• Nenhum resultado encontrado

RESUMO PALAVRAS-CHAVE. Demografia escrava; Posse de cativos; Baixo Tocantins; Grão-Pará; Século 19.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "RESUMO PALAVRAS-CHAVE. Demografia escrava; Posse de cativos; Baixo Tocantins; Grão-Pará; Século 19."

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

COLETANDO O CACAU “BRAVO”, PLANTANDO O CACAU “MANSO” E OUTROS GÊNEROS: UM ESTUDO SO-BRE A ESTRUTURA DA POSSE DE CATIVOS NO BAIXO TOCANTINS (GRÃO-PARÁ,1810-1850)

Daniel Souza Barroso

RESUMO

No esforço de avançar na compreensão acerca da demografia e da economia da escravidão na Amazônia oitocentista, este artigo tem enquanto objetivo analisar a estrutura da posse de cati-vos no Baixo Tocantins na primeira metade do século 19. Com uma produção dedicada ao ex-trativismo do cacau “bravo” e à agricultura de gêneros diversos (cacau “manso”, açúcar, man-dioca, arroz, algodão etc.), a região tocantina destacava-se como um dos mais importantes re-dutos escravistas do Grão-Pará oitocentista. A partir de uma série de inventários post-mortem disponíveis no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e no Centro de Memória da Ama-zônia (CMA/UFPA), votamo-nos a analisar essa estrutura através três eixos: as características dos proprietários de escravos, o padrão de distribuição da posse cativa e as características de-mo-econômicas da população escrava.

PALAVRAS-CHAVE

Demografia escrava; Posse de cativos; Baixo Tocantins; Grão-Pará; Século 19.

Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em São Pedro/SP – Brasil, de 24 a 28 de novembro de 2014.



(2)

1 COLETANDO O CACAU “BRAVO”, PLANTANDO O CACAU “MANSO” E OUTROS GÊNEROS: UM ESTUDO

SO-BRE A ESTRUTURA DA POSSE DE CATIVOS NO BAIXO TOCANTINS (GRÃO-PARÁ,1810-1850)

Daniel Souza Barroso

Em 20 de fevereiro de 1810, dona Lizarda Maria da Purificação faleceu em um sítio de sua propriedade, situado às margens do Rio Moju, na então Capitania do Grão-Pará. Solteira e sem herdeiros descendentes ou ascendentes, todos os bens de Lizarda foram destinados ao seu irmão. Além do referido sítio, o espólio compreendia uma “casa de morada”, 16 cativos, “ran-chos” para a moradia desses e ferramentas diversas, empregadas no cultivo da mandioca e ou-tros gêneros. Lizarda Maria fazia parte de todo um universo de pequenos sitiantes que caracte-rizava a paisagem marcadamente rural do Baixo Tocantins, contrastando com as grandes priedades (engenhos e fazendas) lá existentes. Era uma dentre muitos pequenos e médios pro-dutores que, em meio ao complexo econômico agroextrativista prevalecente na região, rompe-ram com a tendência ao monocultivo ou ao extrativismo em larga escala existente nas grandes propriedades, e consolidaram um policultivo distinguido por acanhadas “sortes” de terra e pe-los víncupe-los regulares que mantinha com o mercado.1

A produção da mandioca e de outros gêneros de subsistência no sítio de Lizarda estea-va-se no uso de mão-de-obra cativa. A partir da descrição dos bens apresentada em seu inven-tário post-mortem, podemos conhecer algumas características do plantel. Dos 16 escravos que moravam e trabalham no sítio, seis eram homens e 10 eram mulheres. Além do mais, a escra-varia era composta exclusivamente por escravos “coloniais” (nascidos na América Portuguesa e, grande parte deles, muito provavelmente, no Grão-Pará) e possuía uma idade média de 16,5 anos, justificada pela expressiva presença de crianças no plantel (oito dos 16 escravos possuí-am menos de 15 anos).2 A preponderância de escravas mulheres vis-à-vis os escravos homens, de escravos “coloniais” vis-à-vis os escravos “africanos”, assim como a significativa presença

Este artigo é fruto de uma pesquisa de doutoramento desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Es-tado de São Paulo (FAPESP, Processo nº 2012/21188-5). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. 

Doutorando em História Econômica na FFLCH/USP. Correio eletrônico: dsbarroso@usp.br

1 A

CEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. “Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do Acará nos séculos XVIII e XIX”. In: Papers do NAEA, Belém, UFPA, out./2000, n. 153, pp. 01-26.

2 Centro de Memória da Amazônia. Cartório Odon Rhossard (2ª Vara Cível da Comarca da Capital). Inventários post-mortem, cx. 01 (1810-1812). Inventário de Lizarda Maria da Purificação, 1810.

(3)

2

de crianças, eram características particulares do plantel de Lizarda Maria ou evidências de ca-racterísticas mais gerais do escravismo no Baixo Tocantins?

Ainda que a historiografia consagrada à formação econômica e social do Baixo Tocan-tins evidencie tratar-se de um complexo econômico assentado na mão-de-obra escrava negra,3 pouco se avançou na compreensão das características – mesmo as características mais gerais – do escravismo na região, especialmente no que concerne aos seus aspectos demográficos. Não se conhece, por exemplo, o perfil dos proprietários de cativos da região em função do sexo, da idade e do estado conjugal. Ao mesmo passo, não se conhece, igualmente, muitas das caracte-rísticas mais gerais da posse de escravos, como o seu grau de concentração (Gini), a dimensão média dos plantéis e as suas respectivas distribuição por faixas de tamanho e relação com a(s) atividade(s) econômica(s) desenvolvida(s) em cada propriedade. Não obstante, ainda há lacu-nas substanciais no conhecimento das características demo-econômicas dos próprios cativos.4

No esforço de avançar na compreensão da demografia e da economia da escravidão na Amazônia oitocentista, este artigo tem enquanto objetivo analisar a estrutura da posse de cati-vos no Baixo Tocantins na primeira metade do século 19. A partir de uma série de inventários post-mortem constantes no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e no Centro de Memó-ria da Amazônia (CMA/UFPA), votamo-nos a analisar essa estrutura através três eixos: as ca-racterísticas dos proprietários de escravos, o padrão de distribuição da posse cativa e as carac-terísticas demo-econômicas da população escrava. As preocupações de pesquisa evidenciadas, assim como os resultados ainda preliminares apresentados neste artigo, são parte integrante de uma investigação mais ampla que vimos desenvolvendo, em nível de doutorado, no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo.

O artigo encontra-se estruturado em cinco seções. Na primeira delas, procuramos deli-near o contexto demo-econômico do Baixo Tocantins, aprofundando a compreensão acerca do complexo econômico existente na região e de sua população. Na segunda seção, apresentamos e criticamos o corpo documental utilizado neste estudo, indicando a quantidade de inventários post-mortem pesquisados por década e esmiuçando as características daquela documentação e suas limitações. Na terceira seção, analisamos as características dos proprietários de escravos. Na quarta seção, investigamos as características da posse de cativos. E por fim, na quinta e úl-tima seção, refletimos sobre as características demo-econômicas dos escravos.

3 Cf.: B

EZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2011. SAMPAIO,Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: EDUA/ FAPEAM, 2012; SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão: Belém: IAP, 2005 [1971]. 4 A respeito dessas lacunas, ver dentre outros: B

ARROSO, Daniel Souza. “Por uma História da Família e da Popu-lação na Amazônia brasileira: percursos historiográficos”. In: CICERCHIA, Ricardo; BACELLAR, Carlos & I RIGO-YEN, António (Coords.). Estructuras, coyunturas y representaciones. Perspectivas desde los estudios de las for-mas familiares. Murcia: Ediciones de la Universidad de Murcia, 2014, pp. 51-66.

