A ARQUITE
X
TURA DO ESTRANHO NA OBRA DE RUBEM
FONSECA: CONTOS
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC-SP
Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Drª. Maria José Gordo Palo
BANCA EXAMINADORA
Dedicatória
À Minha companheira, Maria das Dôres, que me ensinou a voar.
À Maíra e Inaê, pelo carinho,
compreensão e companhia em tantas viagens.
Aos meus tios Elizabete e Marco, (in memorian),
A Minha orientadora, pela amabilidade, confiança e presença constante.
Aos meus professores Fernando Segolin, Maria Aparecida Junqueira, Maria Rosa
Duarte, Olga de Sá e Vera Bastazin pelo carinho e fundamentos teóricos.
A Ana Albertina pelo suporte acadêmico.
Ao Grupo de Pesquisa “O narrador e as fronteiras do relato” – PUC-SP, pelo espaço
de interlocução e sugestões.
À minha família com carinho.
Aos amigos:
Ana Luzia e Juraci Lima, um agradecimento especial pela grande amizade e leitura
atenta deste trabalho.
Ana e Lourdes, por me mostrarem o riso da “boca de mil dentes”.
Guilherme Valentin, pelas dicas referentes ao vocabulário cinematográfico e
Luciana, pelo carinho e alegria.
Jô, Adilson e Dione, pelos bons momentos na “Paulicéia Desvairada”.
Risomar e Zildene pela companhia, carinho e interlocução nos pensamentos
risomáticos.
Salete Massuchetti, Dimas Dal-Bó, Vó Nita, Daniel e Saulo pelo aconchego familiar,
amizade e respeito.
Aos amigos do Mestrado: Nailton e Lia pela interlocução, e Ana Paula pela poesia.
Aos meus alunos pela compreensão no meu afastamento.
Às Instituições:
“O mesmo signo que tento ler e ser é apenas um possível e o impossível
em mim, em mil, em mil, em mil...”
(Caetano Veloso).
Os contos Entrevista, O gravador e Lúcia McCartney, obras que fazem parte do livro
Contos Reunidos, de Rubem Fonseca (2000), apresentam uma estrutura composicional que subverte as fronteiras dos gêneros literários ao se apropriar de
diferentes linguagens e discursos midiáticos. Este trabalho teve como propósito
apresentar uma leitura desses contos com base na hipótese inicial de que essas
linguagens em conexão com o sistema literário problematizam a feição da contística
fonsequiana, atribuindo-lhe um caráter meta-artístico. Em Entrevista, o modus
operandi do sistema literário apropria-se do discurso jornalístico e teatral em relação, propondo a confluência dessas linguagens como fator propício à estilização das
seguintes categorias narrativas: narrador, personagem e cronotopia. Em O gravador,
observou-se a emergência de uma linguagem-suporte, a virtual, em interface com as
linguagens publicitária, teatral e. Em Lúcia McCartney, verificou-se a predominância
do hipertexto como elemento estruturante da fragmentação e corporificação
performática da linguagem literária. A intersecção desses diferentes gêneros
discursivos gera o hibridismo do discurso literário e erige como resultado uma
arquitextura do estranho no corpus analisado.
Palavras – Chave: Rubem Fonseca; Performance textual, Complexe cód,
The short stories Entrevista, O gravador, and Lúcia McCartney, narratives collected
in the literary work Contos Reunidos by Rubem Fonseca (2000), have a compositive
structure that undermines the boundaries of the literary style by seizing,
experimentally, different languages and media-based discourse. This study is
purposed to unveil a reading of the complex system of the contemporary short story
in concourse with other language systems and their codes: hypertextual, journalistic,
aural, theatrical, and scenic. Built on the hypothesis that these languages, networked
with the literary system, not only change the form but also the aesthetical function of
the message, we can confirm the presence of a meta-artistic character contained in
the following subthemes in each story. In the first chapter of Entrevista, the literary
experience takes hold of a journalistic and theatrical narrative, in a critic and stylish
discourse of the narrative categories: narrator, character, and chronotopy. In the
second chapter of O gravador, there is a rising of a supporting language—virtual—
interfacing with advertising, theatrical, and scenic languages. In the third chapter of
Lúcia McCartney, hypertext predominates as a framing element of the collapsibility and corporality of the discursive performance. Interposing multifunctional styles using
media-based methods and techniques produces a hybrid literary narrative and
conveys, in the spatial continuity of the vivid text, an architexture of the idiosyncrasy.
KEY WORDS: Rubem Fonseca; Textual performance; Complexity system;
INTRODUÇÃO: Antropofagia dos meios: uma introdução à obra de
Rubem Fonseca (contos)... 09
CAPÍTULO I – Linguagens ENTRE[VISTAS]... 21
1. Interfaces ou intervozes do narrador... 21
2.A função do riso: marcador da linguagem oral... 37
3.O cronotopo da barbárie... 40
CAPÍTULO II – Estética ciborguesca... 45
1. Cibercronotopo, desejo e memória... 45
2. A voz do ciborgue-narrador... 53
3. O corpo ciborguesco ... 61
CAPÍTULO III – Linguagens irre[mediadas]... 66
1. O Multiplex Code ou estética do descontínuo e do fragmentário. 66 2. O corpus violado... 75
3. A difração do sujeito ... 79
CAPÍTULO IV – A (de)composição do estranho...83
Por uma conclusão multifuncional...92
ANTROPOFAGIA DOS MEIOS: uma introdução à obra de Rubem Fonseca(contos).
“Convidemos todas as artes irmãs da arte dramática não para criar uma obra de arte total, em que elas se realizem perdendo-se, aniquilando-se, mas para contribuírem, cada qual à sua maneira e em colaboração com a primeira, na empresa comum: a relação recíproca será, então, de mútua alienação”.
(Bertolt Brecht)
A leitura dos contos Lúcia Mc Cartney, Entrevista e O gravador, nos instigou a
empreender uma pesquisa literária que revelasse os processos artístico-formais e os
procedimentos de elaboração do conto do autor contemporâneo romancista, cronista,
contista e roteirista de cinema, Rubem Fonseca (1925).
No intuito de compreender a função e os efeitos estéticos de tais procedimentos
nos contos citados, partimos de dois conceitos fundamentais: “literariedade” 1 e
estranhamento 2. A afirmação desses conceitos como eixo de nossa investigação tem a
finalidade de possibilitar suas possíveis atualizações, haja vista a dissolução binária das
1
COHEN, Jean. A Plenitude da Linguagem: teoria da poeticidade.{trad. José Carlos Seabra Pereira}. Coimbra: Livraria Almedina, 1987, p. 08. Segundo o autor, Jakobson forjou o termo ‘literariedade’ para designar ‘o que faz de uma dada obra uma obra literária’. Em nota de roda pé, o teórico acrescenta: ‘A poesia é a linguagem em sua função estética. Assim, o objeto da ciência da literatura não é a literatura, mas a literariedade, isto é, o que faz de uma obra dada, uma obra literária’. Questions de poétique, p. 15. (JAKOBSON apud COHEN, p. 8).
2
fronteiras dos gêneros literário X não-literário; realidade X ficção e a multiplicidade de
linguagens (cinematográfica, jornalística, teatral, midiática, hipertextual), com as quais
os contos de Rubem Fonseca fazem interface.
Ao conhecer os caminhos percorridos por alguns críticos, que se preocuparam
em destrinçar os conceitos de literariedade e estranhamento, pudemos perceber alguns
índices que norteiam a trajetória desta dissertação. Sobre a questão do estranhamento,
Lucrécia FERRARA, 3 em consonância com o pensamento do teórico russo V.
CHKLÓVSKI, afirma:
A produção da obra de acesso difícil, estranhável marca o primeiro passo para a transformação do conceito de função da literatura no século XX. A percepção desautomatizada, o esforço reflexivo exigido do leitor obrigado a sair do marasmo cotidiano para apreender realidades não desgastadas marcaram o fim da obra de representação do real para impulsionar o desenvolvimento de obras cuja construção tinha como base a pesquisa das possibilidades do código verbal e dos seus limites, até a descoberta da linguagem enquanto organização e renovação do próprio código.
