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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUAL

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUAL

LITIGIOSIDADE REPETITIVA E RECURSO ESPECIAL REPETITIVO: Um estudo de Caso

Marina Cieri Pinho Nº USP 8030606

São Paulo –SP 2020

Trabalho exigido para fins de avaliação na disciplina Litigiosidade Repetitiva: Diagnóstico, causas e possibilidade de tratamento adequado do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP)

Professores responsáveis: Professora Susana Henriques da Costa e Professor Carlos Alberto de Salles

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LITIGIOSIDADE REPETITIVA E RECURSO ESPECIAL REPETITIVO: Um estudo de Caso

Marina Cieri Pinho

Mestranda em Direito Processual Cível pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP).

Área do Direito: Direito Processual Cível.

Resumo:

O presente trabalho se propõe a estudar a técnica de julgamento do recurso repetitivo sob uma perspectiva crítica a partir da análise empírica de um caso concreto, para, ao final, verificar sua adequação para o enfrentamento da litigiosidade repetitiva.

Palavras – chave:

Litigiosidade Repetitiva – Técnica de julgamento de Recurso Repetitivo – Estudo Empírico.

Summary:

The present paper intends to study the technique of judging the repetitive appeal from a critical perspective from the empirical analysis of a specific case, in order, at the end, to verify its suitability for facing the repetitive litigation.

Keywords:

Repetitive Litigation - Technique of Judging the Repetitive Appeal - Empiric Study.

Sumário:

1. Introdução – 2. Recurso Especial Repetitivo - 2.1. Contextualização histórica e técnica - 2.2. Breve caracterização da técnica de julgamento dos recursos especiais repetitivos - 2.3. Breves apontamentos críticos - 3. Resumo do caso concreto - 3.1. Outros processos relacionados com o desastre ambiental - 4. Análise crítica do caso concreto - 4.1. Recurso especial repetitivo v. questões de fato - 4.2. Recurso especial repetitivo v. Ação Coletiva: Representatividade Adequada - 4.3. Recurso especial repetitivo v. Litigante Habitual e Ocasional – 5. Conclusão.

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1. Introdução

O crescimento da taxa de litigiosidade, associado a uma baixa capacidade de resposta, vêm compondo um quadro que comumente é diagnosticado como uma crise do Poder Judiciário no Brasil.1 Conforme apontado por Daniela Monteiro Gabbay e Luciana Gross Cunha, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de casos novos em primeiro grau de jurisdição nas Justiças Estadual, Federal e Trabalhistas em 1990 era de 5,12 milhões, tendo passado para 15,39 milhões em 2003 e 24,2 milhões em 2010.2 No ano de 2019, o número de casos novos propostos nas referidas Justiças chega a 29,4 milhões.3

Esse aumento na judicialização pode ser analisado sob uma perspectiva mais ampla do que o contexto brasileiro. Para Boaventura de Sousa Santos, a partir do ano de 1990, verificou-se um movimento neoliberal mundial pautado na precarização da estrutura estatal voltada para a implementação de direitos econômicos e sociais, que gerou uma maior litigância judicial.4

Houve uma expansão do Poder Judiciário a partir da multiplicação de processos que visam a compensação da falta de políticas públicas, tendo como demandado muitas vezes o próprio Estado.5

Ademais, as privatizações típicas do neoliberalismo deslocaram a atuação direta do Estado para uma atuação pautada na fiscalização pela regulação das atividades econômicas.6 Segundo Bruna Braga da Silveira, a profusão de normas regulatórias decorrente de um Estado Regulador, muitas vezes caracterizada por falta de clareza e ausência de mecanismos de autocorreção, acaba por gerar a necessidade de um controle que perpassa a ampla judicialização de litígios envolvendo não apenas agências reguladoras, como também atores econômicos e consumidores.7

Tudo isso associado a uma série de fatores tais como a expansão do mercado de consumo, positivação de direitos, barateamento dos serviços jurídicos pelo crescente número de advogados e especialização em demandas massificadas, que resultaram em um aumento

1 CUNHA, Luciana Gross. GABBAY, Daniela Monteiro (coord.). Litigiosidade, Morosidade e Litigância

Repetitiva: uma análise empírica. Série Direito e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 23.

2 CUNHA. GABBAY, 2012, p. 23-24.

3 Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020. p. 48.

4 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. Coimbra: Almedina, 2015. p. 22.

5 SANTOS, 2015, p. 29-30.

6 SILVEIRA, Bruna Braga da. Litigiosidade repetitiva, processo e regulação: interações entre o judiciário e

o regulador no julgamento de casos repetitivos. Tese de Doutorado, FDUSP, 2018, p. 34-35.

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gradual na litigiosidade, especialmente dos tipos de processos envolvendo o Estado, empresas, prestadoras de serviços e instituições financeiras.8

A partir do quadro demonstrado acima, esse aumento de litigiosidade no Brasil não deve ser interpretado como uma consequência da ampliação do acesso à Justiça, uma vez que grande parte dos litígios judicializados se concentram em demandas envolvendo poucos entes – autoridades públicas e minorias privilegiadas –, que atuam como verdadeiros litigantes repetitivos.9

A maior parte do esforço despendido pelo Poder Judiciário é focado em litígios denominados repetitivos, que dizem respeito, nas palavras de Maria Cecília de Araujo Asperti, a “demandas envolvendo grandes entes, públicos e privados, as quais suscitam discussões fáticas e jurídicas similares em virtude da amplitude de atuação de tais entes”.1011

É neste contexto que o Código de Processo Civil de 2015 (CPC), em continuidade ao que já vinha sendo desenvolvido no Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73), estabeleceu mecanismos de tratamento de litígios repetitivos, dentre os quais se encontram os recursos especial e extraordinário repetitivos. Como disposto no Anteprojeto do CPC:

Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional.

Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores, aguardando julgamento, desatreladamente dos afetados.12

Como se pode depreender, a intenção do legislador em investir no regime de recursos repetitivos era resolver o problema da alta carga de trabalho do Poder Judiciário, porém mantendo a qualidade da prestação jurisdicional.

8 ASPERTI, Maria Cecília de Araujo. Recursos repetitivos e Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas:

uma análise da perspectiva do acesso à justiça e da participação no processo. São Paulo: Lumen Iuris, 2018,

p. 20-21.

9 “Estes dados, entretanto, não devem ser lidos como indicativos de que a população brasileira possui amplo acesso ao Judiciário, porquanto expressiva parcela desse contingente de demandas tem autoridades públicas como autores – governo, órgãos da União, Estados e Municípios, assim como uma minoria de setores privilegiados da população -, que atuam como litigantes repetitivos”. (CUNHA. GABBAY, 2012, p. 24) 10 ASPERTI, 2018, p. 23.

11 Lucas Buril de Macêdo, inclusive, caracteriza a litigância repetitiva no Brasil como uma “crise da distribuição de justiça”. (MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes Judiciais e o Direito Processual Brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 381).

12 Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.

Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,

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Por meio deste trabalho, almeja-se realizar um estudo de caso a fim de verificar se a técnica do recurso especial, bem como a sua utilização concreta, está de acordo com o enfrentamento adequado do problema da litigiosidade repetitiva, mantendo-se a qualidade da tutela jurisdicional prestada.