(4)

3

BAIXO TOCANTINS: UM ESBOÇO DE CONTEXTUALIZAÇÃO DEMO-ECONÔMICA

O Baixo Tocantins era, em termos demo-econômicos, o mais importante reduto escra-vista do Grão-Pará, na primeira metade do século 19. A região, pertencente à Comarca de Be-lém, compreendia as Freguesias do Acará, do Moju, de Igarapé-Miri, de Abaeté e de Barcare-na, a Vila de Cametá e diversos outros “Lugares”. O Vale do Tocantins era um dos mais anti-gos e bem estabelecidos espaços da colonização portuguesa na Amazônia. A partir da segunda metade do século 18, sob a égide das políticas pombalinas, o Baixo Tocantins passou por pro-fundas transformações de ordem demográfica e econômica. A instituição do Diretório dos Ín-dios e, principalmente, da altamente capitalizada Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (CGPM), promoveu o estabelecimento de sistemas agrários assentados na mão de obra escrava e voltados ao mercado externo, que passaram a coexistir com o tradicional extra-tivismo do cacau e das “drogas do sertão” que caracterizava a economia amazônica até então.5

FIGURA 01

REGIÕES POVOADAS DO GRÃO-PARÁ NO LIMIAR DO SÉCULO 19

FONTE: ANDERSON, Robin. Colonization as Exploitation in the Amazon Rain Forest, 1758-1911. Gainesville, FL: Florida University Press, 1999, p. 147, com alterações do autor.

5 Â

NGELO-MENEZES, Maria de Nazaré. “Aspectos conceituais do sistema agrário do Vale do Tocantins colonial”. In: Cadernos de Ciência e Tecnologia, Brasília, EMBRAPA, jan.-jun./2000, vol. 17, n. 01, pp. 99-122.

(5)

4

Um dos impactos mais significativos das políticas pombalinas na Amazônia foi, decer-to, a introdução de um grande contingente de escravos de origem africana na região. Estimati-vas mais recentes têm indicado que entraram cerca de 20 mil africanos no Grão-Pará (exclusi-ve o Maranhão), entre 1751 e 1787. Tais estimativas apontam ainda que, mesmo após a disso-lução da CGPM em 1778, o número de cativos ingressados no Grão-Pará permaneceu expres-sivo, em termos contextuais, até pelo menos o limiar do século 19. Calcula-se que, entre 1751 e 1841, aportaram mais de 40 mil escravos negros no Grão-Pará, sendo a grande maioria deles de origem africana. Na TABELA 01 podemos observar o número estimado de escravos que

en-traram no Grão-Pará entre os meados do século 18 e os meados do 19, e suas respectivas regi-ões de procedência:

TABELA 01

ESTIMATIVAS DE IMPORTAÇÃO DE ESCRAVOS PARA O GRÃO-PARÁ (1751-1841) PERÍODO

REGIÃO DE PROCEDÊNCIA

TOTAL

Mina Alta Guiné e Cabo Verde África Central e São Tomé Outras partes do Brasil 1751-1787 - - 13.133 58,42% 7.859 34,96% 1.489 6,62% 22.481 (100%) 1788-1800 328 3,90% 1.097 13,06% 4.979 59,26% 1.998 23,78% 8.402 (100%) 1801-1815 424 4,89% 2.282 26,32% 5.953 68,66% 11 0,13% 8.670 (100%) 1816-1841 - 658 15,27% 3.652 84,73% - - 4.310 (100%) TOTAL 752 1,71% 17.170 39,14% 22.443 51,17% 3.498 7,98% 43.863 (100%)

FONTE:HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, pp. 52-53, com alterações do autor.

A importação destes cativos contribuiu sobremaneira para a consolidação do complexo agroextrativista do Baixo Tocantins. Segundo os dados coligidos por Antônio Baena, relativos à década de 1820 e apresentados na TABELA 02, a população cativa do Vale do Tocantins

per-fazia 9.163 indivíduos, o que representava cerca de um terço da população geral daquela regi-ão e um terço de toda a populaçregi-ão escrava do Grregi-ão-Pará.6 Não obstante as limitações intrínse-cas às estatístiintrínse-cas produzidas por Baena, é possível notarmos que, à exceção da Vila de Came-tá e dos demais “Lugares” que compunham o Vale do Tocantins, os cativos chegaram a repre-sentar uma grande parte (Abaeté, Acará e Barcarena) ou, em alguns casos, até mesmo a maior parte (Igarapé-Miri e Moju) da população de várias das localidades desta região, evidenciando toda a importância demográfica e, à vista disso, econômica, da escravidão negra no Baixo To-cantins no contexto em tela.

6 B

AENA, Antônio. Ensaio corográfico sobre a Província do Pará. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004 [1839], pp. 260-268.

(6)

5 TABELA 02

POPULAÇÃO DO BAIXO TOCANTINS EM 1823

LOCALIDADE LIVRES ESCRAVOS TOTAL

# % # % Abaeté 2.425 59,67% 1.639 40,33% 4.064 (100%) Acará 1.539 51,71% 1.437 48,29% 2.976 (100%) Barcarena 472 56,39% 365 43,61% 837 (100%) Cametá 8.068 85,38% 1.382 14,62% 9.450 (100%) Igarapé-Miri 1.734 48,53% 1.839 51,47% 3.573 (100%) Moju 1.429 45,26% 1.728 54,74% 3.157 (100%) Outros "Lugares" 6.407 89,23% 773 10,77% 7.180 (100%)

TOTAL DO BAIXO TOCANTINS 22.074 70,67% 9.163 29,33% 28.401 (100%)

TOTAL DO GRÃO-PARÁ 119.877 79,99% 29.997 20,01% 149.874 (100%)

FONTE: BAENA, Antônio. Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004 [1839], pp. 260-268.

Esse contingente ajudou a suportar um complexo econômico dedicado ao extrativismo do cacau “bravo”, à produção de açúcar e derivados e à agricultura de gêneros diversos (cacau “manso”, a mandioca, o arroz, o algodão etc.).7

Tratava-se de um dos principais, senão o prin-cipal polo econômico do Grão-Pará oitocentista antes da consolidação da borracha enquanto o mais importante produto da pauta de exportações paraense, a partir da década de 1870. Apesar da reconhecida importância da mão de obra cativa na sustentação desse complexo econômico, ainda não conhecemos as particularidades do trabalho escravo negro no seu ambiente produti-vo. Qual(is) era(m) a(s) atividade(s) que arregimentava(m) o maior número de cativos? Qual a origem e o perfil sexo-etário dos escravos daquela região? São estas algumas das questões que procuramos responder neste texto.

CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA DE INVENTÁRIOS POST-MORTEM: UM ESFORÇO DE CRÍTICA DOCUMENTAL Para a elaboração deste estudo, lançamos mão de 30 inventários post-mortem disponí-veis nos acervos do Centro de Memória da Amazônia (CMA) e do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP). A amostra é conformada todos os 27 inventários post-mortem do CMA8 e os três inventários post-mortem disponíveis do APEP9 que arrolaram a posse de terras e escravos

7 A

NDERSON, Robin. Colonization as Exploitation in the Amazon Rain Forest, op. cit., pp. 40-64.