Por outro lado, Jean Cohen 4 enuncia:
Definir a literariedade a partir da opacidade ou intransitividade da linguagem, é negar o próprio ser da linguagem. A linguagem é signo e o signo não o é senão enquanto está despegado de si mesmo, enquanto nele se cindem, se separam, para o construir como tal, as suas duas faces; e enquanto o significante reenvia ao significado como a um além de si mesmo, diferente de si mesmo.
Conscientes de que não há uma univocidade em torno desses conceitos,
colocamos o seguinte problema: Quais fatores inerentes à construção do conto
contemporâneo subvertem o discurso e a linguagem em favor do estranhamento sob
3
FERRARA,Lucrecia. O texto Estranho. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978. p. 75.
4
novas funções estéticas? A complexidade do sistema composicional do conto,
envolvendo mediações diversas e pluralidade de linguagens e meios massificados, põe
em rede outros códigos que resultam na reordenação do espaço e do tempo textual.
Poderíamos reconhecer, no plurilingüísmo de linguagens e técnicas, uma alternância de
vozes da cultura nacional híbrida que gera cronotopos virtuais unificadores da leitura
temporal?
Os efeitos estéticos da arquiteXtura do conto contemporâneo de Rubem Fonseca
configuram resultados experimentais de formas heterogêneas do real?
Na tentativa de responder estas e outras questões, investigamos as perspectivas
dos críticos que estudam as linguagens denominadas midiáticas ou as artemídias, 5
tendo em vista a tangência dos contos de Rubem Fonseca com essas linguagens. Vale
ressaltar que essa tangência não se manifesta no uso, propriamente dito, de um
suporte tecnológico, mas, sim, na organização estrutural do texto similar às linguagens
midiáticas.
Para Florence de Méridieu,6
O universo das novas tecnologias parece nos levar em direção a uma desmaterialização radical. A arte se apoderou dessas técnicas e nos oferece uma viagem aos universos sintéticos nos quais se encontra profundamente modificada a relação que nosso corpo mantém ‘tradicionalmente’ com ele mesmo e com o mundo. A interatividade e o mergulho nos mundos virtuais levam o espectador a um mundo estranho.”
5
MACHADO, Arlindo. Arte e mídia: aproximações e distinções, in Galáxias: revista transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura / Programa Pós-graduado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP – nº 4: p. 22, 2004. “A expressão inglesa media art e o seu correlato português artemídia são usados hoje para designar formas de expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos das mídias e da industria do entretenimento em geral, ou intervêm em seus canais de difusão, para propor alternativas qualitativas”.
6
A marca fulcral dessa desmaterialização de que nos fala Méridieu, é configurada,
processualmente, pelos três contos citados, a partir de uma questão central: tratam-se
de narrativas cuja linguagem faz emergir o drama de sujeitos que, privados de uma
existência legítima, são nela inseridos por uma lógica de existência virtual marcada pelo
diálogo das personagens e intermediados por suportes técnicos e similares: carta,
telefone, gravador e entrevista.
Esse caráter virtual da comunicação e das relações é um traço paradoxal
recorrente na arte contemporânea: presença que se faz ausência. Destarte nos parece
que, privados da presença física do outro, o homem recria relações virtuais na tentativa
de preencher o vazio da existência na busca da alteridade.
A tentativa de reconstruir o discurso da alteridade deve-se também, ao fato de
que “A extrema complexidade da civilização moderna não permite a nenhuma atividade
de ordem científica, cultural ou estética desenrolar-se no isolamento. Ela impõe uma
atividade globalizante em todos os sentidos” 7 . Concernente à questão da literariedade,
nos hipertextos eletrônicos, Alckmar Santos 8 afirma:
A literariedade das obras literárias eletrônicas, de início, herda procedimentos e perspectivas da tradição do intertexto, sobretudo na maneira como o conceberam e o descreveram Gerard Genette e Julia Kristeva. Tanto quanto os hipertextos eletrônicos, todo texto literário deve ser lido ‘Não como entidades autônomas, ‘totalidades orgânicas’, mas como construções intertextuais: seqüências que tem sentido em relação a outros textos que elas retomam, citam, parodiam, refutam ou, de modo mais geral, transformam’. (2003, p. 62).
7
MILLET, Maria Alice. Lygia Clark: Obra trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992 p. 215.
8
Essas considerações se aproximam do que BAKHTIN,9 em seu estudo sobre o
romance, denomina como linguagens constitutivas do plurilingüismo que entram no
corpo do romance como estilizações, ou seja, devemos entendê-las como elementos que constroem a imagem da palavra, permitindo que as várias vozes materializem
essas linguagens nas figuras das pessoas que falam no romance ou que funcionem
como pano de fundo ao diálogo.
Ao comentar a obra de Rubem Fonseca à luz da teoria bakhtiniana, Boris
SCHNAIDERMAN 10 depõe:
Lendo-se agora os seis livros de contos publicados até hoje, aparece neles, com muita nitidez, a alternância de vozes de que nos fala o teórico russo Mikhail Bakhtin. Dirigindo esta minha preocupação para os contos de Rubem Fonseca, distingo claramente vozes de barbárie e vozes de cultura. Mas o próprio Bakhtin ensina que as vozes, numa ficção que ele denomina ‘dialógica’, só existem mescladas, uma repercutindo na outra, e, com muita freqüência, uma voz se fragmenta ou se junta a outras”. (2000, p. 773)
A crítica Vera Follain em seu livro Os crimes do texto, assim, analisa a obra de
Rubem Fonseca:
No texto literário, o jogo constante de remissões a outros textos fluidifica as margens que delimitariam a sua interioridade, como se a literatura impressa se deixasse contaminar pelo movimento característico das técnicas de hipertextualidade e de navegação na internet, espelhando o desenraizamento espaço-temporal operado, nas sociedades capitalistas pós-indústriais, pela tecnociências, pelo mundo das finanças e pelos meios de comunicação de massa. (2003, p. 11)11,
A observação da autora se coaduna com o pensamento de Bakhtin, no que
concerne ao conceito “hibridização intencional orientada”; ou seja, uma estrutura
resultante do entrelaçamento de diferentes linguagens que caracterizam o “bilingüismo”
9
Mikhail BAKHTIN. Questões de literature e de estética (A Teoria do Romance), São Paulo: UNESP, 2000, p. 137.
10
Boris SCHNAIDERMAN, Contosr reunidos:Rubem Fonseca. São Paulo: Cia das Letras, p. 773.
11
da linguagem romanesca. (BAKHTIN, 2000,118).
A essa estética fundada a partir dos procedimentos do “plurilingüismo”, nós a
denominamos estética antropofágica dos meios, pois em consonância com o
pensamento do antopófago Oswald, o autor “come” todas as linguagens; inclusive a dos
“Roteiros. Roteiros. Roteiros”.12
Os procedimentos concernentes à dissolução de fronteiras entre linguagem literária e cinematográfica consistem no modo como o autor declina a narrativa em primeira pessoa e recorta a linguagem da narrativa de forma similar à linguagem fotográfica ou cinematográfica (FIGUEIREDO, 2003, p. 11) 13.
Com o objetivo de viabilizar a análise, por um método compatível com a
multiplicidade de linguagens, dividimos a trajetória da dissertação em quatro fases: A
primeira corresponde à análise dos três contos; cada análise equivale, respectivamente,
a um capítulo. Em cada um deles, elegemos uma ou duas linguagens-suporte 14 que
funcionam como alicerces estruturadores da narrativa que operam em interface com
outras linguagens periféricas 15 em forma de sistema16; Na segunda fase, equivalente
ao quarto capítulo, faremos um entrecruzamento das linguagens, analisando-as
12
Faço alusão a um fragmento do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, texto publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, ano I, nº I, em maio de 1928. “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros”. Minha intenção é aproximar o caráter fragmentário e experimental dos dois autores.
13
Cf. Vera Lúcia Follain FIGUEIREDO. Os crimes do texto, 2003, p. 11. 14
A acepção do vocábulo suporte, que utilizamos aqui, vem da Álgebra moderna: “conjunto de leementos entre os quais se estabelecem relações e operações que lhes dão as características de grupo, ou de anel, ou de domínio, etc.” (Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 1632).
