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O CAOS E O POSICIONAMENTO

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Academic year: 2021

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O CAOS E O POSICIONAMENTO

A sociedade brasileira vive uma situação caótica. O caos instalado na política brasileira, com mais um estrondoso escândalo de corrupção que envolve a quase todos os partidos, o caos financeiro que aponta para o crescimento da inflação, desemprego, entre outros processos, aliado com o declínio da acumulação capitalista, promove uma situação na qual não se vê saída. O irracionalismo predominante, bem como as ideologias dominantes, não dão conta de explicar e de gerar posicionamento diante dessa realidade caótica. É nesse momento que a posição de cada um deve ser, mais do que nunca, baseada numa reflexão profunda.

O maior problema é o conservadorismo e como este toma conta da maioria das posições. Existem os ultraconservadores, que pedem intervenção militar, querendo apenas trocar de corruptos e responsáveis pelo controle do Estado e seus “benefícios”. Existem os conservadores moderados, que querem apenas queimar o governo federal e ganhar as próximas eleições. Existem os conservadores governistas, que além de conservar seus cargos e altos salários, querem por tudo conservar o seu poder e hegemonia. Existem os reformistas, os conservadores mais esclarecidos, que propõem pequenas reformas como se isso pudesse resolver as coisas e assim conservar tudo como está, ou seja, mudar a aparência para manter tudo intacto.

É preciso ver uma luz no fim do túnel e esta não é conservadora. A superação do conservadorismo é a única possibilidade de criação de uma alternativa real e que ao invés de piorar as coisas, aponte para a transformação social e a real superação das causas dos males que nos atingem hoje. A luz no fim do túnel significa um posicionamento a favor da população e sua ação consciente, através de novas formas de organização, luta, consciência. A reflexão e o posicionamento no sentido de constituir

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4 isso é o primeiro passo para sua efetivação. Um obstáculo anterior, no entanto, deve ser removido. Esse obstáculo é o compromisso com o conservadorismo, seja de qualquer tidpo. Esse compromisso, em muitos casos, remete para interesses pessoais ou supostamente grupais, que também devem ser superados. A omissão de muitos é outro obstáculo. Sendo assim, para vermos no horizonte a possibilidade de uma real liberdade e emancipação humana, é necessário um posicionamento corajoso. Essa necessidade é cada vez mais urgente, pois somente assim a outra opção, a barbárie, que cada vez se aproxima e se fortalece como tendência, sairá vencedora.

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ESPONTANEIDADE E LIBERDADE

Nildo Viana

Sociólogo, Filósofo, Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás, Doutor em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília).

Na atual fase do capitalismo, comandado pelo regime de acumulação integral, emerge a supremacia valorativa do hedonismo acompanhado por um neoindividualismo que acabam confundindo espontaneidade com liberdade. Nesse contexto, adquire importância distinguir estes dois termos numa perspectiva humanista revolucionária, mesmo porque tais concepções acabam invadindo as tendências esquerdistas, pois elas são, em grande parte, produto da época.

O ponto fundamental é entender a diferença entre espontaneidade e liberdade. A compreensão disso é mais fácil a partir da análise do indivíduo. Um indivíduo espontâneo não é, necessariamente, um indivíduo livre. Os exemplos mais extremos deixam isso mais claro: um psicopata é extremamente espontâneo ao cometer um assassinato, bem como um fanático religioso ao pregar o evangelho nas ruas do centro da cidade. Mas qualquer analista crítico percebe que tais práticas são realizadas espontaneamente, mas não livremente, pois eles estão presos em seu universo psíquico desequilibrado.

A espontaneidade é uma ação cuja iniciativa é realizada pelo próprio indivíduo (ou grupo). Uma criança nascida em família religiosa e que é ensinada a rezar diariamente e constrangida a fazê-lo, a partir de certa idade o fará por conta própria.

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6 Freud (1974) e a psicanálise já explicaram esse fenômeno e o nomearam: introjeção1. A socialização e a ressocialização dos indivíduos, bem como manifestações concretas nesse processo (traumas, atos de violência, etc.) e o conjunto das relações sociais (incluindo a cultura) geram hábitos, manias, vícios, desejos (sexuais, afetivos, de consumo, etc.), ações que aparentemente brotam do indivíduo em sua autenticidade, mas no fundo é produto social e psíquico.

Essa espontaneidade que é manifestação de introjeção ou desequilíbrio psíquico, nada tem a ver com liberdade. Confundir espontaneidade com liberdade é algo extremamente útil para quem detém o poder, pois pode ceder cada vez mais espaço para a realização da espontaneidade em detrimento da liberdade.

O que é a liberdade? Segundo Hegel (1995), é a consciência da necessidade2. Essa é uma concepção ainda restrita, mas traz dois conceitos fundamentais para entender a liberdade: consciência e necessidade. A liberdade pressupõe consciência, razão, reflexão. Obviamente que isso não significa defender a ideia de que o ser humano se define por ser um “animal racional”, pois isto seria unilateral. Ele é um ser práxico, ou seja, que coloca uma finalidade consciente, um projeto, em suas atividades. No entanto, ele não faz isso individualmente e sim socialmente. Por isso ele é também um ser social.

Nesse contexto, é possível perceber que o ser humano ainda é um “animal”, por mais que queira se afastar da natureza, pois ele tem um corpo e este tem necessidades3. As necessidades orgânicas estão na base da constituição das necessidades

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Alguns ideólogos, como Jean Piaget, buscam encontrar aí, na época em que a criança passa a reproduzir por contra própria o que ela introjetou da sociedade, como “autonomia” (VIANA, 2000; PIAGET, 1990). Trata-se, evidentemente, de uma ideologia que inverte a realidade e que entra em visível contradição com as descobertas psicanalíticas.

