e d i a n t e do a c o n t e c i d o r e s o l v e não mais d e i x a r de o u v i r as advertências da mãe quando e s t a as f i . z e r .
Fernão de Magalhães é d i f e r e n t e em vários aspec t o s , mas comecemos do princípio. Conforme pode mos v e r i f i c a r nos t e x t o s , o de no 2 s u b s t i t u i a expressão i n i c i a l "Era uma vez ..." p o r "Na épo ca em que os a n i m a i s f a l a v a m " . Ambas as e x p r e s soes nos remetem a um tempo d i s t a n c i a d o do tempo r e a l , uma época que não é a nossa mas que. de aJL guma forma t e r i a e x i s t i d o . Nesse s e n t i d o , as ex pressões "Era uma vez ..." e "Na época em que os a n i m a i s f a l a v a m " se e q u i v a l e m . No e n t a n t o , ao mesmo tempo em que a "época em que os a n i m a i s
f a l a v a m " m o s t r a - s e próxima da ficção e da i r r e a l i d a d e , os t e x t o s de Leonardo A r r o y o e Fernão de Magalhães preocupam-se m u i t o mais em t r a z e r o
l e i t o r p a r a uma situação o r g a n i z a d a segundo os padrões não só da r e a l i d a d e , mas de uma r e a l i d a de construída nos moldes da s o c i e d a d e da época. Expliquemos p o r quê. Logo em s e g u i d a à f r a s e i n i c i a i , os a u t o r e s nos contam que a menina t i n h a 12 anos, v i v i a numa a l d e i a s i t u a d a na s e r r a em companhia do p a i e da mãe e que constituíam uma família a l e g r e e com r e l a t i v o c o n f o r t o . Todas e£ sas informações encontram-se a u s e n t e s no t e x t o o r i g i n a l que, como a m a i o r i a dos c o n t o s de f a das, a p r e s e n t a - n o s p e r s o n a g e n s - t i p o , sem d e t e r minação de nome próprio, i d a d e , l o c a l de nasci.
mento ou q u a l q u e r o u t r a p a r t i c u l a r i d a d e . A "Cha p e u z i n h o Vermelho" de Leonardo A r r o y o e Fernão de Magalhães é uma menina d e t e r m i n a d a p e l a sua i d a d e , condição s o c i a l e d o m i c i l i a r o que, a nos so v e r , já d i m i n u i a personagem que passa de u n i v e r s a i p a r a p a r t i c u l a r ( * ) . A i n d a na descrição da menina, o t e x t o 2 a c r e s c e n t a que Chapeuzinho t i n h a um g r a v e d e f e i t o - a desobediência - e que a avó a mimava m u i t o f a z e n d o - l h e t o d a s as v o n t a
Numa interpretação psicanalítica, i s s o com c e r t e z a i n t e r f e r i r i a no p r o c e s s o de identificação da criança com a heroína e dessa forma o c o n t o p e r d e r i a em q u a l i d a d e . Bruno B e t t e l h e i m - p s i c a n a l i s t a que se d e d i c o u ao e s t u d o dos c o n t o s de fadas - a n t e s de c o n s i d e r a r q u a l q u e r c o i s a em relação a e l e s , d i s s e da n e c e s s i d a d e de se rem esses c o n t o s o b r a s literárias de q u a l i d a d e a f i m de que s e r v i s s e m ao seu i n t e n t o - o t r a tamento de crianças p e r t u r b a d a s . Segundo e s t e e s t u d i o s o , os c o n t o s "menores" l i t e r a r i a m e n t e f a l a n d o , eram r e j e i t a d o s p e l a s crianças p o r não p e r m i t i r e m o p r o c e s s o de identificação com a história e com os personagens.
des. Somente aí é que os a u t o r e s mencionam o f a t o da avó t e r - l h e p r e s e n t e a d o com o capuz e a j u s t i f i c a t i v a do a p e l i d o , havendo a i n d a a p r e o c u pação em d i z e r que o chapéu f o i um p r e s e n t e de aniversário.
