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Marcas autorais em redações escolares: uma proposta de matriz de avaliação

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Academic year: 2021

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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis

XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016

Marcas autorais em redações escolares: uma proposta de

matriz de avaliação

Maristela Rabaiolli Mestre em Letras UniRitter maristellarabaiolli@gmail.com Valéria Brisolara Doutor em Letras UniRitter valeria_brisolara@uniritter.edu.br

Resumo: Analisar uma redação escolar não é tarefa fácil, sobretudo quando se

trata de verificar as marcas autorais presentes no texto e não se dispõe de um instrumento apropriado para isso. O mesmo ocorre quando se analisa, por exemplo, a redação de um candidato ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Um dos critérios contemplados na matriz de avaliação do exame refere-se ao investimento autoral do candidato no momento da escritura do texto. Logo, a capacidade do estudante de exercer uma autoria na redação, posicionando-se frente ao tema proposto, é avaliada. Afinal, o texto instancia o lugar de dizer do candidato e reflete suas convicções a respeito do mundo, da cultura e da historicidade, num espaço enunciativo no qual, ainda que pese o caráter artificial do contexto de produção, ele se pretende autor. Nesse contexto, este trabalho tem por objetivo apresentar uma matriz de avaliação que contemple tais aspectos. Dessa forma, poderá servir de norte para os professores que desejarem verificar as marcas autorais presentes nas redações dos seus alunos, preparando-os para o Enem. Para embasar este trabalho, buscam-se os conceitos de autoria elucidados por teóricos como Michel Foucault, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e por estudiosos brasileiros que se debruçam sobre o tema, como é o caso do professor, linguista e consultor do Enem Sírio Possenti. Suas noções de indícios de autoria contribuem para a construção de uma matriz de avaliação específica, cujos critérios servem para investigar as marcas autorais deixadas no texto pelo candidato.

1 Introdução

O Enem existe há dezesseis anos e tem se consolidado como um dos principais instrumentos de avaliação da educação brasileira e um dos mais importantes meios de acesso às universidades públicas do Brasil. Segundo o Ministério da Educação, a maioria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) adota o exame como único meio de ingresso por meio do Sistema de Seleção Unificada (SISU). Devido à sua importância, todos os anos o Enem conta com milhões de candidatos que almejam uma vaga na universidade, seja esta pública ou privada, ou que buscam obter a certificação do Ensino Médio. O exame é elaborado pelo Ministério da Educação em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e com o Centro

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Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (CEBRASPE).

Nesse contexto de leitura e escrita em que ocorre o exame, é preciso considerar que, durante o processo de escrita, o autor deixa no texto vestígios de sua autoria. Como não existe neutralidade na escrita, nem texto sem ideologia, é possível seguir as pistas deixadas pelo candidato a fim de revelar esses vestígios autorais. Essas marcas funcionam como uma espécie de impressão digital do autor, mas é necessário utilizar instrumentos adequados para verificar essas marcas. Tais instrumentos podem ser traduzidos em uma matriz de referência de avaliação contendo critérios específicos para esse fim.

O desempenho do candidato na redação é avaliado conforme a matriz de referência do Enem por meio das seguintes competências: a): Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa; b): Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa; c): Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista; d): Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação; e): Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

Cada competência possui níveis de habilidades que vão de 0 a 5, com exceção da competência II que não possui o nível 0, pois esse nível caracterizaria a Fuga ao tema. Como se pode verificar, apesar de essa ser uma matriz que contempla também o quesito autoria, dá pouca ênfase a ela. Dessa forma, nada impede que o texto seja avaliado mais detidamente nesse critério, o que é proposto no escopo deste trabalho, ao oferecer uma proposta de matriz de avaliação. A fim de elaborar essa proposta, passou-se pelos seguintes questionamentos: Mas o que vem a ser autoria? Que posições discursivas o candidato ocupa ao escrever? Que marcas linguístico-discursivas podem ser identificadoras de indícios de autoria? Quem é esse autor que escreve a redação e como ele “joga” com as expectativas que cria no seu interlocutor? Essas questões são imprescindíveis de se fazer quando se busca verificar os vestígios autorais presentes em um texto do gênero redação escolar.