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A concepção hegeliana de liberdade é complexa e aponta para a relação entre consciência e liberdade, mas vai além do liberalismo e coloca sua concretização no Estado enquanto ético-universal.“Foi Hegel o primeiro que soube expor de um modo exato as relações entre a liberdade e a necessidade. Para ele, a liberdade não é outra coisa senão a convicção da necessidade” (ENGELS, 1990, p. 95). Marx supera Hegel mostrando que somente a “indivíduos livremente associados”, com a abolição do Estado, é que se pode realizar a liberdade.

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O cristianismo é a forma religiosa que manifesta isso mais claramente ao pensar a “vida após a morte”, que é a ruptura completa com o mundo animal, o “espírito puro”, que não come, não tem sexo, etc.

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7 especificamente humanas: a socialidade e a práxis (VIANA, 2007; MARX e ENGELS, 1991), elementos complementares e inseparáveis.

Assim, poderíamos dizer que a liberdade é a concretização das necessidades humanas, que são as necessidades básicas (orgânicas), a socialidade e a práxis. A sua emergência significa um processo de humanização e este transforma as necessidades orgânicas que também são humanizadas. A liberdade é autotélica, ou seja, é práxis fundada na associação que visa sua realização e das necessidades orgânicas.

Não precisamos aqui recordar que este é um processo histórico tendencial que foi relativamente interrompido pela emergência da sociedade de classes e da alienação, tal como Marx (1983) demonstrou, o que gerou a degradação do trabalho e da socialidade e, por conseguinte, da vida em sua totalidade, incluindo as necessidades básicas (algumas atingindo certos indivíduos, por seu pertencimento de classe, tal como a fome, outras a todos sob forma de satisfação desumanizada).

Voltemos, no entanto, ao nosso foco de análise. A liberdade é a manifestação da natureza humana, sua realização, ou seja, é expressão da socialidade e da práxis, ou para utilizar um neologismo, da “praxidade”. Logo, a liberdade não é “consciência da necessidade”, como em Hegel, e sim sua concretização, no sentido de materialização (satisfação) das necessidades humanas, da praxidade, que expressa a liberdade (práxis) coletiva (socialidade)4 da humanidade. Isto pressupõe a satisfação das necessidades orgânicas, agora sob forma humanizada e verdadeiramente livre.

4 Aqui não usamos sociabilidade por que este conceito ganha um significado mais restrito ao expressar outro fenômeno social (VIANA, 2008) e “associação”, por este ser mais amplo. O termo “socialidade”, usado por Simmel (1983) com outro significado e na tradução portuguesa (que poderia ter utilizado outro termo e os tradutores colocam isso explicitamente), nos parece mais adequado para expressar o significado que queremos repassar, o caráter social do ser humano, sendo que ele só existe no interior das relações sociais e necessita delas tanto para a sobrevivência quando por razões psíquicas e somente assim é um ser humano e se humaniza. O ser humano é um ser social, ou seja, integrado na sociedade, partilhando isso como necessidade e realidade, seja sob a forma humanizada ou desumanizada. A socialidade é o vínculo do ser humano com os demais, o que, inexistindo, gera a loucura, o suicídio ou a infelicidade. Por é isso é uma necessidade psíquica (alguns diriam “existencial”) do ser humano.

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8 A espontaneidade é a manifestação irrefletida dos desejos e necessidades (autênticas ou não)5 dos indivíduos. A espontaneidade, apesar de ser irrefletida, pode a posteriori, ser justificada e legitimada por representações cotidianas, doutrinas, ideologias, etc. Se um indivíduo pratica espontaneamente a zoofilia, manifesta espontaneidade. A motivação pode ser desequilíbrio psíquico ou impossibilidade de satisfação de necessidades autênticas de forma humanizada. No entanto, se posteriormente ele escreve um tratado sobre zoofilia realizando sua naturalização, ele manifesta a produção intelectual de justificativa e legitimação de sua espontaneidade, o que significa que ela se tornará “refletida”, mas será ilusória. Esse processo ocorre cotidianamente, mas sob forma pouco refletida, e a psicanálise nomeou tal fenômeno como racionalização. Nesse caso há a produção de uma espontaneidade coisificada6. Por conseguinte, o elogio da espontaneidade no capitalismo reforça o processo de coisificação ao invés de humanização.

Isso também se manifesta no plano político da luta de classes e dos grupos sociais. A espontaneidade das classes trabalhadoras se expressa através de ações e reivindicações imediatas e pouco refletidas e são fundamentais para a autonomização e passagem para posteriores lutas revolucionárias. No entanto, é necessário reconhecer que tal espontaneidade é uma reação à determinada situação que não significa práxis, tendo, pois, que ser superada. A espontaneidade coletiva é diferente da individual, pois no primeiro caso temos ações coletivas geradas por uma situação social determinada e no segundo caso atos individuais gerados pela história de vida dos indivíduos (e sua cristalização no universo psíquico dos mesmos).

5É preciso recordar que além das necessidades primárias (orgânicas) e secundárias (especificamente humanas, a socialidade e a práxis), historicamente se produz novas necessidades, que podemos chamar terciárias, que podem estar coerentes com as necessidades radicais (primárias e secundárias) ou não. No primeiro caso, elas são autênticas e expressam uma continuidade do processo de humanização e no segundo caso são inautênticas e expressam uma negação da essência humana e humanização.

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Coisificada quer dizer transformada em “coisa”, algo autônomo, com vida própria e não sendo produto social e histórico. Nesse caso, espontaneidade coisificada significa a transformação da espontaneidade em algo dotado de vida própria e sem ter raízes sociais e históricas, gerando um isolamento fantástico que ganha autonomia e se realiza por conta própria. Sem dúvida, essa autonomização só ocorre no reino da ideologia e não na realidade concreta.

