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A CIDADE E A EPIDEMIA DA MORTE: A FEBRE AMARELA E SEU IMPACTO SOBRE OS COSTUMES FÚNEBRES NO RIO DE JANEIRO ( )

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A CIDADE E A EPIDEMIA DA MORTE:

A FEBRE AMARELA E SEU IMPACTO SOBRE

OS COSTUMES FÚNEBRES

NO RIO DE JANEIRO (1849-1850)

Cláudia Rodrigues1

INTRODUÇÃO

O objetivo desta comunicação é analisar o impacto da epidemia de febre amarela que atingiu a cidade do Rio de Janeiro, entre 1849-50, compreendendo sua ação transformadora sobre os costumes funerários e as atitudes da população diante da morte e dos mortos.

As atitudes dos habitantes da Corte com relação à morte tinham como eixo básico, até meados do oitocentos, a familiaridade entre vivos e mortos, expressa nos sepultamentos no interior ou em torno das igrejas. Costume este, essencialmente cristão, que possibi-litava a vizinhança cotidiana entre os fiéis e seus mortos; pois, ao freqüentarem as igrejas, pisavam, caminhavam, sentavam e oravam sobre as sepulturas. O impacto da epidemia na modificação desta familiaridade foi fundamental. A epidemia, com seu alto índice de mortalidade, foi o elemento catalisador do discurso médico que há tempo advogava o afastamento dos mortos e de suas sepulturas do interior das igrejas em prol da prevenção de doenças, em nome da salubridade pública. Com efeito, foi durante a vigência do surto epidêmico que entrou em vigor a legislação imperial que determinava a proibição dos sepultamentos eclesiásticos na Corte e o estabeleci-mento de cemitérios públicos afastados do centro urbano. Além do questionamento aos locais de sepultura, a conjuntura epidêmica tam-bém ocasionaria modificações em outros elementos do ritual funerá-rio, tais como a administração dos sacramentos, a encomendação do corpo e a vestimenta mortuária.

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É este processo que pretendo analisar, a partir do uso de documentação eclesiástica, dentre as quais se destacam os registros paroquiais de óbitos (colhidos por amostragem, num total de 5848, para a freguesia do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, ao longo do século XIX); de anais da Câmara dos Deputados e da legislação imperial.

1 COSTUMES FÚNEBRES ANTERIORES A 1850

Na cidade do Rio de Janeiro, os mortos, nos seus funerais, eram alvos de um tratamento que ia desde a preocupação extremada com o vestuário aos cuidados com o caixão e com a armação da casa e da igreja. Os velórios e os cortejos eram ocasiões de “festa”2, no sentido

da exterioridade do ritual com a concorrência de grande número de assistentes e acompanhantes. Da agonia à morte, e desta à sepultura, a solidão, o silêncio e a privacidade estavam ausentes; desde a admi-nistração dos últimos sacramentos até o sepultamento, a presença de parentes, amigos, fiéis afiliados às irmandades e do clero era buscada como fonte de oração pelas almas dos mortos; tudo acrescido dos insistentes dobres dos sinos das igrejas por onde passasse o cortejo do viático e, depois, o fúnebre. Esta estrutura poderia variar de acordo com as posses do morto e as de seus familiares; variação que se dava pela pompa do cerimonial, que poderia conter desde uma elaborada armação da casa e da igreja até um cortejo fúnebre de carruagens, com a presença de pobres, sacerdotes, irmandades e até músicos (Reis, 1991, p. 156). Michel Vovelle, em seus estudos sobre a morte na França, atribuiu a esta estrutura a denominação de “morte barroca”, enquanto expressão do cerimonial mortuário, cujos elementos consti-tutivos seriam a

“morte preparada, temida, exercício de toda uma vida, dando lugar a um cerimonial públi-co e ostentatório, seguido de todo um públi-conjunto de ritos e prestações destinadas, pelas obras, pelas missas e orações, a assegurar a Salvação ou a redenção a termo dos pecados do defunto” (Vovelle, 1991, p. 353).

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Vejamos, em linhas gerais, quatro dos elementos do ritual funerário adotado pela população do Rio de Janeiro, até meados do século XIX, a saber: a administração dos sacramentos, a mortalha, a encomenda-ção do corpo e o sepultamento.

a) Sacramentos

Os sacramentos eram, para o cristão, sinais que impri-miam características sagradas e pertenciam ao universo da comunica-ção entre Deus (emissor) e o fiel (receptor). Sinais da graça que o emissor comunicava ao receptor para sua salvação em momentos existenciais densos, que supunham, expressavam e alimentavam a fé. Nos momentos de doença grave, incurável e fatal, a penitência, a eucaristia e a extrema-unção, administradas com sentidos específicos, eram procuradas pelo doente. Na proximidade da morte, a presença do padre era solicitada pelo moribundo, por seus parentes ou amigos, tendo em vista a necessidade de ele entrar em contato “último” e íntimo com Deus, antes da “partida”. É nesse sentido que a figura do padre, interlocutor entre o moribundo e Deus, como mensageiro da palavra e dos sinais (sacramentos) divinos, se fazia presente. Se tentarmos estabelecer uma certa ordenação na administração dos sacramentos, esta seria: a penitência (o moribundo confessava e pedia o perdão dos seus pecados); a eucaristia (entrava em comunhão com o “corpo de Cristo ressuscitado”, de forma a garantir, também, a sua própria ressurreição) e a extrema-unção (era ungido com o óleo da Salvação, de forma a eliminar todos os sinais da presença “maligna”). A análise do padrão de recurso a esses sacramentos, antes de 1850, tomando como base a freguesia do Santíssimo Sacramento evidencia que 63,1% dos moribundos a eles recorreu na hora da agonia. O que demonstra que, na iminência da morte, o consolo dos sacramen-tos foi buscado como forma de garantir uma “boa morte”, como aquela que proporcionaria a “Salvação” nos padrões religiosos católicos. Destes moribundos, pelo menos 44,4% tiveram condições de os receber todos. Entre os demais 18,7%, a extrema-unção foi o sacramento que os sacerdotes mais ministraram (8,2%), demonstrando que, quando chegavam à residência do enfermo, este já estava beirando a morte, sem tempo para receber os demais sacramentos. Fosse por que não procuraram o sacerdote ou por terem sofrido de morte repentina, 2,8% dos mortos não receberam os últimos sacramentos.