15
Chamamos de linguagens periféricas àquelas cujas marcas não são dominantes, nos contos, porém são imprescindíveis na configuração de um todo que nos remeterá ao efeito estético.
16
simultaneamente, no intuito de descrever os procedimentos artísticos que configuram a
literariedade e o estranhamento; Na terceira e última fase, concluiremos nosso trabalho
apresentando uma síntese dos aspectos principais da análise, seus resultados e sua
aplicabilidade nos estudos literários semelhantes.
Seguem-se, em descrição, cada um dos contos do corpus desta pesquisa:
A – O conto Lúcia Mc Cartney, correspondente ao terceiro capítulo, foi adaptado
para a televisão, por Geraldo Carneiro, em 1994. O mesmo pode ser comparado ao que
Saul YURRIEVICH (1997, p.109) denomina de colage literário ou estetique du
descontinu et du fragmentaire.17
Esses procedimentos de colagem e de fragmentação do discurso nos levaram,
por dedução, a associá-los com as técnicas da comunicação e com os procedimentos
artístico-formais utilizados pela linguagem cinematográfica contemporânea, pois,
segundo Arlindo Machado, no cinema contemporâneo, “cada plano é um híbrido em
que já não se pode determinar a natureza de cada um de seus elementos constitutivos
tamanha é a mistura, sobreposição, e tamanho é o empilhamento de procedimentos
diversos”. 18
Por outro lado, no plano discursivo, ao notar a ausência de intermediação do
narrador, e em contra parte, a presença de monólogos e diálogos no conto, percebe-se
codificações similares às da linguagem teatral. Diante da dificuldade de estabelecer
fronteiras entre a linguagem teatral e a cinematográfica, tomamos ambas como
17
Saul YURRIEVICH. Júlio Cortazar: mundos e modos. Barcelona: Editora Minotauro, 1997, p. 109. “O colage é posto em voga pelos dadaístas e surrealistas que impõem como representante simbólico da visão moderna, como imagem matriz capaz de figurar esse lábil entrevero de simultaneidades aleatórias, essa caótica superposição de estímulos em que se tem convertido a realidade, realidade que só pode ser representada através de formas estilhaçadas e de heterogeneidade signica”.
18
linguagens-suporte estruturantes da narrativa. Essa abordagem é possível haja vista
que:
Por meio dos parâmetros sistêmicos, podemos falar de qualquer coisa no Universo independentemente de suas características próprias específicas. Assim, ao falarmos das características do cinema e do teatro contemporâneos, podemos falar dessas mesmas características na literatura, pois todo sistema artístico, como todo bom sistema vivo, é um sistema aberto. Todo sistema aberto necessita abrir para um certo meio ambiente [...] ele tem que trocar com esse meio ambiente para poder permanecer vivo.19
A partir dessas duas linguagens de referências (cinematográfica e teatral),
estabelecemos interfaces com outros meios de comunicação (carta e telefonemas), e
outras linguagens artístico-midiáticas periféricas quais sejam: hipertextual 20 e
fotográfica. Em seu artigo “A arte como metalinguagem da mídia”, Arlindo Machado
discorre:21
Quando o artista opera com essas linguagens midiáticas, na maioria das vezes, ele busca interferir na própria lógica das máquinas e dos processos tecnológicos, subvertendo as possibilidades prometidas pelos aparatos e colocando a nu os seus pressupostos, funções e finalidades. O que ele quer é, num certo sentido, ‘desprogramar’ a técnica, distorcer as funções simbólicas, obrigando-as a funcionar fora de seus parâmetros conhecidos e a explicitar os seus mecanismos de controle e sedução. Neste sentido, ao operar no interior da instituição da mídia, a arte a tematiza, discute os seus modos de funcionar, transforma-a em linguagem-objeto de sua mirada metalingüística. (2002, p. 25).
19
Jorge Albuquerque VIEIRA. Intersemiose e Arte. Texto apresentado no Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, organizado pelo Departamento de Astronomia da UFRJ e Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. S.d. Mimeografado.
20
Arlindo MACHADO. Pré-cinema e pós-cinema. 1997, p. 238. “A idéia básica do hipertexto é aproveitar a arquitetura não-linear das memórias do computador para viabilizar textos ‘tridimensionais’, textos dotados de uma estrutura dinâmica que os torne manipuláveis interativamente”.
21
Nos contos de Rubem Fonseca, em análise, observamos que a intenção do autor
é mais construir uma fronteira borrada entre as diferentes linguagens, tendo em vista,
por exemplo, a transliteração da estrutura da linguagem hipertextual para a literária e
vice-versa.
B - O conto O gravador, que constitui o corpus do segundo capítulo desta
dissertação, faz parte do livro intitulado A coleira do cão, adaptado para o teatro por
Roberto Vignatti, em 1977. Embora a linguagem teatral, caracterizada pela
sobreposição de planos discursivos que ora se configuram em diálogos, ora em
monólogos, seja recorrente neste conto, a linguagem-suporte que consideramos
estruturante na narrativa, é a linguagem virtual, já que a fala das personagens é
intermediada pelo telefone e gravada metodicamente, pela personagem Jorge Vale.
Além disso, a personagem simula uma pesquisa de opinião pública para se comunicar
com seu interlocutor, firmando a interatividade de mensagens.
Ao se virtualizar, o corpo se multiplica”. O telefone funciona como um dispositivo de telepresença, uma vez que não leva apenas uma imagem ou representação da voz: transporta a própria voz. O telefone separa a voz (ou corpo sonoro) do corpo tangível e a transmite à distância. Meu corpo tangível está aqui, meu corpo sonoro, desdobrado, está aqui e lá”. (Pierre LÉVY, 2003, p.28). 22
Ou seja, trata-se, segundo MÉRIDIEU, de “um homem artificial híbrido
transformando em figura espectral, em fantasma dividido de si mesmo, nosso corpo
22
desliza no espaço, nutrindo-se do real e de seus quase duplos”.23
Assim concebido, considerando que, forma e conteúdo estão amalgamados, a
multiplicação do corpo implica a multiplicação da forma literária. A linguagem virtual,
suporte estruturante, faz interface com a linguagem teatral, hipertextual e publicitária a
pesquisa de opinião pública, resultando a reordenação do espaço e tempo dentro da
organização textual.
Guiles DEULEZE (2004, p. 60), apoiando-se na teoria bergsoniana, depõe:
A idéia de uma coexistência virtual de todos os níveis do passado, de todos os níveis de tensão, é, portanto, estendida ao conjunto do universo: essa idéia não mais significa apenas minha relação com o ser, mas a relação de todas as coisas com o ser. Tudo se passa como se o universo fosse uma formidável memória 24 .
Acreditamos que, nesse conto especialmente, a linguagem virtual instaura a
tensão de que nos fala Deleuze, pela coexistência de múltiplas linguagens, tempos e
espaços em disjunção.
C - O conto Entrevista, correspondente ao tema do primeiro capítulo, foi
publicado em 1975, no livro intitulado “Feliz Ano Novo”. Sua estrutura está arquitetada
numa narrativa híbrida; o autor subverte o meio literário configurando-o em linguagem
discursiva jornalística; ou seja, uma Entrevista 25. Não obstante, quando a personagem
“M” responde às perguntas feitas pela personagem “H”, percebemos, na maior parte de
23
MÉREDIEU, Florence. Anjos, robôs e mundos virtuais: e o corpo carnal, o que vem a ser? In Galáxias: revista transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura / Programa Pós-Graduado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP – nº 4: p. 110, 2002
24
BÉRGSON, Henri. Matéria e Memória. [trad. Ivone Castilho Benedetti]. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1990, p. 77. Segundo o filósofo, “A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o passado no presente, condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por dupla operação faz com que de fato, percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela”.
25
suas respostas, um relato, pois ao invés de responder, objetivamente, às perguntas de
“H”, a personagem “M” começa a narrar toda a sua trajetória.