2. Recurso Especial Repetitivo

2.1. Contextualização histórica e técnica

Ainda durante a vigência do CPC/73, já se constatou a inadequação da técnica processual voltada para a solução de conflitos intersubjetivos diante da massificação das relações inerentes às sociedades contemporâneas. Para Heitor Vitor Mendonça Sica, a partir do ano de 1980, foram realizadas algumas reformas em matéria processual para enfrentar referida inadequação, que podem ser subdivididas em três grupos.13

O primeiro grupo de reformas ocorreu no período de 1985 a 1990, em que se formou o microssistema coletivo a partir da edição da Lei nº 7.347/85 (LACP), voltada para a disciplina da ação civil pública, cujo principal objetivo diz respeito à proteção de direitos transindividuais14, e da Lei nº 8.078/90 (CDC), com normatização coletiva extensa, inovando especificamente ao regular os direitos acidentalmente coletivos, denominados individuais homogêneos. À época, apostava-se nesta novidade do CDC como uma via de enfrentamento da litigiosidade repetitiva, com possível redução da sobrecarga do Poder Judiciário.1516

13 SICA, Heitor Vitor Mendonça. Brevíssimas reflexões sobre a evolução do tratamento da litigiosidade repetitiva no ordenamento brasileiro, do CPC/73 ao CPC/15. In Direito, Economia e Sociedade Contemporânea, Campinas, Vol. 1, n. 1, Jul./Dez. 2018. p. 84/85.

14 Dispõe o art. 1º, inciso IV, da LACP que a ação civil pública é cabível contra danos morais e patrimoniais causados “a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Porém, consolidou-se em sede jurisprudencial o cabimento da ação civil pública também para tutela de direitos individuais homogêneos, conforme julgamento do Recurso Especial nº 706.791 realizado em 2009 pelo STJ, ou seja, após a entrada em vigor do CDC, segundo o qual “De acordo com a jurisprudência consolidada deste Superior Tribunal de Justiça, o artigo 21 da Lei nº 7.347/85, com redação dada pela Lei nº 8.078/90, ampliou o alcance da ação civil pública também para a defesa de interesses e direitos individuais homogêneos não relacionados a consumidores”. Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Resp. nº 706.791. Relatora: Min. Maria Thereza de Assis Moura. Recorrente: União, Recorrido: Sindicato dos Servidores Públicos Federais da Saúde e Previdência Social de Pernambuco. Julgado em: 17 fev. 2009. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa= tipoPesquisaNumeroRegistro & termo= 200401693430 & totalRegistrosPorPagina= 40 & aplicacao=processos.ea.

Acesso em: 20 dez. 2020. 15 SICA, 2018, p. 85/87.

16 Antes da entrada em vigor das Leis nº 7.347/85 e 8.078/90, já havia a Lei nº 4.717/65, que disciplina a Ação Popular, a qual nas palavras de Marcus Vinicius Rios Gonçalves, “É ação coletiva, mas diferente da ação civil pública em vários aspectos, embora existam pontos em comum. A distinção inicial está na legitimidade para o ajuizamento: do cidadão, na ação popular; e dos entes indicados em lei, na ação civil pública. O objeto de ambas também é diferente. A ação civil pública presta-se à defesa de todas as formas de interesses difusos, coletivos e

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Para o autor, a LACP teria apresentado resultados positivos com a judicialização de litígios antes não tuteláveis pelo CPC/73, destacando-se neste âmbito a atuação notável do Ministério Público. Por outro lado, a previsão dos direitos individuais homogêneos no CDC – a partir da qual se almejava a redução dos processos individuais por meio do tratamento coletivo do conflito – não teria logrado êxito. Isso teria ocorrido devido à dificuldade de inibição eficaz do processo individual, como, por exemplo, ao facultar a via individual, com a possibilidade de haver apenas a sua suspensão diante da propositura de um processo coletivo, nos termos do art. 104 do CDC.1718

O segundo grupo de reformas diz respeito ao período compreendido entre 1992 e 2001, em que é perceptível a edição de leis que enfraqueceram o microssistema do processo coletivo, especificamente das demandas envolvendo o Poder Público. Para Heitor Vitor Mendonça Sica, “[p]or força desse e de outros fatores, o Poder Judiciário brasileiro, desde meados da década de 1990, passou a enfrentar um quadro crônico de congestionamento, que pode ser atribuído em grande medida à litigiosidade repetitiva”.19

Por fim, o último grupo de reforma se refere às alterações realizadas no CPC/73 entre os anos de 1990 e 2008 por meio das quais se verifica a intenção de acelerar ou aglutinar o trâmite de processos individuais repetitivos.20 Especificamente quanto à via da aglutinação, destacam-se os recursos especial e extraordinário repetitivos, cujo objetivo diz respeito à unificação da interpretação do direito federal constitucional e infraconstitucional, respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), a constituir precedentes cuja tese jurídica é fixada a partir de um caso concreto para fins de aplicação aos demais processos repetitivos relacionados ao tema.21

individuais homogêneos. O objeto da ação popular é muito mais restrito: a defesa dos interesses difusos ligados à moralidade, eficiência e probidade administrativa, além da tutela do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural (art. 5º, LXXIII, da CF)” (GONÇALVES. Marcus Vinicius Rios. Tutela de interesses difusos e coletivos. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 33)

17 SICA, 2018, p. 87/88.

18 Para Heitor Vitor Mendonça Sica, mesmo se adotada a via coletiva, “(...) substitui-se uma pluralidade de ações de conhecimento individuais por uma pluralidade de liquidações e execuções individuais da sentença coletiva genérica que julga procedente a ação coletiva que tutela direitos individuais homogêneos (art. 95, CDC)” (SICA, 2018, p. 88).

19 SICA, 2018, p. 88.

20 Para fins de aceleração do trâmite, Heitor Vitor Mendonça Sica elenca as seguintes ferramentas: “(...) aquelas que substituíram julgamentos colegiados por decisões monocráticas em 2º grau de jurisdição e nos tribunais superiores (rompendo-se secular tradição do direito luso-brasileiro), bem como a que permitiu a prolação julgamentos de improcedência liminar de demandas repetitivas (art. 285-A do CPC de 1973, com redação dada pela Lei nº 11.277 de 2006) e, finalmente, a que passou a limitar o cabimento de recursos em causas cujo objeto fosse questão jurídica já pacificada pelo tribunal competente (art. 518, §1º, do CPC de 1973, inserido pela Lei nº 11.276/2006)” (SICA, 2018, p. 89).

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O atual CPC deu continuidade ao que vinha sendo adotado no final da vigência do CPC/73, de um lado enfraquecendo o processo coletivo e, de outro, aprofundando as técnicas de aceleração e aglutinação do tratamento dos processos repetitivos individuais.22

Segundo Carlos Alberto de Salles, para enfrentar a dispersão jurisprudencial e o grande número de processos envolvendo controvérsia jurídica repetitiva, o CPC adotou três caminhos: reforço às súmulas do STF e do STJ, criação do incidente e resolução de demandas repetitiva (IRDR) e do incidente de assunção de competência (IAC) e investimento no recurso especial e extraordinário repetitivos.2324

No que tange especificamente aos recursos repetitivos, destaca o autor que o novo diploma processual lhes atribuiu eficácia equivalente àquela verificada nas súmulas dos Tribunais Superiores, porém sem que se possibilite um amadurecimento jurisprudencial para tanto, vindo a configurar um “superprecedente” com força vinculante.25 É neste contexto que se insere o inciso III, art. 927, do CPC, segundo o qual “Os juízes e os tribunais observarão: (...) III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (...)”.

Como se pode depreender, o CPC apostou na uniformização interpretativa do direito por meio de precedentes como forma de enfrentamento da litigiosidade repetitiva, cuja via técnica perpassa os recursos repetitivos.

2.2. Breve caracterização da técnica de julgamento dos recursos especiais repetitivos

Nos termos do art. 928 do CPC, considera-se julgamento de casos repetitivos decisão proferida em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas e de recurso especial e extraordinário repetitivos.