2 Autoria

O sistema de autoria em que vivemos é bastante complexo, pois ele é social, histórico e culturalmente construído. Se voltarmos no tempo, podemos verificar que da Antiguidade (4000 a.C. a 476 d.C.) até o início da Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C.), não havia a preocupação em saber quem era omautor de uma obra, pois o anonimato não era empecilho para fazer com que uma

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obra circulasse e fosse valorizada. Na Modernidade, contudo, principalmente a partir da Renascença (1453 d.C. a 1789 d.C.), a exaltação ao indivíduo passou a ter grande relevância devido a fatores sociais, políticos e econômicos. Nas artes, esse sujeito que produzia obras artísticas e literárias passou a ser chamado de autor. No texto “A morte do autor”, publicado por Barthes em 1968, Barthes (1984) afirma que os primeiros movimentos a fim de que se pudesse responsabilizar um autor pelo que ele havia escrito começaram na Idade Média. Nesse período, as autoridades religiosas buscavam os responsáveis pelos livros “heréticos” com dois objetivos: punir seus autores e queimar as obras que contrariavam a doutrina estabelecida. Mais tarde, no final do século XVIII e no início do século XIX, estabeleceu-se um regime de propriedade dos textos, isto é, criaram-se regras sobre os direitos do autor e sobre os direitos de reprodução das obras. Isso, segundo Foucault (2011), em seu texto “O que é o autor”, de 1969, com o objetivo de impedir a apropriação, por terceiros, da propriedade intelectual de um determinado autor. O mesmo se verifica hoje na Lei brasileira nº 9610, de 19 de fevereiro de 1998, que trata dos Direitos Autorais.

No referido texto de Barthes (1984), ele chama a atenção para o seguinte trecho da novela Sarrasine, de Balzac:

Era a mulher, com os seus medos súbitos, os seus caprichos sem razão, as suas perturbações instintivas, as suas audácias sem causa, as suas bravatas e a sua deliciosa delicadeza de sentimentos. (BARTHES, 1984, p. 49).

Citando como exemplo a passagem acima, o filósofo questiona:

Quem fala assim? Será o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? Será o indivíduo Balzac, provido pela sua experiência pessoal de uma filosofia da mulher? Será o autor Balzac, professando ideias “literárias” sobre a feminilidade? Será a sabedoria universal? A psicologia romântica? (BARTHES, 1984, p. 49).

E depois responde:

Será para sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (BARTHES, 1984, p. 49). Neste fragmento, Barthes chama atenção para a dificuldade de se identificar quem é a pessoa a falar por detrás das linhas de uma obra. Ele salienta o quão difícil é estabelecer de quem é a voz que escreve e de como é impossível saber quem fala o quê num determinado texto devido à multiplicidade de vozes presentes em uma obra, sobretudo a literária. Na visão do autor, a mão que escreve orquestra essas vozes, mas há várias outras vozes presentes no texto além da do autor. Assim, pode-se afirmar que ele relaciona autoria a uma maneira singular de orquestrar vozes. Barthes, embora

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tenha sido acusado de matar o autor empírico, não faz isso, evidentemente – nem poderia fazê-lo – apenas explica que “o texto é um tecido de citações” e que a autoria vai além da mão que o escreveu. Barthes via o texto como “um tecido de citações saídas dos mil focos da cultura” cabendo ao escritor

Imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder está em mesclar estruturas (...) a ‘coisa’ interior que tem a pretensão de traduzir não é senão um dicionário todo composto, cujas palavras só se podem explicar através de outras palavras. (BARTHES, 1984, p.69)

Com relação ao romance, Bakhtin (2011) no ensaio “O autor e a personagem”, defende a tese segundo a qual “o artista nada tem a dizer sobre o processo de sua criação, todo situado no produto criado, restando a ele apenas nos indicar a sua obra; e é de fato, só aí que iremos procurá-lo.” (BAKHTIN, 2011, p. 5). Essa afirmação pode ser estendida para outros gêneros discursivos que não somente os literários, pois ela aponta para as marcas pessoais que aquele que escreve costuma deixar em seu texto. Nesse mesmo ensaio, Bakhtin chama a atenção para a confusão que comumente se faz entre autor-pessoa e autor-criador. O filósofo sustenta que o primeiro é componente da vida e o segundo é componente da obra, sendo o autor-pessoa o que comumente chamamos de autor empírico, ou seja, a pessoa de carne e osso que escreve. Dizendo de outro modo, o autor-pessoa seria o escritor, o artista; já o autor-criador seria uma função estético-formal engendradora da obra. Hoje, parece um tanto óbvio que não se deve confundir um com outro, mas em 1929, ocasião em que o filósofo fez esse alerta, não se refletia muito a respeito disso. E, mesmo agora, no século XXI, ainda há quem os confunda, pois é bastante frequente se tomar um pelo outro. Sobre o isso, Bakhtin assim se pronuncia:

O autor-criador nos ajuda a compreender também o autor-pessoa, e já depois suas declarações sobre sua obra ganharão significado elucidativo e complementar. As personagens criadas se desligam do processo que as criou e começam a levar uma vida autônoma no mundo, e de igual maneira o mesmo se dá com o seu real criador-autor. (BAKHTIN, 2011, p. 6).