O passo s e g u i n t e no t e x t o o r i g i n a l é a t a r e f a que a menina r e c e b e ( l e v a r b o l o e v i n h o pa r a a avó que está d o e n t e ) e a advertência da mãe: " S a i a n t e s que comece a e s q u e n t a r e quando
saíres, anda d i r e i t i n h a e comportada e não s a i a s do caminho, senão podes c a i r e q u e b r a s o v i d r o e a vovó ficará sem nada, e quando c h e g a r e s lá, não esqueças de d i z e r bom-dia, e não f i q u e s es p i a n d o p o r t o d o s os c a n t o s " . O t e x t o 2, no e n t a n t o , a n t e s de a p r e s e n t a r essa situação - a t a r e f a e a advertência - i n c l u i um parágrafo i n t e i r o de d i c a d o a informações do t i p o : que a menina e r a a p l i c a d a na e s c o l a e p r e s t a v a atenção âs lições dos m e s t r e s , mas ã s o l t a , no campo, e r a um " v e r d a d e i r o d i a b i n h o " ; que b r i n c a v a com os a n i m a i z i . nhos pequenos como g r i l o s e f i l h o t e s de p a s s a r i nhos; que e r a educada e t r a t a v a " t u d o e t o d o s " de senhor - "senhor b u r r o " , "senhora o v e l h a " - e em suas c o n v e r s a s com e l e s preocupava-se em sa b e r se eram bem t r a t a d o s p o r seus donos, se t _ i nham bom p a s t o , e t c .
Aí então é que tem início o parágrafo onde a menina r e c e b e a t a r e f a : l e v a r b o l o e mel (e não v i n h o ) p a r a a avó d o e n t e . Não é g r a t u i t a a mudança do v i n h o p a r a m e l - substância d o c e , na t u r a l e a l i m e n t o m u i t o recomendado às crianças. 0 v i n h o , uma b e b i d a m u i t o consumida em s o c i e d a des mais a n t i g a s e até h o j e usado como remédio em t r a t a m e n t o s de anemia, v i n c u l a - s e também ao uso de b e b i d a s alcoólicas que v i c i a m e podem l e v a r a pessoa ao delírio. Podemos e v i d e n c i a r a i n da a t e n t a t i v a de uma aproximação do t e x t o à r e a l i d a d e b r a s i l e i r a . Ao contrário do que o c o r r e na Alemanha, no B r a s i l o v i n h o não é uma b e b i d a de consumo diário. O m e l , sem dúvida, p a r e c e u aos a u t o r e s Leonardo A r r o y o e Fernão de Maga lhães, um e l e m e n t o mais a p r o p r i a d o p a r a uma meni. na que v a i v i s i t a r a vovó d o e n t e ; sem c o n t a r a imagem poética das c o l m e i a s c h e i a s de mel p r e s e n t e no t e x t o 2.
Quanto ã advertência da mãe no t e x t o 2 t e mos: que Chapeuzinho " f o s s e p e l o caminho mais c u r t o e não p r o c u r a s s e e n t r e t e n i m e n t o s que a de morassem". O e n c o n t r o com o l o b o dá-se l o g o que a menina p e n e t r a na f l o r e s t a ; é i n t e r e s s a n t e com pararmos os diálogos t r a v a d o s p e l o s d o i s num t e x t o e n o u t r o . O t e x t o 1 nos c o n t a que quando
Chapeuzinho e n c o n t r o u - s e com o l o b o , não t e v e me do d e l e p o r não s a b e r de quem se t r a t a v a e p o r i s s o manteve um diálogo i n o c e n t e c o r r e s p o n d e n d o ao cumprimento i n i c i a l do l o b o (Bom-dia!) e o f e r e c e u - l h e informações do t i p o : onde e s t a v a i n d o , o que i a f a z e r e a localização e x a t a da casa da avó. Já o t e x t o 2 r e v e l a que, l o g o que v i u a me n i n a , o l o b o t e v e d e s e j o de a d e v o r a r e só não o f e z p o r q u e h a v i a l e n h a d o r e s p o r p e r t o . O t e x t o d e i x a a i n d a b a s t a n t e c l a r o que o f a t o de a meni_ na c o n v e r s a r com o l o b o r e v e l a um hábito p e r i g o so e condenável de Chapeuzinho em "dar confiança a t u d o e a t o d o s " . O l o b o não se d i r i g e a e l a s i m p l e s m e n t e com um Bom-diai como no t e x t o 1 , mas v e s t e - s e com a máscara do mais b e l o e educa do mancebo que, demonstrando a l e g r i a p e l o encon t r o , pede "no mais r e q u i n t a d o g e s t o de p o l i d e z que l h e f o s s e dado o p r a z e r de acompanhar tão g e n t i l menina."