A partir da referida redação normativa, entende a doutrina que ambas as ferramentas compõem um microssistema de gestão de casos repetitivos. Conforme o Enunciado nº 345 do Fórum de processualistas Civis, “[o] incidente de resolução de demandas repetitivas e o

22 SICA, 2018, p. 91.

23 SALLES, Carlos Alberto de. Precedentes e jurisprudência no Novo CPC: novas técnicas decisórias. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). O Novo Código de Processo Civil –questões controvertidas. São Paulo: Atlas, 2015. p. 84.

24 Carlos Alberto de Salles destaca, ainda, que o CPC/15 suprimiu do incidente de uniformização de jurisprudência previsto no CPC/73, que seria ferramenta importante por haver “(...) a possibilidade de permitir a uniformização da jurisprudência a partir do cotejo de casos concretos após desejável decantação da matéria em nossos tribunais” (SALLES, 2015, p. 78).

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julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser interpretadas conjuntamente”.

Para Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha, referido microssistema tem por finalidade não apenas a gestão de casos repetitivo26, como também a formação concentrada

de precedentes obrigatórios27, ambos objetivos presentes nos incisos do art. 985 e no art. 1.040, incisos I, II e III, do CPC, que disciplinam, respectivamente, o IRDR e os recursos repetitivos. Para os autores, a percepção das referidas técnicas enquanto microssistema é importante, na medida em que elas seriam regidas “por normas comuns, que se intercomunicam, garantindo, assim, unidade e coerência”.28

Quanto às matérias que podem ser submetidas à técnica de julgamento de causas repetitivas, dispõe o parágrafo único do art. 928 que podem se tratar de questão de direito material ou processual. Quanto ao recurso extraordinário e especial repetitivos, deve se verificar violação, respectivamente, de direito constitucional e federal infraconstitucional, por ser peculiaridade aplicável às referidas espécies recursais independentemente se utilizadas pela técnica repetitiva ou não.29

Ademais, os recursos especial e extraordinário são de direito estrito, tendo como principal objetivo a tutela do ordenamento jurídico mediante fixação da correta interpretação da norma jurídica – vinculada à função tipicamente nomofilácica –, motivo pelo qual não se prestam ao reexame fático.30 Referida limitação é verificada igualmente em sede de regime repetitivo, tendo o art. 1.036 do CPC sido expresso em prever a sua instauração “[s]empre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito (...)”.31

26 Os autores pontuam que além das regras previstas no CPC/15 para disciplina do IRDR e dos recursos repetitivos, as normas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho, após as alterações inseridas pela Lei nº 13.015/2014 também compõem referido microssistema, em função do recurso de revista repetitivo. (Cf. DIDIER JÚNIOR, Fredie Didier. CUNHA, Leonardo Carneiro da Cunha. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnação

às Decisões Judiciais e Processos nos Tribunais. 13ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016. p. 590/591).

27 Ainda segundo os autores, o incidente de assunção de competência também compõe o microssistema no que tange à formação de precedentes obrigatórios. (DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2016, p. 591).

28 DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2016, p. 592.

29 Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha destacam que referida limitação quanto à matéria não é verificada em sede de IRDR, por se tratar de via passível de análise de questões de direito local. (DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2016, p. 648).

30 MACÊDO, 2016, 402/405.

31 Em sede de IRDR, o art. 976, inciso I, do CPC/15 assim dispõe: “É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; (...)”.

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Neste ponto, destaca Lucas Buris de Macêdo que toda aplicação de normas jurídicas envolve análise de fatos, o que inegavelmente ocorre em sede de recurso especial e extraordinário. O que não se admite nas referidas vias recursais é que se faça uma revisão da versão dos fatos a partir da qual se aplica a norma.32

Teresa Arruda Alvim Wambier e Bruno Dantas, por sua vez, propõem um critério de identificação do tipo de questão envolvida – se de direito ou de fato – a partir da verificação de qual é o aspecto problemático em um determinado contexto, ou seja, qual seria o foco de atenção do juiz. Para que haja a subsunção do fato à norma, é necessário que se faça um movimento pendular entre os fatos e a norma e, a depender de onde o pêndulo estiver, pode-se vislumbrar qual tipo de problema precisa ser resolvido – sendo possível, inclusive, graus intermediários de tipos de questão a depender da localização do pêndulo.33

Assim, se o pêndulo estiver em como um texto normativo deve ser interpretado, quer dizer que os fatos já foram superados e que o foco do juiz está no direito.34 A contrario sensu, se o pêndulo não saiu dos fatos por haver alguma controvérsia ainda não superada a esse respeito, pode-se concluir que o aspecto problemático está nos fatos, tratando-se, então, de uma questão fática.

Neste contexto, segundo os autores, “[o]s recursos especial e extraordinário são padrão de contexto em que aparece de forma nítida a dimensão técnico-processual do conceito de questão de direito, embora não seja o único”.35 Inclusive, referido entendimento se vê estampado nas Súmulas nºs 279 do STF e 7 do STJ, que não permitem reexame dos fatos em sede, respectivamente, de recurso extraordinário e especial.

No que tange ao procedimento dos recursos repetitivos, o CPC adotou o sistema de julgamento de uma causa-piloto, em que há a seleção de processos pelo órgão jurisdicional para que haja, além da resolução do caso concreto, a fixação da tese jurídica em abstrato a ser observada nos demais processos envolvendo a mesma matéria.36

Assim, nos termos do art. 1.036, caput e § 1º, do CPC, havendo multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, haverá a seleção de 2 (dois) ou mais

32 MACÊDO, 2016, 403/404.

33 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova

Função dos Tribunais Superiores no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2016. p. 347/349.

34 WAMBIER, DANTAS, 2016, p. 348/349. 35 WAMBIER, DANTAS, p. 349.

36 Segundo Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha, outro sistema de resolução de causas repetitivas possível seria a de causa-modelo, em que há a instauração de um incidente para fins especificamente de fixação da tese, sem que haja apreciação de um caso concreto (DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2016, p. 593).

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recursos representativos da controvérsia como causa-piloto. A seleção inicial poderá ser feita pelo presidente ou vice-presidente dos tribunais de justiça ou tribunais regionais federais (art, 1.036, § 1º) ou pelo relator no tribunal superior (art. 1.036, § 5º). A admissibilidade acerca do julgamento pelo regime de repetitivos, bem como a afetação dos recursos representativos de controvérsia são de competência do relator do tribunal superior, que proferirá decisão identificando com precisão a questão submetida à técnica repetitiva, determinando-se, ainda, a suspensão de todos os processos pendentes envolvendo a mesma questão, sejam eles individuais ou coletivos, nos termos dos arts. 1.037, incisos I e II, do CPC.

Para Lucas Buril de Macêdo, muito embora a Lei 13.256/2016 tenha revogado dispositivo legal neste sentido37, a delimitação da questão objeto da técnica repetitiva, realizada na decisão de afetação, vincula os contornos da tese sobre a qual deve se debruçar a decisão final. Segundo o autor, “[p]ossibilitar que a Corte superior simplesmente decida algo que trespasse os limites fixados, é permitir decisão que não respeita o direito de participação e em um verdadeiro precedente-surpresa”.38

Em cada um dos processos suspensos, as partes deverão ser intimadas (art. 1.037, § 8º) para que possam se manifestar sobre eventual distinção entre a questão tratada em seu processo e nos recursos representativos da controvérsia (art. 1.037, § 9º), cuja análise deverá seguir o procedimento disposto no art. 1.037, §§ 10 a 13.39

Para dar cumprimento ao princípio da publicidade, o art. 979, caput, do CPC prevê a criação de um registro eletrônico no CNJ para divulgação da instauração e do julgamento de IRDRs, tendo o § 3º estendido a aplicação da referida medida para os recursos repetitivos.40

Ainda, nos recursos repetitivos é verificada uma participação ampliada. O art. 1.038, inciso I, do CPC dispõe que o relator do tribunal superior poderá admitir “manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia”.41 A esse respeito, pontua Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha que qualquer interessado pode participar do

37 A Lei 13.256/2016 revogou o § 2º, art. 1.037, do CPC/15, segundo o qual “É vedado ao órgão colegiado decidir, para os fins do art. 1.040, questão não delimitada na decisão a que se refere o inciso I do caput”.

