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HERMENÊUTICA E LIBERDADE IMPOR LIMITES OU EDUCAR PARA A LIBERDADE?

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Academic year: 2021

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HERMENÊUTICA E LIBERDADE IMPOR LIMITES OU EDUCAR PARA A LIBERDADE?

Aloísio Ruedell1 Resumo:

Nos debates sobre educação escolar e na educação dos filhos fala-se, hoje, por vezes, da necessidade de “impor limites”. Essa necessidade dee recorrer a essa expressão indesejável não seria, antes, sinal de uma compreensão equivocada de educação e de liberdade? Quando, pois, se parte do conceito de uma liberdade absoluta, a questão dos limites será sempre um problema mal-resolvido. O nosso propósito, por isso, é, num primeiro momento, apresentar e discutir brevemente essa concepção de liberdade a partir de uma leitura antropológica de E. Mounier. Depois, somado a essa discussão, trazer o debate da hermenêutica, que fornecerá uma base teórica atualizada em relação ao tema dos limites e da liberdade, e permitirá suspeitar dos procedimentos restritivos. Isso de tal maneira, que fará sentido perguntar: impor

limites ou educar para a liberdade?

Palvras-chave: Liberdade. Hermenêutica. Finitude.

A educação escolar e a educação no ambiente familiar são, atualmente, temas de vitrine. Estão na roda do debate, porque passam por um momento de crise. Tanto a família quanto a escola tem a sensação de que há algo errado nos procedimentos pedagógicos e de que deve haver uma maneira de “corrigir” sua trajetória de educação e de formação. Num contexto de “liberdade total”, em que cresceram muitos filhos e alunos, ouve-se, muitas vezes, a recomendação, ou até mesmo o imperativo de “impor limites”.

O positivo dessa proposição está em seu reconhecimento de que é irreal ou ilusória uma liberdade absoluta, como propagada pelo neoliberalismo. Os problemas vivenciados no setor da educação não deixam dúvidas a esse respeito. Deve-se, entretanto, perguntar se, em termos de educação, é adequado falar em imposição de limites. A necessidade de, por vezes, se recorrer a essa expressão indesejável não seria, antes, sinal de uma compreensão equivocada de educação e de liberdade? Em vez de colocar limites à liberdade, talvez seria oportuno discutir a própria concepção de liberdade. Quando, pois, se parte do conceito de uma liberdade absoluta, a questão dos limites será sempre um problema

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mal-resolvido. O estabelecimento de limites será uma necessidade indesejada, para não dizer, um mal necessário. Qualquer característica ou atitude restritiva será vista negativamente, e será esse o seu impacto na educação ou no educando.

Qual seria, então, a saída? Haveria outra concepção de liberdade, em que não houvesse necessidade de estabelecer limites, porque estes já estariam incluídos na própria definição? Há, certamente, muitos autores que desenvolvem seu pensamento nessa perspectiva. O que, porém, nos interessa de modo particular é o pensamento personalista de Emmanuel Mounier, que fala de uma “liberdade em condições”. (Mounier, 1960, p.109). Ele defende uma concepção de liberdade em que os limites não só estão incluídos, mas adquirem um sentido positivo, superando a característica negativa de imposições ou restrições. O nosso propósito é, num primeiro momento, apresentar e discutir brevemente essa concepção de liberdade. Depois, somado a essa discussão, o atual debate da hermenêutica fornecerá uma base teórica atualizada em relação ao tema dos limites e da liberdade, e permitirá suspeitar dos procedimentos restritivos. Isso de tal maneira, que fará sentido perguntar: impor limites

ou educar para a liberdade?

Há muitas e as mais desencontradas discussões sobre a liberdade. Nela se encontram e, ao mesmo tempo, se opõem autores. Estão, por exemplo, de um lado, os liberais (e neoliberais), que se entendem os defensores legítimos da liberdade, mas encontram-se, de outro, os marxistas, que, combatendo aqueles, pretendem preparar o verdadeiro reino da

liberdade. O quadro geral do debate sobre o tema é, atualmente, de desorientação e de busca.

Cabe perguntar: por que se chegou a essa situação? Ainda, como encaminhar sua discussão? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o tema da liberdade faz sentido na medida em que se vincula a um debate antropológico. As aberrações e as desorientações que se produziram são, segundo Mounier, resultado de abordagens abstratas ou isoladas da estrutura geral do ser humano. A liberdade, portanto, segundo ele, não é uma coisa ou um tema qualquer a ser discutido. É, isto sim, uma aspecto constitutivo da vida humana, e como tal deve ser debatido. O que, pois, seria de nós, sem a liberdade? Meros joguetes no universo. É, sem dúvida, essa a razão de nossas angústias. Para apaziguá-las, gostaríamos de flagrar a liberdade, tocá-la como um objeto e, possivelmente, prová-la como se prova um teorema. Gostaríamos de nos assegurar de que há liberdade no mundo.