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Um número razoável de mortos, entretanto, 34,1%, “par-tiram” sem que se possa saber se receberam ou não os sacramentos, pelo fato de seus assentos de óbitos não apresentarem referências a respeito. É muito difícil que a ausência de referências signifique a recusa aos sacramentos de um número tão grande de indivíduos, ainda que esta pudesse ter ocorrido – afinal o não enquadramento de determinados elementos da população aos padrões do catolicismo não pode ser descartado. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebis-pado da Bahia (Vide, 1720), a recusa aos sacramentos implicava o impedimento de sepultura eclesiástica. Por isso, é bem possível que grande parte destas omissões de registro estivessem relacionadas a outros fatores que não a recusa aos sinais sagrados, tais como a morosidade em acionar o sacerdote a tempo – diante de uma morte repentina, acidental – ou a dificuldade de ele, ainda que tivesse sido contactado, chegar à casa do moribundo com prontidão. Estas razões poderiam adquirir uma dimensão maior diante de surtos epidêmicos.

b) Mortalhas

A simbologia das vestes funerárias fazia-se presente entre a população da Corte, sendo o seu uso considerado uma das formas de se garantir a “boa morte”, uma espécie de código que permitisse a passagem para o outro mundo. Nesse sentido, tinha grande importân-cia a cor e o tipo da mortalha. Seu uso tinha a função ritual de integrar o morto no outro mundo. Determinadas cores, mal empregadas, poderiam, na concepção cristã, dificultar o desprendimento da alma, funcionando como uma espécie de barreira à entrada no Além; outras, pelo contrário, poderiam servir de identificação e passaporte. Crianças geralmente eram amortalhadas em tecidos coloridos, talvez, pelo fato de que, por serem declaradas inocentes por parte da Igreja, já eram consideradas em estado de graça e, portanto, o uso do colorido poderia indicar um estado de contentamento pela certeza da salvação (Reis, 1991, p. 123) – no caso de terem sido batizadas, é claro. No caso das mortalhas de santos, a intenção era obter, por sua intercessão, a graça junto a Deus. Juntamente com a proteção, a força do santo invocado poderia servir de salvo-conduto na viagem rumo ao Paraíso (Reis, 1991, p. 123-124).

Na amostra analisada, o padrão das vestes funerárias apresentou cinco tipos básicos de mortalhas: as de santos, as de cores,

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as vestes oficiais (militares ou sacerdotais), as das associações religio-sas (conventos, irmandades e ordens terceiras), e, por último, os melhores trajes ou as roupas do uso. Comparando sua utilização, até meados do século XIX, identifiquei que as mortalhas de santo(a)s foram as que mais vestiram os mortos da freguesia, numa percen-tagem de 63%. Juntamente com Santo Antônio, com 27%, era Nossa Senhora da Conceição (26,5%) – utilizada majoritariamente pelas meninas – que vestia os mortos com mais freqüência. Segundo João Reis, vestir o cadáver de uma menina com a mortalha de Nossa Senhora da Conceição equivalia a um rito de fertilidade, a uma medida para que futuros filhos nascessem, numa sociedade com altas taxas de mortalidade infantil. Além disso, não podemos esquecer que a santa era considerada padroeira do Império, sendo uma devoção feminina importante (Reis, 1991, p. 120).

Após as mortalhas de santos, as de cores vinham em segundo lugar como padrão de uso, com 21%; sendo as de cor branca as mais buscadas por 50,6% dos mortos constantes dos registros analisados. Em segundo lugar, estavam as pretas, com 46,1%. A predominância do branco pode ser explicada pelo significado que lhe era dado tanto no universo cultural africano como no cristão. Entre os vários grupos étnicos africanos, o branco simbolizava a “morte”, que era encarada como o renascimento para uma nova vida, onde ocorreria o encontro com os ancestrais3. Para os cristãos, a cor

simbo-lizava a esperança na vida eterna, prometida através da Ressurreição, expressando, também, uma identificação com o santo sudário – tecido branco que envolveu o corpo de Jesus Cristo após a morte no Calvário e com o qual ressuscitou (Reis, 1991, p. 118; Rodrigues, 1996).

c) Encomendação

Após o recebimento dos últimos sacramentos e a escolha da mortalha, os ofícios fúnebres – encomendação da alma e missas de corpo presente – eram realizados com objetivo de empreender orações em intenção da salvação da alma do defunto. Realizadas pelo pároco, a encomendação da alma era uma espécie de entrega da alma do morto a Deus. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 3 Para uma análise mais detalhada a respeito dos rituais fúnebres africanos, na cidade do Rio de Janeiro, ao longo do século XIX, ver (Rodrigues, 1996; Reis, 1991).

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nenhum defunto poderia ser enterrado sem ser primeiramente enco-mendado pelo seu pároco ou outro sacerdote a seu mando (Vide, 1720, Título XLV, cânones 812, 813 e 814, p. 287-288).

