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O que pode a economia popular urbana?

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Academic year: 2021

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O que pode a economia popular urbana?

Pensando a produção e a geração de renda nas

ocupações de sem-teto do Rio de Janeiro

Marcelo Lopes de Souza

Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre

Desenvolvimento Sócio-Espacial (NUPED)

da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O que é a “economia popular urbana”?

“Economia popular”, “economia solidária”, “economia popular urbana”, “economia popular solidária”, “economia social”... Várias expressões têm sido usadas, nos últimos anos, para se referir a atividades que, em princípio, teriam em comum as seguintes características:

1) Não têm por objetivo a extração de lucro (e, portanto, muito menos se baseiam na extração da mais-valia, que é a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador).

2) Buscam não somente gerar renda, mas também colaborar para o desenvolvimento de formas de relacionamento mais fraternas entre as pessoas.

À primeira vista, poderia parecer que aquelas expressões significam, todas elas, a mesma coisa. Mas não é bem assim. As diferenças ficam por conta, principalmente, da maneira como cada um responde às seguintes perguntas: será que essas atividades de geração de renda devem ser

encaradas como uma espécie de “complemento” da economia capitalista... ou será que elas podem estar a serviço, de algum modo, de um projeto político que tenha como horizonte uma crítica radical da sociedade capitalista e a sua superação?

É muito comum, por exemplo, que aqueles que utilizam a expressão “economia solidária” tenham uma abordagem puramente “reformista” de atividades como cooperativas, microcréditos etc. Para eles, tais atividades podem representar uma boa alternativa parcial ao mercado capitalista, em

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países nos quais, além de o subemprego ser tradicionalmente muito elevado, o desemprego ainda por cima cresceu muito nos anos 90 (como é exatamente o caso do Brasil). É bem verdade que eles, na sua maioria, não chegam a ser ingênuos a ponto de acharem que a “economia solidária” poderia competir com o capitalismo propriamente dito “de igual para igual”, nem que os “empreendimentos econômicos solidários” podem ser, realmente, uma solução perfeita e completa para o desemprego e a pobreza. No entanto,

eles não chegam a questionar profundamente o modelo econômico-social em que vivemos, e é comum que nem se preocupem muito com os

diversos laços de dependência entre os “empreendimentos econômicos solidários” e o mercado capitalista (e o aparelho de Estado).

A economia popular urbana pode ser mais que um simples

“remendo” na sociedade capitalista?

É por causa daquela postura puramente “reformista” que alguns observadores têm desqualificado a preocupação com a economia popular urbana como uma bobagem, um modismo, uma artimanha da própria sociedade capitalista para amortecer tensões e reduzir o descontentamento da enorme massa de trabalhadores e trabalhadoras desempregado(a)s e subempregado(a)s.

Porém, essa crítica, ainda que em grande parte correta, é muitas vezes feita de maneira superficial. É possível pensar atividades como

cooperativas populares de uma maneira mais ambiciosa − ou seja, de um modo que não se contente em ser um “remendo” ou um “curativo” para a sociedade capitalista e opressora. Como?

A resposta para essa pergunta não precisa esperar por nenhum intelectual, nenhuma pesquisa acadêmica. Essa resposta já está sendo construída em algumas ocupações do movimento dos sem-teto no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. Uma delas é a Cooperativa Quilombo das Guerreiras, que funciona na ocupação de mesmo nome e produz chinelos e sandálias; outra é a cooperativa de produção de alimentos da Ocupação Chiquinha Gonzaga. Mas é conveniente desenvolvermos algumas idéias gerais sobre o assunto, para contextualizar.

É importante percebermos, antes de mais nada, que atividades de produção e geração de renda são fundamentais para o movimento dos sem-teto. Este movimento tem a sua razão de ser mais imediata em um

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enfrentamento do déficit habitacional, que é o total das habitações inadequadas, devido a deficiências da construção, à falta de infra-estrutura, à irregularidade jurídica do imóvel etc., além de se considerar, também, a população que, simplesmente, vive nas ruas, ao desabrigo (“população de rua”); no entanto, a “questão da habitação” está ligada a várias outras. O problema da moradia também tem a ver, por exemplo, com o problema dos

elevados custos de transporte para o trabalhador pobre, além de

apresentar uma clara relação com a exploração do trabalho e as péssimas condições de remuneração da grande maioria da população brasileira. Não é difícil perceber que enfrentar a problemática habitacional exige que a gente se disponha a fazer a ponte entre o problema da falta de moradias adequadas e outros problemas, relativos às características da economia brasileira, ao papel do aparelho de Estado, e por aí vai.

As ocupações de sem-teto da área central do Rio de Janeiro têm buscado representar espaços de resistência política e cultural à sociedade capitalista − uma sociedade que explora, oprime e aliena; uma sociedade que, de diversas formas, estimula a violência, e depois responde à violência com um aumento crescente de repressão sobre os pobres. Para que as pessoas que vivem nesses espaços tenham um mínimo de tranqüilidade para organizar e participar de atividades educacionais, culturais e de conscientização política, é necessário, porém, que tenham a sua subsistência física garantida. Como diz o velho ditado, “saco vazio não fica em pé”...