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9 Se no indivíduo ocorre a passagem da espontaneidade para autonomia, isso também ocorre no nível das classes e grupos. A autonomia é um passo adiante em relação à espontaneidade (autêntica)7, pois significa não apenas “iniciativa própria”8, mas também recusa de submissão às outras instâncias (no caso individual: violência cultural, etc.; no caso de classe: recusa de partidos e sindicatos, etc.). O espontâneo é algo que surge do próprio indivíduo ou grupo (que pode ser, e geralmente é, gerado por elementos externos) e o autônomo é algo que surge do próprio indivíduo ou grupo com a vantagem de recusar as instituições burocráticas e pressões sociais (aqui apenas o desequilíbrio psíquico e elementos introjetados podem permanecer). A espontaneidade é geralmente uma iniciativa própria em determinado contexto marcado por uma história de vida e formação psíquica dos indivíduos e/ou por determinada situação social (pertencimento de classe, condições de vida, conjuntura política, etc.).

A autonomia, portanto, é um avanço e abre espaço para a práxis, o que significa que a espontaneidade deve ser superada, seja para gerar autonomização ou diretamente práxis. A autonomia, portanto, está entre a espontaneidade e a práxis, a liberdade. Mas, por não ser ainda práxis, é outro momento que deve ser superado. A conquista da autodeterminação, da práxis, se faz superando a espontaneidade e a autonomia.

Determinadas manifestações espontâneas são meras formas de manifestar a reprodução ou consequências da sociedade existente9. No caso individual isso é quase

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No caso de uma espontaneidade inautêntica, ou seja, que não manifesta as necessidades radicais dos seres humanos, mas geradas por sua negação (alienação, repressão, recalcamento, etc.), então é uma autonomia que aprofunda esse processo de inautenticidade e desumanização.

8 Iniciativa própria no sentido anteriormente definido, ou seja, por conta própria, mas que é determinado exteriormente.

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A sociedade capitalista, por exemplo, gera pessoas egoístas, competitivas, invejosas, etc., de acordo com a sociabilidade moderna e seu processo de reprodução (competição, burocratização e mercantilização), elementos de reprodução dessa sociedade (VIANA, 2008). A prostituição, por exemplo, é consequência dessa sociedade e sua existência pode gerar a espontaneidade inautêntica manifesta no suposto desejo de se submeter ao processo de mercantilização do corpo. Isso, obviamente, manifesta opressão sexual numa sociedade que mercantiliza tudo. Muitas prostitutas negam a prostituição e reconhecem seu caráter alienado, uma atividade que é meio para satisfação de outras necessidades, enquanto outras afirmam que isso é algo que realmente desejam espontaneamente. Isso manifesta uma espontaneidade coisificada (ou

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10 que absoluto. Isso também ocorre com determinados grupos e classes. Nos casos em que a espontaneidade é recusa não coisificada, então ela é limitada, mas ponto de partida para a passagem para a autonomia ou práxis. A liberdade, por outro lado, se manifesta marginalmente, como práxis individual, e que deve se generalizar para se concretizar, tornando-se liberdade coletiva e individual, sendo a primeira condição da segunda.

Desta forma, a espontaneidade está muito longe da liberdade. Até mesmo no sentido mais restrito de liberdade, tal como apontado por Bloch e Fromm, a “liberdade de”, que significa “estar livre de algo”, é algo mais amplo do que espontaneidade. Um outro elemento que não pode ser esquecido é que a liberdade individual não pode se concretizar plenamente sem a liberdade coletiva. Em uma sociedade de classes, fundada na exploração e na dominação, não é possível um indivíduo, por mais rico, inteligente, poderoso que seja, ser plenamente livre. Nas sociedades de classes a socialidade é degradada, bem como o trabalho, que é alienado. No capitalismo, a socialidade é perpassada por conflitos (de classes), competição (e tudo que é derivado disso: inveja, ciúme, possessividade, egoísmo, utilitarismo, individualismo, etc.) e o trabalho e conjunto das atividades humanas são ao invés de realização das potencialidades humanas (criatividade, desenvolvimento das energias físicas e mentais) tornam-se ações controladas por outros visando garantir a exploração e a dominação, sendo negação delas, mortificação e desumanização.

A transformação social, na qual a socialidade supere os conflitos e a competição, substituídos pela solidariedade, bem como a superação do trabalho alienado e alienação generalizada e sua substituição pela práxis, significa a liberdade coletiva, o que permite a liberdade individual, do indivíduo livremente associado com os demais indivíduos e generalizando a práxis. Essa é a utopia que precisa ser concretizada, é uma necessidade humana, e somente pode existir numa sociedade autogerida. Qualquer coisa

desequilíbrio psíquico, em determinados casos). Por isso, quando a ideologia liberal vem para defender

a tese de que cada um faz o que quiser com seu corpo (é sua “propriedade privada”, sua “mercadoria”) apenas legitima, nesse caso, a opressão e mercantilização do corpo dessas mulheres.

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11 que se oponha a esse processo de libertação humana, mesmo que falando em seu nome, é um obstáculo a ser superado. Todas as ideologias e concepções hedonistas e neoindividualistas atuais têm como fundamento o culto da espontaneidade coisificada e por isso este culto necessita ser superado, pois é um dos obstáculos para a emancipação humana.

Referências

ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do ego. In:Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 18, Rio de Janeiro: Imago, 1974.

PIAGET, Jean. Psicologia da Criança. 11a edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990.

HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo, Hucitec, 1991.

MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: FROMM, E. O Conceito Marxista do Homem. 8ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

MORAES FILHO, Evaristo (org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. Práxis, Alienação e Consciência. In: A Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

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A DOUTRINAÇÃO CIENTÍFICA NO ENQUADRAMENTO DO

ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO

Mateus Vieira Orio

Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Mestre em Sociologia (UFG), Graduado em ciências sociais (UFG).

O ensino superior teoricamente tem como função estimular no estudante a capacidade de pensar de maneira crítica e reflexiva, possibilitando que o mesmo compreenda a realidade de maneira autônoma. Porém, o que ocorre de fato é o constante enquadramento do estudante, de suas maneiras de pensar, ao modo da ciência na contemporaneidade, redundando em um pensamento hierárquico, acrítico e doutrinário.