Pelos registros analisados, percebe-se que, na primeira metade do século XIX, a maioria absoluta dos mortos (98,53%) foi encomendada pelos párocos. A encomendação do defunto poderia ser simples, com a presença apenas do pároco, ou mais aparatosa, com a participação de outros sacerdotes, adquirindo caráter solene. Dentre os 3751 registros analisados, referentes à primeira metade do oitocen-tos, apenas 1849 mencionaram a quantidade de padres presentes no ato da encomendação. Dentre estes, verifica-se que 72,4% foram encomendados por um sacerdote; ou seja, a maioria dos mortos teve uma cerimônia simples de encomendação da alma. Um índice menor de mortos foram encomendados pelo pároco e mais sacerdotes: 12,4% com a presença de dois a cinco sacerdotes; 12% de seis a dez sacerdotes; 1,7% de onze a quinze; 0,4% de dezesseis a vinte e 0,1% com mais de vinte. 1% recebeu a menção de que foi encomendado “com vários sacerdotes”, sendo impossível identificar a quantidade. Até meados do oitocentos, a maioria dos registros não referiu o local em que foram realizadas as encomendações. Dentre os que informaram, verifica-se que 4% foram encomendados em casas, 1,4% na igreja e 0,5% enco-mendados em casa e recoenco-mendados na igreja. Acredito que a maior parte das ausências de referência indique que elas tenham sido feitas na igreja (seja a paroquial, seja as das associações religiosas), e que, por isso, não tenham sido mencionadas no registro por estar suben-tendido o local. Esta hipótese será melhor discutida quando analisar as encomendações após 1850. Após serem encomendados por seus párocos, os mortos deveriam ser por eles acompanhados até a sepul-tura, segundo as Constituições Primeiras. Caso tivessem algum impe-dimento em fazê-lo, deveriam enviar outro sacerdote que, sob sua licença, deveria encomendar e enterrar o defunto (Vide, 1720, Título XLV, 815, p. 288).

d) Sepultamento

As igrejas do Rio de Janeiro foram, até 1850, o local de residência dos mortos, caracterizando uma relação de proximidade entre vivos e mortos. Esta familiaridade foi uma característica essen-cialmente cristã, surgida ainda no final da Antigüidade, contrariando

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a antiga repulsa aos mortos. O elemento que permitiu esta aproxima-ção foi a associaaproxima-ção entre o culto dos antigos mártires, de seus túmulos e a fé crescente de que esta proximidade facilitaria a salvação e a ressurreição (Ariès, 1989, p. 37).

As igrejas de irmandades e ordens terceiras de negros eram as mais procuradas como locais de sepultura, com um índice 49,1%; em segundo lugar vinha a matriz do Santíssimo Sacramento, com 21%; e, por último, as igrejas das demais irmandades e ordens terceiras das paróquias, com um índice de 11%. Em suma, poucos mortos (9,5%) da amostra analisada foram sepultados fora da sua freguesia ou em cemitérios (0,02% no da Ordem Terceira de São Francisco de Paula, no Catumbi e 0,7% no Campo Santo da Misericórdia). Dentre as igrejas mais procuradas para sepultura, verifica-se que, após a matriz, esta-vam a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, com 10,6%, e a da Ordem Terceira de São Domingos, com 10,2%, sendo ambas igrejas de associações religiosas de homens ne-gros. Se for levado em consideração que, em quarto lugar, aparecia a Igreja da Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa, com 9,5% (também de negros), confirma-se a constatação acima referida de que a maioria dos habitantes da freguesia procuravam igrejas de negros para os sepultamentos. Aliás, o que seria de se esperar, em uma freguesia cuja maior parte de seus habitantes era constituída por negros e cuja maioria das igrejas era de suas irmandades/ordens terceiras (Fazenda, 1905, p. 288-293).

Por questões de fortuna e ventura, nem todos os mortos eram, antes de 1850, enterrados nas igrejas ou ao seu redor: os escravos e homens livres pobres que não pertencessem às irmandades e/ou não pudessem pagar por uma cova ou catacumba de igreja; os justiçados, a quem era vedado o sepultamento em local sagrado; os indigentes e os não católicos tinham como destino um dos vários cemitérios que existiram na cidade. Quanto aos escravos, três possi-bilidades eram dadas: o cemitério dos “negros novos”, inicialmente no largo de Santa Rita e, posteriormente, no Valongo (parte da atual zona portuária do Rio de Janeiro); o dos franciscanos, ao pé do morro do convento de Santo Antônio; e o da Santa Casa da Misericórdia: inicialmente junto ao hospital da irmandade e, a partir de 1839, no Caju.

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2 A EPIDEMIA DE FEBRE AMARELA

Quando se fala da epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, a referência é de que a instalada entre fins de 1849 e meados de 1850 foi a primeira das muitas outras que ocorreriam na cidade, bem como uma das mais terríveis que assolou o Rio de Janeiro, no século XIX (Rego, 1851, 1872; Benchimol, 1992; Machado, 1978; Chalhoub, 1992, 1996; dentre outros). Um elemento ressaltado foi a universalidade do ataque epidêmico. Diferentemente das epidemias anteriores que, em sua esmagadora maioria, vitimavam os segmentos sociais mais pobres, a febre amarela também fez vítimas fatais entre a elite residente nas áreas centrais, não dando nenhum privilégio, nenhuma isenção a quem quer que fosse. Certamente este fato contri-buiu para o assombro das elites e das autoridades diante do fato e para a tomada de decisões, no sentido de extinguir sua presença pelo menos nas áreas centrais da Corte. Os marinheiros e estrangeiros recém-che-gados ou pouco aclimatados foram os mais fortemente atacados por ela (Lallemant, 1851 apud Araújo, 1979).

Até princípios de fevereiro, manteve-se próxima ao litoral, aparecendo excepcionalmente em outros pontos da capital. Dentro de pouco tempo, invadiu com força toda a urbe, de forma que, em fins de março, o surto já se havia instalado em todas as áreas da cidade. O mês de março foi, aliás, o que mais ceifou vidas, a ponto de, em 15 de março, exceder a cifra de 90 mortos. Desse dia em diante houve um declínio do surto, sendo que até a metade de abril ainda se fazia notar (Rego, 1872). Após esta fase, a tendência foi sempre o declínio, a ponto de ser considerada extinta na cidade em fins de julho, não acontecendo, porém, o mesmo nos subúrbios; provavelmente pelo fato de as medidas controladoras do surto, desenvolvidas pelas autoridades públicas e pelos médicos, terem privilegiado as áreas centrais do Rio de Janeiro. Segundo as estimativas de Pereira Rego, dos cerca de 266.000 habi-tantes4, a doença atingiu 90.658, causando 4.160 mortos. Isso sem

contar os casos de mortes não registradas, por terem ocorrido nas “casas particulares”, sem terem chegado ao conhecimento das enfer-marias e hospitais, cujos registros foram analisados por Pereira Rego (Rego, 1872; Chalhoub, 1996, p. 195).