É, no entanto, em vão insistir por esse caminho, porque “a liberdade é afirmação da pessoa, vive-se, não se vê” (Mounier, 1960, p.110). No mundo objetivo apenas há coisas dadas e situações que se enfrentam. Não podemos instalar nela a liberdade. Procuramo-la, muitas vezes, em suas formas negativas, na lacuna dos determinismos. Mas, o

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que podemos fazer com lacunas? Seguindo por esse caminho, escreve Mounier, não chegamos a descobrir mais do que “duas formas mal definidas de liberdade” (Mounier, 1960, p.110).

“Uma é uma liberdade de indiferença: liberdade de nada ser, de nada desejar, de nada fazer” (Mounier, 1960, p.110), uma indeterminação total. O homem, no entanto, escreve o autor, nunca chega a esse estado de equilíbrio; levando-o a acreditar que isso seria possível, ele acabaria perdendo as opções reais ou arrastar-se-ia definitivamente para o gosto mortal da indiferença.

Outra opção ou concepção de liberdade é aquela que mendigamos ao indeterminismo físico. Criou-se, nesse sentido, toda uma expectativa em relação à Física, na esperança de que suas investigações pudessem “provar a liberdade”. Foi, no entanto, segundo Mounier, uma expectativa totalmente equivocada. A liberdade, pois, não é o “resto” de um todo organizado. Se a liberdade não fosse mais do que a irregularidade do universo, quem poderia provar que não se trata simplesmente da deficiência do conhecimento humano, ou da “deformação sistemática da natureza ou do homem?”.

“A liberdade – afirma Mounier – não se ganha contra os determinismos naturais, conquista-se por cima deles, mas com eles” (Mounier, 1960, p.111). Ela não brota da natureza como o fruto da flor; também não existe, em algum lugar, como dada e constituída. Liberdade é a liberdade humana, ou melhor, “é a pessoa que se faz livre, depois de ter escolhido ser livre”. “Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade” (Mounier, 1960, p.112).

No entanto, se a liberdade não se confunde com uma coisa, isso não significa que esteja desprovida de todo traço objetivo, como argumentam alguns autores. A objetividade seria sempre a mesma, imóvel e indefinidamente repetida, enquanto “a existência livre seria qualidade sempre renovada, manifestação original, permanente auto-invenção” (Mounier, 1960, p.112). Está aí a perspectiva da liberdade como afirmação absoluta, em que nada a poderá limitar, totalmente sem limites, simplesmente porque é. Não se vincula a uma natureza, nem corresponde a algum apelo, porque, se isso acontecesse, deixaria de ser liberdade. “A si própria se faz e faz-me fazendo-se, nela e por ela me invento, invento meus motivos, os valores e o mundo comigo, sem apoio nem auxílio” (Mounier, 1960, p.113).

É pretensão demais querer uma liberdade absoluta. Para adequá-la, requer-se um esclarecimento sobre a noção de natureza. Sem confundi-la com rigidez e imobilidade, a natureza indica que a existência humana é, ao mesmo tempo, manifestação espontânea e espessura ou densidade. É criação e é dado. Não somos apenas aquilo que fazemos, e o

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mundo não é somente o que queremos. Somos dados a nós próprios e o mundo nos antecede. Essa é a nossa condição humana, ficando para a liberdade um peso múltiplo: o que vem de nós próprios, de nosso ser, que o limita, e o que vem do mundo, das necessidades que a constrangem e dos valores que a primem” (Mounier, 1960, p.113).

Enfim, a liberdade é sempre a liberdade de uma pessoa, constituída e historicamente situada. Ser livre implica, em primeiro lugar, aceitar essa condição, para dela partir. “Nem tudo é possível, nem tudo é possível em todos os momentos. Estes limites – escreve Mounier – quando não são demasiado estreitos, são uma força” (Mounier, 1960, p. 116). Cada obstáculo ou força condicionadora da liberdade poderá transformar-se em fator de libertação e de crescimento. No entanto, para que isso aconteça, supõe-se uma motivação, a valorização do ser humano, podendo-se, ao final, dizer: a liberdade é sempre liberdade de pessoas situadas e valorizadas. Ou seja, não somos livres apenas porque exercemos nossa espontaneidade, mas tornamo-nos livres, na medida em que dermos a essa espontaneidade um sentido de libertação.

A discussão hermenêutica fornece, hoje, uma base teórica atualizada para o problema da liberdade e seus limites. Enquanto em Mounier há uma leitura antropológica da liberdade, situando-a nos estreitos limites da condição humana, a hermenêutica estabelece-se, precisamente, a partir dessa condição. Chega a ser emblemática a afirmação de Gadamer: O

que está em questão não é o que fazemos, o que deveríamos fazer, mas o que nos acontece além do nosso querer e fazer (Gadamer, 2003, p. 14).