No t e x t o 1 , o l o b o consegue l u d i b r i a r a me nima f a z e n d o - a demorar-se mais p e l a f l o r e s t a , a f i m de que e l e pudesse c o r r e r na f r e n t e e devo-r a devo-r a avó. E l e f a z i s s o chamando a atenção de Chapeuzinho p a r a os l i n d o s r a i o s do s o l , as f i o
r e s e o c a n t o dos pássaros, c r i t i c a n d o - a por es t a r tão c o n c e n t r a d a no caminho como se f o s s e pa r a a e s c o l a . Esse é o único momento no t e x t o 1 em que há uma referência ao a m b i e n t e e s c o l a r e o mesmo a p a r e c e em oposição ã f l o r e s t a - um l u gar d i v e r t i d o onde não há a n e c e s s i d a d e de se ca minhar com t a n t a s e r i e d a d e .
Já no t e x t o 2 o que o c o r r e é uma a t i t u d e en ganadora (e não s e d u t o r a ) do l o b o . E l e convence Chapeuzinho Vermelho de que e l a e s t a v a e r r a d a quanto ao caminho mais c u r t o e que p e r c o r r i a o mais l o n g o . A menina a c r e d i t a n e l e e d e s v i a - s e do caminho que v i n h a s e g u i n d o . Neste t r e c h o é possível p e r c e b e r o tom s e v e r o dos n a r r a d o r e s em relação à a t i t u d e da personagem. E l e s lembram os l e i t o r e s de que Chapeuzinho "pôs de p a r t e as recomendações da mãe e tomou o caminho que o l o bo l h e i n d i c a r a " - a t i t u d e c o n s i d e r a d a r e p r e e n sível nas e n t r e l i n h a s do t e x t o , p o i s não se t r a t a apenas de uma distração da menina mas de um a t o de descaso p a r a com as advertências da mãe.
Ambos os t e x t o s descrevem em s e g u i d a a che gada do l o b o ã casa da v o v o z i n h a . I m i t a n d o a voz da menina o l o b o consegue as informações de que P r e c i s a p a r a a b r i r a p o r t a e p e n e t r a r na casa. O t e x t o o r i g i n a l é b a s t a n t e s u s c i n t o n e s t e t r e c h o
apenas d e s c r e v e n d o que o l o b o , l o g o que chega ã p o r t a da c a s a , b a t e e r e c e b e da v e l h a permissão p a r a e n t r a r . Já no t e x t o 2, além da descrição en c o n t r a m o s expressões onomatopaicas que r e p r e s e n tam as b a t i d a s ã p o r t a ( t r u z ! t r u z ! t r u z ! ) e a ob servação dos n a r r a d o r e s de que o l o b o " p i g a r r e o u e adoçou a v o z " p a r a f a l a r com a vovó. A.todo mo mento p e r c e b e - s e a preocupação dos n a r r a d o r e s em o f e r e c e r d e t a l h e s no i n t u i t o de t o r n a r a histó r i a o mais r e a l possível,- quebrando com essas t e n t a t i v a s a lógica da f a n t a s i a que s u s t e n t a o c o n t o . Há uma interferência c o n s t a n t e no u n i v e r so f i c c i o n a l do t e x t o a f e t a n d o com i s s o o seu equilíbrio.
Logo que e n t r a na casa da avó, o p r i m e i r o passo do l o b o é d i r i g i r - s e ao q u a r t o d e l a e devo rá-la. Mas no t e x t o 2 a c o n t e c e uma inversão dos f a t o s : o l o b o l o g o que e n t r a no q u a r t o da v e l h a , a s s u s t a - a de t a l forma que a mesma s o f r e um ães maio e f i c a d e s a c o r d a d a . 0 l o b o , r e f l e t i n d o um pouco s o b r e as v a n t a g e n s de comê-la ou não, deci_ de apenas jogá-la p a r a b a i x o da cama porque e s t a va magra demais e só t i n h a p e l e e o s s o . Segundo o t e x t o 2, o l o b o i m a g i n o u que o seu a p e t i t e f i c a r i a p r e j u d i c a d o p a r a quando a menina chegasse. Dessa forma o t e x t o 2, além de e x c l u i r um dado
i m p o r t a n t e do t e x t o o r i g i n a l - a m o r t e têmpora r i a da avó de Chapeuzinho - e x c l u i j u n t o com e l e a o p o r t u n i d a d e que o l e i t o r tem de v i v e n c i a r es sa perda momentânea, g e r a d o r a de uma tensão que será responsável p e l o encaminhamento do clímax da história, p o i s , se o l o b o f o i capaz de engo l i r a avó, então, com c e r t e z a , e l e também o fará com a menina e i s s o t o r n a as c o i s a s m u i t o mais e m o c i o n a n t e s . Não podemos nos e s q u e c e r de que es tamos f a l a n d o de um tempo e de um l u g a r do "ERA UMA VEZ ..." p o r t a n t o , t u d o é possível, até mes mo a ressurreição ou s e r e n g o l i d o p o r um l o b o e s o b r e v i v e r d e n t r o da b a r r i g a d e l e .