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Apesar de a febre amarela ter feito suas primeiras vítimas por volta de dezembro de 1849, o reconhecimento de sua existência por parte das autoridades demoraria para ser feito. Somente em 5 de fevereiro, o governo imperial nomeou uma Comissão Central de Saúde Pública, cuja função seria sustentar a deliberação de medidas com relação à higiene pública e servir de órgão de consulta do governo em todas as questões relacionadas à doença. Uma das primeiras medidas tomadas pela referida Comissão foi acalmar os ânimos da população, assustada diante da forma como a doença progredia, indicando-lhe os primeiros cuidados no caso do acometimento da febre. Para isso, tornou público, nos principais jornais da cidade, os conselhos às famílias sobre o comportamento que deveria ser observado durante a epidemia. Neles, eram indicados as regras de higiene, bem como os meios curativos a que se deveria proceder antes de consultar qualquer médico. No dia 14 de fevereiro, uma portaria do Ministério do Império foi remetida à Câmara Municipal, contendo as instruções no sentido de prevenir e sustar a epidemia, algumas das quais foram transforma-das em posturas municipais. Estabeleceram-se, entre outras meditransforma-das, comissões médicas em cada freguesia, os cuidados que se deveria ter com os doentes em casa, tratando também dos mortos e dos funerais. Em 4 de março, foi baixado o regulamento sanitário, que se constituiu em um plano detalhado de combate à epidemia, através do estabele-cimento de medidas rígidas de controle sobre os indivíduos e a vida na cidade, “armando pela primeira vez, todo um dispositivo de esquadri-nhamento e disciplina do espaço urbano” (Benchimol, 1992, p. 114; Rego, 1851, p. 12). A descrição destes fatos aponta para a demora por parte do governo em agir diante do flagelo que, tendo se iniciado em dezembro, somente em fevereiro/março recebeu por parte das autori-dades imperiais o tratamento no sentido de sua extinção. Após estas observações gerais acerca da epidemia, vejamos o seu impacto sobre os costumes fúnebres.

3 O IMPACTO DA EPIDEMIA

SOBRE OS COSTUMES FÚNEBRES

Antes de analisarmos o impacto da epidemia sobre as atitudes da população diante da morte e dos mortos, vejamos, num primeiro momento, alguns dos elementos do discurso médico que defendia o fim dos sepultamentos eclesiásticos e que, na conjuntura

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epidêmica, passou a questionar outros elementos dos rituais funerá-rios; num segundo momento, procurarei identificar algumas das de-terminações imperiais empreendidas diante da epidemia que culminariam na proibição dos enterramentos nas igrejas.

a) O discurso médico

Ao dizimar um grande número de vidas e ao amedrontar outras tantas, a epidemia foi utilizada por médicos e autoridades imperiais como justificativa para a implantação de medidas que há muito vinham sendo preconizadas por eles. O discurso utilizado para a obtenção deste objetivo foi essencialmente o da denominada “medi-cina social” (Machado, 1978; Costa, 1989, p. 28-33). Um discurso que, mais preocupado com a saúde, procurava impedir o aparecimento da doença, no sentido preventivo, lutando no nível de suas causas. Nesta perspectiva, considerava-se mister agir em prol da salubridade públi-ca, o que, em última instância, implicava na higienização dos espaços, das instituições, dos costumes. Preocupar-se com estas questões sig-nificava, efetivamente, para os médicos, atuar no esquadrinhamento do espaço urbano, com o apoio do Estado. Instituições como hospitais, prisões, matadouros, cemitérios, vistos como frutos do crescimento das cidades e, portanto, indispensáveis ao seu funcionamento, esta-riam, segundo eles, servindo como focos de doenças, representando um perigo para o todo urbano. Não podiam e nem deviam, entretanto, ser abolidas: era necessário, porém, expulsá-las do centro da cidade, já que suas localizações não estariam obedecendo aos critérios de salubridade. Eram infectadas ao contato com os locais onde estavam instaladas, e as exalações e miasmas que geravam em seus espaços fechados, por sua vez, as infectavam, bem como toda a cidade, consti-tuindo-se em focos de epidemia e contágio (Machado, 1978; Costa, 1989, p. 28-33). As igrejas, ao servirem de abrigo aos mortos, desde o início da colonização, impregnariam, segundo esta visão, o ambiente mal iluminado e sem ventilação do que se passou a considerar os odores mortíferos dos cadáveres.

O aparecimento da epidemia foi o elemento que tornou possível aos médicos colocarem em prática as medidas higienizantes que vinham defendendo há algum tempo. Em 14 de fevereiro de 1850, o dr. José Maria de Noronha Feital, membro da Academia de Medi-cina, escreveu um artigo a respeito das medidas de prevenção contra

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a febre amarela. Publicado inicialmente em um periódico médico, foi divulgado para um público mais vasto, através de uma memória. Certamente foi deste escrito que o Ministério do Império retirou as determinações – mencionadas anteriormente – que, coincidentemen-te, no mesmo dia 14 de fevereiro, enviou à Câmara Municipal para serem tomadas frente o avanço da epidemia. Lendo os dois textos, a portaria imperial e o artigo do médico, percebe-se, inclusive, redação semelhante até na ordem em que aparecem mencionadas determina-das medidetermina-das. Deter-me-ei aqui naquelas relacionadetermina-das aos costumes fúnebres.

Quanto aos sepultamentos propriamente ditos, o dr. Feital afirmou que não se devia tolerar que os enterros se fizessem no interior das igrejas, e que o quanto antes se estabelecessem

lugares sagrados para as sepulturas [grifo meu] necessárias à quantidade de corpos que recebem. Os cadáveres serão encomendados em casa, cobertos de uma camada de cal, e encer-rados em caixões inteiros de madeira perfeita-mente unidos e fechados. Só assim se evitará respirar-se miasmas que sempre prejudicam, e que aumentem a repugnância que se tem aos mortos (Feital, 1850, p. 17).