Segundo Ricardo Piglia,26 “o relato tem a estrutura do segredo e remete à origem
da palavra: secenere, pôr à parte, ou seja, aquilo que está escondido, deparado do
conjunto da história, reservado para o final. Não é um enigma, é uma figura que se
oculta”.
Desse modo, a linguagem jornalística também é subvertida, pois, trata-se de
uma linguagem que requer objetividade e tempo presente; todavia, quando a
personagem “M” narra toda sua trajetória, em retrospectiva, a mesma utiliza a
subjetividade e o tempo passado. Temos, portanto, a linguagem jornalística como
código estruturante da narrativa, que faz interface, ao mesmo tempo, em tensão, com a
linguagem do relato e com a linguagem teatral. A associação que fizemos com o teatro,
deve-se também, à presença fundamental do diálogo 27 e à ausência mediadora do
narrador. Esta reflexão referente à estruturação e à metodologia transformadora do
gênero meta-artístico do conto nos suscita a formulação de quatro hipóteses, a saber:
1 – O conto Entrevista tem como dominante discursiva a função programática,
que contrapõe e neutraliza a equação narração-descrição, contribuindo com o efeito
estético da leitura;
2 – O conto O gravador experimenta a oralidade na virtualidade do processo de
26
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Cia das Letras, 2004 , p. 103.
27
comunicação entre falantes em favor da cronotopia plural da mensagem literária;
3 – O conto Lúcia Mc Cartney exibe uma estrutura análoga à da linguagem
teatral e cinematográfica, em favor da visibilidade corporal;
4 – Os contos de Rubem Fonseca compõem um sistema complexo entre a
literatura e as linguagens de massa, integrando-as, literariamente, com a cultura e a
tecnologia do conto em mutaçõo.
Uma vez apresentadas as hipóteses de trabalho para compreensão do gênero
do conto, definimos a metodologia de abordagem comparatista 28 sob três métodos,
defendidos pelo lógico e filósofo norte-americano Charles S. Peirce (1839-1914):
abdutivo, dedutivo, indutivo, considerando-se a complexidade estrutural do discurso
literário e qualidade estética dos corpus em descoberta.
Para nós, o método comparativo se faz coerente e adequado neste estudo, em
concordância com a afirmação de Tynianóv:29 “O estudo isolado de uma obra não nos
dá a certeza de falarmos corretamente de sua construção, de falarmos da própria
construção da obra”.
28
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Editora Cultrix, 1990, p. 23. “O método adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, o exame cuidado e direto da matéria em contínua COMPARAÇÃO da ‘lâmina’ em espécime com outra.”
29
CAPÍTULO I
LINGUAGENS ENTRE[VISTAS]
“Dirigindo minha preocupação para os contos de Rubem Fonseca, distingo claramente vozes de barbárie e vozes de cultura”
(Boris Schnaiderman)
1. Interfaces ou intervozes do narrador
A estrutura do conto Entrevista está arquitetada por uma narrativa híbrida 30 cujo
enunciado31 evidencia marcas de subversão do gênero literário, que ora se configura
em linguagem teatral, ora se configura numa linguagem discursiva jornalística, ou seja,
numa Entrevista. Esta configuração híbrida da narrativa nos rememora as palavras
de Ezra Pound: “o artista é antena da raça”. Nesta condição, o artista tem consciência
de que o mundo pós-moderno se constitui de formas e tempos simultâneos
corroborados, sobretudo, pela tecnologia da comunicação. Essa tecnologia, segundo o
geógrafo Milton SANTOS:
Permite inovações que aparecem, não apenas juntos e associados, mas também para serem propagadas em conjunto. Isto é peculiar à natureza do sistema, em oposição ao que sucedia anteriormente,
30
BAKHTIN, Mikhail.. Questões de Literatura e estética, 2000, p.112. “Denominamos como construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas”.
31
quando a propagação de diferentes variáveis não era necessariamente encadeada”. (1985: p. 27).
A propagação dessas inovações é, portanto, captada pelo escritor, “antena da
raça”, e manifestada em diversos aspectos do discurso32 narrativo do conto de Rubem
Fonseca, quer seja rompendo as fronteiras do gênero literário, quer seja inovando as
categorias estruturantes da narrativa. À guisa de exemplo, tomaremos para análise, o
trecho que segue:
M – Dona Gisa me mandou aqui. Posso entrar? H – Entra e fecha a porta.
M – Está escuro aqui dentro. Onde é que acende a luz?
H – Deixa assim mesmo. (p. 444).
Essa alternância das falas de H e M no decorrer de todo o conto nos trouxe
alguns questionamentos: Os emissores dessas falas são ambos, personagens,
narradores-personagens, ou poderemos eleger um, como narrador, e outro, como
personagem?
Que tipo de narrador haverá num conto que se apropria das técnicas da
linguagem jornalística especificamente da entrevista, cuja característica discursiva “é
geralmente concebida como uma técnica de conversação utilizada enquanto
instrumento metodológico para investigação, obtenção de dados ou informações”
(BUENO: 2002, p. 9).
Ao refletir sobre o discurso da narrativa, Genette nos lembra que no livro III, da
República, Platão define dois modos narrativos em oposição:
32
Um primeiro em que o poeta ‘fala em seu nome sem procurar fazer-nos crer que é um outro que não ele quem fala”. Ou seja, narrativa pura, ou um segundo em que o poeta ‘se esforça por dar a ilusão de que não é ele quem fala’, mas uma personagem, se se trata de falas pronunciadas. Ou seja, imitação ou mimese, segundo Platão”.33
Outrossim, Henry James (final do século XIX), conceitua dois tipos de narrativas:
showing (mostrar) vs. Telling (contar) 34. Ao comentar essas denominações, Genette
depõe:
Do ponto de vista analítico, há que se acrescentar que a própria noção de Showing como imitação ou representação narrativa é perfeitamente ilusória: contrariamente à representação dramática nenhuma narrativa pode ‘mostrar’ ou imitar a história que conta”.35
Embora reconheçamos os elementos estruturais específicos de cada arte, é
preciso atentar para aquilo que Mikhail Bakhtin36, ao tratar da problemática da
contemporaneidade e da cultura, denomina “secularização da cultura”. Essa
secularização é, em específico, caracterizada por procedimentos artísticos que,
nutrindo-se do passado, fundem e dissolvem as fronteiras, anteriormente bem
demarcadas dos gêneros das obras literárias. Outrossim, o conto de Rubem Fonseca
pode ser configurado como uma narrativa que dissolveu fronteiras, tornando-se uma
narrativa de gênero híbrido haja vista que:
O domínio da arte hoje, é o domínio da intersemiose. A obra de arte é uma emergência sistêmica que envolve vários níveis de textualidade, ou seja, a confluência de vários textos – diversos subsistemas sígnicos,
33
GENETTE, Gerard Op. Cit. p. 160-161.
34
JAMES apud GENETTE, p. 162. Op. Cit.
35
GENETTE, Gerard. Op. Cit. p. 162. .
36
de naturezas muitas vezes bastante diversificadas, partilham um mesmo espaço histórico, através de conectividade e coesão e cada um exibindo propriedades ou funções partilhadas, funções essas que só ganham sentido na coerência do todo sistêmico. 37
Neste sentido, podemos afirmar que, tanto a linguagem teatral, quanto a
jornalística, são subsistemas sígnicos que migraram para a linguagem do conto
(Entrevista). Assim, do mesmo modo que num processo migratório ou imigratório dos
povos, há a contaminação das culturas e de suas respectivas línguas, os gêneros
artísticos também têm suas estruturas modificadas quando da existência da confluência
de linguagens. Silviano Santiago afirma que:
o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitudes semelhantes à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante (1989, p. 39).
Nos parece que no conto de Rubem Fonseca, há um narrador similar ao descrito
por Santiago. A personagem H, (suposto narrador), está sentada num espaço fechado
e, em forma de entrevista, conduz o discurso da personagem M, de modo a incitá-la a
contar a história.
Assim, apreendemos, na narrativa, várias enunciações dirigidas pelo narrador
discursivo, ordenador do enunciado. Atribuímos a função de direção da narrativa à
personagem H, haja vista a assimetria de ordem lingüística entre o discurso das duas
personagens. Vejamos um exemplo:
37
H – Por que você veio?