Quando estamos no ensino médio raciocinamos de maneira geral sobre nossa vida, nossa sociedade e também sobre a origem do mundo, dos seres humanos e várias outras questões de grande alcance. Nosso pensamento é permeado por tudo aquilo que vivemos, tudo aquilo que foi abarcado em nossa consciência no desenvolvimento das relações sociais que participamos. Temos então noções de religiosidade, filosofia e máximas científicas para tentar nos ajudar a pensar o mundo em que vivemos. Nas provas na escola tentamos reproduzir o que o professor pede ao mesmo tempo em que buscamos raciocinar acerca daquilo que acreditamos ou queremos acreditar.

Ao chegar à Universidade acreditamos poder finalmente dar vasão às nossas aspirações por novos conhecimentos e descobertas (além, é claro, de imaginarmos um mundo de possibilidades profissionais que almejamos ou que nossos pais almejam para nós, mas esta é outra discussão). O que ocorre, porém, é que aos olhos da Ciência nós somos meros calouros, como se fossemos um animal raquítico que precisa urgentemente de nutrientes para sua sobrevivência e fortalecimento. Estes nutrientes, os

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13 ensinamentos da Academia, passam a ser injetados em nós para que possamos o quanto antes exercitar com força e precisão as Atividades Científicas.

Tudo o que tínhamos até então deve ser desconsiderado, nossas ideias sobre nossa vida e o mundo são demasiado singelas diante da protuberância Científica. E assim começa nossa doutrinação. Ao ter uma ideia a apresentamos ao nosso professor, o Cientista, e ele logo retruca: “Elementar, meu caro aluno”. Logo nos convence de que o que pensamos ou já foi pensado ou reflete algo oposto a outra coisa que já foi publicada por um Grande Cientista do passado com um nível de elaboração que põe ao chão toda e qualquer possibilidade de crítica por parte do reles aluno.

O estudante é convencido então a passar pelo ritual da Iniciação Científica: ler toda a doutrina de cabo a rabo para então poder se pronunciar. Mas o fato é que é humanamente impossível ler tudo que já foi escrito e o momento da fala, da interlocução, é infinitamente adiado. Assim, tal como seu professor já fizera, o aluno passa a se conformar em ser um mero receptor e reprodutor e nunca um emissor e criador de ideias.

As etapas necessárias a cumprir e as atividades rotineiras a desempenhar minam toda e qualquer possibilidade de manifestação de um pensamento crítico e reflexivo, que supostamente deveria ser enfatizado. O estudante não é incitado a criticar e quando o faz é logo repreendido por não ter lido todo o texto, por apresentar um argumento demasiado simples, por sair do assunto ou mesmo por apresentar discussão imprópria para o Templo do Saber. Assim, após algumas tentativas o estudante aprende que criticar não é uma de suas prerrogativas e suas reflexões não giram em torno da busca de alternativas, mas tão somente da conformação das ideias dos Cientistas em sua consciência.

O Cientista valoriza acima de tudo a Ciência, assim, reproduz para o estudante a hierarquia e as exigências são cada vez maiores. A não observância destas condições acarreta ao estudante a possibilidade de perda de posições, então se ele era considerado um estudante aplicado, pode ser rebaixado ao nível do calouro e não ser indicado a

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14 ocupar uma cadeira mais próxima do professor. E o professor, por não querer perder sua cadeira na frente da sala, reproduz o discurso Científico que é o que o mantém vivo. Quem desobedece ao professor não tem lugar cativo, pois muitas vezes o princípio da amizade (ou, melhor dizendo, da submissão ao professor) se antepõe ao princípio do mérito.

A universidade se aproveita dos indivíduos que não têm uma visão de mundo bastante elaborada para acomodar o pensamento deles. Poda a todo instante aqueles que possuem convicções firmes para que as deixem de lado e assumam a doutrina relativista e submissa da academia. O academicismo é eclético e incoerente. O estudante tem que ler sobre tudo, assimilar e reproduzir, mas nunca refletir. Não importa se um Cientista disse algo que contraria aquilo que outro Cientista disse, pois desde que ambos estejam na moda é necessário acasalá-los, mesmo que o resultado deste cruzamento seja uma figura totalmente monstruosa.

Os burocratas universitários, os financiadores das pesquisas, os professores que reproduzem a lógica hierárquica, chefes de departamentos, comissões para definição de ementas e práticas de ensino, etc. todos estes são os agentes da destruição da criatividade dos estudantes. E sobre isso tudo influem as relações sociais em geral, a sociabilidade burguesa e a ideologia dominante. Desta forma, a Ciência, que é subordinada ao capital, reproduz indivíduos enquadrados e também reprodutores.

Todos os desejos dos estudantes na medida em que são enquadrados nestes moldes perdem seu conteúdo autêntico e passam a carregar um conteúdo inautêntico, fruto do processo de alienação em que os projetos, por mais que planejados e articulados, contém sempre uma parcela de heterodeterminação expressa pelas imposições da sociedade. Nesse sentido, por mais que tenhamos o conhecimento como um valor, ou seja, que tenhamos aspiração por conhecimento como forma de nos sentirmos realizados, nos sentirmos "mais humanos", por questões de sobrevivência precisamos "acomodar" esta aspiração a determinados moldes que se ultrapassados acarretam em sanções sociais e restrições na vida cotidiana.

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15 Por fim, mesmo que gostemos do curso que nos matriculamos, sempre haverá restrições, trabalhos e imposições indesejadas que podem nos fazer perder o gosto ou mesmo criar uma terrível aversão e ódio com a área de estudos que antes adorávamos. Nossa capacidade de imaginar, de criar alternativas e de pensar o mundo de forma diferente é subtraída diante da necessidade de reproduzir a doutrina científica efetuando a manutenção de posições de prestígio.