38 MACÊDO, 2017, p. 439.

39 Para Lucas Buril de Macêdo, além de possibilitar que haja eventual pedido de distinção, a intimação prevista no art. 1.036, § 8º, do CPC/15 é importante também uma vez que “(...) a decisão específica em cada processo sinaliza para cada um dos interessados a existência do procedimento, certificando adequadamente, para que eles possam acompanhá-lo e, inclusive, tentar influenciar na sua decisão” (MACÊDO, 2017, p. 438/439).

40 Para Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha, “O banco de dados mantido no tribunal e o cadastro do CNJ são meios exemplificativos, e não exaustivos. É possível, a depender da relevância e da repercussão do caso, que o tribunal amplie essa divulgação, valendo-se também de outros meios para dar publicidade ao IRDR” (DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2016, p. 607).

41 A esse respeito, destaca Maria Cecilia de Araujo Asperti que “(...) a manifestação de amicus curiae ou de outros interessados está condicionada a um juízo de conveniência do tribunal superior” (ASPERTI, 2018, p. 202).

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julgamento do recurso, havendo interesse institucional – veiculado por meio de amicus curiae –, ou interesse jurídico – referente às partes dos processos repetitivos.42 Por fim, o art. 1.038,

inciso II, prevê a possibilidade de se realizar audiência pública para ouvir os depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento acerca da matéria envolvida, enquanto que o inciso III do referido dispositivo prevê a possibilidade de se requisitar informações aos tribunais inferiores, bem como a intimação do Ministério Público para se manifestar nos autos.

O acórdão que apreciar recurso representativo da controvérsia deverá abordar os fundamentos relevantes acerca da tese jurídica (art. 1.038, § 3º) e, com a sua publicação, os processos que foram suspensos em primeiro e segundo grau retomarão o seu curso para fins de aplicação da tese firmada, nos termos do art. 1.040, inciso III, do CPC.

Enfim, justamente por se inserir no contexto de formação concentrada de precedentes, prescreve o art. 927, inciso III, do CPC que os juízes e tribunais deverão observar os acórdãos proferidos em recursos repetitivos. Para além dessa determinação geral, o CPC especifica as situações em que os precedentes obrigatórios devem ser observados, tais como no julgamento de improcedência liminar (art. 332, inciso III), na dispensa da remessa necessária (art. 496, § 4º, inciso II), na concessão de tutela provisória de evidência (art. 311, inciso II), atribuindo, ainda, poder ao relator para decidir monocraticamente com base em precedente (art. 932, inciso IV, b, e inciso V, b).43

Como se pode depreender, o CPC prevê regras procedimentais específicas para o julgamento de recursos repetitivos, que devem ser observadas tanto para que se possibilite a gestão de casos repetitivos, quanto para a formação concentrada de precedentes.

2.3. Breves apontamentos críticos

O regime de recursos repetitivos como via de tratamento da litigiosidade repetitiva vem sendo objeto de crítica da doutrina sob diversos aspectos. Neste tópico, serão apontadas apenas algumas críticas para que se desenvolvam bases teóricas a serem utilizadas na análise do caso concreto objeto do presente estudo.

42 Há um debate doutrinário acerca da forma de participação das partes dos processos repetitivos nos recursos submetidos à técnica de julgamento repetitivo. Para Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha, elas atuariam como assistentes simples das partes no recurso representativo de controvérsia, enquanto que, para Sofia Temer, tratar-se-ia apenas de intervenção simps A autora entende que a técnica de recursos repetitivos teria adotado o sistema de causa-modelo, não causa-piloto, não havendo como se falar de interesse jurídico típico de assistência simples (DIDIER JÚNIOR, CUNHA, 2016, p. 607/610). Para Lucas Buril de Macêdo, trata-se de uma intervenção atípica (MACÊDO, 2017, p. 439).

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Um primeiro pressuposto importante para passarmos a analisar criticamente os recursos repetitivos é a ideia de que, por meio deles, busca-se a fixação de precedentes em matéria de direito para fins de julgamento em massa de litígios repetitivos.

Porém, conforme apontado por Camilo Zufelato, o tratamento da litigiosidade repetitiva não faz parte dos escopos atribuídos originalmente aos precedentes nos países de tradição common law. Em verdade, a teoria do stare decisis típica do common law vincula o sistema de precedentes à criação do direito pautada na uniformidade decisional, previsibilidade e integridade do sistema judicial sem que se tenha colocado como prioridade a celeridade processual, tendo o CPC criado um sistema de “precedentes à brasileira” com motivações e métodos singulares.44

Fica claro a partir da própria Exposição de Motivos do CPC/15 que a intenção do legislador seria a adoção de um processo pautado na agilidade e celeridade45, porém sem que tivesse havido um amadurecimento acerca de algumas técnicas inerentes ao sistema de precedentes, como, por exemplo, a preocupação com a identificação precisa da ratio decidendi ou a aplicação correta das técnicas de distinção e superação. Ainda para Camilo Zufelato, como fruto da agilidade esperada, haveria uma peculiaridade na aplicação dos precedentes no Brasil atinente à simplificação de questões altamente complexas em textos resumidos equiparáveis a súmulas, descontextualizando por completo o entendimento adotado pelo Tribunal dos fatos e fundamentos que lhe deram origem.46

Ainda a esse respeito, pontua Carlos Alberto de Salles que, em matéria de uniformização de entendimento em sede de precedente, teria o legislador lançado mão de disposições descritivas, porém sem fornecer ferramentas procedimentais a esse respeito que conduzisse uma aplicação técnica segura. Nas palavras do autor, “a nova disciplina processual poderia ter sido mais precisa conceitualmente e pormenorizada quanto aos pressupostos de sua aplicação”.47

Outra crítica importante aos recursos repetitivos – que se aplica igualmente ao IRDR – diz respeito à sua incapacidade de lidar com questões de fato que sejam objeto de uma litigiosidade repetitiva. Como já mencionado, os recursos especial e extraordinário são de direito estrito, não sendo permitido que se uniformize entendimentos acerca de fatos que poderiam ser aproveitados em outros processos. Conforme destacado por Amanda de Araújo

44 ZUFELATO, Camilo. Precedentes Judiciais à Brasileira no Novo CPC: aspectos gerais. In O Novo Código de

Processo Civil: questões controvertidas. Vários autores. São Paulo: Atlas, 2015, p. 90/95.

45 ZUFELATO, 2015, p. 95. 46 ZUFELATO, 2015, p. 105. 47 SALLES, 2015, p. 78/79.

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Guimarães, “[é] possível e até comum a replicação de demandas decorrentes de uma mesma situação fática, cujos contornos poderão ser discutidos para o reconhecimento do direito alegado. A litigiosidade repetitiva pode surgir de um evento comum que faz surgir pretensões homogêneas (...)”.48

Em suma, o que se verifica, então, é que, de um lado, os litígios repetitivos envolvendo matéria fática não foram considerados ao se adotar a via dos recursos repetitivos - e o IRDR - e, por outro lado, por força de política legislativa, foi se enfraquecendo os incentivos às ações coletivas.