Como se pode verificar pelo excerto acima, o autor-criador é parte inseparável da obra, mas ele não é o autor real, e sim uma entidade, uma espécie de consciência. Para Bakhtin, “o autor, em seu estado criador, deve situar-se na fronteira do mundo que está criando, porque sua introdução nesse mundo comprometeria a estabilidade estética deste”. (BAKHTIN, 2000, p.205).

Nesse sentido, o autor-criador é uma posição discursiva e faz um exercício de exotopia, ou seja, de distanciamento em relação ao texto. O princípio da exotopia é “o fato de uma consciência estar fora de outra, de uma consciência ver a outra como um todo acabado, o que ela não pode fazer consigo mesma” (TEZZA, 2001, p.282). Tal princípio implica um distanciamento

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do autor-pessoa em relação àquilo que escreve; esse distanciamento, contudo, pode ser maior ou menor, dependendo do gênero discursivo adotado. Em manifestos e em textos científicos, por exemplo, o autor-criador se aproxima mais do autor-pessoa, já no texto literário o distanciamento costuma ser maior. Nesse caso, “o discurso do autor-criador não é a voz direta do escritor, mas um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a ordenar um todo estético” (FARACO, 2005, p.40). O discurso do sujeito falante no romance é resultante de um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes ou de línguas sociais. Ele é representado artisticamente pelo próprio discurso do autor-pessoa, ou seja, daquele que tem a fala refratada.

Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, mais especificamente no capítulo 9, em “O Discurso de outrem”, Bakhtin (1986) trata dessa questão. A esse respeito, o filósofo assim se pronuncia com relação ao discurso citado e ao discurso do outro:

O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação (...). Mas o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso; ele pode entrar no discurso e na sua construção sintática, por assim dizer, “em pessoa”, como uma unidade integral da construção. Assim, o discurso citado conserva sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama linguística do contexto que o integrou. (BAKHTIN, 1986, p. 144)

A incorporação do discurso de outrem ajuda (o narrador) não só na formulação do próprio posicionamento social, como também abre possibilidades para novos posicionamentos, permitindo, assim, ao narrador, abordar os eventos narrados a partir de diferentes perspectivas.

No entanto, por vezes, “o discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo” (BAKHTIN, 1986, p. 144). Esta modalidade de utilização do discurso de outrem é a mais próxima do que se entende por citação. E ela normalmente é assinalada por marcas linguísticas como aspas, travessões e recursos gráficos.

As formulações de Bakhtin remetem a Foucault e à função-autor. No texto O que é o autor?, conferência proferida em 1969, que, na verdade, foi escrita como uma resposta ao texto de Barthes, o filósofo diferencia o autor de uma obra do autor de uma discursividade e também distingue o autor na literatura do autor na ciência. Sobre isso, Foucault afirma:

(...) poder-se-ia dizer que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de discursos que são providos da função “autor”, enquanto que outros são dela desprovidos. Uma carta particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato pode ter um fiador, ele não tem autor. Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor. A função autor é, portanto,

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característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade. (FOUCAULT, 1969, p.274)

Nota-se que autoria para Foucault não é, como diria Guimarães Rosa, algo trivial, uma linguagem “de em dia de semana”. Ao contrário, para haver autoria é preciso escrever com certa singularidade e, para isso, dentre outras ações, é necessário reagrupar certos textos e relacioná-los entre si, pois “um discurso associado ao nome do autor não é uma palavra cotidiana, indiferente (...) que passa, imediatamente consumível” (FOUCAULT, 1969, p. 276).