M – Há, há, há, ai meu Deus! Que coisa... só rindo. H – Por quê?
M – você quer saber? H – Quero.
M – Meu marido. Vivemos quatro anos felizes, felizes até demais. Depois acabou. (p. 444).
Ainda que neste trecho do conto, tenhamos a estrutura sintática do diálogo, que
nos dá a impressão de simetria lingüística, há que se observar a assimetria marcada
pela linguagem precisa e imperativa de H, em oposição à linguagem oscilante e
submissa de M. Nestes termos, H é o narrador-personagem que articula as estratégias
da narrativa, enquanto M é o narrador-personagem que executa o projeto narrativo de
H. Ou seja, ambos interagem no discurso.
O resultado desse projeto constitui uma linguagem estilizada que rege a
enunciação plural midiática, teatral, corporal, poética, imagética, sonora cifrada por
muitos códigos. Ou seja, uma linguagem híbrida que reúne, num único tronco verbal
três componentes essenciais: linguagem – corpo – expressão.
De forma similar a Platão, Otto LUDWING estabelece a diferença entre a narrativa
propriamente dita e a narrativa cênica, a saber:
No primeiro caso, o autor ou narrador imaginário dirige-se aos auditores: a narração é um dos elementos que determinam a forma da obra, por vezes o elemento principal; no segundo caso, o diálogo dos personagens está no primeiro plano e a parte da narrativa reduz-se a um comentário envolvendo e explicando o diálogo, isto é, ela apóia-se em indicações cênicas. Este gênero de narrativa lembra a forma dramática, não só pelo acento posto ao diálogo, mas também pela preferência dispensada à apresentação dos fatos e não à narração: Captamos as ações não como contadas, mas como se elas se produzissem diante de nós em cena. 38
38
No conto Entrevista, não há sequer, as intermediações das indicações cênicas; o
autor não nos apresenta um roteiro para teatro; ele nos coloca no próprio teatro. Um
teatro que já se encontra com as luzes apagadas. M – “Está escuro aqui dentro”. Nesse
momento, a narrativa adquire uma estrutura de (showing). Não obstante, num segundo
momento, ao contar sua história em retrospectiva, a personagem M constrói a narrativa
em forma de (telling). O autor funde portanto, as duas estruturas.
Conforme dissemos anteriormente, a narrativa está estruturada em diálogos.
“Falando-se de diálogo, fala-se de efetivação e progresso de semiose; conotando,
imediatamente, seu caráter comunicativo. Fala-se também, contudo, de atrito,
resistência e risco de insucesso”.39
Toda a narrativa é permeada por atrito e tensão. Um exemplo disso é a
insistência da personagem M: “Onde é que acende a luz? Ao que H responde: “Deixa
assim mesmo”. As personagens permanecem a narrativa inteira no escuro. Dessa
forma, o autor constrói uma unidade de forma e conteúdo, pois “a iluminação busca a
dinâmica do movimento, que é algo que relaciona corpo-espaço-tempo” (CAMARGO,
2000, 131).
Ao manter a luz apagada, o autor retrai a dinâmica do movimento do corpo físico
evocando-o pela palavra que se faz carne, coisa ou corpo. “Às vezes, o movimento é
visível, mas não queremos prestar atenção exatamente nele. Não nos fixamos na sua
ação física, mas na sua expressão e no que está sendo dito” (CAMARGO, 2000, 131).
Em nenhum momento do conto Entrevista, o autor descreve o corpo das
personagens; só “escutamos” suas falas, contudo a alternância de diálogos sem
39
intermediações, as frases curtas, imperativas e incisivas de H, os sons fricativos das
palavras “deixa assim mesmo” e a pontuação que corta o discurso são similares a golpes, atritos ou a luta de corpos. Na arte da performance, “O corpo vivo e carnal, o
sangue, a carne e as vísceras invadem a cena” (Cf. Regina SILVEIRA, 2002, p. 104).
Vejamos a seguir:
“M – Dei vários golpes com o caco de garrafa no peito dela, com tanta força que
saiu o nervo para fora, de dentro do seio. Quando viu aquilo, meu marido me deu um
soco na cara, bem em cima do olho; só por um milagre não fiquei cega”. (p. 445).
Embora este trecho seja narrado em retrospectiva, (telling), a sensação que
temos é de que a cena dramática se desenvolve diante do espectador. A narrativa toma
aspecto de showing; de performance 40. “O trabalho do corpo nas performances institui
um contato direto entre o emissor e o receptor sem a intermediação técnica [...] A
experiência da proximidade é intrínseca na performance” (GLUSBERG: 2003, p. 59) 41.
Para provocar esse efeito de proximidade, o autor recorre ao enunciado
performativo42 e ao discurso direto, curto e incisivo em quase toda a narrativa.
O discurso direto é uma estratégia discursiva escolhida pelo sujeito falante por dois motivos principais: porque é eficaz para imprimir o efeito de sentido de verdade, de realidade, de objetividade que a situação exige, ou porque o momento interacional em sua plenitude aceita, ou exige, que o conteúdo venha (LEITE, 2005, p. 85) 43.
40
GLUSBERG, Jorge. A arte da performace. Dão Paulo: Perspectiva,. 2003, p.72). “É interessante voltarmos à etimologia da palavra performance, um vocábulo inglês que pode significar execução, desempenho, preenchimento, realização, atuação, acompanhamento, ação, ato, explosão, capacidade ou habilidade, uma cerimônia um rito, um espetáculo, a execução de uma peça de música, uma representação teatral ou um efeito acrobático”.
41
GLUSBERG, Jorge. Op. Cit. p. 59..
42
ILARI, R. e GERALDI, J. Semântica. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 90. “Performativo:
1. Verbo – : verbo cujo uso na primeira pessoa e num tempo presente resulta num enunciado performativo. 2. Enunciado – : enunciado cuja utilização em condições contextuais apropriadas vale por um ato do locutor” .
43
Mesmo quando a personagem M relata sua história transcorrida em um tempo
pretérito, o efeito de performance ou showing é mantido. Sobre a manifestação do
tempo na narrativa, Benedito Nunes44 afirma que constitui um processo de “integração
do tempo à matéria do romance, principalmente através do cronotopo do fluxo, que
constrói uma perpétua concordância discordante entre presente, passado e futuro,
permitindo a presentificação do passado num presente imóvel, intemporal”.
Esse efeito de presentidade faz com que a Literatura, arte que se manifesta no
sistema verbal, trave diálogo com a performance teatral, cuja característica fundadora é
a mimese em tempo presente. O fato é que “Os poetas são homens que se recusam a
utilizar a linguagem [...] Na verdade o poeta se afastou por completo da
linguagem-instrumento; escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as
palavras como coisas” (SARTRE, 1999:, p. 13). 45
De forma similar, Glusberg afirma: “O performer “ é o seu próprio signo; ele não é
signo de alguma outra coisa, mesmo que o possa ser num plano secundário” (2003, p.
73). O autor corrobora a idéia: “na performance se perde a densidade do significado do
signo e se conserva o significante” (Op. Cit. p.112).
Ao relacionar poder e linguagem, Roland Barthes atribui à Língua, um caráter
fascista e conclui:
Não pode haver liberdade senão fora da linguagem. O que permite ouvir a Língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem é a literatura. As forças de liberdade que
44
NUNES, Benedito. Palavras da Crítica, p. 353.
45
residem na Literatura dependem do trabalho de deslocamento que exerce sobre a Língua (BARTHES, 1980, p. 24) 46.
Essa força de liberdade ou deslocamento de que nos fala Barthes, se manifesta
no conto de Rubem Fonseca, na medida em que o autor rompe com o registro47
convencional da língua literária; ou seja, a língua escrita. Segundo Matoso Câmara: A
língua escrita se apresenta em vários níveis, de acordo com a finalidade social para que
opera. A sua manifestação mais alta é a LÍNGUA LITERÁRIA, isto é, uma linguagem
escrita que se destina à expressão da literatura (CÂMARA, 1997, p.109) 48.