Há então, na universidade, um processo de ressocialização que atrofia a criatividade e o pensamento crítico do estudante. A academia é divulgada como a fonte de todo o saber, a autoridade científica não permite ser questionada e a consequência disso é que não se exercita um pensamento autônomo. É necessário, portanto, criar uma consciência crítica antagônica à doutrina acrítica da academia e buscar aliar a outros indivíduos de modo a fortalecer o pensamento crítico e reflexivo, desenvolvendo formas de pensar autônomas. E isso implica em pensar a sociedade criticamente, questionando relações sociais de dominação, tipicamente as relações mais difundidas na sociabilidade capitalista.

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GESTÃO E TRABALHO NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

DE ENSINO

Michel Goulart da Silva

Técnico em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense (IFC). Doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Nas instituições federais de ensino, os processos eleitorais para a renovação da gestão de reitoria colocam a tensa relação entre os diferentes segmentos, na medida em que uma parcela significativa de docentes entende que o processo deve ser integramente dominado por sua categoria. Percebe-se que, “como ocorreu com a democracia na Grécia antiga, o professor aparece como o cidadão livre capaz, dentre outros, de decidir os destinos da instituição, enquanto os estudantes e os técnicos têm menor importância e poder em tal processo” (CARVALHO, 2013, p. 89). Em oposição a isso, para os setores progressistas afirma-se a imperiosa necessidade de costurar a unidade entre servidores docentes, servidores técnico-administrativos e discentes, com vistas à construção de gestões onde impere práticas democráticas e participativas.

Coloca-se em segundo plano durante o debate eleitoral o papel a ser desempenhados pelos servidores técnico-administrativos nas futuras gestões de reitoria. Estabelece a legislação vigente que o cargo de reitor deve ser ocupado por um docente, a ser escolhido em consulta pública à comunidade acadêmica. Quanto aos pró-reitores, são cargos de confiança da reitoria e, por uma estranha lógica, normalmente também são ocupados por docentes, embora não haja documento legal que defina para esse segmento a exclusividade de ocupação desses cargos.

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17 Os anos recentes, devido à mobilização e à unidade na luta de docentes e técnico-administrativos de algumas instituições, em especial dos institutos federais, têm visto avanços, onde, por exemplo, é previsto que os técnico-administrativos de diferentes níveis da carreira possam ocupar cargos de pró-reitores. Em grupo de trabalho composto pelo MEC, pelos reitores das instituições de ensino e pelos sindicatos da categoria se concluiu que não faz sentido a ocupação do cargo de reitoria ser exclusividade dos docentes. No debate realizado pelo grupo de trabalho, “ficou o entendimento de que não deve haver restrição quanto aos técnico-administrativos em educação poderem se candidatar, serem eleitos e nomeados para os cargos de reitor e diretor geral. Tais cargos não são exclusivamente de natureza acadêmica, possuindo característica política de representação e gestão, cujo exercício exige capacidades, conhecimentos e habilidades desenvolvidas tanto por docentes quanto por técnico-administrativos em educação” (Grupo de Trabalho “Democratização das Instituições Federais de Ensino”, composto por MEC, FASUBRA, SINASEFE, ANDIFES e CONIF).

Contudo, essas são pequenas conquistas parciais da luta sindical, que não encontram necessariamente eco na gestão das instituições. São escolhidos para ocupar cargos de pró-reitores poucos servidores técnico-administrativos, embora sejam profissionais concursados, de mérito reconhecido em suas respectivas áreas e os responsáveis por planejar e executar as rotinas relacionadas às suas competências dentro das instituições de ensino. Construiu-se nas instituições de ensino a cultura de que são os docentes que devem ocupar não apenas os cargos de reitoria, mas também de pró-reitoria e de direções acadêmicas. Em alguns poucos casos, os técnico-administrativos são chamados a ocupar cargos de direção nas gestões de instituições, mas na maior parte dos casos devem se limitar ao papel subalterno de adjunto ou de substituto legal de algum docente.

Normalmente, na eleição dos dirigentes das instituições de ensino e na indicação dos pró-reitores, o docente que ocupa o cargo tem pouco ou nenhum

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18 conhecimento dos processos que dizem respeito à pasta que assume. Com frequência o que se observa “é que, inclusive por motivos políticos, administradores universitários são muitas vezes conduzidos a seus postos sem uma preparação prévia e sem chance, posteriormente, de se preparar para seu melhor desempenho em termos propriamente educacionais, em função das atividades-fim da universidade” (REZENDE, 1982, p. 34). No melhor dos cenários, esses gestores têm boas ideias e vontade de trabalhar, mas, como pouco ou nada entendem das tarefas que estão assumindo, são completamente dependentes de uma equipe de técnico-administrativos para realizar as tarefas concernentes à sua pasta.

Fica estabelecida uma estranha relação em que o docente ocupante do cargo pensa estrategicamente, cabendo aos técnico-administrativos se limitar, mesmo que tenham um conhecimento mais denso acerca do funcionamento e das necessidades para a realização das ações, a somente obedecer às ordens de uma pessoa que na maior parte dos casos tem uma ideia meramente genérica do assunto. Em função disso, no caso de docentes que se tornam pró-reitores e diretores, “com muita frequência, encontramo-nos diante de um empirismo prático-administrativo em que, na verdade, as pessoas têm de improvisar, desprovidas que estão da competência necessária ao desempenho da função que lhes está sendo atribuída” (REZENDE, 1982, p. 42).

Essa cultura de que aos docentes cabe a gestão das instituições de ensino foi produzida em um período histórico anterior, em que parte das atividades administrativas eram realizadas pelos próprios professores. Contudo, com o processo de reorganização do trabalho ao longo do século XX, surgiram especializações que realizam as tarefas administrativas não apenas nas empresas, mas também nas instituições de ensino. Criaram-se e regulamentaram-se profissões que atuam nas instituições de ensino, como bibliotecário, pedagogo, engenheiro e administrador. Como parte desse processo de reorganização do trabalho, ao docente não caberia executar funções administrativas, podendo se dedicar exclusivamente à tarefa fim da instituição, ou seja, ensino, pesquisa e extensão. Contudo, mesmo que as tarefas administrativas tenham sido assumidas por

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19 outros profissionais, os docentes continuaram a ser hegemônicos na gestão das diferentes instituições de ensino. Para piorar, tornou-se comum a existência de docentes que passam de gestão em gestão, ficando afastados de sala de aula por mais de dez ou mesmo vinte anos, até sua aposentadoria.