Se para Foucault a função-autor está atrelada à obra, e esta, por sua vez, só existe quando publicada ou reconhecida por um grupo de pessoas, para Bakhtin (1986), a função autor está intimamente associada à assinatura do autor em textos que se inserem em um gênero discursivo específico dentro de uma esfera de circulação também específica. É importante mencionar que o gênero, segundo Bakhtin (2011) contém o tema, o modo composicional e o estilo e, ao elaborá-lo, o autor espera ser lido/questionado/interpelado por alguém. Percebe-se, assim, que cada estudioso oferece uma parcela de contribuição ao assunto aqui discutido.

Ainda sobre a questão da autoria, Foucault revela sua preocupação a respeito dela, e sobre isso ele afirma:

a escrita está atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida; apagamento voluntário que não é para ser representado nos livros, pois ele é consumado na própria existência do escritor. A obra que tinha o dever de trazer a imortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. Vejam Flaubert, Proust, Kafka. Mas há outra coisa: essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. (FOUCAULT, 2001, p.270) Nota-se, a partir da citação acima, que Foucault também compartilha da ideia de que não importa quem fala, mas o que se fala. Ele defende a tese segundo a qual o autor empírico vai “morrendo” à medida que escreve, pois, uma vez escrito, o texto passa a falar por si mesmo, independentemente da intenção do autor ou do leitor. Para Foucault, a função-autor é compreendida como uma posição discursiva. Na leitura de Cavalheiro (2008), a partir da obra de Foucault, um texto pode ter vários eus simultâneos: um é o eu que fala em um prefácio; o outro é o eu que argumenta no corpo de um livro; e o terceiro é o eu que avalia a recepção da obra publicada ou a esclarece (CAVALHEIRO, 2008, p. 74).

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Embora se refira às duas noções de autor de Foucault, quais sejam a) a de que a noção de autor se constitui a partir de um correlato autor-obra, e b) a noção de autor como “fundador de discursividade”, na acepção Foucaultiana do termo, isto é, alguém que dá origem a regras para formação de novos textos, Possenti (2002) ressalta que estas não costumam se adequar a um escolar, pois este não tem uma obra nem fundou uma discursividade. Logo, o pesquisador propõe que, para se verificar a autoria em textos de estudantes em idade escolar, ou de vestibular, é preciso introduzir uma nova noção de autoria que remeta ao que ele chama de indícios de autoria.

Possenti (2013), no texto “Notas sobre a questão da autoria”, pontua que há uma diferença nítida na concepção de autoria em Foucault e na de alguns estudiosos brasileiros. Para o filósofo francês, a autoria corresponde a uma obra, isto é, não há obra sem autor, assim como não há autor sem obra. Já para alguns estudiosos brasileiros a autoria é definida por uma certa relação de quem escreve (ou fala) textos que Possenti chama de comuns, como, por exemplo, uma redação escolar. O autor argumenta, também, que a maioria dos pesquisadores brasileiros considera autor aquele que escreve um texto adequado. Esse entendimento dos autores brasileiros difere muito do de Foucault, que assim resume as características da função-autor:

a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso a seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (FOUCAULT, 2001, p. 283)

Ao que parece, para ser autor é preciso possuir tais características, as quais dificilmente são perceptíveis em autores de textos cotidianos que escrevem notícias de jornal, receitas culinárias, artigos de opinião ou redações escolares. O que os autores desses textos revelariam, segundo Possenti (2013) seriam indícios de autoria, e não a autoria a que Foucault se refere, contudo não há dúvida de que ambas estão relacionadas.

Referindo-se à questão autoral, Possenti (2001) defende a tese de que autoria é um conceito que não deve ser aplicado apenas a personalidades, isto é, em determinada relação autor-obra, nem, tampouco, concebido como uma particularidade de uma pessoa específica. A autoria, para ele, tem forte relação com estilo, isto é, com aquele “traço pessoal” que alguns estudiosos chamam de singularidade.

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O autor sublinha que um texto escolar considerado mal-acabado por alguns professores pode conter, além dos indícios de autoria, estilo. Segundo Possenti, se os alunos escrevem textos mal-acabados, muito se deve à escola, pois ela é “uma maquinaria destinada a excluir”. Para que os estudantes passem a escrever melhor, ele afirma que é preciso “desescolarizar” a escola, reorganizar as atividades segundo critérios de relevância, com prioridade absoluta para as atividades de linguagem significativas, especialmente a leitura e a escrita, com especial destaque para as atividades de escrita. Ele defende que trabalhar a escrita a partir dos textos dos alunos em vez de ensinar regras descontextualizadas que não fazem sentido algum é muito mais produtivo. Aulas nas quais os alunos possam reescrever seus textos ajudam a combater a reprovação, pois, além de fazer mais sentido, promovem a autorreflexão e a construção de uma autoria.