No conto de Rubem Fonseca, tanto há marcas da linguagem escrita, quanto há
marcas da linguagem oral. As linguagens não se opõem; elas se fundem. Do resultado
dessa fusão surge um registro híbrido; Talvez, esse seja, o procedimento que Rubem
Fonseca encontrou para criar o “registro especial” de que nos fala Mattoso Câmara.
Vejamos alguns exemplos:
1. M – Tem alguma coisa para beber? Eu estou com vontade de beber.
Ah, estou tão cansada!
2. H – Nesse armário aí tem bebida e copos. Sirva-se. (p. 444).
46
BARTHES, Roland. Aula. [trad. Leila Perrone Moisés]. São Paulo: Cultrix, 1980, p. 24.
47
CÂMARA, Op. Cit. 207. “Registro: termo adotado pela escola (v) lingüística de Londres, para designar as mudanças no uso da língua por parte de um falante, conforme a situação social [...] O registro da língua escrita diverge do da língua oral, e na literatura há um registro especial”.
48
No primeiro exemplo podemos apontar alguns traços de oralidade quais sejam: o
marcador49 de hesitação “ah”, a repetição do vocábulo “beber”, o uso de dêixis50
presente tanto na primeira pessoa do singular do pronome (eu), quanto no verbo estar
na primeira pessoa do singular (estou). “O tempo presente do verbo, em um dos seus
empregos mais típicos significa precisamente que a ação expressa pelo verbo é
simultânea ao momento da fala” (ILARI & GERALDI, 1987, p. 65).
No segundo exemplo, temos o pronome demonstrativo (nesse) seguido do
vocábulo “aí”. Vale ressaltar que:
O demonstrativo tem a função de identificar algum objeto presente na situação de fala, como um dos assuntos a que a interação verbal diz respeito [...] o demonstrativo vem idealmente acompanhado de um gesto de apontar, a lingüística moderna chama essas palavras e formas de dêiticos, ou seja, “palavras que mostram” (ILARI & GERALDI, 1987, p. 66).
Se considerarmos, mesmo que tenhamos dado esses exemplos, que a “própria
noção de showing é ilusória”, como afirmou Genette, podemos ainda, associar esta
narrativa ao que o teórico conceituou “narrativa de falas”. Segundo Genette:
O enunciado, nessas narrativas, torna-se mais breve e mais próximo do puro acontecimento [...] A presença do narrador é muito sensível, e na própria sintaxe da frase, para que o discurso se imponha com a autonomia documentária de uma citação”.51 .
49
URBANO, Hudenilson. Marcadores conversacionais. In: Análise de textos orais. PRETI, Dino (Org.). p. 114). “Os marcadores conversacionais são elementos lingüísticos que estruturam o texto, considerado não só como uma construção verbal cognitiva, mas também como uma organização interacional interpessoal. (Hudenilson HURBANO in Análise de textos orais, 2003, p. 114).
50
ILARI & GERALDI. Op. Cit. p. 87 “Dêixis: processo pelo qual se determina o referente de uma expressão a partir de elementos da situação extralingüística em que a expressão é atualizada. (Os pronomes eu e tu remetem por dêixis ao falante e ao ouvinte.) (ILARI & GERALDI, 1987, p. 87)
51
O crítico observa, ainda, que uma das grandes vias de emancipação do
romance moderno terá consistido em levar ao extremo, ou ao limite, essa mimese do
discurso, diluindo as últimas marcas da instância narrativa e dando logo de imediato, a
palavra à personagem”.52 (Cf. Gérard Genette, 1995, p. 172).
Ao diluir as marcas da instância narrativa, o texto literário estabelece uma maior
semiose com a linguagem teatral e com a linguagem discursiva jornalística do tipo
entrevista. Aliás, a própria entrevista “pode ser considerada um dispositivo que se
desdobra em muitos” 53 (BUENO: 2002, p. 127).
Nesta análise, num primeiro momento, buscaremos compreender os elementos
estruturais da entrevista, para que a partir daí, possamos compreender a relação do
texto literário – conto, com a linguagem jornalística – entrevista.
Um dos vários aspectos que, segundo Bueno, compõe uma situação de
entrevista, seja ela qual for, é a assimetria; condição estrutural da narrativa.
Na assimetria, está implícita uma negação, negação de simetria, que no grego quer dizer ‘proporção justa’. Há um par atividade/passividade que fica indicado na terminalidde dos vocábulos dor e entrevista-do. Um inicia o movimento, desencadeia o processo ao qual o outro, em princípio, se submete. Sejam quais forem as formas técnicas adotadas, mesmo as que indicam que o entrevistador ‘deve’ se apagar no diálogo, a condução é sempre função do entrevistador” (BUENO: 2002, p. 22).
A autora afirma ainda, que os olhos perscrutadores buscam através da entrevista
realizar uma verdadeira ‘radiografia’ do corpo ou da alma e caso seu interesse seja
revelar o mais fidedigno possível, se convém que nem tudo apareça, que nada apareça.
(Cf. Cleuza Maria de Oliveira. Entre-vista: espaço de construção de subjetividade).
52
Op cit.. 1995, p.170.
53
Conforme vimos, no trecho do conto, a personagem H não permite que M
acenda a luz. Neste caso, a ausência de luz é um elemento que articula a estrutura das
três modalidades de discurso a que nos propomos analisar: a linguagem Literária,
teatral e jornalística.
No conto Entrevista observa-se a homologação da técnica jornalística na
construção do narrador homodiegético 54, sobretudo, na variedade em que o narrador
desempenha o papel de observador ou testemunha. Daí o fato de nomearmos um
narrador-personagem (aquele que, de forma ativa, conduz a narrativa, mas se coloca
na condição de observador) e um personagem-narrador (aquele que, de forma passiva,
é observado e conta a narrativa).
Genette também nos chama atenção para uma “dissimetria” na figura do
narrador, pois segundo, ele, “o narrador pode a todo instante intervir como tal na
narrativa” (GENETTE, op cit.). Do mesmo modo, age o entrevistador numa situação de
entrevista.
Outro aspecto que nos parece similar às duas linguagens, diz respeito à função
do entrevistador e do narrador. Para estabelecer as funções do narrador, Genette parte
das funções da linguagem definidas por Roman Jakobson e distribui, segundo os
diversos aspectos da narrativa, as funções do narrador, assim como Jakobson distribuiu
as funções da linguagem.
Genette55 (1995: p. 254), sintetiza os aspectos da narrativa em três:
54
Genette distingue dois tipos de narrativas: uma de narrador ausente da história que conta, a outra de narrador presente como persona na história que conta. “No primeiro tipo nomeio heterodiegético, e o segundo homodiegético”. O autor ressalva: A ausência é absoluta, mas a presença tem os seus graus. Haverá que distinguir no interior do tipo homodiegético duas variedades: uma em que o narrador é o herói da sua narrativa, e a outra em que não desempenha senão um papel secundário, de observador ou de testemunha” (Cf. Discurso da narrativa, 1995, p. 214)
55
O primeiro desses aspectos é, evidentemente, a história e a função que aí está conectada é a função propriamente narrativa, da qual nenhum narrador pode desviar-se sem perder a sua qualidade de narrador, e a que pode muito bem tentar – como fizeram certos romancistas americanos – reduzir o seu papel.
Na entrevista, o entrevistador também não pode desviar-se de sua função. Não
obstante, assim como na narrativa, há procedimentos técnicos que podem reduzir o seu
papel. Um exemplo desse procedimento é o uso da entrevista “Não-diretiva” 56.
No conto Entrevista, o papel do narrador se imiscui na fala da personagem H,
em primeira pessoa. Assim como “A entrevista jornalística transcorre sob a aparência
de um “bate-papo” informal” (BUENO: 2000, p. 24), a personagem H também dissimula
sua intenção, porém direciona todo o discurso.
O segundo aspecto defendido por Genette, é “o texto narrativo”. Sobre o qual, o
autor depõe:
o narrador pode referir-se por um discurso de alguma maneira metalingüístico para marcar as suas articulações, conexões, inter-relações, em suma, a organização interna: esses ‘organizadores’ do discurso, a que Georges Blin chamava ‘indicações de regência, relevam de uma segunda função, que se pode apelidar de função de regência”. (GENETTE, 1995, p. 254. Op cit.).