Uma atividade econômica como uma cooperativa gerida de maneira igualitária pelos produtores, produtores esses imbuídos de uma visão não-autoritária e não-hierárquica da sociedade − em outras palavras, uma

cooperativa autogestionária −, pode servir ao movimento de ocupações

sem que, de forma nenhuma, seja encarada apenas como um modo de aliviar uma necessidade material imediata. Ela pode ser valorizada como uma forma de viabilizar a própria ocupação e gerar recursos que, entre outras coisas, podem alavancar atividades culturais, educacionais etc.

Será que o movimento dos sem-teto consegue dar conta do

recado?

Os representantes da “velha esquerda” costumam duvidar que o movimento dos sem-teto, constituído basicamente por trabalhadores autônomos, trabalhadores do setor informal, possam ser protagonistas de uma alternativa político-social à sociedade capitalista. Quem assim pensa dá

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continuidade à crença de que o operariado industrial, devidamente organizado e sindicalizado, é o agente que, “auxiliado” pelo campesinato e por outras classes, deverá liderar um processo de transformação social e superar a sociedade capitalista. Para começo de conversa: será que isso ainda é minimamente realista?

Ora, as expectativas das pessoas mais sensatas com relação aos trabalhadores formais e sindicalizados, principalmente com relação ao “proletariado industrial”, já se frustraram há muito tempo. Se frustraram na exata proporção do aburguesamento dos sindicatos operários e das

centrais sindicais, que ao longo do século XX foram se tornando, cada vez

mais, cúmplices da exploração capitalista, fatores de estabilização do capitalismo e pilares de sustentação de partidos menos ou mais conservadores − até chegarem ao ponto de se tornarem, alguns desses sindicatos, acionistas de grandes empresas e gestores de enormes fundos de recursos. Deles, por conseguinte, não se pode esperar muita coisa.

Curiosamente, é do campo − dos sem-terra − e de jeito nenhum dos sindicatos operários, que, desde os anos 90, têm vindo alguns exemplos importantes em matéria de resistência popular. Quanto aos sem-teto, será que a situação de informalidade em que eles vivem, não só no local de moradia, mas também no que se refere ao seu ganha-pão, é um obstáculo intransponível para se construir formas de resistência e alternativas à sociedade capitalista?

Acreditar que os trabalhadores informais são incapazes de se organizar de maneira consistente é fechar os olhos para a própria realidade. Especialmente no âmbito do movimento dos sem-teto, os trabalhadores e trabalhadoras desempregado(a)s e subempregado(a)s já vêm se

organizando em várias cidades brasileiras, e já começaram a preocupar

os defensores da propriedade privada − sejam os proprietários privados de imóveis ociosos, seja o Estado (proprietário de muitos imóveis “abandonados” há anos e anos pelo Brasil afora). Têm se tornado cada vez mais comuns os ataques às ocupações de sem-teto por meio da grande imprensa. Sinal de que os sem-teto estão incomodando e não podem ser mais ignorados...

De “trabalhadores autônomos” a cidadãos autônomos

Vale a pena a gente prestar atenção nessa palavra que é utilizada, no Brasil, para designar o trabalhador que exerce, sem vínculo empregatício,

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uma atividade profissional remunerada: “autônomo”. Autônomo vem de

autonomia, que se compõe de duas palavrinhas de origem grega: uma que

quer dizer “o próprio”, e outra que significa “lei”, “regra”, “norma”, em um sentido bastante amplo. Autonomia, para os gregos antigos, significava: dar-se a si próprio a lei; ou, trocando em miúdos: a situação em que os

indivíduos que formam o corpo de cidadãos participam de maneira igualitária do estabelecimento das regras que vão reger os assuntos de interesse coletivo. Ser autônomo, nesse sentido, significa não ser

oprimido e explorado; significa não ser governado por leis de cuja elaboração a esmagadora maioria das pessoas não teve a menor chance de participar.

É claro que, nesse sentido, os “trabalhadores autônomos” pobres são muito pouco autônomos, uma vez que estão inseridos, de maneira subalterna, em uma sociedade profundamente desigual e injusta. Apesar disso, o fato de não terem um patrão, de não estarem submetidos à disciplina de uma fábrica e de poderem, de alguma maneira, organizar seu tempo do modo como lhes parecer melhor, merece ser visto como uma possibilidade interessante. Não se deseja sugerir, com isso, que a informalidade e a precarização crescente das relações de trabalho não sejam, de forma imediata, problemas graves nos marcos da problemática geral do capitalismo contemporâneo. O que se quer dizer é simplesmente isso: que a situação dos “autônomos” não precisa ser vista apenas como limitação; ela pode e deve ser vista, também, em parte, como potencialidade, apesar das muitas dificuldades a serem enfrentadas.

Enfrentar com sucesso as dificuldades de organização e mobilização é algo que dependerá da eficácia com que se puder, por meio de atividades de geração de renda, acumular recursos para dar respaldo às atividades político-culturais do movimento dos sem-teto (que pode e deve, aliás, colaborar, para isso, com outros movimentos sociais, como o hip-hop): divulgação de manifestos, análises de conjuntura e reflexões pela Internet e por meio de publicações; organização de seminários, debates, exposições etc.; articulação em escala nacional e internacional. Como sabemos, nada disso é fácil. Mas nada disso é impossível. E é dessa maneira, realizando de forma conjunta essas diversas atividades, que se reforçam mutuamente, que os sem-teto, na sua maior parte trabalhadores e trabalhadoras “autônomo(a)s”, estarão pavimentando o terreno para construir uma sociedade diferente, uma sociedade autônoma − sem aspas!

Referências

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