Mais adiante, o médico afirmaria que as armações dentro e fora das casas poderiam dar origem a graves males, pois elas poderiam se impregnar das exalações cadavéricas, ao serem transpor-tadas de uma para outra casa. Por isso, deveriam ser proibidas e, para sempre banidas, bem como os caixões de grades, cobertos de veludo ou pano, que deixavam transpirar as exalações dos cadáveres. Igualmente criticado era o hábito de se fecharem as janelas e as portas das casas em que se encontrava um cadáver, algumas vezes em adiantado estado de putrefação. Tais costumes eram, para ele, um sacrifício para os vivos e uma “mísera” prática em nada útil ao morto, sinal de “barba-ridade”.

Segundo o dr. Feital, os excessivos dobres dos sinos, o aparato processional do viático com os últimos sacramentos ao mori-bundo e os enterros com grande pompa eram causas que induziam o doente a pensar na moléstia e na morte, não devendo, por isso, serem

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permitidos. O médico referia-se, especificamente, a uma série de comportamentos, considerados inadequados diante dos mortos. Pre-conizava a “vigilância auditiva”, que, segundo Reis (1991, p. 262-265), tornara-se lema da campanha médica no combate ao que eles chama-vam de maus costumes, presentes na mentalidade funerária da popu-lação. A medicina de outrora considerava que o abatimento moral e o medo predispunham o indivíduo a receber o contágio. Para ele, apenas o ar corrompido não provocaria, por si só, o contágio, que se daria se a ele fosse combinado o “fermento do pavor” (Delumeau, 1989, p. 125). Além da vigilância auditiva, a medicina também preconi-zava uma nova sensibilidade olfativa. O dr. Feital recomendava, como vimos anteriormente, a necessidade de se fecharem perfeitamente os caixões, de se evitar a permanência do cadáver tanto em casa como na igreja e de se manter a casa bem arejada, tendo em vista ocultar dos vivos o cheiro dos mortos. O mesmo procedimento era prescrito em Salvador. Segundo João José Reis, os médicos “ensinavam a vigiar o cheiro da morte, a temê-lo e inclusive a não disfarçá-lo, por exemplo, com aromas de incensos” (Reis, 1991, p. 264).

A argumentação médica que justificava o perigo dos cha-mados miasmas cadavéricos era bem parecida com a que foi utilizada pelo dr. Paula Cândido, médico de projeção política, no Império, em uma sessão da Câmara dos Deputados, em 1843:

(...) Note a câmara que nesses mesmos lugares santos onde se aglomera a população todos os dias para fazer suas orações, onde vai dirigir o seu pensamento ao Criador, é nesses mesmos lugares, digo, onde talvez nessa hora se tem descoberto uma sepultura; e é demonstrado que a exalação está na razão direta da superfície descoberta, em contato com o ar. Além disso, dado mesmo o caso que em um ou outro dia não se tenha descoberto uma sepultura no interior do templo, as exalações transcendem através da terra, das fendas, e vêm-se espalhar no templo (...) observai que as pessoas que vivem constantemente mergulhadas nesse oceano miasmático têm suas funções orgânicas sujei-tas a moléstias próprias e peculiares a tais circunstâncias. Ajuntai a isto a circunstância

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imprevista de se acumular um grande número de cadáveres nas igrejas nas crises epidêmicas, e tereis redobrado a ação da causa5.

Os médicos insistiam na “adjetivação negativa do cheiro cadavérico”, que deveria ser considerado “insuportável, desagradável, pernicioso, insultante, repugnante, ingrato, atormentador, mau”. Por trás desta vigilância estava a convicção de que o cheiro cadavérico denunciava a impureza do ar (Reis, 1991, p. 164). Se, à primeira vista, se percebe no texto do dr. Feital a presença de uma concepção médica que pretendia transformar as atitudes costumeiras diante da morte; em uma determinada passagem aflora a idéia da sacralidade das sepulturas. Ao afirmar que “quanto antes se estabelecerão lugares sagrados para sepultura”, evidenciou que, apesar de seu discurso higienizante quanto a alguns dos costumes fúnebres, parecia ser necessária a manutenção de uma referência cristã: os lugares dos mortos, ainda que devendo ser removidos da vizinhança dos vivos, deveriam manter-se como sagrados. Neste caso era possível conciliar o higiênico com o religioso.

Esta ambigüidade pode também ser percebida no discurso de um outro médico. Em suas observações acerca da epidemia de febre amarela, o dr. Roberto Lallemant, que havia descoberto os primeiros casos da doença na cidade, ao fornecer a sua impressão sobre a propagação da epidemia, afirmou em um determinado momento que as “casas em que havia um morto já não se cobriam de luto; os fúnebres sinos já não acompanhavam o enterramento do cristão”(...) “tudo se proibia, só a morte não era proibida” (Lallemant, 1851 apud Araújo, 1979, p. 258). Neste trecho, podem ser identificadas ambigüidades. A primeira, uma insatisfação diante das modificações nos costumes funerários: a imposição do silêncio dos sinos e a proibição das mani-festações de luto, em função das próprias idéias médicas que ele defendia. A segunda, associada à primeira, manifestava-se na insatis-fação de o médico estar vivendo em um tempo de interdições, em que “tudo se proibia”. Ora, todas estas proibições decorriam dos procedi-mentos prescritos pelo mesmo corpo médico a que pertencia Lalle-mant. Desta forma, certas ambigüidades que se percebem nos argumentos dos médicos Lallemant e Feital representam a convivên-5 Anais da Câmara dos Deputados, 12/8/1843, p. 728.

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cia de um conjunto de idéias que aparentemente podem parecer a nós conflitantes; mas que fizeram parte daquele momento em que o velho convivia com o novo, em que concepções novas a respeito dos funerais e, por que não, da morte, emergiam ao mesmo tempo que as antigas permaneciam.