8 A amostra considerou praticamente todos os inventários post-mortem que se enquadravam nos parâmetros des-critos, à exceção do inventário post-mortem da viúva Francisca Xavier de Siqueira e Queirós. Como o inventário de Francisca foi elaborado poucos anos depois do inventário de seu marido, Amândio José de Oliveira Pantoja, a sua inclusão provavelmente acarretaria na duplicação de dados referentes aos mesmos escravos. Optamos, então, por incluir apenas o inventário de Amândio, que apresentava um panorama mais completo do plantel desse casal. 9 Como o APEP encontra-se fechado para a pesquisa desde meados de 2013, não tivemos acesso aos inventários post-mortem disponíveis em seu acervo; igualmente importante, mas numericamente inferior ao do CMA, no que

(7)

6

no Baixo Tocantins, durante a primeira metade do século.10 Estes 30 inventários post-mortem contemplam ao todo 34 plantéis (um inventário arrolou duas e outro quatro propriedades com cativos situadas em diferentes localidades do Vale do Tocantins) e 917 cativos, cujas caracte-rísticas serão analisadas mais adiante, nas demais seções do texto. A distribuição dos plantéis pesquisados em relação às localidades que compunham o Baixo Tocantins e às décadas anali-sadas, pode ser vislumbrada na TABELA 03:

TABELA 03

DISTRIBUIÇÃO DOS PLANTÉIS ESCRAVOS PESQUISADOS PELAS LOCALIDADES DO BAIXO TOCANTINS

(1810-1850) LOCALIDADE 1810-19 1820-29 1830-39 1840-50 TOTAL Abaeté 02 01 - 01 04 Acará - 03 03 04 10 Barcarena 02 01 02 01 06 Cametá - - 01 - 01 Igarapé-Miri 03 01 01 - 05 Moju 04 - 03 01 08 Outros "Lugares" - - - - - TOTAL 11 06 10 07 34

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA) e do Arquivo Público do

Esta-do Esta-do Pará (APEP)

A despeito da distribuição não uniforme dos inventários post-mortem pelas localidades e as décadas pesquisadas, a amostra é representativa no que concerne ao número total de cati-vos contemplados (N= 917), que corresponde à, aproximadamente, 10% da população escrava do Baixo Tocantins no alvorecer da década de 1820. Tal perspectiva é robustecida, por um la-do, ao levarmos em consideração não apenas as localidades da região de maneira isolada, mas o Vale do Tocantins como um todo, e, por outro lado, ao considerarmos o tipo de fonte usado, que como vem demonstrando a historiografia respeitante à estrutura da posse de escravos, não enseja a mesma abrangência sociodemográfica que, por exemplo, as listas nominativas de ha-bitantes.11 Ainda que os inventários post-mortem impliquem um recorte socioeconômico mais bem demarcado, cabe-nos questionar: qual era o perfil dos proprietários de escravos que com-põem de nossa amostra? Eram principalmente homens ou mulheres? Solteiros, casados ou vi-úvos? Quais atividades eles desenvolviam?

diz respeito, particularmente, a este tipo de fonte. Os três inventários provenientes do APEP adicionados em nos-sa amostra nos foram gentilmente cedidos, em formato digital, por Marília Imbiriba, a quem agradecemos. 10 Tendo em vista os parâmetros descritos acima, não encontramos inventários post-mortem referentes à primeira década do século 19. O inventário mais antigo disponível datava de 1810.

11 Ver: M

ARCONDES, Renato Leite. “Fontes censitárias brasileiras e posse de cativos na década de 1870”. In: Re-vista de Índias, Madrid, CCHS/CSIC, 2011, vol. LXXI, n. 251, pp. 231-258.

(8)

7

OS PROPRIETÁRIOS DE ESCRAVOS

Esta seção tem como objeto analisar o perfil dos proprietários de cativos do Baixo To-cantins, na primeira metade do século 19, em função do sexo, do estado conjugal e da ativida-de que ativida-desempenhavam.12 Considerando a amostra de inventários post-mortem utilizada neste estudo, observamos uma distribuição igualitária dos proprietários de cativos conforme o sexo: havia 13 proprietários do sexo masculino, 13 do sexo feminino e quatro casais (sendo três ca-sais de marido e mulher, e um casal de irmãos solteiros). Dos 13 proprietários do sexo mascu-lino, 12 eram casados legitimamente, um vivia em relação não legitimada pela Igreja e um era solteiro. Em nossa amostra, não encontramos qualquer homem viúvo. Das 13 proprietárias do sexo feminino, nove eram casadas legitimamente, uma era solteira e três eram viúvas. No caso do casal de irmãos citados anteriormente, ambos eram solteiros, como já destacamos.

Embora o pequeno número de observações não autorize maiores ilações acerca do per-fil dos proprietários de nossa amostra em relação ao estado conjugal, parece-nos haver, no ca-so examinado, uma possível asca-sociação entre a posse de escravos e a condição de “casado(a)”. Estudos acerca da estrutura da posse de escravos em outras regiões do Brasil, produzidos com base tanto nas listas nominativas de habitantes, quanto nos inventários post-mortem, têm sina-lizado a preponderância de escravistas casados. José Flávio Motta, analisando os proprietários de escravos de Bananal a partir das listas nominativas de habitantes, observou para os anos de 1801, 1817 e 1829, percentuais de proprietários homens casados de, respectivamente, 94,4%, 76,4% e 82,7%.13 Por seu turno, Luciana Suarez Lopes, ao estudar Ribeirão Preto, na segunda metade do século 19, a partir dos inventários post-mortem, encontrou que 92,5% dos proprie-tários e 80,9% das proprietárias do sexo feminino eram casados. Ademais, Lopes também ob-servou uma incidência ligeiramente maior de viúvas do que de viúvos entre os proprietários.14

No caso de nossa amostra, não seria de todo irreal supormos que a expressiva incidên-cia do casamento legítimo guardasse relação com o fato de que parte dos proprietários pesqui-sados pertencia a algumas das mais tradicionais – e abastadas – famílias do Baixo Tocantins e do Grão-Pará, a exemplo dos Oliveira Pantoja, dos Moraes Bittencourt, dos Corrêa de

12

Os inventários post-mortem pesquisados não apresentavam a idade dos inventariados, mas somente as suas da-tas de falecimento e as idades dos seus respectivos filhos, caso houvesse. Na documentação compulsada também não foi informada a naturalidade dos inventariados. No entanto, como o contexto em tela é anterior à intensifica-ção d fluxo migratório destinado à região amazônica, especialmente a partir da década de 1870, não seria irrazo-ável aventarmos que grande parte dos proprietários, aqui examinados, fosse de origem paraense ou portuguesa. 13 M

OTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999, pp. 116-118.

14 L

OPES, Luciana Suarez. A estrutura da posse de cativos nos momentos iniciais da cultura cafeeira no novo Oeste Paulista. Ribeirão Preto: 1849-1888. Encontro Nacional de Estudos Populacionais, XVI, 2004. Caxambu. Anais... Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2004, p. 08.

(9)

8

da e dos Borges Machado. Para essas famílias, o casamento legítimo estabelecia “alianças ma-trimoniais [que] proporcionavam o acesso a terras ou a novos tipos de negócios”15, a extensão das redes familiares e a aquilatação dos seus cabedais simbólico e econômico. O pertencimen-to dos proprietários de nossa amostra à elite tradicional do Grão-Pará traduz-se nas atividades que desenvolviam. A distribuição dos escravistas pesquisados conforme a ocupação ou as ati-vidades principais inferidas a partir inventários post-mortem é apresentada na TABELA 04:

TABELA 04

DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVISTAS SEGUNDO A OCUPAÇÃO OU AS ATIVIDADES CARACTERÍSTICAS DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM DO BAIXO TOCANTINS (1810-1850)

OCUPAÇÃO/ATIVIDADES #

Produção de açúcar e derivados 06 Produção de açúcar e derivados e de cacau 04

Produção de cacau 02

Produção de subsistência ou abastecimento 07 Agricultura e/ou Extrativismo 06

Militares 02

Desembargador 01

Eclesiástico 01

Não definido 01

TOTAL 30

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA)

e do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP)