Esta passagem de Gadamer fornece uma chave de leitura para seu livro

Verdade e Método e, por extensão, para a discussão hermenêutica em geral, como foi

desenvolvida ao longo do séc. XX, até os dias atuais. O que, pois, orienta o filósofo é a

Wirkungsgeschichtlichesbewusstsein, consciência histórica ou consciência das condições

históricas nas quais toda a compreensão humana está submetida, sob o regime da finitude. Tem consciência de estar exposto à história e a sua ação, de tal forma que não podemos objetivar essa ação sobre nós, porque isso faz parte de seu sentido enquanto fenômeno histórico.

Não só Gadamer, mas muitos autores têm atualmente a mesma percepção, a destacar Martin Heidegger, com sua analítica do Dasein. O desenvolvimento de suas discussões acaba produzindo o que se designa como pensamento da finitude (Stein, Melancolia, 1976, p. 76). É uma perspectiva de grande parte da filosofia contemporânea. O tema da finitude, sem dúvida, esteve presente ao longo de toda a história do pensamento ocidental, colocado em diversos níveis e com diferentes abordagens em cada época. Hoje,

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entretanto, mais do que um tema ou uma questão a ser discutida, a finitude tornou-se uma perspectiva da filosofia, podendo-se falar em giro da finitude, assim como em outro sentido se fala em giro lingüístico. É uma visão de mundo e um modo de fazer filosofia que parte dos estreitos limites da condição humana, sem, contudo, ater-se a seu sentido negativo. Consideram-se mais as potencialidades humanas e as reais possibilidades de sua realização.

O pensamento da finitude entende-se como pensamento da liberdade e da realização humanas, em oposição a um pensamento metafísico que se afirma como filosofia primeira, “condenando o homem a depender de uma estrutura ontoteológica sobre a qual não possui poder algum de ação” (Stein, 1976, p. 18). A rigidez dessa metafísica clássica “reduz o homem à imobilidade e ao silêncio diante de questões fundamentais” (Stein, 1976, p. 18). Em seu lugar, postula-se, hoje, uma ontologia da finitude, representando o lado heterodoxo da tradição metafísica. A ontologia da finitude procura superar ou transformar a metafísica a partir de dentro, ou seja,

libertar temas e virtualidades sufocados pelo totalitarismo ontoteológico da metafísica. A afirmação da finitude é a tentativa de destacar a historicidade, em face de uma ontologia estática, onde não há propriamente lugar para o movimento; pois, tudo está ancorado e fixado num mundo ordenado (quando não pré-ordenado), onde a liberdade humana está sempre ameaçada por uma ordem sem alternativas”(Stein, 1976, p. 19).

Nosso propósito, porém, não é discutir a ontologia da finitude, nem analisar a questão da finitude no contexto geral da filosofia. O que, entretanto, nos motiva para esta elaboração é a convicção de uma relação existente entre essa questão e a discussão hermenêutica. Se é verdade que toda filosofia traz hoje a marca da finitude, isso vale particularmente da hermenêutica, que se situa no terreno movediço e flexível das condições humanas. Seu conteúdo e a origem etimológica do termo remontam à mitologia grega, mas é num mundo secularizado, numa época pós-metafísica, que a hermenêutica efetivamente se estabelece como questão filosófica. Constituída nas condições humanas do discurso e da linguagem, ela ocupa um lugar incômodo entre as verdades empíricas das ciências e a verdade absoluta da metafísica. Não contando mais com esses apoios, a pergunta e a discussão hermenêuticas voltam-se ao sentido e ao agir humanos, que carecem de compreensão. Por isso, ao se situar nesse nível, humano e finito, afirma Ernildo Stein: “a hermenêutica é, de alguma maneira, a consagração da finitude”(Stein, 1996, p. 45).

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Chegada a essa afirmação como conclusão de uma discussão hermenêutica e, após um percurso rápido pela antropologia personalista, esclarece-se, certamente, a pergunta inicial do texto: Impor limites ou educar para a liberdade? Se ter discutido diretamente a questão, foi apresentada uma base teórica, da hermenêutica e da antropologia, para a sua compreensão.

Referências bibliográficas

GADAMER, H. G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 17. Aufl. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993. MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo, 3. ed. Lisboa: Moraes Ed., 1960.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

_______. Hermeneutik und Kritik; mit einem Anhang sprachphilosophischer Texte Schleiermachers. Hrsg. von Manfred Frank. 4. Aufl. Frankfurt: Suhrkamp, 1990.

______. Hermenêutica e Crítica: com um anexo de textos de Schleiermacher sobre filosofia da linguagem – vol.I. Editado e introduzido por Manfred Fran; traduzido de Aloísio Ruedell e revisão de Paulo Rudi Schneider. IjuÏ/RS: UNIJUÍ, 2005.

STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. ______. Melancolia. Porto Alegre: Movimento, 1976.

Referências

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