Um elemento que chama a atenção nesse processo tem relação com o fato de que, nas poucas situações em que os técnico-administrativos ocupam funções na gestão, estão à frente de cargos que dizem respeito diretamente à sua formação, ou seja, por exemplo, o Administrador ocupa funções orçamentárias ou de planejamento e o Assistente Social deve necessariamente estar à frente de ações de assistência ao educando. Nada mais correto. No entanto, quanto aos docentes, essa regra não funciona, afinal, “com muita frequência, temos visto engenheiros, físicos, advogados competentes serem propostas como reitores, diretores, chefes, coordenadores de outros setores, com o argumento de que demonstraram grande competência m suas áreas próprias de atuação. Não demora muito e os equívocos aparecem, com consequências negativas no plano prático. Um médico competente não é necessariamente um bom administrador. Se o for, não será em nome de sua competência médica, mas por outros motivos, por outras qualidades, que só acidentalmente se encontram na mesma pessoa” (REZENDE, 1982, p. 6-7).

O fator decisivo na escolha dos dirigentes das instituições de ensino superior não tem sido a formação ou a experiência profissional na área de gestão de processos e de pessoas, mas o status de superioridade que possui o docente e o cumprimento de acordos dos grupos políticos. Certamente há situações em que os docentes escolhidos apresentam grande capacidade de conduzir a gestão, mas essas situações são bastante raras e esporádicas. O normal é o docente assumir uma pró-reitoria ou direção sem ter noção do que precisa fazer, tendo que aprender tudo com o grupo de técnico-administrativos do setor e, quando muito, terminado o mandato conhecendo de forma apenas superficial os processos aos quais precisou dar resposta durante os anos anteriores.

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20 Objetivamente, há a necessidade de inverter essa lógica em que parte-se sempre do pressuposto de os docentes devem dirigir a instituição de ensino. Contemporaneamente, há a realidade concreta de que essas instituições contam com um corpo de servidores técnico-administrativos de grande qualificação, demonstrado pelo fato óbvio de que cotidianamente são eles os responsáveis pelo planejamento e execução das ações. No atual cenário das instituições de ensino, não se considera que o papel dos servidores técnico-administrativos seja o de pensar as políticas estratégicas, embora, curiosamente, eles sejam indispensáveis na para a tomada de decisões e para as ações dos docentes que ocupam os cargos de gestão. Não se quer dizer que qualquer técnico-administrativo está preparado para ocupar os cargos de gestão, afinal é preciso adquirir experiência e se capacitar, mas certamente esses profissionais são mais preparados do que a maioria dos docentes que estão à frente de pró-reitorias e diretorias nas instituições de ensino espalhadas pelo Brasil.

Para superar essa situação, algumas ações podem ser tomadas, como a superação da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Na atuação situação, os docentes acabam assumindo “uma posição comparada a dos antigos sacerdotes, figuras que dominam e detêm o conhecimento sobre as coisas importantes, enquanto os técnicos seriam os serviçais” (TAVARES, 2011, p. 145). Muitos docentes não se identifiquem sequer como trabalhadores da educação ou mesmo como servidores públicos. No cotidiano das instituições, entre os professores “se expressa a superioridade no trato com os técnicos, como se estes fossem os seus trabalhadores e não os da instituição” (TAVARES, 2011, p. 145-6). Não se pode admitir que as instituições de ensino, embora expressem as contradições da luta de classes que permeia a sociedade, se tornem um espaço de reprodução das relações de exploração da sociedade capitalista. Essas instituições, sim, precisam se constituir como espaços democráticos em que todos os sujeitos envolvidos, inclusive os discentes, direitos equânimes nos processos de decisão e de gestão.

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21 Existe a necessidade de se superar a mentalidade de que os docentes são superiores hierarquicamente aos técnico-administrativos. Ora, se cabe ao docente executar a atividade-fim, cabe aos técnico-administrativos realizar um conjunto de atividade-meio que são imprescindíveis para o funcionamento da instituição. Por outro lado, há uma parcela de técnico-administrativos que atuam nos processos de ensino, pesquisa e extensão, ou seja, não apenas colaboram na gestão da instituição, mas são também peças fundamentais na formação dos discentes.

Com essa discussão não se quer afirmar que haja exclusividade para os técnico-administrativos na ocupação dos cargos de gestão. Contudo, entende-se que a ocupação desses cargos, tanto para técnico-administrativos como para docentes, deve respeitar a formação e a experiência profissional na função a ser ocupada. Certamente as reitorias eleitas podem encontrar entre seus correligionários, sejam servidores docentes ou servidores técnico-administrativos, profissionais que tenham, além do perfil de direção política necessária a um pró-reitoria ou a um diretor, conhecimento técnico dos processos necessários aos trabalhos da pasta a ser assumida.

O embate pela superação da hierarquia docente se concretiza na luta por uma nova concepção das instituições de ensino, democrática e participativa, em que os diferentes sujeitos que a constroem cotidianamente – sejam técnico-administrativos, docentes ou discentes – possam ser respeitados como iguais. Os técnico-administrativos devem colocar-se como sujeitos políticos autônomos e atuantes, rompendo laços de clientelismo que eventualmente possam ter construído em troca de cargos ou regalias. Precisam colocar na ordem do dia a construção da unidade com setores discentes e docentes no sentido da luta pela ampliação dos espaços democráticos e de participação política, construindo-se como um sujeito que não apenas constrói a instituição em suas rotinas cotidianas, mas que também atua de forma consciente e ativa em sua gestão.

