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A CONCEPÇÃO MEDIEVAL DA CRIANÇA NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA E NAS ILUSTRAÇÕES ESTUDO DO TEXTO E IMAGEM

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A CONCEPÇÃO MEDIEVAL DA CRIANÇA NAS CANTIGAS DE

SANTA MARIA E NAS ILUSTRAÇÕES

ESTUDO DO TEXTO E IMAGEM

ROSA, Célia Santos da (PG/UEM) CORTEZ, Clarice Zamonaro (UEM)

INTRODUÇÃO

A questão da criança no período medieval é discutida por diversos pesquisadores. Nesse trabalho pretendemos verificar como a criança é representada em textos selecionados das Cantigas de Santa Maria e nas ilustrações. Os registros da situação da criança na Idade Média encontram-se nos livros conventuais e nas ilustrações encontradas em missais, iluminuras e manuscritos dos séculos XII e XVI. Philippe Ariès em História Social da criança e da família (1981) traça um percurso pela iconografia medieval, demonstrando como a criança era concebida no período medieval.

Na literatura, as Cantigas de Santa Maria de D. Afonso X registram várias situações da infância em que a Virgem operou um milagre de salvação. As cantigas são documentos de grande importância, reveladores da mentalidade e dos costumes de uma época, além de preciosos documentos linguísticos e verdadeiras obras de arte literária iconográfica e musical. Constituem-se, também, em valiosa fonte histórica para o conhecimento de toda a cultura ibérica, na Idade Média, desvendando cenas do cotidiano medieval. Lapa (apud LEÃO, 2007, p. 27) esclarece que nessas composições todas as classes sociais se vestem à sua maneira, falam a sua linguagem, denunciam os seus sentimentos: o papa enamorado, o rei enfermo e devoto, o mouro cavaleiro, a monja voluptuosa e pecadora, o mercador ganancioso e até mesmo o menino inocente e generoso.

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REFERENCIAL TEORICO

A CRIANÇA NA IDADE MÉDIA

Houve infância na Idade Média? Esta é uma questão discutida por inúmeros estudiosos e historiadores. O tema levanta inúmeras divergências. Para alguns pesquisadores, a resposta é afirmativa, mas, para outros, a infância foi inexistente nesse período. Sarmento (s/d) declara que a ideia de infância é moderna, porque durante grande parte do período medieval as crianças foram consideradas como meros seres biológicos, sem estatuto social nem autonomia existencial. Sempre houve crianças, seres biológicos de geração jovem. No entanto, nem sempre houve infância, categoria social de estatuto próprio.

De acordo com Ariès (1981), na sociedade medieval o sentimento da infância não existia. Porém, isso não significa que as crianças eram negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. A afeição pelas crianças é distinta do sentimento de infância, que corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes.

Le Goff e Truong (2006) declaram que é preciso levantar alguns pontos na questão da existência da infância no período medievo. Segundo os autores, há o amor maternal e paternal, “um dos raros sentimentos eternos e universais que se podem encontrar em todas as civilizações, em todas as etnias, em todas as épocas” (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.100). Nesse ponto, é possível rever a imagem tradicional do pai medieval, o pater famílias, que se acreditava ser indiferente, autoritário e todo-poderoso sobre o corpo e a alma de sua prole, sobretudo, por meio do estudo das narrativas dos milagres, em que se vê, ao longo dos episódios trágicos, toda a extensão da afeição paternal na Idade Média. No entanto, paralelamente ao amor paternal e maternal, há o lugar que a criança ocupa na sociedade. Le Goff e Truong (2006) afirmam que na Idade Média o lugar ocupado pela criança não se equipara ao que ocupa na sociedade

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contemporânea.