Grande parte dos proprietários de nossa amostra não possuía ocupações ou desempe-nhava atividades bem definidas. Portanto, para sua classificação lançamos mão das caracterís-ticas produtivas descritas nos inventários post-mortem. A partir deste critério, verificamos que a maioria dos proprietários estava relacionada a atividades produtivas desenvolvidas no âmbi-to do complexo agroextrativista do Baixo Tocantins, desde uma produção de subsistência com pequenos plantéis até a produção, em larga escala, de açúcar e cacau nas grandes propriedades escravistas. Mesmo os proprietários enquadrados nas categorias “Militares” (mais uma distin-ção, que uma ocupação propriamente dita), “Desembargador” e “Eclesiástico” estavam en-volvidos em atividades relacionadas àquele complexo.16 De que modo a posse de escravos es-tava distribuída entre aqueles escravistas? Traes-tava-se de um padrão de posse com alta

15

ÂNGELO,Helder Bruno Palheta. O longo caminho dos Corrêa de Miranda no século XIX: um estudo sobre fa-mília, poder e economia. Dissertação (Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2012, p.24. 16 Em estudo anterior, observamos que a partir dos meados do século 19, passamos a encontrar referências a uma nova geração de indivíduos pertencentes à elite tradicional, com formação acadêmica e atuação em profissões li-berais, principalmente nas áreas do Direito e da Medicina. Essa maior presença tornava claro um esforço daquela elite em prover uma formação acadêmica mais sólida a alguns dos seus membros, em uma iniciativa que contava com o apoio da própria administração provincial do Grão-Pará. Cf.: BARROSO, Daniel Souza. Casamento e com-padrio em Belém nos meados do Oitocentos. Dissertação (Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2012, p. 111.

(10)

9

tração ou relativamente bem distribuída? Qual atividade arregimentava o maior número de es-cravos: a produção do açúcar, do cacau, as demais lavouras ou uma produção de subsistência?

A ESTRUTURA DA POSSE DE CATIVOS

Esta seção tem como objetivo analisar os elementos gerais da estrutura da posse de ca-tivos no Vale do Tocantins na primeira metade do século 19. Para a melhor caracterização das propriedades escravas analisadas, classificamos as escravarias de nossa amostra em cinco fai-xas de tamanho, a saber: pequenos (de um a nove cativos); médios (de 10 a 19 cativos); gran-des (de 20 a 49 cativos), muito grangran-des (de 50 a 99 cativos) e megaplantéis (com 100 ou mais cativos). Tal classificação levou em consideração não somente alguns dos parâmetros existen-tes na historiografia, de estudos que examinaram a estrutura da posse de cativos a partir de in-ventários post-mortem,17 como também e principalmente, as especificidades da realidade ana-lisada. A distribuição dos proprietários e dos escravos segundo a classificação proposta acima pode ser visualizada na TABELA 05:

TABELA 05

ESTRUTURA DA POSSE DE CATIVOS DO BAIXO TOCANTINS (1810-1850)

FTP PROPRIETÁRIOS ESCRAVOS # # % % ac. 01-09 09 49 5,34% 5,34% 10-19 10 135 14,72% 20,06% 20-49 07 257 28,03% 48,09% 50-99 02 120 13,09% 61,18% 100/+ 02 356 38,82% 100% TOTAL 30 917 100% 100%

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público

do Estado do Pará (APEP)

Os dados apresentados demonstram que, enquanto a maior parte dos proprietários era detentora de pequenos ou médios plantéis, a grande maioria dos escravos integrava os plantéis grandes, muito grandes ou, ainda, os megaplantéis. Por mais que o pequeno número de obser-vações não nos permita distinguir um escravista-médio, o escravo-médio de nossa amostra era o escravo das grandes propriedades do Baixo Tocantins; 80% de todos os cativos pesquisados pertenciam a plantéis com 20 ou mais cativos. Tal característica, embora naturalmente

17 S

ALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras - Século XIX. Senhores e Escravos no Coração do

Impé-rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008;PESSI, Bruno Stelmach. Entre o Fim do Tráfico e a Abolição: a

manutenção da escravidão em Pelotas, RS, na segunda metade do século XIX (1850 a 1884). Dissertação (Mes-trado em História Social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012.

(11)

10

onada ao seu pano de fundo socioeconômico e eventualmente enviesada pelo pequeno número de observações que compõem nossa amostra, não reproduz o padrão geral da estrutura da pos-se de cativos no Brasil, que aponta para a concentração da maioria dos escravos nos pequenos e médios plantéis.18 Seria este um indicativo de uma maior concentração da posse de cativos?

O índice de Gini calculado sobre a nossa amostra é 0,59, o que assinala uma concen-tração de posse moderadamente forte19 entre os proprietários de escravos do Baixo Tocantins, na primeira metade do século 19. Infelizmente, não dispomos de indicadores correlatos para o Grão-Pará que nos possibilitem contextualizar o índice de Gini encontrado em relação ao Vale do Tocantins. Além do mais, ainda não dispomos do índice de Gini daquela região na segunda metade do século 19, que nos permitiria verificar a hipótese de concentração da posse de cati-vos no Brasil, marcada pela “hegemonia da vida coletiva nos grandes plantéis”, como alvitrou Hebe Mattos.20 Nesse sentido, de maneira a situarmos o índice de Gini encontrado para a pos-se de cativos no Baixo Tocantins em um panorama mais amplo, aprepos-sentamos, na TABELA 06,

alguns indicadores referentes a outras localidades do Brasil, na primeira metade do século 19:

TABELA 06

ÍNDICES DE GINI RELACIONADOS À POSSE DE ESCRAVOS EM DIFERENTES REGIÕES BRASILEIRAS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 19

LOCALIDADE/PERÍODO DE REFERÊNCIA ÍNDICE DE GINI

Bahia, 1816-1817 a 0,59

Vila Rica (Minas Gerais), 1804 b 0,50

Campinas (São Paulo), 1804 b 0,59

Oeste Paulista, 1829 c 0,65

Castro e Ponta Grossa (Paraná), 1825 d 0,50

Baixo Tocantins (Grão-Pará), 1810-1850 e 0,59

FONTE:(a)SCHWARTZ, Stuart B. “Padrões de propriedade de escravos nas Américas: nova evidência para o Brasil”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 13, n. 01, jan.-abr./1983, pp. 259-287; (b)LUNA,

Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero da. “Posse de escravos em São Paulo no início do século XIX”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 13, n. 01, jan.-abr./1983, pp. 211-221; (c)LUNA, Francisco Vidal. “São Paulo: população, atividades e posse de escravos em vinte e cinco localidades (1777-1829)”. In:

Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 28, n. 01, jan.-mar./1998, pp. 99-169; (d)GUTIÉRREZ, Horá-cio. “Fazendas de gado no Paraná escravista”. In: TOPOI - Revista de História, Rio de Janeiro, UFRJ, vol. 9,

n. 09, jul.-dez./2004; pp. 102-127; (e)Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP).

18

Cf.: MOTTA, José Flávio; NOZOE, Nelson Hideiki & COSTA, Iraci del Nero da. “Às Vésperas da Abolição: um estudo sobre a estrutura da posse de escravos em São Cristóvão (RJ), 1870”. In: Estudos Econômicos, São Pau-lo, IPE/USP, vol. 34, n. 01, jan.-mar./2004, pp. 157-213.

19 Segundo a classificação dos graus de concentração do Índice de Gini concernentes à posse de escravos propos-ta por Francisco Vidal Luna e Iraci del Nero da Cospropos-ta, os valores entre 0,501 a 0,625 são considerados de media-nos a moderadamente fortes. Ver: LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. “Sobre a estrutura da posse de escravos em São Paulo e Minas Gerais nos albores do século XIX”. In: Estudios Históricos, Uruguay, Centro de Documentación Histórica del Rio de la Plata, Noviembre/2010, n. 05, s/n.

20 M

ATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 138.