Referências

CARVALHO, Roberto Francisco. Gestão e participação universitária no século XXI. Curitiba: CRV, 2013.

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22 REZENDE, Antônio Muniz de. O saber e o poder na universidade: dominação ou serviço? 14ª ed. São Paulo: Autores Associados, 1982.

TAVARES, Elaine. A universidade e os técnico-administrativos: uma tensão permanente. In: OURIQUES, Nildo Domingos; RAMPINELLI, Waldir (Org.). Crítica à razão acadêmica. Florianópolis: Insular, 2011.

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23 O SOL QUE GIRA EM TORNO DA TERRA

Rafael Aparecido Mateus de Barros

Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Graduado em Licenciatura em Ciências Sociais (UFG).

Os latidos presunçosos e o tilintar de taças que ecoam do governo de Goiás são de uma clareza odiosa! O projeto de poder que faz amálgama da empresa privada e Estado é capaz de fustigar homens e mulheres, para assim submeterem a condição existencial tão miserável e cretina que nos vemos as voltas de sucessivas declarações de representantes do poder executivo estadual, em um exercício funesto de retórica procurando "atenuar com palavras o mal". O Mal! Travestido de tarifa única, todas as pessoas têm que amargar um reajuste de 100% no eixo anhanguera, debaixo do discurso de excelência está apontada para nossas cabeças o fio da navalha. De um lado arrocho salarial, de outro a sensação de que a cereja do bolo, o golpe final para o transporte coletivo foi desferido.

Segundo Lukács (2012, p. 31) “As classes em luta recíproca devem requerer, por meio de uma imagem de mundo, direções opostas para tarefa social e sua infraestrutura”, evidentemente que demarcamos a oposição de classe, bem como identificamos como diametralmente opostas às necessidades que em geral fomentam imagens de mundo – ideologia – que retroagem sobre tais necessidades modificando-as. Na sociedade burguesa a ideologia tem como forma acabada o Estado, o qual concentra força material e militar. Nesse mesmo sentido, a metáfora que trazemos no título do texto é dotada de sentido, ou seja, referendados pelo pressuposto de que classes em luta recíproca empreendem direções opostas para o modo de produzir e reproduzir a vida

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constata-se que o aumento de 100%, aclamado pelo poder executivo através de seus títeres – Eduardo Machado, atual presidente da Metrobus –, um grande e inovador projeto que lançaria Goiás nos cumes luminosos da excelência em transportes, qual seja:

a tarifa única para todo o sistema de integração.

Pois bem, em que consiste a tarifa única? Uma vez mais a metáfora que encabeça o texto pede passagem, uma vez que seu itinerário levará ao que perseguimos. A teoria do geocentrismo fora derrubada ou quando anunciaram o seu fim premente, todos os seus detratores foram condenados à fogueira, exceto os que temendo arder em chamas e não chegar ao reino de deus recuou e revira suas posições. Nesse sentido, não há alternativa! Mas o que isso tem que ver com a tarifa única? Vejamos, o transporte coletivo é financiado por seus usuários, direta ou indiretamente, através do pagamento da tarifa e dos vultosos investimentos em infraestrutura urbana, bem como via transferência direta dos recursos públicos para as empresas que controlam a operação do transporte. Aí está o nó! O sol que emite radiação e calor necessários para a vida na terra, este esteve subordinado a terra até a queda do geocentrismo. Contudo, isso nunca impediu o sol de existir e nem o impediria de explodir levando ao cabo toda vida na terra. Essa sem dúvida é a condição de trabalhadores e trabalhadoras fiadores da sua própria opressão, sem sequer notar que o Estado e os empresários são seus dependentes. Nessa relação de luta política, portanto, de classes, emergem os mais encarniçados mecanismos de apaziguamento e controle social: em primeiro lugar a força policial e militar; em segundo lugar, mas em sua manifestação fenomênica ao mesmo tempo, as imagens de mundo, manipulatórias em sua essência, prescrevem o receituário de aparência irreversível e universal de um processo que, tem por força motriz, interesses e materialidade particulares.

Assim com o sol girando em torno da terra são traçados os caminhos da tarefa social da práxis cotidiana. Mas, como ocorreu com a queda do geocentrismo, o projeto de poder àquela altura determinou como herética a descoberta, e como herege quem estivesse no bojo do conflito. Para o transporte coletivo há uma dupla perversão: 1) a

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Metrobus como empresa mista tem sido o gargalo de votos para bloco de poder dominante que estampa em campanhas políticas os benefícios constituídos materialmente, ou seja, aquisição de novos carros – uma obrigatoriedade a cada 7 anos – a extensão do eixo estrutural até os extremos da região metropolitana1; 2) a extensão aos extremos da região metropolitana pressagiou a marcha fúnebre da estatal, em consequência da extensão do eixo o consórcio de empresas que controlam o transporte como um todo perderam algumas linhas – justamente as que ligavam Goiânia as cidades de Goianira e Senador Canedo –, se esse caso fosse tratado como homicídio se caracterizaria como triplamente qualificado. Dessa maneira as empresas lançaram mão do mais novo projeto para o transporte coletivo em Goiânia e RM, isto é, o consórcio enfim se apossará do eixo anhanguera, o mais perene e certo investimento. O cartão Metrobus é o selo de uma nova conjuntura para o transporte.

Em 2007, ano da última licitação, Goiânia fora repartida em três macrorregiões para as quais estariam distribuídas, sempre em par, as empresas. Em par porque há no consórcio um sócio majoritário detentor de 51% da estrutura e dos direitos de exploração das linhas, essa empresa é a Rápido Araguaia. Contudo, o eixo anhanguera não entrou neste grande loteamento; o prato principal é apreciado após as entradas. Mas a Metrobus representa em si um processo de longa data que se arrasta a mais de 40 anos, a existência da Metrobus é em si um recuo do Estado em relação ao transporte coletivo materializada na dissolução, em 1997, da Transurb. Empresa estatal responsável pelo planejamento e estruturação do transporte coletivo, com o seu fim surge a Metrobus que assume, exclusivamente, o eixo anhanguera. Esse arranjo serviu, sobretudo, para o fortalecimento do recém-fundado SETRANSP, para diminuição ou reorientação da influência do Estado no transporte coletivo e racionalização de todo o sistema, visto que lançou base para a fundação Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC). Em resumo a RMTC é o que denominamos, para o transporte coletivo, amálgama entre empresariado e Estado.