Por fim, importante crítica à técnica do julgamento de recursos repetitivos diz respeito aos impactos da restrição da participação direta dos interessados em processos cujo resultado os vincula, ou seja, aos impactos da resolução do conflito sem atuação de grande parte dos afetados.

Já se mencionou que a técnica de julgamento de recursos repetitivos envolve seleção de casos-piloto para posterior fixação de entendimento em precedente obrigatório. Porém, como destacado por João Eberhardt Francisco acerca do IRDR - em comentário que se aplica aos recursos repetitivos -, neste âmbito, não há um devido processo legislativo que possibilite um ambiente democrático para a elaboração de normas abstratas, nem a possibilidade de participação direta típica de processos individuais, tampouco o controle da representação adequada dos interesses, tal qual se verifica em processos coletivos de tutela de direitos individuais.49

Tamanha mitigação na atuação das partes interessadas, ainda segundo o autor, vem sendo justificada a partir da própria natureza do objeto analisado - que envolve apenas questões de direito - e do volume excessivo de demandas idênticas, cujo enfrentamento o Poder Judiciário deve gerenciar com eficiência de recursos e de tempo.50

Visando compensar referida limitação participativa, o CPC lançou mão de ferramentas tais como ampliação da publicidade, participação de amicus curiae e de interessados - conforme já pontuado. Neste contexto, a relevância da seleção dos recursos representativos da controvérsia toma proporções ainda maiores, pois, caso haja falha na aplicação das ferramentas

48 GUIMARÃES, Amanda de Araújo. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. São Paulo: Dissertação de Mestrado não publicada. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2017. p. 162.

49 FRANCISCO, João Eberhardt. Filtros ao acesso individual à justiça: estudo sobre o incidente de resolução

de demandas repetitivas. São Paulo: Dissertação de Doutorado não publicada. Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, 2018. p. 103. 50 FRANCISCO, 2018, p. 105.

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de ampliação do debate processual, os fundamentos e questões jurídicas que irão influenciar a solução final se reduzirão tão somente àqueles suscitados no caso-piloto.51

A esse respeito, dispõe o art. 1.036, § 6º, do CPC que a seleção do caso-piloto deverá levar em consideração os critérios de “abrangente argumentação e discussão a respeito da questão”. Como se pode extrair da redação normativa, não há exigência de que todas as teses envolvendo o assunto objeto do precedente tenham sido confrontadas no caso-piloto, ou que tenham sido veiculadas com adequada qualidade argumentativa, tampouco havendo critérios de representatividade das partes envolvidas.52

Mesmo que se argumente pela transcendência dos elementos subjetivos em função da vinculação do precedente a matérias de direito, inegável que o julgamento do recurso repetitivo está invariavelmente adstrito à composição do caso concreto e à capacidade das partes em manejar o assunto em juízo. A importância das partes que compõem o caso-piloto toma proporções ainda maiores considerando a estrutura típica dos litígios repetitivos, caracterizada pela predominância de demandas envolvendo os mesmos entes, públicos ou privados.53

Adotando fonte teórica desenvolvida por Marc Galanter, referidos entes poderiam se enquadrar como repeat players, aqui traduzido para litigantes habituais. Para o autor, em função de sua estrutura ampla, da possibilidade de financiar melhores defesas técnicas e pela frequência com que litigam em juízo pelos mesmo assuntos, os litigantes habituais têm a oportunidade de desenvolver maior expertise, possuindo capacidade de antecipar litígios repetitivos, enfrentando proporções de riscos reduzidos, possuindo, ainda, recursos para perseguir interesses de longo prazo, além de facilidades informais advindas de uma maior proximidade com atores institucionais.54 Em suma, os jogadores habituais possuem capacidade de racionalizar a sua atuação visando melhor desempenho nas disputas que envolvem formação de precedentes, tais como verificado nos recursos repetitivos.

De outro lado, ainda segundo Marc Galanter, verifica-se a atuação dos denominados one-shotters, cuja tradução aqui adotada será de litigantes eventuais, caracterizados pela menor frequência de litígios judicializados, pressão de riscos proporcionalmente maiores e pela expectativa de benefícios a curto prazo, pelo que comumente apresentam certa indiferença com relação a resultados normativos.55

51 FRANCISCO, 2018, p. 121. 52 ASPERTI, 2018, p. 174. 53 ASPERTI, 2018, p. 202/203.

54 GALANTER, Marc. Why the haves come out ahead? Speculations on the limits of legal change. 1974. In Law and Society. Volume 9:1 Law and Society Review, 1974, Republicação (com correções) In Law and Society. Dartmouth, Aldershot: Cotterrell, 1994. p. 97/101.

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Referida diferença entre os litigantes pode influenciar o resultado do precedente a ser formado por meio de recurso repetitivo. Nas palavras de Maria Cecília de Araújo Asperti, “(...) é provável que os litigantes habituais terão mais condições e incentivos para contratação de advogados especializados que tenham não somente maior conhecimento técnico e aparato para defesa (...), mas também maior influência no cenário jurídico”.56

Isso sem contar fatores mais simples, tais como a possibilidade de as partes – especialmente os litigantes eventuais – não terem nem a intenção, nem a expectativa de figurar como participantes de um recurso representativo da controvérsia ou até mesmo que não possuam recursos necessários para levar a juízo defesa técnica adequada. 57

A despeito da simplicidade do art. 1.036, § 6º, do CPC, ideal que a escolha do recurso representativo da controvérsia seja realizada estrategicamente, de forma a mitigar os potenciais prejuízos advindos da falta de participação direta dos interessados e preservar o máximo possível o acesso à Justiça.

A título de ilustração, Antonio do Passo Cabral propõe alguns critérios para seleção do caso-piloto que podem ser aproveitados para os recursos repetitivos. Em suma, o primeiro se pauta em um aspecto objetivo de amplitude de contraditório, que incluiria a completude, qualidade e a diversidade da discussão, além da verificação de efetivo contraditório e a existência de restrições à cognição probatória no processo originário. O segundo critério teria um aspecto subjetivo de pluralidade e representatividade dos sujeitos participantes do processo originário, incluindo ampla participação, ocorrência de audiências públicas, intervenção de uma diversidade de sujeitos e presença de amicus curiae.58

Feita uma breve abordagem acerca de alguns dos aspectos críticos acerca dos recursos repetitivos, passaremos à análise do caso concreto selecionado para fins de exame da técnica e utilização dos recursos repetitivos.

3. Resumo do caso concreto

Trata-se de ação indenizatória por dano ambiental proposta em 07.10.2010 por Maria Gomes de Oliveira Santos contra Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás (Petrobrás) perante a Comarca de Laranjeiras/SE em função de um vazamento de aproximadamente 43 mil litros de

56 ASPERTI, 2018, p. 206. 57 ASPERTI, 2018, p. 203/206.

58 CABRAL, Antonio do Passo. A escolha da causa-piloto nos Incidentes de Resolução de Processos Repetitivos. In Revista de Processo. Vol. 231/2014. Mai./2014. p. 205/206.

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amônia no Rio Sergipe ocorrido em 05.10.2008, decorrente das atividades desenvolvidas pela Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados de Sergipe (FAFEN/SE), subsidiária da Petrobrás.59 Em suma, a autora alegou ser pescadora com dedicação exclusiva, com registro de pesca na carteira de trabalho, e que a contaminação do Rio Sergipe inviabilizou o exercício de sua atividade profissional, assim como a teria impossibilitado de utilizar a pesca para a sua própria alimentação e subsistência. Ao final, formula pedido de indenização por danos materiais equivalente aos lucros cessantes decorrentes da impossibilidade de exercer sua atividade profissional e por danos morais em valor a ser arbitrado pelo juiz.