(12)

11

Não obstante os distintos panos de fundo socioeconômicos que condicionaram os indi-cadores apresentados na TABELA 06, o índice que encontramos para o Baixo Tocantins (0,59),

decorrente da concentração da grande maioria dos escravos de nossa amostra nos plantéis com 20 ou mais escravos, mostrou-se bastante semelhante aos coeficientes encontrados em relação aos principais engenhos de açúcar da Bahia, para os anos de 1816 e 1817, e à importante regi-ão açucareira de Campinas para o ano de 1804. Além disso, o nosso índice se mostrou superi-or aos encontrados para Vila Rica, em 1804, já no recesso da mineração, e para as fazendas de gado de Castro e Ponta Grossa, no ano de 1825. Por outro lado, se mostrou inferior àquele en-contrado para o Oeste Paulista (inclusive Campinas) em 1829, que na altura ainda se dedicava à lavoura açucareira. Em meio ao complexo agroextrativista estabelecido no Baixo Tocantins, a qual(is) atividade(s) se dedicavam os cativos de nossa amostra? A distribuição dos plantéis e dos cativos segundo as atividades econômicas das propriedades, é apresentada na TABELA 07:

TABELA 07

DISTRIBUIÇÃO DOS PLANTÉIS SEGUNDO FAIXAS DE TAMANHO E AS ATIVIDADES CARACTERÍSTICAS DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM (BAIXO TOCANTINS,1810-1850)

ATIVIDADES FTP ESCRAVOS

01-09 10-19 20-49 50-99 100/+ TOTAL # MÉDIA %

Açúcar e derivados 01 03 04 01 02 11 565 51,36 61,61%

Açúcar e derivados, e Cacau 01 01 02 01 - 05 147 29,40 16,03%

Cacau - 02 - - - 02 35 17,50 3,82%

Agricultura e/ou Extrativismo 01 02 03 - - 06 110 18,33 12,01%

Subsistência ou Abastecimento 07 02 - - - 09 57 6,33 6,20%

Sem atividade a 01 - - - - 01 03 3,00 0,33%

TOTAL 11 10 09 02 02 34 917 26,97 100%

(a)Os três cativos, pertencentes a Lourenço Justiniano de Paiva, foram classificados como “Sem atividade” por se encontrarem em poder dos “rebeldes” cabanos durante a feitura do inventário.21

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP)

Os dados estampados na TABELA 07 revelam que a maior parte dos plantéis e dos

ca-tivos pesquisados dedicava-se à produção do açúcar e dos derivados da cana, por vezes conju-gando tais atividades com a produção de cacau, numa mesma propriedade. Em nossa amostra, poucas foram as propriedades que se dedicaram, especificamente, à produção do cacau, ainda que tal produção possa ter sido sub-representada por envolver, em certos casos, uma atividade

21 Sobre a Cabanagem – revolução social ocorrida no Grão-Pará durante o Período Regencial –, ver dentre ou-tros: RICCI, Magda “Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840”. In: Tempo, Rio de Janeiro, UFF, 2007, vol. 11, n. 22, pp. 05-30.

(13)

12

extrativista. As seis propriedades incluídas na categoria “agricultura e/ou extrativismo” dizem respeito justamente aos casos em que não se especificou, nos inventários post-mortem pesqui-sados, a cultura ou a coleta de quaisquer gêneros declarados. Por outro lado, foram representa-tivas, em nossa amostra, as propriedades dedicadas a uma produção de subsistência, em geral, associadas a pequenas ou médias escravarias. Tecidos estes comentários mais gerais, cabe-nos agora esmiuçar a participação dos escravos que compõem a nossa amostra nas atividades des-critas acima, na TABELA 07.

De uma produção em pequena escala levada a cabo pelas engenhocas de poucos cati-vos a uma produção em larga escala levada a efeito pelos engenhos possuidores de megaplan-téis, a produção do açúcar e dos derivados da cana eram atividades amplamente disseminadas no Vale do Tocantins na primeira metade do século 19. Uma em cada três propriedades e cer-ca de 60% dos cer-cativos que compõem nossa amostra votavam-se a tal produção. Os dois maio-res plantéis pesquisados (um com 209, outro com 147 escravos) dedicavam-se a estas ativida-des, o que contribuiu para elevar a média de cativos por unidade produtora de açúcar e dos de-rivados da cana para mais 50 cativos por propriedade. Por vezes, as propriedades aliavam esta produção com outra atividade bastante disseminada no Baixo Tocantins: a produção de cacau. As propriedades voltadas a ambas as atividades possuíam, também, uma grande quantidade de escravos (16,03% do total), ainda que com uma média menor (29,4) de cativos por proprieda-de, em parte justificada pela inexistência de megaplantéis com estas características produtivas.

A produção do cacau, seja conjugada à produção do açúcar e de derivados da cana ou uma produção específica, é complexa. Os inventários post-mortem não nos ensejam distinguir claramente se tratava-se de uma produção agrícola ou extrativista, por fazerem referência so-mente ao número de pés de cacau. Por ser uma espécie nativa da Amazônia, é possível que no caso de uma eventual produção de caráter extrativista, fosse coletado o cacau “bravo”, dispos-to em grande quantidade no Vale do Tocantins e que poderia não ser arrolado enquandispos-to “bem” nos inventários post-mortem. Nesse sentido, o real número de cativos envolvidos na produção do cacau tenderia a ser subestimado. É não apenas possível, mas também provável, que algu-mas das propriedades, classificadas na categoria genérica “agricultura e/ou extrativismo”, fos-sem, em verdade, unidades produtoras de cacau por meio do extrativismo. Diante disto, é pos-sível que a produção do cacau, não necessariamente exclusiva, tenha sido a segunda atividade a contar com um maior número de escravos, atrás apenas do açúcar e dos derivados da cana.22

22 Sobre a produção de cacau na Amazônia, ver dentre outros: A

LDEN, Dauril. “The Significance of Cacao Pro-duction in the Amazon Region during the Late Colonial Period: An Essay in Comparative Economic History. In: Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 120, n. 02, Apr. 05/1976, pp. 103-135; CHAMBOU

(14)

-13

Outra atividade importante no cenário econômico do Baixo Tocantins era a produção de subsistência ou de abastecimento realizada por pequenos ou médios produtores, detentores de plantéis com menos 10 cativos, em geral. Estes produtores, assim como destacamos anteri-ormente, desenvolviam um policultivo caracterizado por pequenas “sortes” de terra, que man-tinha vínculos regulares com o mercado e, portanto, não se furtava de vender os seus exceden-tes. Tais produtores detinham uma pequena parcela dos cativos que compõem a nossa amostra (algo em torno de 6% do total de escravos coligidos), apresentando uma média de pouco mais de seis cativos por propriedade. Seus escravos se dedicavam à produção da mandioca, da fari-nha e de gêneros diversos (inclusive o café), além de desenvolverem outras atividades como a pesca e a criação de animais.

O panorama traçado nos últimos parágrafos naturalmente não contempla, na sua tota-lidade e complexidade, o pano de fundo econômico do Vale do Tocantins, na primeira metade do século 19. Por limitações de fonte, muitas das atividades que permearam a vida cotidiana e material dos cativos que compõem nossa amostra acabaram sendo encobertos. De toda manei-ra, os inventários post-mortem compulsados possibilitam-nos avançar na compreensão das ca-racterísticas demográficas dos escravos analisados. Qual a distribuição dos escravos que com-põem a nossa amostra segundo o sexo, a origem (crioula ou africana) e a idade? Havia, na po-pulação cativa do Baixo Tocantins, mais homens ou mulheres? Crioulos ou africanos? Jovens, adultos ou velhos? A caracterização dessa população será o nosso objeto de análise na próxi-ma seção.