1 Doravante RM.

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Nossa reflexão não se propôs em fazer analogias diretas com século XV, tão somente nos valemos do recurso semântico da metáfora para salientar que apesar dos esforços em tornar “atenuar com palavras o mal”, as consequências concretas das mudanças anunciadas não podem ser impedidas com palavras.

Em suma a propalada excelência está eivada de mais uma agressão aos trabalhadores e trabalhadoras. Portanto, é oportuno dizer que não há o que se restituir no transporte coletivo em Goiânia, porque ao fim e ao cabo sua própria existência materializa a direção empreendida pelo empresariado que faz do Estado o que Marx & Engels definiram como o “comitê que administra os negócios comuns de toda classe burguesa” (2011, p. 27).

Referências

LUKÁCS, György. Para uma Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2011.

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A TRANSFORMAÇÃO INDIVIDUAL COMO PASSO PARA

A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Felipe Mateus de Almeida

Cientista Social e Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás – UFG.

Como seria bom se acordássemos todos os dias e as coisas acontecessem como queríamos. Como seria bom se não tivéssemos problemas e tudo fosse fácil. Como seria bom se as pessoas nos valorizassem como nós as valorizamos. Como seria bom se não nos decepcionássemos, não nos magoássemos e nos entristecêssemos. Como seria bom se não nos preocupássemos com a opinião alheia, com os conceitos e os pré-julgamentos. Como seria bom se fôssemos bem resolvidos e a nossa vida pessoal sempre desse certo.

O problema é que as coisas não são assim e o mundo não gira dessa maneira. Nós somos fracos, temos problemas, as pessoas não nos valorizam, temos decepções, mágoas e tristezas. Sofremos com o preconceito, os julgamentos e os juízos de valor. Não somos bem resolvidos e a nossa vida vive em um complexo de contradições.

E quando percebemos que as coisas são assim, tudo aquilo que construímos, pensamos, defendemos e legitimamos cai por terra. É como se nada mais tivesse sentido, é como se nossa existência não fosse mais necessária, é como se fôssemos insignificantes, sem sentido e sem importância.

E não é fácil admitir isso, sair de nossa zona de conforto, perceber que não estamos protegidos por um castelo e nem por uma muralha. Nós vivemos um constante conflito de valores, um constante conflito de necessidades, de sentimentos, de amores, de rancores. Nós temos medo de ficar sozinhos, de não nos sentirmos abraçados, consolados e amados. E é difícil passar por tudo isso, quebrar essa barreira que nos

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cerca e admitir que não somos fortes, aceitar que ninguém é obrigado a nos dar valor, a nos respeitar e a nos conhecer.

Nós sempre queremos que as coisas aconteçam a nossa maneira, mas nunca nos colocamos no lugar do outro, nunca paramos para pensar em como aqueles que estão ao nosso redor também sofrem, em como os outros também tem problemas e em como eles se sentem marginalizados. E a culpa não é apenas nossa, a culpa também é do sistema capitalista no qual vivemos. Não se tem paz, não se tem compaixão, não se tem esperança, não se tem atitude, não se tem carinho, não se tem amor, não se tem paciência, pois nesse modo de vida oriundo das relações sociais capitalistas o desenvolvimento de valores que nos orientem para a prática do amor verdadeiro, bem como da paz, da esperança, da sinceridade e do carinho é uma tarefa praticamente impossível.

E depois de percebermos tudo isso pensamos que não há mais solução e que a única saída é desistir. Mas não! Não podemos nos render às armadilhas do sistema capitalista, não podemos cair, não podemos enfraquecer, pois tudo aquilo que a classe dominante e seus capachos - Estado, polícia e políticos – querem é que nós nos entreguemos de joelhos a esses fantasmas que assombram nossa mente e nosso coração. E o primeiro passo é admitir que nós possuímos contradições, que nossas potencialidades não conseguem se desenvolver por completo no modo de produção capitalista, que nós temos medo, que as coisas nem sempre vão dar certo, que nem todo o sentimento vai ser correspondido e que nem sempre nós também saberemos superar as expectativas de outrem.

Nesse sentido, é um processo doloroso admitirmos que somos compostos por tantos problemas e tantas contradições. Porém, é algo necessário para que possamos começar o nosso processo de transformação individual, bem como para começarmos a colaborar com o processo de transformação social. Reconhecer que somos assim é admitir que o ambiente em que vivemos também é contraditório; é perceber que ele é responsável por legitimar os valores da competição, do individualismo, do

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egocentrismo, da arrogância e da prepotência e por obliterar o desenvolvimento dos valores do altruísmo, da compaixão, do amor, da tranquilidade e da felicidade.

Portanto, o processo de transformação social perpassa pelo processo de transformação individual. Admitir isso é o começo; enfrentar todas as nossas contradições, problemas, anseios, medos e defeitos é o segundo passo; e perceber que nessa sociedade em que vivemos não é possível superar todas essas dificuldades é o terceiro passo.

Por fim, não podemos deixar de crer na utopia, ou seja, na realização de um sonho possível, na superação do modo de produção capitalista e de todas as suas instituições, valores, relações sociais e ideologias. Não podemos deixar de lutar por uma nova sociedade e por um novo modo de vida onde sejamos livres para desenvolvermos plenamente nossas potencialidades. O processo é árduo, admitir isso não é fácil e muitas vezes o sofrimento será grande, porém é necessário passar por isso, pois só assim nos tornaremos melhores.

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