Em suas análises sobre os períodos de peste na Europa, Jean Delumeau menciona o constrangimento dos vivos por se verem privados de determinados ritos. Para os vivos, o abandono dos ritos apaziguadores que em tempos normais acompanhavam a partida deste mundo era uma tragédia; eram ritos que lhes conferiam dignidade, segurança e identidade nas provações. Daí, segundo o autor, a alegria dos marselheses quando, no final da epidemia de 1720, viram nova-mente carros fúnebres nas ruas. Era o sinal seguro de que o contágio deixava a cidade e de que se retomavam os hábitos e as cerimônias tranqüilizadoras dos tempos comuns (Delumeau, 1989, p. 121-125). Estas atitudes de desconforto, diante das privações rituais no contexto epidêmico e a “alegria” – que podemos ironicamente adjetivar de fúnebre –, diante do retorno dos carros fúnebres nas ruas e, por conseguinte, do aparato ritual, mencionados por Delumeau, coinci-diam em alguns pontos com as impressões dos médicos Feital, Paula Cândido e Lallemant, ao se referirem aos aspectos rituais e religiosos que foram postos em suspensão durante a epidemia.

b) A legislação implementada pelo governo

Medidas proibitivas fizeram parte da polícia médica levada a cabo diante da epidemia. O regulamento sanitário de 4 de março, mencionado anteriormente, representou uma invasão pública nos costumes da população, intervindo, dentre outras, nas práticas relacionadas aos rituais fúnebres. Prescrevendo a proibição das enco-mendações e dos sepultamentos dos cadáveres no interior das igrejas, a proibição dos dobres dos sinos e das armações das casas e das igrejas para os velórios, ele representou o amálgama das idéias médicas e da portaria imperial de 14 de fevereiro. Até os que viviam em função da morte foram atingidos pela sombra normatizadora do poder público. Uma medida policial decidiu fixar as taxas destes serviços, diante do “espírito de lucro” dos armadores e proprietários de caixões, carros e demais objetos funerários que, durante o período epidêmico, inflacio-naram o mercado funerário. A situação havia chegado ao ponto de um

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certo carro funerário ter sido apreendido pela polícia, por ter custado 248$000 réis a uma família enlutada, quando o mesmo serviço poderia custar a terça ou a quarta parte desta quantia (Renault, 1978, p. 19). Diante da proibição dos sepultamentos no interior das igrejas, ainda em 4 de março de 1850, um ofício do chefe de polícia da Corte, Antônio Simões da Silva, foi dirigido à Ordem Terceira de São Francisco de Paula, pedindo que fosse dado jazigo, naquele mesmo dia, se possível fosse, a todos os cadáveres remetidos para o seu cemitério em constru-ção (Monteiro, 1873, p. 14). Provavelmente pelo fato de a ordem terceira ter criado dificuldades para a execução do ofício, foi necessária a intervenção do ministro dos Negócios do Império, Visconde de Mont’Alegre, no dia 8, mandando que se desse jazigo aos corpos para lá enviados, suspendendo e dispensando quaisquer formalidades com-promissais, caso pudessem retardar o cumprimento da disposição (Monteiro, 1873, p. 14). Em virtude da epidemia reinante e antes de seu término, no mesmo mês de março, foram apresentados à Câmara dos Deputados projetos sobre o estabelecimento de cemitérios na Corte e a conseqüente extinção dos sepultamentos nas igrejas, que passaram a ser discutidos em junho e julho no Senado. Neste ínterim, foram tomadas outras medidas. O Visconde de Mont’Alegre expediu ofício, em 16 de março, a todas as irmandades, ordens terceiras e conventos, mandando que os que não tivessem estabelecido seus cemitérios extramuros procedessem ao enterro de seus fiéis ou no Cemitério do Campo Santo (administrado pela Santa Casa de Miseri-córdia) ou no de Catumbi (pertencente à Ordem Terceira de São Francisco de Paula), sob pena de punição aos que não cumprissem o determinado.

Posteriormente, em virtude da proibição das encomenda-ções de corpos nas igrejas, o chefe de polícia expediu, em 30 de maio, ofício à Ordem Terceira de São Francisco de Paula, mandando que fosse construída, “com decência e muito ligeiramente”, uma capela provisória no Cemitério do Catumbi, para que no prazo de seis dias fossem feitas ali as encomendações (Monteiro, 1873, p. 15). Tal medida foi possivelmente tomada em função da desobediência das várias irmandades em cumprir a medida do regulamento sanitário que continha a mesma proibição e da população que insistia em fazer as encomendações nas casas. É possível que a desobediência, além de estar fundamentada na recusa das irmandades e ordens terceiras em deixar de encomendar os seus defuntos em seus templos, fosse uma conseqüência do fato de não haver capelas específicas para este fim

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nos cemitérios existentes, fora dos limites da cidade, aliás, o que é plausível, nas circunstâncias da época. Se antes da epidemia e da proibição imperial a maior parte das encomendações eram realizadas nas igrejas, não havia por que os cemitérios possuírem capelas desti-nadas às encomendações.

Estas medidas eram todas preventivas e garantiriam ao governo imperial uma margem de tempo até que a legislação definitiva entrasse em vigor, o que ocorreu em setembro, após vários debates nas Câmaras dos Deputados e do Senado6.

c) As transformações dos costumes fúnebres, a partir de 1850

c.1) Sacramentos

Ao contrário do período anterior a 1850, percebe-se niti-damente uma redução dos índices de administração dos últimos sacra-mentos. Se, na primeira metade do século XIX, 63,1% dos moribundos receberam os sacramentos, na segunda metade este índice caiu para 22,4%, sendo que destes, apenas 12,2% os receberam todos, contra 44,4% do período anterior. Se antes de 1850, apenas 2,8% dos mori-bundos foram mencionados como não tendo recebido os sacramentos, após este período, este índice subiu para 18,5%, sendo que destes, 8% não os pediram ou não foram procurar o sacerdote. Com relação à ausência de referência dos sacramentos, o quadro não foi diferente: de 34,1% até meados do oitocentos, o índice subiu para 59%. O que explicaria este aumento sensível da ausência de referência aos sacra-mentos após 1850? Acredito que possa estar neste ponto em específico a explicação para a redução dos demais índices em relação ao período anterior. Devido ao alto índice de mortalidade, era humanamente impossível aos sacerdotes e aos párocos ministrarem os sacramentos a todos que falecessem vitimados por epidemias. Não eram em número suficiente nas paróquias para a demanda, fato que foi, inclusive, mencionado pelo bispo Dom Manuel do Monte ao Governo Imperial, em 1850:

6 A respeito das tentativas mal sucedidas de se transferir os sepultamentos ecle-siásticos para fora dos limites da cidade do Rio de Janeiro, ver Rodrigues (1997, p. 89-133).