A preocupação d e t e c t a d a no t e x t o 2 em t o r nar os f a t o s adequados a um u n i v e r s o r e a l , p r o c u rando c a m u f l a r , e n t r e o u t r a s c o i s a s , o g r a u de violência, além de e s t a r em contradição com a f r a s e i n i c i a l do t e x t o - "Na época em que os a n i mais f a l a v a m " - destrói t o d a s as p o s s i b i l i d a d e s de uma experiência fantástica p r o p o r c i o n a d a p e l o c o n t o o r i g i n a l - experiência que p o r s e r f a n t a s t i c a t o r n a - s e de c e r t a forma uma experiência es tética.
P o i s bem, com esse dado, a opção do l o b o em não comer a avó de Chapeuzinho, tem início uma série de inversões no t e x t o 2 se comparado ao
o r i g i n a l . Ao contrário do que o c o r r e no t e x t o 1 , o t e x t o 2 não m o s t r a , l o g o em s e g u i n d a , a chega da de Chapeuzinho Vermelho ã casa da avó. Há, no t e x t o 2, um d e s l o c a m e n t o da cena l e v a n d o o l e i t o r de v o l t a à casa dos p a i s da menina onde é d e s c r i t o o e s t a d o de preocupação e aflição da mãe de Chapeuzinho p e l a demora da f i l h a . D i a n t e de t a l f a t o , a mãe d e c i d e e n v i a r o c a c h o r r o da casa - c u j o nome e r a Dragão - p a r a p r o c u r a r a
f i l h a supostamente p e r d i d a . O c a c h o r r o s a i l o g o em s e g u i d a ao encalço da menina e enquanto cami. nha pensa c o n s i g o : "A l e v i a n a , t e i m a n d o em s e r d e s o b e d i e n t e , a i n d a um d i a dá um d e s g o s t o aos p a i s . " - um comentário que, sem dúvida, f o i c o l o cado na boca do c a c h o r r o mas p a r a s e r d i r i g i d o ao público l e i t o r . Esse cão f a z , na v e r d a d e , um p a p e l semelhante ao do caçador no t e x t o o r i g i n a l com a diferença de que consegue chegar em tempo e s a l v a r a menina a n t e s que e l a s e j a devorada pe
l o l o b o .
Na casa da avó, o diálogo que a menina t r a va com o l o b o disfarçado a c o n t e c e em ambos os t e x t o s . T r a t a - s e d a q u e l e momento em que Chapeuzi nho, e s t r a n h a n d o a aparência da avó, f a z uma sé r i e de p e r g u n t a s q u e s t i o n a n d o - a s o b r e os seus traços g r o s s e i r o s até que ao p e r g u n t a r s o b r e o
tamanho da boca, r e c e b e do l o b o a r e s p o s t a : "é para t e comer m e l h o r l "
Como d i s s e m o s , no t e x t o 2, o l o b o não a l c a n ça seu i n t e n t o e é m o r t o p e l o c a c h o r r o Dragão a n t e s de comer a menina. Em l u g a r da chegada do caçador e da saída da v o v o z i n h a e de Chapeuzinho de d e n t r o da b a r r i g a do l o b o , o que encontramos no t e x t o 2 é uma situação de pressão sobre a p e r sonagem p r i n c i p a l que ouve uma voz v i n d a de baj. xo da cama d i z e n d o : " A p r o v e i t e e t e r n a m e n t e e s t a lição, Chapeuzinho Vermelho! A t u a desobediência e l e v i a n d a d e puseram em p e r i g o não só a t u a mas também a minha v i d a . " Era a avó que, d e s p e r t a n d o do desmaio, a p r o v e i t o u p a r a chamar a atenção da menina. Sem dúvida, essa f a l a da v e l h a f u n c i o n a também como a voz da consciência f a l a n d o ã meni na d e s o b e d i e n t e e, p r i n c i p a l m e n t e , a t o d o públi. co que recebe o c o n t o .