4 A matriz específica e os critérios referentes à autoria

Essa matriz específica, contendo critérios indicativos de indícios de autoria foi criada pela autora com base nas Diretrizes da Prova de Redação, nos Relatórios Pedagógicos, nos Textos Teóricos e Metodológicos, nos Guias do participante, no Documento Básico e nos Editais, todos do Enem, e em outras matrizes de avaliação de universidades públicas e privadas. Ela pode contribuir tanto com a matriz atual do Enem quanto com os professores que queiram optar por uma avaliação mais específica que contemple critérios envolvendo os indícios de autoria.

Os conceitos perfazem seis possibilidades que permitem ao avaliador diferenciar entre textos excelentes (E+ e E-); satisfatórios (S+ e S-) e não satisfatórios (N+ e N-). É importante salientar que a matriz que serve à análise e discussão dos textos focaliza alguns critérios autorais e identitários, e não todos, pois eles são inúmeros. Na figura abaixo, são apresentados os critérios, e, em seguida eles são detalhados.

Figura 1

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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016 Critérios Dens id ad e te x tu al T om ad a d e p os iç ão d o a ut or (ap rox im aç ão e af as tam e nt o) E s ti lo c ri at iv id ad e /ori gi n al id ad e c ap ac id ad e de r es s ign ifi c ar s en ti d os Cont ro le da d is pe rs ão ( c oe s ão e c oe rên c ia te x tu al ) Domí n io do t ex to di s s ertat iv o -argum en ta ti v o A s s un ç ão d e res po ns ab ili d ad e E s c ore Excelente E+ E+ E+ E+ E+ E+ 5 E- E- E- E- E- E- 4 Satisfatório S+ S+ S+ S+ S+ S+ 3 S- S- S- S- S- S- 2 Não Satisfatório N+ N+ N+ N+ N+ N+ 1 N- N- N- N- N- N- 0 Escore/Total

Os critérios abaixo descritos referem-se à matriz de avaliação criada especificamente com o objetivo de investigar mais acuradamente os traços autorais e identitários deixados pelos candidatos nos textos. São eles:

1 Densidade textual – Este critério busca verificar se o candidato caracteriza minimamente objetos e lugares; se o texto faz relação com elementos da cultura e com outros discursos. Verifica, ainda, se há domínio da escrita por parte do candidato, isto é, se a conexão entre as frases é complexa, se há precisão vocabular, fundamentação argumentativa e capacidade lógica de produzir sentido. Pontuação, frases com sentido completo, clareza, objetividade, concisão, vocabulário variado e preciso também colaboram para a densidade textual. O registro formal da língua portuguesa moderna e a obediência às regras gramaticais vigentes também contribuem para tornar o texto mais denso.

2 Tomada de posição do autor – Este quesito refere-se ao grau de aproximação e de afastamento do autor do texto em relação à posição adotada. Espera-se que o candidato dê voz a outros enunciadores e, ao mesmo tempo, mantenha distância em relação ao próprio texto. Trata-se, portanto, de verificar a forma como o autor se presentifica e se distancia no texto. O uso de citações diretas e indiretas empregadas também é verificado nesse quesito. O afastamento do autor e a tentativa de apagamento das suas

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características individuais são contemplados nesta competência, assim como a forma como o candidato toma a palavra e a concede a outrem.

3 Estilo criatividade/originalidade (capacidade de ressignificar sentidos) – A capacidade de articular de modo diferente a linguagem já empregada por alguém em um texto/discurso anterior, dando coerência a esse novo texto/discurso, é avaliada neste quesito. Da mesma forma, a capacidade de desarranjar as palavras do seu lugar comum dando novos sentidos a elas para surpreender, desestabilizar, encantar, seduzir o leitor são aspectos referentes ao estilo. O jogo entre os já-ditos; o jogo de imagens, o uso de figuras de linguagem e o modo inovador de dizer o que já foi dito antes são também analisados nesta competência. A elegância, a não banalidade e a habilidade de manipular as palavras para projetar os efeitos pretendidos estão, da mesma forma, contemplados neste quesito. Léxico, sintaxe, operadores discursivo-argumentativos, sinônimos, retomadas lexicais e a alternância entre termos também são constitutivos do estilo.