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Vossa Excelência compreenderá que os párocos hão de ver-se muitas vezes em embaraços, como na atual epidemia reinante se tem visto, para acudirem a todas as obrigações de seu ofício, somente eles e seus coadjutores, podendo nem estar doente, e o outro ter um impedimento qualquer, sem haver um sacerdote que os coad-jure (IHGB, 1850, p. 3).

Desta maneira, diante da escassez de sacerdotes nas paró-quias, grande parte dos 59% de ausência de referência aos sacramen-tos, após 1850, encontrados em nossa amostra, pode ter sua justificativa na dificuldade de os sacramentos chegarem a tempo aos moribundos. O que explica esta hipótese, são os dados da Tabela 1, que mostram terem sido os anos epidêmicos de 1850, 1855 e 1860, os em que houve os maiores índices de ausência de referência aos sacra-mentos. Tendo sido esses anos, respectivamente, ocasiões em que a cidade foi assolada, respectivamente, pela febre amarela, pela cólera e pela febre amarela novamente.

A década de 1880 também teve um relativo crescimento no índice de ausência de referência aos sacramentos. Por se tratar de um período próximo do fim do século, o alto índice de ausência de referência poderia levar a crer, à primeira vista, em um possível arrefecimento da sua procura por parte dos indivíduos, como fator de crescimento do indiferentismo religioso; entretanto, tal idéia não é

Tabela 1

ÍNDICE DE AUSÊNCIAS DE REFERÊNCIA AOS SACRAMENTOS

Ano % Ano % Ano % Ano % Ano %

1812 5,5 1824 17,9 1845 35,9 1860 60,7 1875 6,2

1816 13,3 1828 18,7 1850 60,9 1865 16,4 1880 41,6

1820 11,2 1835 22,1 1855 58,1 1870 5,7 1885 29,8

Fonte: ACMRJ. Livro de registros de óbitos da freguesia do Santíssimo Sacramento. Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.

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reforçada por ocorrência semelhante nos anos seguintes, o que indica que tal ausência esteve bem mais relacionada à epidemia de febre amarela que, juntamente com outras doenças (como a tuberculose) (Fritsch, 1986, p. 77), teria elevado o índice de mortalidade e, por conseguinte, dificultado aos sacerdotes e aos párocos a administração dos sacramentos a todos.

Um exemplo que reforça esta idéia é o fato de que, ao longo de todo o século XIX, excluídos da análise, os referidos anos de 1850, 1855, 1860 e 1880, chegamos aos índices de 60,36% mortos sepultados com todos ou pelo menos um sacramento, 12,2% sem sacramentos e 27,4% de ausência de referência aos mesmos. Ou seja, fora das quadras epidêmicas, o índice de ausência de referência reduz – podendo ser relacionadas às dificuldades dos padres em atender a tempo o chamado – ao passo que também cresce consideravelmente o número de indiví-duos a quem foram ministrados todos os sacramentos: dos 60,36% que os receberam, 40,5% os receberam todos – um índice que demonstra um padrão satisfatório de busca dos sinais sagrados pelos habitantes agonizantes da cidade do Rio de Janeiro, no século XIX; seguindo as próprias determinações eclesiásticas.

c.2) Mortalha

Após 1850, houve uma diferenciação no uso das vestes mortuárias, em comparação com o período anterior. É perceptível um progressivo aumento, a partir de 1865, do índice das roupas do uso. Índices que, se forem acrescidos do igual crescimento no uso das vestes angelicais/virginais – utilizados majoritariamente pelas crianças – indicam uma sensível redução no uso das mortalhas de cores e santos, a partir da segunda metade do século XIX, como se observa na Tabela 2.

Tais dados são importantes e, certamente, apontam para uma mudança de sensibilidade diante da morte, em que o período de 1850-1860 (época das grandes epidemias) aparece como balizador, na medida que nele foram praticamente inexistentes as referências às mortalhas nos assentos e após o qual surgiria uma significativa modificação em relação aos padrões anteriores, com o desaparecimen-to da menção aos sandesaparecimen-tos e às cores e o crescimendesaparecimen-to das vestes do uso/seculares.

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c.3) Encomendação

Após 1850, a maioria absoluta dos mortos constantes da amostra analisada (98,6%) foi encomendada pelos padres, de modo semelhante ao período anterior. Entretanto, houve uma mudança significativa quanto ao local da referida cerimônia. Aquele alto índice de ausência de referência do primeiro período, diminuiu de 94% para 20,1%, ao passo que a referência de que a encomendação foi realizada em casa aumentou sensivelmente (de 4,0% para 60,0%), bem como a referência das encomendações na igreja (de 1,4% para 20,0%). Tais índices apontam, por um lado, para o cumprimento que a população teria dado às determinações imperiais que proibiam as encomendações nas igrejas enquanto vigorasse a epidemia. Por outro, indicam que, mesmo com o fim do surto, houve uma tendência a se manter as encomendações nas casas. O que pode ser interpretado como indício