Os documentos probatórios que acompanharam a petição inicial dizem respeito à carteira de pescadora profissional, comprovante de registro na Colônia de Pescadores, assim como o registro perante o Ministério do Trabalho e Emprego. Ao contestar, a Petrobrás apresentou como prova documental fotos da região do Rio Sergipe tiradas in loco no dia 12.12.2008, laudo técnico produzido pela Universidade Federal de Sergipe para comprovar a inexistência de danos no manguezal, Relatório da Comissão de Licitação para contratação da Universidade Federal de Sergipe, laudos periciais produzidos na ação civil pública proposta em função deste mesmo desastre ambiental – conforme será abordado adiante –, bem como reportagens jornalísticas acerca de irregularidades no pagamento de seguro desemprego a pescadores profissionais e decisões judiciais proferidas em outros processos que seriam favoráveis à Petrobrás.

Em sede de instrução probatória, foram deferidos os pedidos da autora de produção de prova documental e colheita de depoimento pessoal e oitiva de testemunha, indeferindo-se, ainda, a produção de prova pericial. Quanto aos pedidos da ré, deferiu-se a expedição de ofícios para o Município de Laranjeiras e Maruim, bem como para os respectivos órgãos de vigilância sanitária para comprovação da condição da autora como feirante liberada para comercializar em feiras públicas, da adoção de prova emprestada da ação civil pública, de apresentação pela autora de comprovantes de recebimento de seguro desemprego, bem como do pedido de produção de testemunhal e depoimento pessoal.

Em primeira instância, os pedidos da autora foram julgados parcialmente procedentes, de forma a condenar a ré ao pagamento de R$ 240,00 de lucros cessantes60 e R$ 7.500,00 a

59 BRASIL. 1ª Vara Cível e Criminal de Laranjeiras. Processo nº 201073002283. Autora: Maria Gomes de Oliveira, Ré: Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás. Julgado em: 29 set. 2011. Disponível em: https://www.tjse.jus.br/portal/consultas/consulta-processual Acesso em: 20 dez. 2020.

60 Para chegar ao valor de R$ 240,00 de lucros cessantes, levou-se em consideração que o processo de restabelecimento do Rio Sergipe durou 8 meses, dentre os quais 2 meses a autora teria recebido seguro-defeso. Quanto aos 6 meses restantes, considerou-se que, dos R$ 100,00 mensais que a autora auferia com atividade

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título de danos morais. Ambas as partes apelaram, tendo o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE) negado provimento ao recurso da autora e dado parcial provimento ao recurso da ré, a fim de diminuir o valor fixado a título de danos morais para R$ 3.000,00.

Ambas as partes, então, interpuseram recurso especial61, tendo o Presidente do TJSE admitido os recursos, atribuindo-lhes seguimento pelo regime dos recursos repetitivos e selecionando-os como representativos de controvérsia62, sob o fundamento de que “[a] disputa judicial (...) é co-irmã de aproximadamente 1.200 (mil e duzentas) outras demandas advindas do mesmo incidente ambiental, sendo que as apelações aportadas nesta Corte estão sendo julgadas (...) numa mesma linha de interpretação da legislação federal pertinente”.63 Desta feita, os recursos foram encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) juntamente com outros quatro.

No STJ, o recurso especial foi autuado sob o nº 1354536/SE (2012/0246647-8) e distribuído sob relatoria do Min. Luiz Felipe Salomão. Em 24.05.2013, foi proferida decisão por meio da qual houve ratificação da admissibilidade do processamento sob o regime de repetitivos, com a confirmação da afetação dos recursos como representativos da controvérsia, sob os temas 679, 682, 684, 680, 681, 683 e 834 do STJ. Determinou-se, ainda, a suspensão dos recursos que versassem sobre a mesma questão, bem como a intimação do Ministério Público Federal (MPF) e do Ibama para manifestação.64

O MPF apresentou manifestação, enquanto que o Ibama manteve- se silente. Em 26.03.2014, após sustentação oral dos advogados de ambas as partes, foi negado provimento a ambos os recursos, tendo se fixado as seguintes teses relativas ao desastre ambiental ora em questão:

(a) para demonstração da legitimidade para vindicar indenização por dano ambiental que resultou na redução da pesca na área atingida, o registro de pescador profissional e a habilitação ao benefício do seguro-desemprego, durante o período de defeso, somados a outros elementos de prova que

pesqueira, ela passou a auferir apenas R$ 60,00 após o desastre ambiental. Assim, a ré foi condenada a pagar lucros cessantes concernente ao prejuízo de R$ 40,00, multiplicado por 6 meses, totalizando o valor de R$ 240,00. 61 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Resp. nº 1.354.536. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Recorrente e Recorrido: Maria Gomes de Oliveira e Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás. Julgado em: 23 mar.

2014. Disponível em:

https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201202466478 &totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea. Acesso em: 20.12. 2020.

62 À época, a matéria regulada era pelo art. 543-C do CPC/73.

63 BRASIL, Resp. nº 1.354.536, fls. 519 da numeração dos autos no STJ.

64 Decisão monocrática disponível em

https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=29019150&tip o_documento=documento&num_registro=201202466478&data=20130529&tipo=0&formato=PDF. Último acesso em 20.12.2020.

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permitam o convencimento do magistrado acerca do exercício dessa atividade, são idôneos à sua comprovação;

b) a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar a sua obrigação de indenizar;

c) é inadequado pretender conferir à reparação civil dos danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao direito penal e administrativo;

d) em vista das circunstâncias específicas e homogeneidade dos efeitos do dano ambiental verificado no ecossistema do rio Sergipe - afetando significativamente, por cerca de seis meses, o volume pescado e a renda dos pescadores na região afetada -, sem que tenha sido dado amparo pela poluidora para mitigação dos danos morais experimentados e demonstrados por aqueles que extraem o sustento da pesca profissional, não se justifica, em sede de recurso especial, a revisão do quantum arbitrado, a título de compensação por danos morais, em R$ 3.000,00 (três mil reais);

e) o dano material somente é indenizável mediante prova efetiva de sua ocorrência, não havendo falar em indenização por lucros cessantes dissociada do dano efetivamente demonstrado nos autos; assim, se durante o interregno em que foram experimentados os efeitos do dano ambiental houve o período de "defeso" - incidindo a proibição sobre toda atividade de pesca do lesado -, não há cogitar em indenização por lucros cessantes durante essa vedação; f) no caso concreto, os honorários advocatícios, fixados em 20% (vinte por cento) do valor da condenação arbitrada para o acidente - em atenção às características específicas da demanda e à ampla dilação probatória -, mostram-se adequados, não se justificando a revisão, em sede de recurso especial.65

Após a intimação das partes e do MPF acerca do acórdão, não foram opostos embargos de declaração ou eventuais recursos e a decisão transitou em julgado em 12.06.2014.

65 Acórdão disponível em

https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1308407&num_ registro=201202466478&data=20140505&formato=PDF. Último acesso em 20.12.2020.

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3.1. Outros processos relacionados com o desastre ambiental

Além dos diversos processos individuais propostos em função do derramamento de amônia no Rio Sergipe em 05.10.2008 – que inclusive motivaram a adoção do regime de recurso repetitivo –, em 22.10.2008, a Associação de Pescadores de Bairros e Povoados da Cidade de Maruim propôs uma ação civil pública contra a FAFEN e a Superintendência do Ibama em Aracaju/SE (Ibama), que tramitou perante a Justiça Federal do Estado de Sergipe.

Referida ação teve por objeto tutela de direitos difusos, voltada para a contenção dos resíduos tóxicos derramados no local, tratamento das águas, recuperação do estuário natural do Rio Sergipe mediante processo de “repeixamento” e reflorestamento do mangue, bem como para o pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 10 milhões. Requereu-se, ainda, o exercício de poder de polícia pelo Ibama para fiscalização e controle das atividades potencialmente poluidoras da FAFEN.