OS ESCRAVOS

O ótimo estado de conservação e a completude dos inventários post-mortem compul-sados no que diz respeito à descrição dos cativos, possibilitaram-nos proceder à caracterização de praticamente todos os escravos que compõem a nossa amostra em relação ao sexo, à idade, à origem e às suas relações familiares. Dos 917 escravos examinados, conseguimos verificar o sexo de todos, a idade de 901 (98,25%) e a origem de 899 (98,03%) deles. Além do mais, não obstante as limitações impostas pelo tipo de documentação utilizado – que tende a subestimar a representatividade dos cativos em relações familiares, conseguimos apreender 305 (33,35%) vivendo em família. Tecidas estas considerações iniciais, passamos, agora, para a caracteriza-ção demográfica dos cativos que compõem a nossa amostra, iniciando pela análise de sua dis-tribuição segundo o sexo. Vejamos a TABELA 08:

LEYRON, Rafael Ivan. “Cacao, Bark-Clove and Agriculture in the Portuguese Amazon Region in the Seventeenth and Early Eighteenth Century”. In: Luso-Brazilian Review, vol. 51, n. 01, 2014, pp. 01-35.

(15)

14 TABELA 08

DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS DE ACORDO COM O SEXO E AS FAIXAS DE TAMANHO DE PLANTEL

(BAIXO TOCANTINS,1810-1850)

FTP

SEXO

RAZÃO DE SEXO TOTAL

HOMENS MULHERES # % # % 01-09 28 57,14% 21 42,86% 133,3 49 (100%) 10-19 79 58,52% 56 41,48% 141,1 135 (100%) 20-49 127 49,42% 130 50,58% 97,7 257 (100%) 50-99 65 54,17% 55 45,83% 118,2 120 (100%) 100/+ 201 56,46% 155 43,54% 129,7 356 (100%) TOTAL 500 54,53% 417 45,37% 120,2 917 (100%)

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público

do Estado do Pará (APEP)

Os dados apresentados na TABELA 08 evidenciam um relativo equilíbrio na

distribui-ção da populadistribui-ção escrava do Baixo Tocantins entre os sexos, com pequenas variações entre as faixas de tamanho de plantel. Em geral, tal população apresentava uma razão de sexo de 120,2 – que pode ser considerada razoavelmente baixa, nos termos de uma população cativa inserida em um ambiente marcadamente rural, com uma produção, em larga escala, voltada à exporta-ção.23 Não obstante as variações conforme as faixas de tamanho de plantel, havia uma expres-siva diferença na razão de sexo entre os escravos crioulos e os africanos. Enquanto os crioulos apresentavam uma razão de sexo de 92,2, apontando para uma ligeira predominância feminina neste segmento, os africanos, por sua vez, apresentavam uma alta razão de sexo de 232,9, evi-denciando, como já era esperado, uma clara predominância masculina entre eles.

TABELA 09

DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS DE ACORDO COM A ORIGEM E AS FAIXAS DE TAMANHO DE PLANTEL

(BAIXO TOCANTINS,1810-1850) FTP ORIGEM TAXA DE AFRICANIDADE TOTAL BRASIL ÁFRICA # % # % 01-09 32 72,73% 12 27,27% 37,5 44 (100%) 10-19 113 84,96% 20 15,04% 17,7 133 (100%) 20-49 163 65,73% 85 34,27% 52,1 248 (100%) 50-99 90 75,00% 30 25,00% 33,3 120 (100%) 100/+ 240 67,42% 116 32,58% 48,3 356 (100%) TOTAL 638 70,81% 263 29,19% 41,2 901 (100%)

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público

do Estado do Pará (APEP)

23 Para um panorama geral do escravismo no Brasil, ver dentre outros: K

LEIN, Herbert & LUNA, Francisco Vidal. Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

(16)

15

Por mais que se tratasse de uma massa majoritariamente crioula, a população escrava do Baixo Tocantins, na primeira metade do século 19, contava ainda com uma expressiva par-ticipação de africanos, das mais diversas proveniências. Cerca de 30% dos escravos que com-põem a nossa amostra eram de origem africana, produzindo uma taxa de africanidade geral de 41,2. Muito embora a maior parcela de africanos estivesse concentrada nas maiores escravari-as (os plantéis grandes e os megaplantéis apresentaram escravari-as mais elevadescravari-as taxescravari-as de africanidade de nossa amostra), podemos observar alguma capacidade das pequenas propriedades, em geral dedicadas a atividades de subsistência ou abastecimento, em comprar africanos, renovando ou ampliando os seus plantéis a partir do tráfico, o que reforça a ideia de que estes pequenos pro-dutores mantinham vínculos regulares com o mercado.

Das 250 observações em que pudemos verificar não só a origem africana, como tam-bém a região de procedência dos escravos de nossa amostra, constatamos que 92 (36,80%) ca-tivos eram de origem sudanesa e 158 (63,20%) de origem banto. Conquanto o contexto em te-la seja caracterizado por uma transição na proveniência dos escravos destinados ao Brasil, po-demos observar uma ainda elevada representatividade de cativos de origem sudanesa em nos-sa amostra. Esnos-sa constatação é um elemento a mais no sentido de corroborar uma característi-ca bastante particular do tráfico de africaracterísti-canos para a Amazônia: se, por um lado, desde o século 18, a maior parte dos africanos ingressados no Brasil, pelo porto do Rio de Janeiro, já era pro-veniente da África Central Atlântica, tornando pouco expressivo o contingente propro-veniente da África Ocidental,24 por outro lado, no caso do Grão-Pará, o tráfico de escravos da África Oci-dental manteve-se expressivo, ainda que declinante e menos representativo até os anos iniciais do século 19, quando de sua proibição definitiva em 1815 (ver TABELA 01, p. 04).

Com vistas a avançarmos na caracterização dos cativos que compõem nossa amostra, apresentamos, na TABELA 10, a distribuição dos escravos analisados segundo as faixas etárias

e as faixas de tamanho de plantel. Para fins de análise, consideramos, como cativos jovens, os menores de 15 anos; como cativos adultos, aqueles entre 15 e 49 anos e, como cativos velhos, aqueles com 50 ou mais anos de idade.25 Os dados estampados na TABELA 10 evidenciam que

a população escrava do Vale do Tocantins, na primeira metade do século 19, era composta em sua maioria por cativos adultos, sendo representativo o número de cativos jovens e menos ex-pressivo o número cativos velhos. Essa distribuição, respeitante à totalidade de nossa amostra, apresentou pequenas variações, em função das diferentes faixas de tamanho de plantel.

24

FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janei-ro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1995].

25 A classificação dos escravos acima dos 50 anos como velhos foi proposta por José Flávio Motta para o caso da Província de São Paulo. Ver: MOTTA, José Flávio, “O tráfico de escravos velhos (Província de São Paulo, 1861-1887)”. In: História: Questões & Debates, n. 52, jan.-jun./2010, pp. 41-73.

(17)

16 TABELA 10

DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS DE ACORDO COM AS FAIXAS ETÁRIAS E AS FAIXAS DE TAMANHO DE PLANTEL (BAIXO TOCANTINS,1810-1850)

FTP FAIXAS ETÁRIAS (em anos) I DADE MÉDIA (em anos) TOTAL 0-14 15-49 50/+ IMéd. DP # % # % # % 01-09 16 34,78% 24 52,17% 06 13,04% 24,96 19,23 46 (100%) 10-19 46 34,33% 72 53,73% 16 11,94% 27,50 18,35 134 (100%) 20-49 70 27,67% 144 56,92% 39 15,42% 25,09 19,13 253 (100%) 50-99 40 35,71% 58 51,79% 14 12,50% 27,64 18,18 112 (100%) 100/+ 97 27,40% 212 59,89% 45 12,71% 24,95 18,17 354 (100%) TOTAL 269 29,92% 510 56,73% 120 13,35% 26,73 18,44 899 (100%)

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP)

A idade média dos cativos de nossa amostra é de 26,7 anos – não havendo diferenças estatisticamente significativas entre as idades médias dos cativos das cinco faixas de tamanho de plantel consideradas.26 Os dados apresentados na TABELA 11 demonstram que também não

havia diferenças estatisticamente significativas entre as idades médias dos homens (27,6 anos) e das mulheres (25,6 anos) que constituem nossa amostra. 27 Por outro lado, a idade média dos africanos examinados (38,8 anos) era superior à dos crioulos (21,6 anos).28 Essa diferença de-corria, em grande medida, das distintas composições etárias das populações crioula e africana; enquanto aquela era formada por um expressivo número de jovens e poucos velhos, a africana era formada por pouquíssimos jovens, uma grande massa de adultos e um número razoável de escravos velhos.