4. Controle da dispersão (coesão e coerência textual) – A ordem das frases no período, as marcas de gênero e de número, as preposições, os pronomes pessoais, os tempos verbais e os conectores textuais funcionam como elos coesivos. Cada um desses elementos estabelece articulações que concatenam ideias e permite a progressão textual em direção à comprovação da tese que o candidato visa a defender. No que diz respeito à coerência, é necessário verificar a relação que o candidato estabelece entre o texto e o conhecimento dos interlocutores, garantindo a construção de sentido de acordo com as expectativas do leitor. Este quesito está ligado ao controle da deriva do texto, uma vez que a coerência está ligada à compreensão e à possibilidade de interpretação dos sentidos. Em sentido amplo, a coerência é um princípio de interpretabilidade e supõe relações sociodiscursivas de produção e de uso, ultrapassando os significados das formas da língua e de suas ligações lógico-semânticas. Para haver coerência é necessário que elementos formais e funcionais atuem para constituírem uma unidade, levando-se em conta o contexto em que o texto é produzido.

5. Filiação ao tipo dissertativo-argumentativo – O modelo prototípico da dissertação é o que contém introdução, desenvolvimento e conclusão. O texto é considerado argumentativo, grosso modo, porque defende uma tese, e é dissertativo porque se utiliza de explicações para justificá-la. Esse tipo de texto é composto da seguinte tríade: tese, argumentos e estratégias argumentativas. Essas estratégias podem ser apresentadas em forma de exemplos, dados estatísticos, pesquisas, fatos comprováveis, alusões, comparações, etc. Da mesma forma, aspectos como o tema, o modo composicional e o domínio linguístico são contemplados nesta competência.

6. Assunção de responsabilidade – Este quesito relaciona-se à posição foucaultiana de que há alguém que assume a responsabilidade pelo enunciado.

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Esse alguém (autor), ao escrever, assume uma posição ideológica no discurso, publica o que escreve, é reconhecido/lido pela sociedade, goza de certo status pelo resultado de seu trabalho e tem direitos sobre o seu texto/discurso. A assunção de responsabilidade do candidato ao Enem presume quatro eus distintos, segundo Lima (2014): o eu pessoa em sua individualidade, que possui sonhos, desejos, expectativas e frustrações; o eu estudante que precisa demonstrar em um raciocínio de trinta linhas que apreendeu os conhecimentos compartilhados ao longo de sua formação escolar de doze anos; o eu candidato que precisa basear-se na coletânea da prova de redação para construir sua argumentação; e, finalmente, o eu cidadão que, especialmente na conclusão, deve apresentar uma proposta clara e inovadora para resolver os problemas que ele criou. Logo, precisar de quem é a voz que escreve torna-se difícil, pois, no texto, pode haver uma diversidade de eus.

Considerações finais

Num texto ou discurso raramente podemos colocar ponto final, visto que sempre haverá alguém que com ele concorde ou discorde, ou seja, que dialogue com ele. Outra questão importante de se colocar aqui é que um discurso nunca é original, ele sempre faz referência a outros discursos/textos.

A linguagem, sobretudo na perspectiva bakhtiniana, é (inter)ação e não um mero instrumento de comunicação. Para Bakhtin, a palavra comporta duas faces: ela procede de alguém e se dirige a alguém. Assim, ela constitui o produto da interação entre o locutor e o ouvinte (ou entre o autor e o leitor), pois serve de expressão de um em relação ao outro. Assim é que se instaura o dialogismo, que é um princípio constitutivo da linguagem e condição de sentido do discurso.

A autoria é posta em evidência quando, ao escrever um texto do tipo dissertativo-argumentativo, o que é obrigatório a todos, o candidato, para ser bem avaliado, precisa mostrar que, dentre outras habilidades, tem estilo. Ainda que a fôrma (o tipo de texto), os ingredientes (a linguagem verbal escrita) e o tema da redação sejam os mesmos para todos os candidatos, a “mão” que escreve será sempre única, particular, daí porque as abordagens do tema são sempre diversas.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

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BAKHTIN/VOLOCHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 3ª ed. Hucitec. São Paulo, 1986

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Edições 70, 1984.

BRASIL. Instituto Nacional de Pesquisa e Estatística Anísio Teixeira (INEP). ENEM: Documento básico. Brasília: MEC/INEP, 2002.

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Referências

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