Ê nosso p o n t o de v i s t a que o t e x t o o r i g i n a l t a l como f o i c o l h i d o da tradição o r a l p e l o s I r . Grimm com a f i n a l i d a d e de registrá-lo sob forma literária, a p r e s e n t a uma e s t r u t u r a própria que l h e c o n f e r e b e l e z a e s u a v i d a d e apesar dos a t o s de violência do l o b o sobre as duas personagens f e m i n i n a s . Tudo está o r g a n i z a d o segundo um espa ço e um tempo fictícios, não só p e l a dose de f a n
t a s i a do c o n t o , mas p e l a despreocupação em d e t a l h a r nomes, l o c a i s , meios intermediários que pos s i b i l i t e m um a c o n t e c i m e n t o , e t c ; e o t e x t o i s e n t o de t u d o i s s o s u s t e n t a a imaginação do l e i t o r que, p e n e t r a n d o no u n i v e r s o do "ERA UMA VEZ .
não n e c e s s i t a de explicações secundárias p a r a v i _ v e n c i a r a emoção que a história em s i é capaz de p r o p o r c i o n a r .
O t e x t o 2 é uma adaptação, a nosso v e r , po b r e , porque em vez de p a r t i r do o r i g i n a l p a r a c r i a r um o u t r o t e x t o tão bom ou m e l h o r que o p r i . m e i r o , a p r o v e i t a a o p o r t u n i d a d e p a r a impor uma
l e i t u r a de "Chapeuzinho Vermelho" ao l e i t o r , p r _ i vando-o do d i r e i t o de e x e r c e r a sua c a p a c i d a d e de l e r . O t e x t o 2 está preocupado com um i n t e r pretação f e c h a d a do c o n t o que p a r a os adaptado r e s , tem a função de t r a n s m i t i r aos l e i t o r e s e o u v i n t e s bons e n s i n a m e n t o s e lições m o r a l i z a d o r a s . Em nome dessa função, o c o n t o o r i g i n a l é m u t i l a d o em d i v e r s a s p a r t e s recebendo " i m p l a n t e s " de um m a t e r i a l completamente avesso a sua n a t u r e z a .
Ao t e n t a r e m t r a n s f o r m a r o t e x t o o r i g i n a l em a l g o mais próximo do público i n f a n t i l , os ada£ t a d o r e s , além de se m o s t r a r e m e q u i v o c a d o s q u a n t o ã função da l i t e r a t u r a na v i d a do homem, t o r n a m
a história de Chapeuzinho Vermelho - uma das mais e m o c i o n a n t e s que conhecemos - num amontoado
de princípios m o r a l i z a d o r e s t o t a l m e n t e destituí do de l i t e r a r i e d a d e e p o r t a - v o z d e c l a r a d o de uma i d e o l o g i a com unhas e d e n t e s p e l a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a dos anos 50 - que t i n h a na e s c o l a seu p r i n c i p a l a p a r e l h o ideológico.
A e s c o l a dos anos 90 não é menos d i v u l g a d o r a da i d e o l o g i a da c l a s s e d o m i n a n t e do que nos anos 50. Porém é impossível negar que a s o c i e d a de b r a s i l e i r a passou p o r algumas transformações e c o n c e i t o s i m p o r t a n t e s t a i s como l e i t u r a , l i t e r a t u r a i n f a n t i l , infância e que o u t r o s vêm sendo repensados c o n s t a n t e m e n t e ; os r e s u l t a d o s dessas reflexões aparecem a q u i e acolá, mesmo que a du ras penas.
As edições que aparecem h o j e dos c o n t o s de f a d a s preocupam-se, em p r i m e i r o l u g a r , com uma boa tradução e com a indicação c o m p l e t a de dados como: nome do t r a d u t o r e i l u s t r a d o r - quase nun ca c o n t i d o s em edições mais a n t i g a s . No caso das adaptações, nós a i n d a as encontramos h o j e , tam bém r e a l i z a d a s p o r g r a n d e s nomes da l i t e r a t u r a i n f a n t i l ; porém o que se o b s e r v a é uma f i d e l i d a de t o t a l à história e as mudanças que acontecem, normalmente, não i n t e r f e r e m na e s t r u t u r a do t e x
t o se comparado ao o r i g i n a l .
F i n a l m e n t e gostaríamos de d i z e r que o e s t u do de versões d i f e r e n t e s de um mesmo c o n t o é ape nas uma das inúmeras p o s s i b i l i d a d e s de t r a b a l h o o f e r e c i d a s p o r e s t e m a t e r i a l e t a l e s t u d o tem se m o s t r a d o p r o v e i t o s o p a r a a l e i t u r a de a l g u n s t e x t o s da l i t e r a t u r a i n f a n t i l a t u a l que se c a r a c t e r i z a m , p r i n c i p a l m e n t e , p e l a retomada dos c o n t o s de f a d a s - uma m o d a l i d a d e b a s t a n t e freqüente na produção literária p a r a criança e j o v e n s no B r a s i l .
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