As distintas composições sexo-etárias das populações crioula e africana respeitam às formas pelas quais tais populações se formaram. No caso dos africanos, a sua composição po-de ser explicada a partir das especificidapo-des do tráfico po-de cativos. A preferência pela importa-ção de homens, em idade produtiva, justificava a elevada razão de sexo (232,9) e a concentra-ção dos africanos nas duas últimas faixas etárias (adultos e velhos). No caso da populaconcentra-ção cri-oula, a dependência da reprodução endógena do próprio segmento escravo justificava uma ra-zão de sexo equilibrada e a presença de um número expressivo de jovens. Resta-nos saber em

26 Ao aplicarmos o teste de análise de variância (One-Way Anova), foi aceita a hipótese de igualdade das médias de idade dos cativos em relação às cinco faixas de tamanho de plantel consideradas neste estudo. Utilizamos so-mente um fator e comparamos as médias de idade a um nível de significância de 5%, obtendo os seguintes resul-tados: F calculado= 0,93, F crítico= 2,37.

27 Procedemos ao teste t-student (bicaudal, nível de significância de 5%), obtendo os seguintes resultados: T cal-culado= 1,64, T crítico= 1,96.

28 Procedemos ao teste t-student (unicaudal à direita, nível de significância de 5%), obtendo os seguintes resulta-dos: T calculado= 13,95, T crítico= 1,64.

(18)

17

que medida o pequeno número de velhos estava relacionado a uma alta mortalidade ou, ainda, à recenticidade do processo de reprodução desta população. Entretanto, não dispomos de ele-mentos o suficiente para respondermos a esta questão.

TABELA 11

DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS DE ACORDO COM AS FAIXAS ETÁRIAS, O SEXO, A ORIGEM E AS FAIXAS DE TAMANHO DE PLANTEL (BAIXO TOCANTINS,1810-1850)

SEXO/ORIGEM FAIXAS ETÁRIAS (em anos) I DADE MÉDIA (em anos) TOTAL 0-14 15-49 50/+ IMéd. DP # % # % # % S EX O Homens 134 27,29% 287 58,45% 70 14,26% 27,65 17,97 491 (100%) Mulheres 135 33,09% 223 54,66% 50 12,25% 25,62 18,96 408 (100%) TOTAL 269 29,92% 510 56,73% 120 13,35% 26,73 18,44 899 (100%) O R IG EM Brasil 257 40,92% 326 51,91% 45 7,17% 21,59 16,77 628 (100%) África 10 3,88% 177 68,60% 71 27,52% 38,79 16,37 258 (100%) TOTAL 268 29,88% 509 56,74% 120 13,38% 26,73 18,44 897 (100%)

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público

do Estado do Pará (APEP)

O elevado número de crianças, em sua esmagadora maioria crioulas, existente na po-pulação escrava do Vale do Tocantins na primeira metade do século 19, guardava relação com a moderadamente elevada razão crianças-mulheres de 852 – que aponta para um padrão de fe-cundidade relativamente alto entre as mulheres que compõem a nossa amostra, sejam elas cri-oulas ou africanas. A razão encontrada em relação ao Baixo Tocantins assemelha-se bastante às encontradas para outras regiões do Brasil, em um contexto próximo. Horácio Gutiérrez cal-culou a razão de 840 para as cativas paranaenses em 1824. Francisco Vidal Luna, por sua vez, calculou a razão de 664 para as escravas de Mogi das Cruzes, em 1829. Já Heloísa Maria Tei-xeira computou a razão de 881, para as escravas de Mariana, entre 1850 e 1859. Não obstante a utilização de parâmetros por vezes distintos do nosso e os diferentes panos de fundo socioe-conômicos, as razões calculadas para outras regiões brasileiras mostraram-se próximas àquela que encontramos para o Vale do Tocantins, na primeira metade do século 19.29

29 Adotamos como parâmetro as crianças de 0 a 9 anos e as mulheres de 15 a 49 anos; o mesmo utilizado por He-loísa Maria Teixeira. Gutiérrez e Luna utilizaram a nossa mesma faixa etária para as crianças, mas consideraram, respectivamente, as mulheres de 10 a 49 anos e de 15 a 44 anos. Cf.: GUTIÉRREZ, Horácio. “Demografia escrava numa economia não exportadora: Paraná, 1800-1830”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol.17, n. 02, 1987, p. 309; LUNA, Francisco Vidal. “Casamentos em São Paulo”. In: NADALIN, Sérgio O. & BALHANA, Al-tiva (Org). História da População: estudos sobre a América Latina. São Paulo: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1990, p. 358; TEIXEIRA, Heloísa Maria. “Família escrava, sua estabilidade e reprodução em Mari-ana, 1850-1888”. In: Afro-Ásia, Salvador, UFBA, 28, 2002, p. 199.

(19)

18 TABELA 12

DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS DE ACORDO COM OS TIPOS DE FAMÍLIA E AS FAIXAS DE TAMANHO DE PLANTEL (BAIXO TOCANTINS,1810-1850)

FTP TIPOS DE FAMÍLIA

Nuclear Matrifocal Extensa Múltipla Outros TOTAL

01-09 - 12 - - - 12 10-19 03 40 03 - - 46 20-49 07 50 04 10 - 71 50-99 05 32 - - - 37 100/+ 33 80 14 05 07 139 TOTAL 48 214 21 15 07 305

FONTE: Inventários post-mortem do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA) e do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP)

A fecundidade moderadamente elevada das mulheres do Baixo Tocantins, na primei-ra metade do século 19, mantinha relação estreita com a família. Cerca de um terço dos escprimei-ra- escra-vos que compõem nossa amostra viviam em famílias das mais distintas estruturas. A incidên-cia e o grau de complexidade das relações familiares estavam assoincidên-ciados, como assinala a his-toriografia sobre o tema,30 às diferentes faixas de tamanho de plantel. No caso de nossa amos-tra não há como desconsiderarmos, também, a razão de sexo relativamente equilibrada dos ca-tivos examinados. Como podemos apreender a partir dos dados apresentados na TABELA 12, a

maior parte dos escravos envolvidos em relações familiares vivia em famílias matrifocais. Em segundo lugar, estavam os escravos que viviam em famílias nucleares e, a seguir, os que vivi-am em fvivi-amílias extensas, múltiplas e em outras formas de fvivi-amília. Ao todo, apenas 4,87% dos cativos do sexo masculino e 5,38% das cativas com 15 anos de idade ou mais, foram descritos como casados nos inventários post-mortem consultados. A tirar pela idade dos filhos mais ve-lhos das escravas examinadas, podemos observar que, enquanto algumas destas famílias havi-am acabado de se formar, outras já vivihavi-am em relações fhavi-amiliares estáveis há anos, que chega-ram a remontar, inclusive, às últimas décadas do século 18.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas páginas, analisamos as características da estrutura da posse de cativos do Baixo Tocantins, na primeira metade do século 19. A partir de uma amostra composta por to-dos os 30 inventários post-mortem disponíveis que arrolaram a posse de terras e cativos na re-gião tocantina, observamos que os proprietários de escravos examinados eram igualitariamen-te distribuídos conforme o sexo e, em sua maioria, casados. Tais proprietários eram deigualitariamen-tentores

30 Ver dentre muitos outros: S

LENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Editora da Unicamp, 2011 [1999].