Houve intensa produção probatória, com a juntada de um vasto número de documentos – envolvendo entrevistas, reportagens, degravações, cópias de processos administrativos vinculados ao desastre e de Relatórios acerca da mortandade de pescado no Rio Sergipe –, além da produção de perícia técnica, realização de inspeções judiciais, de audiências públicas, participação do MPF, do Ministério Público Estadual (MPE), da União e da Agência Nacional de Águas (ANA).

Em primeira instância, a ação foi julgada parcialmente procedente para confirmar a medida liminar inicialmente deferida, concernente à obrigação da FAFEN manter o regular funcionamento de projeto de construção de tanques de captação, controle e tratamento das águas oriundas da referida unidade industrial, instalando mecanismos antipoluição que impeçam sob quaisquer formas o escoamento de resíduos tóxicos para o mangue e o Rio Sergipe, condenando a FAFEN, ainda, ao pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 500.000,00. Os demais pedidos foram improvidos. Interpostos recursos de apelação, o TRF da 5ª Região deu parcial provimento ao recurso da Petrobras para reduzir o valor do dano moral coletivo fixado para R$ 150.000,00. A Petrobras interpôs recurso especial, que foi desprovido em 17.08.2016.66

Ademais, em 11.11.2009, a Associação de Pescadores de Bairros e Povoados da Cidade de Maruim, representando 33 pescadores, também propôs ação indenizatória por danos

66 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Resp. nº 1355574/SE. Relator: Min. Og Fernandes. Recorrente: Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás. Recorrido: Associação de Pescadores de Bairros e Povoados da

Cidade de Maruim. Julgado em: 21 mar. 2017. Disponível em:

https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa= tipoPesquisaNumeroRegistro & termo= 201202481713 & totalRegistrosPorPagina= 40 & aplicacao=processos.ea. Acesso em: 20.12. 2020.

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materiais e morais com pedido de tutela antecipada contra a Petrobrás e a FAFEN/SE. Voltada tutela de direitos individuais homogêneos, pleiteou-se indenização por danos materiais, a título de lucros cessantes, no valor de R$ 7.200,00 para cada pescador, e por danos morais, em quantia a ser arbitrada pelo juízo, com pedido liminar para que a Petrobrás fosse compelida a pagar a quantia de R$ 600,00 por mês para cada associado.67

O processo foi inicialmente distribuído perante a Justiça Estadual de Laranjeiras/SE68, tendo as rés suscitado preliminar de incompetência da Justiça Estadual em função de suposta conexão com a ação civil pública já em trâmite na Justiça Federal. Remetida a ação para a Justiça Federal69, esta suscitou conflito negativo de competência perante o STJ, que, autuado sob o nº 107206, resultou na determinação da tramitação do feito pela Justiça Estadual.

Retornando à Justiça Estadual, o processo foi julgado em 31.01.2013, tendo a sentença aplicado entendimento fixado inicialmente pelo TJSE nas ações individuais, julgando parcialmente procedente o pedido de indenização por danos morais no valor de R$ 3.000,00 para cada associado não excluído da ação. Os pedidos iniciais foram julgados improcedentes quanto aos pescadores que não constavam como beneficiários do seguro-desemprego de pescador artesanal, para aqueles que não apresentaram documentos comprobatórios da condição de pescador e quanto a um dos pescadores que não compareceu na audiência para prestar depoimento pessoal e não apresentou documentos comprovando a sua condição de pescador. O pedido de pagamento de lucros cessantes foi indeferido, uma vez que os pescadores tinham recebido o valor de um salário mínimo no período compreendido entre junho de 2009 e abril de 2010, conforme determinado pela decisão liminar.

Interposta apelação pelas partes, o recurso interposto pela Associação de Pescadores de Bairros e Povoados da Cidade de Maruim foi parcialmente provido para incluir cinco autores antes excluídos do rol de legitimados para receber os valores fixados. As partes, então, interpuseram recursos especiais, aos quais foi negado seguimento aplicando-se entendimento fixado no âmbito do Recurso Especial nº 1354536/SE.

67 Os autos do presente processo são físicos, de forma que o estudo realizado se baseou em andamento do sistema eletrônico.

68 BRASIL. 1ª Vara Cível e Criminal de Laranjeiras. Processo nº 200973001706. Autora: Associação de Pescadores de Bairros e Povoados da Cidade de Maruim. Ré: Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás e Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados de Sergipe - FAFEN/SE. Julgado em: 31.01.2013. Disponível em: https://www.tjse.jus.br/portal/consultas/consulta-processual Acesso em: 20.12. 2020.

69 BRASIL. 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Sergipe. Processo nº 2009.85.00.000772-5. Autora: Associação de Pescadores de Bairros e Povoados da Cidade de Maruim. Ré: Petróleo Brasileiro S/A - Petrobrás e Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados de Sergipe - FAFEN/SE. Julgado em: 29.10. 2013. Disponível em: https://consulta2.jfse.jus.br/ConsultaTebas/resconsproc.asp. Acesso em: 20.12. 2020.

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4. Análise crítica do caso concreto

4.1. Recurso especial repetitivo v. questões de fato

Ao iniciarmos o presente tópico, faz-se necessário relembrarmos o critério de distinção entre questão de fato e de direito proposto por Teresa Arruda Alvim Wambier e Bruno Dantas a partir do aspecto problemático. Assim, “(...) embora indubitavelmente o fenômeno jurídico não ocorre senão diante de fato e norma, o aspecto problemático desse fenômeno pode estar lá ou cá, assim como pode dizer respeito à subsunção”.70

Ao aplicarmos este marco teórico ao Recurso Especial nº 1354536/SE, verificamos situação em que o STJ se debruçou sobre questões eminentemente fáticas para a formação de parte das teses fixadas. Inicialmente, destaca-se a tese a, que assim dispõe:

(a) para demonstração da legitimidade para vindicar indenização por dano ambiental que resultou na redução da pesca na área atingida, o registro de pescador profissional e a habilitação ao benefício do seguro-desemprego, durante o período de defeso, somados a outros elementos de prova que permitam o convencimento do magistrado acerca do exercício dessa atividade, são idôneos à sua comprovação;

Como se pode depreender, nada mais fez o acórdão do que fixar um entendimento acerca de standard probatório mínimo para que se constate que um indivíduo exerce atividade pesqueira. Evidente que o aspecto problemático – e a atenção do julgador – não está na compreensão ou interpretação normativa da legitimidade ativa em abstrato, mas sim na própria valoração dos fatos a partir de standards probatórios para que se possa reconhecer um indivíduo como legítimo para propor um determinado tipo de ação.

Trata-se, portanto, de questão de evidente natureza fática, tendo o STJ se dedicado a ponderar fatores da realidade concreta, de forma a uniformizar entendimento acerca de quais provas seriam necessárias para que houvesse adequada subsunção de normas que disciplinam a legitimidade ativa.

Não obstante, a tese d fixada no recurso especial assim dispõe:

d) em vista das circunstâncias específicas e homogeneidade dos efeitos do dano ambiental verificado no ecossistema do rio Sergipe – afetando significativamente, por cerca de seis meses, o volume pescado e a renda dos pescadores na região afetada –, sem que tenha sido dado amparo pela

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poluidora para mitigação dos danos morais experimentados e demonstrados por aqueles que extraem o sustento da pesca profissional, não se justifica, em sede de recurso especial, a revisão do quantum arbitrado, a título de compensação por danos morais, em R$ 3.000,00 (três mil reais);

Trata-se de tese fixada a respeito dos danos morais sofridos pela Sra. Maria Gomes de Oliveira Santos em função do desastre natural. Neste contexto, igualmente o aspecto problemático – e a atenção do julgador – não está voltada para a norma ou na sua interpretação, mas sim para a verificação dos fatos do caso concreto a partir dos quais se pode constatar as condições necessárias à responsabilização por danos morais, bem como para a fixação de um valor indenizatório adequado.