Podemos perceber esses organizadores do discurso em vários momentos da fala
da personagem H:
H – Sei... Continua.
H – Você fugiu gritando por socorro. Continue.
56
H – Continue. (p. 445).
Essas expressões nos dão uma falsa impressão de que a palavra está sendo
cedida à personagem M; inclusive, proporcionalmente, a personagem M fala muito mais
que a personagem H. Não obstante, isto se dá, apenas, no plano sintático ou,
quantitativamente. No plano semântico, porém, essa proporcionalidade se dá de forma
inversa. O uso do verbo no imperativo conota o poder da personagem H; é ela quem
direciona todo o discurso.
A fala excessiva de M é resultado da eficiência desses marcadores pois, H
consegue obter todas as informações. Ou seja, o narrador consegue montar toda a
narrativa. Voltar-se, portanto, para ela. Do mesmo modo, na entrevista jornalística,
consciente da função dos marcadores de regência, o entrevistador conduz o discurso
do entrevistado. “O entrevistador lá está precisamente para controlar o grau de
digressão aceitável e reconduzi-lo, se for o caso, ao problema colocado” (THIOLLENT,
1982, p.173).
O terceiro aspecto, segundo Genette:
É a própria situação narrativa, cujos protagonistas são o narratário, presente, ausente ou virtual, e o próprio narrador. A orientação para o narratário a preocupação de manter um contato ou diálogo, corresponde a uma função que lembra a função ‘fática’ ou conativa (agir sobre o destinatário), de Jakobson(GENETTE, 1995, p. 254).
Acreditamos que a acepção “conativa” é mais condizente na ocorrência de
entrevista do tipo não-diretiva, uma vez que:
qual o sujeito só tem o direito de responder, no melhor dos casos, quando lhe é perguntado: o direito à palavra tornou-se um simples dever de respostas (THIOLLENT: 1982, p. 183).
Conforme analisamos, no trecho do conto, citado anteriormente, é este
procedimento que verificamos na relação das personagens H e M. Ao utilizar, no conto,
os mesmos procedimentos da linguagem jornalística, o autor produz um efeito; ou seja,
consegue subverter a estrutura do texto literário numa entrevista e vice-versa.
Até agora, falamos da função fática na relação narrador → “narratário” 57,
entrevistador → entrevistado; entretanto, quando nos referimos à categoria do efeito,
entramos numa outra dimensão da função fática ou conativa; trata-se da relação autor
→ leitor.
Outrossim, o objetivo da função fática na relação autor → leitor, está presente na
assertiva de Tchekhov: “o texto deve ser claro – o leitor deve entender, de imediato, o
que o autor quer dizer. Deve ser forte – [...] prendendo-lhe a atenção, não deixando que
entre uma ação e outra se afrouxe este laço de ligação” 58 (TCHEKOV apud GOTILIB,
2003, p. 43).
No conto Entrevista, é possível observar esses mesmos procedimentos
mencionados por Tchekhov. Além da linguagem clara, para prender a atenção do leitor,
o autor recorreu, conforme afirmamos anteriormente, a procedimentos artísticos que
nos dão a impressão de que as personagens falam diante de nós. Dessa forma, o autor
evita que “entre uma ação e outra se afrouxe o laço de ligação” como afirmou
TCHEKHOV.
57
GENETTE, Gerard. Op. Cit. p. 258 “Como o narrador, o narratário é um dos elementos da situação narrativa, e coloca-se, necessariamente, no mesmo nível diegético; não se confunde com o leitor (mesmo virtual)”.
58
Para Edgar Allan Poe, “a brevidade deve estar na razão direta da intensidade do
efeito pretendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido,
absolutamente, para a produção de qualquer efeito” (POE, 1981, 104) 59.
Os procedimentos que caracterizam a “brevidade”, no conto de Rubem Fonseca,
estão presentes na estrutura sintática, quais sejam: o uso dos verbos no modo
imperativo que podem conotar ordem ou fechamento do discurso, redução da fala do
narrador, e uso freqüente do ponto final que reforça os procedimentos anteriores.
Quanto à intensidade do efeito o autor a constrói a partir de três elementos
básicos: O primeiro está relacionado à atmosfera obscura ou ambígua do
texto-ambiente, já conotada no título [Entre]vista e na fala da personagem: M: “Está escuro
aqui dentro”.
Ao comentar sobre o jogo de aparências numa situação de entrevista, Cleuza
Bueno60 pergunta: “Mas o que há para além da aparência do véu, da pessoa?
Certamente não é uma coisa escondida, é o olhar”. No conto Entrevista, a personagem
M está privada do olhar; desse modo, o autor intensifica o efeito de tensão.
O segundo, diz respeito à ameaça de morte presente na fala de M: “me disseram
que ele anda atrás de mim e carrega um punhal para me matar”. A tensão mantém-se
suspensa, corroborada pelas frases curtas e imperativas de H e pelo diálogo direto das
personagens. A leitura se dá em tensão, pois o leitor desconfia que H é o marido de M,
do qual ela havia fugido.
59
POE, Edgar Allan. Filosofia da Composição, 1981, p. 104.
60
O terceiro elemento refere-se à paixão, cujas acepções, no contexto da narrativa,
estão associadas à obsessão, arrebatamento, cólera ou disforia. A partir da unidade
desses elementos, o autor constrói o que Poe chama de ‘tom’ da narrativa “ – o tom da
morbidez – que tende para o efeito dramático.
2. A função do riso: marcador de linguagem oral
Conforme vimos, em várias passagens do conto, o narrador-personagem faz
várias perguntas a personagem M à maneira de uma entrevista. Ao perceber o caráter
não-natural ou tecnicista da linguagem, a personagem M comenta: “Parece que estou
num teatro, há, há...“
Para explicar essa reação da personagem recorremos ao pensamento do filósofo
Henri BERGSON, que assim, explica o riso: “se ri daquilo que pode haver de rígido,
pronto, mecânico no gesto, nas atitudes e mesmo na fisionomia. Ainda segundo o
autor, este tipo de rigidez se observa também na linguagem” (Cf. H. BERGSON, 2001,
p. 83).
No contexto da narrativa, está subentendido que a personagem M vai ao encontro
de H enviada por uma cafetina. Nessa condição, M não entende o interrogatório ao qual
está sendo submetida, portanto, M ri. “O que há de risível é a rigidez mecânica quando
seria de se esperar a maleabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pessoa” (H.
BERGSON: 2001, p. 8).
Além disso, sua função, ali, requer uma exposição muito maior da linguagem
narrativo. Assim, a narrativa se constitui na tensão entre a linguagem do corpo e a
linguagem narrativa.
Paradoxalmente, o riso é o responsável pela coexistência dessas duas forças haja
vista que “O riso tem justamente a função de reprimir as tendências separatistas. Seu
papel é corrigir a rigidez, transformando-a em flexibilidade, readaptar cada um a todos,
enfim, aparar as arestas” (BERGSON, 2001, p. 132).
O riso da personagem M não é um riso puro ou desinteressado. É um riso
intencional; irônico. Seu objetivo é chamar atenção para si mesma; para sua
performance. Segundo Glusber:
toda performance se apóia numa certa auto-ironia, numa certa autocrítica: o que se aplica a própria sujeição aos programas institucionalizados. Desse modo o performer cria sobre a arena da performance uma clara consciência de seus atos imprevistos e de seus fracassos. Porque o discurso do performer está cheio de buracos e fissuras” (2003, p. 78)
A consciência e a auto-ironia do performer se manifesta no discurso de M, quando
diz:
M - Parece que estou num teatro, há, há... (p. 445).
Essa construção sintagmática mostra, não só, a consciência de transição entre
gêneros, mas também ironiza a rigidez das linguagens. Destarte, o riso hibridiza os
gêneros; com ele, emerge a consciência de que há um gênero teatral, montado sobre o
gênero discursivo jornalístico, a entrevista, articulados pelo narrador-personagem, H,
para evocar o gênero narrativo que vai se constituindo no processo discursivo da
Gerard Genette (1995) estabelece três níveis narrativos: O diegético (universo da
narrativa primeira), o metanarrativo (narrativa na narrativa) e o metadiegético (universo
da narrativa segunda).