Tabela 2

ÍNDICE DOS TIPOS DE MORTALHAS EM RELAÇÃO AO TOTAL

Anos às mortalhasReferência

Roupas do uso

Vestes

angelicais/virginais Sem referênciaà mortalha % de nãomenção aos santos e às cores nº % nº % nº % 1812 237 – – – – 17 7,2 7,2 1816 300 – – – – 23 7,6 7,6 1820 250 – – – – 4 1,6 1,6 1824 673 – – – – 10 1,5 1,5 1828 763 – – – – 8 1,0 1,0 1835 629 10 1,6 – – 4 0,6 2,2 1845 652 5 0,7 – – 3 0,4 1,1 1850 827 – – – – 824 99,6 99,6 1855 396 – – – – 396 100,0 100,0 1860 397 1 0,2 – – 396 99,7 99,9 1865 250 165 66,0 67 26,8 3 1,2 94,0 1870 209 184 88,0 18 8,6 1 0,4 97,0 1875 145 124 85,5 8 5,5 6 4,1 95,1 1880 60 25 41,6 2 3,3 26 43,3 88,2 1885 57 9 15,8 – – 45 78,9 94,7 Total 5848 523 100,0 95 100,0 1766 100,0

Fonte: ACMRJ. Livro de registros de óbitos da freguesia do Santíssimo Sacramento. Rio de Janeiro. Anos de 1812, 1816, 1820, 1824, 1828, 1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.

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de uma privatização do ritual funerário, em contraposição à tradicio-nal exteriorização do cerimonial.

A prática da encomendação nas casas – determinada pelo regulamento sanitário de 4 de março de 1850 -, entretanto, não foi bem vista pelo bispo Dom Manuel do Monte. Segundo o prelado, as exéquias eram um direito essencialmente paroquial, devendo ser realizadas na igrejas matrizes. Reprovava a idéia do regulamento, pelo fato de as encomendações e outros ofícios pelas almas dos mortos serem atos públicos da religião, tendo nas igrejas o lugar apropriado para sua celebração, e, só por exceção o seriam nas casas particulares. O artigo do regulamento, para o prelado, inverteu a exceção em regra geral (IHGB, 1850, p. 5). Esta queixa me faz supor que antes, as encomendações deveriam ser feitas majoritariamente nas igrejas. O que pode vir a confirmar aquela hipótese lançada anteriormente sobre o fato de que o alto índice de ausência de referência ao local das encomendações, na primeira metade do oitocentos, significasse que estaria subentendido que elas foram realizadas na igreja, seguindo os preceitos eclesiásticos. O fato de o bispo reclamar do seu descumpri-mento, em abril de 1850, pode indicar que aquela regra estaria deixando de ser cumprida.

c.4) Sepultamento

Em virtude da proibição dos sepultamentos nas igrejas, em 1850, foram muito poucas as inumações nos templos, após 16 de março, sendo a maioria dos cadáveres sepultados no Cemitério da Ordem Terceira de São Francisco de Paula, no Catumbi, que teve um aumento significativo do número de enterramentos: do inexpressivo índice de 0,02%, da primeira metade do oitocentos, saltou-se para 25,5%. A partir da criação dos cemitérios públicos e efetivada a proibição dos sepultamentos nas igrejas, pode-se perceber que o Ce-mitério de São Francisco Xavier foi o mais procurado pela população, com um índice de 53,0%, enquanto o cemitério de São João Batista da Lagoa recebeu 13,3% dos cadáveres – índice reduzido, que se explica pelo fato de o mesmo estar localizado em uma região mais distante da área da freguesia do Santíssimo Sacramento.

Após 1850, o sentido do velório, cerimônia que antecedia o sepultamento, não se modificou estruturalmente. Entretanto, o mesmo não pode ser dito a respeito do cortejo. Na medida em que os

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cemitérios públicos do Caju e da Lagoa passaram a ser as únicas possibilidades de sepultura, o itinerário e a forma de acompanhamento sofreriam mudanças. Com a transferência da sepultura para longe da área central da cidade, o cortejo demandaria um trajeto maior, com-parativamente ao que antes poderia ser feito da casa para a igreja, o que implicou a redução do número de acompanhantes do cortejo fúnebre ao cemitério. Por outro lado, o distanciamento ocasionaria um aumento dos custos do funeral. Antes, o cortejo poderia ser acessível a todos os segmentos sociais, na medida que bastava acompanhar o morto a pé, de casa para a igreja. Após 1850, seria necessário pagar pelo transporte do caixão até um dos dois cemitérios públicos. Nesse sentido, o cortejo passaria a ser privilégio de alguns.

4 CONCLUSÃO

O impacto que a epidemia de febre amarela teve sobre a população da Corte foi grande: seja no sentido do alto índice de mortalidade, seja pela necessidade de se modificar hábitos e atitudes. Este impacto, que provocou o medo entre os vivos, projetou-se no temor destes em relação aos seus mortos, na medida em que reforçou a concepção médica de que as sepulturas e seus cadáveres eram focos de contaminação. Ora, há séculos, os sepultamentos eram realizados nas igrejas ou ao seu redor, sem que a maioria dos indivíduos se incomodasse com esta prática, que era adotada por grande parte da população da Corte, até a primeira metade do século XIX. A epidemia trouxe modificações neste quadro. O medo do contágio e da morte faria com que a familiaridade entre vivos e mortos fosse questionada e abalada pelas concepções médicas que então se impuseram. Como afirmou Delumeau (1989, p. 107), o pânico coletivo que uma epidemia causava na população levava-a a repudiar os cadáveres, considerados contaminadores.

As epidemias sempre existiram na cidade, fazendo suas vítimas; entretanto, a febre amarela – até então desconhecida – nas proporções que atingiu a Corte, com seu alto índice de mortalidade, teria sido ao mesmo tempo causa e estímulo para a implementação das concepções médicas que, até então, no que se referia à separação entre vivos e mortos, não haviam sido efetivamente postas em prática. Além disso, o surto teria representado um marco fundamental para a

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transformação de elementos do ritual: a extinção do uso de mortalhas de santos e de cores e sua substituição por “roupas do uso”, expres-sando a laicização dos conteúdos sagrados da vestimenta mortuária; a gradativa diminuição do sentido público dos funerais para um cerimonial cada vez mais privatizado, a exemplo da realização da encomendação da alma nas casas; e, por fim, a diminuição do cortejo fúnebre em função do afastamento das sepulturas do centro urbano.

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