Inclusive, não há questão mais aderente aos fatos do que a fixação do quantum dos danos morais. Justamente pelo seu caráter relativo, deve o julgador extrair do caso concreto parâmetros mínimos para a fixação adequada do valor indenizatório. A esse respeito, pontua Sílvio de Salvo Venosa:

Os julgados devem buscar o justo equilíbrio no caso concreto. (...) Deverá ser levada em conta também, para estabelecer o montante da indenização, a condição social e econômica dos envolvidos. O sentido indenizatório será mais amplamente alcançado à medida que economicamente fizer algum sentido tanto para o causador do dano como para a vítima. O montante da indenização não pode nem ser caracterizado como esmola ou donativo, nem como premiação.71

É de se ressaltar, ainda, que, por meio do caso concreto, não se formulou pedido de danos morais coletivos - pelo que seria necessário que se fizesse uma instrução probatória compatível com a dimensão coletiva do direito. O pedido e todo o desenvolvimento da instrução processual teve por base os danos sofridos pela Sra. Maria Gomes de Oliveira Santos, tendo o acórdão do recurso especial inclusive levado em consideração os fatores descritos na petição inicial para manter, ao final, o quantum indenizatório fixado nas instâncias inferiores.

Ao enfrentar o caso concreto, afirma o acórdão em sua fundamentação que “não consta que tenha prestado nenhum auxílio à autora”, sendo, ainda, “crível – a máxima de experiência – a afirmação feita pela autora na exordial acerca de que consumia parte do que pescava” e que “a Corte local apurou que a recorrida foi, em virtude do acidente ambiental, subitamente privada de 40% de sua renda média mensal”, pelo que entendeu “ser razoável o quantum

71 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 390/391.

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arbitrado a título de compensação por danos morais (R$ 3.000,00), não caracterizando montante exorbitante”.72 Em suma, o acórdão se dedicou a fatos inerentes ao caso concreto, de características exclusivamente individuais, atribuindo-lhes reflexos coletivos.

Ocorre que, conforme já mencionado no tópico 2.2 deste trabalho, o recurso especial não se presta ao reexame de questões fáticas, muito menos em sede de regime repetitivo, cujo objetivo é fixar precedentes obrigatórios acerca de questões de direito, conforme expressamente previsto no art. 1.036 do CPC. Sobre os assuntos tratados nos temas a e d do acórdão, portanto, cumpriria ao STJ não conhecer do recurso especial, conforme se posicionou expressamente o MPF em parecer apresentado perante o STJ.73

Com efeito, ao enfrentar a condição de pescador profissional e os danos morais enquanto mérito recursal e, indo além, incluindo-os no âmbito das teses fixadas em sede de regime repetitivo, o STJ se aproveitou dos mecanismos de aplicação de precedentes obrigatórios aos processos já suspensos e àqueles que poderiam futuramente ser propostos para fins de adoção imediata do entendimento fixado, mesmo se tratando de questões fáticas e, especialmente no que tange aos danos morais, intimamente ligadas a condições individuais da autora da ação.

Pelo contexto descrito acima, constata-se que o regime dos recursos repetitivos não é ferramenta adequada para enfrentar o problema da litigiosidade repetitiva em sua completude, uma vez que grande parte das demandas que se repetem versam sobre situações fáticas. Em reflexão acerca do IRDR que se enquadra perfeitamente no presente contexto, afirma Amanda de Araujo Guimarães:

O IRDR não poderia ser instaurado para a solução comum sobre a reparação daqueles pescadores que se sentem lesados pelo derramamento do óleo, já que provavelmente haverá matéria fática a ser reconstruída na demanda. Embora os fatos mostrem-se comuns para uma grande quantidade de pessoas, a solução das questões fáticas por meio do incidente não é permitida, não há a possibilidade de instrução probatória conjunta.74

Essa parcela de litígios não alcançada pelo regime repetitivo pode ser, em realidade, um sintoma da relativa inadequação da solução que se adotou para o problema. Conforme destacado

72 Trechos retirados da p. 19 do acórdão disponível em Acórdão disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1308407&num_ registro=201202466478&data=20140505&formato=PDF. Último acesso em 18.12.2020.

73 Segundo o MPF, “[e]m relação ao recurso interposto pela Petrobrás verifica-se, em relação aos seguintes tópicos: a) alegação de que não restou demonstrada a condição de pescadora profissional; b) alegação de que inexistiu dano a ser indenizado; c) excesso no quantum indenizatório, nítido propósito de revolvimento da matéria fático-probatória, o que é vedado na via do recurso especial, impedindo o conhecimento do recurso quanto a esses tópicos” (BRASIL, Resp. nº 1.354.536, p. 556 dos autos no STJ).

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por Luiz Guilherme Marinoni, a função que vem sendo atribuída às Cortes de Vértice, a partir do art. 927 do CPC, foi de resolver litígios repetitivos e otimizar a gestão de processos, o que “(...) nada tem a ver com a função das Cortes Supremas, que é a de definir, mediante as melhores razões, a norma que deflui do texto legal ou constitucional”.75 Inclusive, conforme destacado no tópico 2.3, a origem dos precedentes no common law nem mesmo contava com referida função na sua estruturação técnica.

Não se pode negar a importância de se resolver matérias controvertidas de direito que acabam por avolumar o trabalho do Poder Judiciário, problema este que pode ser enfrentado por meio da uniformização via precedentes obrigatórios.76 Porém, referido volume de trabalho não pode se tornar o principal motivador da uniformização interpretativa – que, por si só, já é uma atividade desafiadora –, sob pena de reduzir a jurisdição dos Tribunais Superiores à mera gestão estratégica de processos.

No caso concreto estudado, ao fixar em sede de precedente obrigatório entendimento sobre as questões de fato acima destacadas, aparentemente o STJ relegou a segundo plano exatamente a sua função de uniformização de questões de direito, a fim de resolver assuntos que poderiam continuar a avolumar o trabalho do Poder Judiciário, mesmo que, para tanto, fosse necessária a violação de regras procedimentais inerentes aos recursos repetitivos.

4.2. Recurso especial repetitivo v. Ação Coletiva: Representatividade Adequada

Conforme já pontuado acima, ao fixar precedente por meio de apreciação de um caso-piloto, o regime de recursos repetitivos ocasiona uma restrição da participação direta dos interessados em processos cujo resultado os vincula.

Neste contexto, a discussão importante que vem sendo travada no âmbito da doutrina diz respeito ao controle da representatividade adequada, instrumento oriundo do contexto dos processos coletivos. Conforme destacado por Susana Henriques da Costa, representatividade adequada é a capacidade de a parte participante do processo litigar de forma eficaz em nome de uma classe ou coletividade. Trata-se, segundo a autora, de instituto importante, uma vez que garantidor do devido processo legal em sentido substancial - ou seja, garantidor de defesa

75 MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante

do novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 21/22.

76 Para Amanda de Araujo Guimarães, “Sidnei Agostinho bem identifica a litigiosidade decorrente da disputa sobre uma tese jurídica, asseverando que ‘importância especial assumem os casos em que a matéria em lide é puramente de direito. E esse tipo de matéria avulta, já há algum tempo, nos tribunais do país’” (GUIMARÃES, 2017, p. 162).

Referências

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