(20)

19

de 34 plantéis espalhados pelas diversas localidades que formavam o Vale do Tocantins. Estes plantéis agregavam, ao todo, 917 cativos (aproximadamente 10% da população escrava da re-gião, em 1823) que se dedicavam a variadas atividades econômicas, com destaque para a pro-dução do açúcar e de derivados da cana, do cacau e, em menor medida, para uma propro-dução de subsistência e de abastecimento.

Avançamos, também, na caracterização da população cativa do Baixo Tocantins. Ob-servamos tratar-se de uma população fundamentalmente crioula e relativamente bem distribu-ída segundo o sexo e as faixas etárias. A população crioula, composta por um grande número de jovens, uma maioria de adultos e uma pequena quantidade de velhos, mostrou-se, em geral, mais jovem do que a africana – composta por poucos jovens, uma expressiva maioria de adul-tos e uma parcela expressiva de velhos. Verificamos, igualmente, que grande parte dos cativos que compõem a nossa mostra vivia em família e que as escravas analisadas apresentavam uma fecundidade modernamente elevada, indicando algum grau de reprodução endógena desta po-pulação. Ademais, observamos que parte destas famílias estava estabelecida há anos, indican-do, também, um relativo grau de estabilidade em tais relações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. “Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do Acará nos séculos XVIII e XIX”. In: Papers do NAEA, Belém, UFPA, out./2000, n. 153, pp. 01-26.

ALDEN, Dauril. “The Significance of Cacao Production in the Amazon Region during the Late Colonial Period: An Essay in Comparative Economic History. In: Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 120, n. 02, Apr. 05/1976, pp. 103-135.

ANDERSON, Robin. Colonization as Exploitation in the Amazon Rain Forest, 1758-1911. Gainesville, FL: Flori-da University Press, 1999.

ÂNGELO, Helder Bruno Palheta. O longo caminho dos Corrêa de Miranda no século XIX: um estudo sobre famí-lia, poder e economia. Dissertação (Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2012.

ÂNGELO-MENEZES, Maria de Nazaré. “Aspectos conceituais do sistema agrário do Vale do Tocantins colonial”. In: Cadernos de Ciência e Tecnologia, Brasília, EMBRAPA, jan.-jun./2000, vol. 17, n. 01, pp. 99-122.

BAENA, Antônio. Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004 [1839].

BARROSO, Daniel Souza. Casamento e compadrio em Belém nos meados do Oitocentos. Dissertação (Mestrado em História). Belém: Universidade Federal do Pará, 2012.

BARROSO, Daniel Souza. “Por uma História da Família e da População na Amazônia brasileira: percursos histo-riográficos”. In: CICERCHIA, Ricardo; BACELLAR, Carlos & IRIGOYEN, António (Coords.). Estructuras, coyuntu-ras y representaciones. Perspectivas desde los estudios de las formas familiares. Murcia: Ediciones de la Uni-versidad de Murcia, 2014, pp. 51-66.

BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (Séculos XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2011. CHAMBOULEYRON, Rafael Ivan. “Cacao, Bark-Clove and Agriculture in the Portuguese Amazon Region in the Seventeenth and Early Eighteenth Century”. In: Luso-Brazilian Review, vol. 51, n. 01, 2014, pp. 01-35.

FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1995].

(21)

20

GUTIÉRREZ, Horácio. “Demografia escrava numa economia não exportadora: Paraná, 1800-1830”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol.17, n. 02, 1987, pp. 297-314.

GUTIÉRREZ, Horácio. “Fazendas de gado no Paraná escravista”. In: TOPOI - Revista de História, Rio de Janeiro, UFRJ, vol. 9, n. 09, jul.-dez./2004; pp. 102-127.

HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830. Cam-bridge: Cambridge University Press, 2010.

KLEIN, Herbert & LUNA, Francisco Vidal. Escravismo no Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

LOPES, Luciana Suarez. A estrutura da posse de cativos nos momentos iniciais da cultura cafeeira no novo Oeste Paulista. Ribeirão Preto: 1849-1888. Encontro Nacional de Estudos Populacionais, XVI, 2004. Caxambu. Anais... Campinas: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2004. 20p.

LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero da. “Posse de escravos em São Paulo no início do século XIX”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 13, n. 01, jan.-abr./1983, pp. 211-221.

LUNA, Francisco Vidal. “Casamentos em São Paulo”. In: NADALIN, Sérgio O. & BALHANA, Altiva (Org). Histó-ria da População: estudos sobre a América Latina. São Paulo: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1990, pp. 226-236.

LUNA, Francisco Vidal. “São Paulo: população, atividades e posse de escravos em vinte e cinco localidades (1777-1829)”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 28, n. 01, jan.-mar./1998, pp. 99-169.

LUNA, Francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. “Sobre a estrutura da posse de escravos em São Paulo e Mi-nas Gerais nos albores do século XIX”. In: Estudios Históricos, Uruguay, Centro de Documentación Histórica del Rio de la Plata, Noviembre/2010, n. 05, s/n.

MARCONDES, Renato Leite. “Fontes censitárias brasileiras e posse de cativos na década de 1870”. In: Revista de Índias, Madrid, CCHS/CSIC, 2011, vol. LXXI, n. 251, pp. 231-258.

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999.

MOTTA, José Flávio, “O tráfico de escravos velhos (Província de São Paulo, 1861-1887)”. In: História: Ques-tões & Debates, n. 52, jan.-jun./2010, pp. 41-73.

MOTTA, José Flávio; NOZOE, Nelson Hideiki & COSTA, Iraci del Nero da. “Às Vésperas da Abolição: um estudo sobre a estrutura da posse de escravos em São Cristóvão (RJ), 1870”. In: Estudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 34, n. 01, jan.-mar./2004, pp. 157-213.

PESSI, Bruno Stelmach. Entre o Fim do Tráfico e a Abolição: a manutenção da escravidão em Pelotas, RS, na segunda metade do século XIX (1850 a 1884). Dissertação (Mestrado em História Social). São Paulo: Universi-dade de São Paulo, 2012.

RICCI, Magda “Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840”. In: Tempo, Rio de Janeiro, UFF, 2007, vol. 11, n. 22, pp. 05-30.

SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras - Século XIX. Senhores e Escravos no Coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão: Belém: IAP, 2005 [1971].

SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: EDUA/ FAPEAM, 2012

SCHWARTZ, Stuart B. “Padrões de propriedade de escravos nas Américas: nova evidência para o Brasil”. In: Es-tudos Econômicos, São Paulo, IPE/USP, vol. 13, n. 01, jan.-abr./1983, pp. 259-287.

SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Editora da Unicamp, 2011 [1999].

TEIXEIRA, Heloísa Maria. “Família escrava, sua estabilidade e reprodução em Mariana, 1850-1888”. In: Afro-Ásia, Salvador, UFBA, 28, 2002, pp. 179-220.

Referências

Documentos relacionados

Este capítulo tem uma abordagem mais prática, serão descritos alguns pontos necessários à instalação dos componentes vistos em teoria, ou seja, neste ponto

Neste Trabalho de Conclusão de Curso de Mestrado em Gestão Pública percorremos o caminho no sentido de responder alguns questionamentos acerca da melhor gestão de contratos de

- A fotobiomodulação laser na superfície dentária e na entrada do alvéolo antes do reimplante (G3) favoreceu o processo de reparo tecidual após reimplante dentário em

Considerando a contabilidade como centro de gestão da informação, os autores defendem o aprimoramento de uma visão sistêmica ao profissional, como também uma maior compreensão

Desta forma, as farmácias devem ter sempre disponíveis para venda, no mínimo, três medicamentos de cada grupo homogéneo, de entre os que correspondam aos cinco preços mais

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

a) Representar o Município em todas as instâncias: Internacional, Federal e Municipal. b) Legislar sobre pessoal da Administração Municipal. c) Legislar sobre organização,