No conto Entrevista, o riso é o elemento que marca esse nível metanarrativo,
sobretudo, quando a personagem M, por meio do riso, chama atenção para a rigidez do
processo discursivo estabelecido por H.
Segundo Bakhtin, “Tudo o que é autenticamente grande deve comportar um
elemento de riso, caso contrário fica ameaçador, aterrorizante ou grandiloqüênte e, em
qualquer caso, limitado”. (2000, p. 374). Quando H pergunta a M porque ela veio para o
Rio de Janeiro, M responde: Há, há, há, ai meu Deus! Que coisa... só rindo. (p. 444).
Essa atitude da personagem condiz com as palavras de Bakhtin tendo em vista
que H havia se recusado a acender a luz e a revelar seu nome. Com isso, criou-se um
ambiente tenso. Por meio do riso, a personagem tenta relaxar a tensão ou “aparar as
arestas” diante do interrogatório a que está sendo submetida por H.
Do ponto da análise lingüística, “o riso é um marcador conversacional
não-lingüístico ou paranão-lingüístico cuja função é ajudar a construir e a dar coesão e coerência
ao texto falado, especialmente dentro do enfoque conversacional” (Cf. Hudinilson
URBANO: 2003, p.100).
Desse modo, podemos deduzir que o riso tanto pode ter um caráter mais
performático, por ser paralingüístico, quanto pode constituir-se num elemento
configurador de metalinguagem haja vista sua função de dar coerência e coesão ao
texto falado.
As gramáticas tradicionais, normalmente voltadas para a língua escrita, não tem contemplado os marcadores paralingüísticos ou os têm estudado enviesadamente. Por não se enquadrarem nos critérios de classificação das dez classes de palavras ou por não desempenharem funções exclusivamente lógicas” (URBANO Op cit., p. 99).
Diante de tais assertivas, deduzimos, portanto, que o riso é um elemento de
natureza transgressora que dilui as fronteiras entre o oral e o escrito; a ficção e a
realidade; entre a arte literária e a teatral; entre a linguagem literária e a jornalística. Em
síntese, rompe a fronteira entre a linguagem poética e a referencial.
3. O Cronotopo da barbárie
Numa abordagem cronológica de ordem morfo-sintática, o conto Entrevista se
constitui como uma narrativa que sobrepõe três planos temporais. A saber: O tempo
pretérito, marcado pela desinência temporal do verbo mandar presente na sentença: M
– Dona Gisa me mandou aqui. Posso entrar? O tempo presente, marcado pela
desinência temporal do verbo poder e o tempo futuro, marcado pela conjunção temporal
(depois), presente na sentença:
H – Depois eu digo.
Não obstante, é a perspectiva semântica do tempo que nos chama a atenção haja
vista que a semântica constrói o sentido da função temporal dentro de um todo orgânico
e cultural. À guisa de exemplo, vejamos:
H – Por que você veio?
M – Há, há, há, ai meu Deus! Que coisa... só rindo. H – Por que?
M – Meu marido. Vivemos quatro anos felizes, felizes até demais. Depois acabou. (p. 444).
Vimos no primeiro exemplo, que a conjunção temporal “depois”, tinha de fato, o
sentido de devir “Depois eu digo”, entretanto, nesse último exemplo, o sentido de devir
é anulado pelo verbo seguinte “depois acabou”, e redimensionado para o sentido de
tempo como aniquilador, bárbaro e efêmero.
Para Nietzsche, o tempo aniquila, devora seus filhos, é a destruição [...] Nada
pode durar, tudo está submetido à mudança, tudo se consome. O olhar que dirigimos
para o tempo, com o modo do sofrimento, não enxerga nele senão a unicidade e a
irreversibilidade, o desaparecimento daquilo que existe, a fuga, o caminho para o nada”
(NIETZSCHE apud CONCHE, p. 183).
Essa concepção nietzscheniana do tempo pode ser demonstrada no plano do
conteúdo, na seguinte passagem do conto:
M – Eu me tranquei dentro do quarto, enquanto meu marido quebrava todos os móveis da casa. Depois ele arrombou a porta do quarto e me jogou no chão e foi me arrastando pelo chão enquanto me dava pontapés na barriga. Ficou uma mancha de sangue no chão, do sangue que saiu da minha barriga. Perdi nosso filho. (p. 445).
Do ponto de vista formal, essa concepção do tempo se manifesta no conto
Entrevista, na medida em que o autor viola o sistema literário configurando-o na forma
da linguagem discursiva jornalística (entrevista) e na forma da linguagem performática
teatral. É como se o autor negasse a reversibilidade ou a unicidade do sistema literário
puro. Se nada pode durar; o sistema literário, como todo sistema, terá, no mínimo, que
Embora Jakobson tenha afirmado que “a linguagem literária é uma violência contra
a fala cotidiana”, ou seja, uma violência voltada para fora, no conto Entrevista, a
violência insurge contra o próprio sistema.
Para corroborar essa violência, o autor recorre à forma da situação de entrevista
jornalística que, segundo Bourdieu (1997), é, também, “uma violência simbólica no que
se refere aos efeitos produzidos pela unilateralidade estabelecida em decorrência da
assimetria e da arbitrariedade” (Cf. BOURDIEU apud BUENO, 2002, p. 24).
Outro procedimento que ratifica a violência interna diz respeito a mutilação dos
corpos e dos nomes das personagens. São seres desprovidos de rosto e de nome. A
identidade das personagens foi reduzida a uma letra. Ainda que as letras H e M
correspondam, respectivamente a homem e mulher, não deixam de ser substantivos
comuns ou genéricos. A identidade das personagens foi massificada.
A linguagem performática foi a forma à qual o autor recorreu para corroborar o
caráter efêmero do tempo uma vez que a apresentação da performance se dá ao vivo e
quando se repete é sempre uma nova experiência. “O performer mede seu próprio
tempo, seu tempo consciente, através da sensitividade do corpo humano. Por meio
desse tempo de consciência, pode alcançar o outro” (GLUSBERG, 2003, p. 111).
Vejamos no trecho que segue, o modo como a personagem expõe essa consciência da
efemeridade do tempo:
“M – Demorei muito, mas cheguei. Só tinha a roupa do corpo, mas não podia
Essa passagem do conto nos remete, ainda, ao pensamento nietzscheniano
naquilo que concerne ao “ressentimento da vontade contra o tempo” 61. No aspecto
formal, essa vontade contra o tempo se traduz naquilo que Bakhtin denominou
“secularização da cultura”. O texto literário reveste-se de muitas outras formas, mas
continua a existir, pois, “A idéia de sobrevivência implica a idéia de um tempo não
destruidor” (CONCHE, 2000, p. 194).
Segundo Benedito Nunes, “O tempo em literatura, de modo particular na narrativa,
está em conexão com o espaço” (p.345). Outrossim, o geógrafo Milton Santos “a noção
de espaço é inseparável da idéia de sistemas de tempo” (1985, p. 22). Diante de tais
assertivas, nos propomos a investigar o modo como essa conexão espaço-tempo se
estabelece no corpus dessa análise. Para tanto, selecionamos várias passagens do
conto em que as personagens se referem a espaços:
M – Dona Gisa me mandou aqui. Posso entrar? H – Entra e fecha a porta.
M – Está escuro aqui dentro. Onde é que acende a luz? H – Nesse armário ai tem bebida e copos.
H – [...] Como foi que você veio para o rio?
M – No dia 13 de outubro jantávamos no restaurante...
M – [...] fugi correndo para casa [...] Ainda ontem eu dizia na casa de dona Gisa...
H – Mas agora eles estão lá no norte, muito longe... M – Parece que estou num teatro, há há...
M – Eu me tranquei dentro do quarto, enquanto meu marido quebrava todos os móveis da casa”. (p. 444).
É do nosso conhecimento que, convencionalmente, uma das características do
conto é a unidade de tempo e espaço. Não obstante, embora o autor nos dê a
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