De acordo com Le Goff e Truong (2006), a importância dada à criança irá crescer a partir do século XIII. A princípio, e como sempre ocorre no período medieval, um sentimento poderoso vai buscar seu fundamento e sua legitimação na religiosidade. Portanto, na figura do menino Jesus promove-se a criança, principalmente, por meio da redação de inúmeros Evangelhos apócrifos contando a vida do pequeno Jesus. Nesse período aumenta-se o número de brinquedos de puxar e acalentar. As manifestações de dor pela morte de uma criança são acentuadas.

A criança passa a ser mais bem representada na iconografia, com referência implícita ao Menino Jesus, cujo culto se desenvolve a partir do século XIII. A iconografia busca devolver a beleza do corpo e do rosto da criança. Os anjinhos multiplicam-se na arte religiosa.

Segundo Ariès (1981), até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. Para o estudioso, é difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade, é mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse contexto. O estudioso afirma que os homens dos séculos X-XI não se detinham diante da imagem da infância, a qual não possuía para eles interesse, nem mesmo realidade, “isso faz pensar também no domínio da vida real, e não mais apenas no de uma transposição estética, a infância era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida." (ARIÈS, 1981, p. 52).

A descoberta da infância começou no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. A indiferença pelas características próprias da infância que existiu até o século XIII (com a exceção de Nossa Senhora menina) não aparece apenas no mundo das imagens: o traje da época comprova o quanto a infância era então pouco particularizada na vida real. Assim que a criança deixava os cueiros – a faixa de tecido que era enrolada em torno de seu corpo – ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição.

Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda nas classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas, poucos anos depois de um desmame tardio – aproximadamente aos sete anos de idade. A partir desse momento,

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ingressavam imediatamente na grande comunidade dos homens, participando com seus amigos jovens ou velhos dos trabalhos e dos jogos de todos os dias. Assim que era desmamada, ou pouco depois, a criança tornava-se a companheira natural do adulto.

As classes de idade do neolítico, a paideia helenística, pressupunham uma diferença e uma passagem entre o mundo das crianças e dos adultos, uma passagem que era realizada por meio da iniciação ou de uma educação. A civilização medieval não percebeu essa diferença, e, portanto, não possuiu essa noção de passagem (ARIÈS, 1981, p. 256).

Igualmente importante é o sentimento de família. Ariès (1981) afirma que o sentimento de infância é inseparável do sentimento de família: “O interesse pela infância (...) não é senão uma forma, uma expressão particular desse sentimento mais geral, o sentimento da família.” (ARIÈS, 1981, p. 210). Por meio da analise iconográfica o autor conclui que o sentimento da família era desconhecido da Idade Média e nasceu nos séculos XV-XVI, porém, exprimiu-se com vigor apenas no século XVII.

A família na Idade Média subsistia no silêncio, não despertando um sentimento suficientemente forte para inspirar poetas ou artistas.

Devemos atribuir a esse longo silêncio uma significação importante: não se conferia um valor suficiente à família. Da mesma forma, devemos reconhecer a importância do florescimento iconográfico que a partir do século XV, e, sobretudo XVI, sucedeu a esse longo período de obscuridade: o nascimento e o desenvolvimento do sentimento da família. Daí em diante, a família não é apenas vivida discretamente, mas é reconhecida como um valor e exaltada por todas as forças da emoção (ARIÈS, 1981, p.223).

A família medieval não podia alimentar a existência de um sentimento profundo entre pais e filhos, pois a criança desde muito cedo se evadia da própria família, mas não se recuperava mesmo que depois de adulta retornasse, o que nem sempre acontecia. De acordo com Ariès (1981), a família era uma realidade moral e social, mais do que sentimental.

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As Cantigas de Santa Maria foram compostas por D. Afonso X (1221-1284), o Sábio, rei de Leão e Castela. O monarca também é autor de obras jurídicas, históricas, científicas ou pseudocientíficas, assim como obras sobre técnicas e lazeres, escritas em prosa castelhana. As Cantigas de Santa Maria formam um conjunto de 427 cantigas. Elas são dividias em cantigas de loor (cantigas de louvor) e cantigas de miragre (cantigas de milagre). Estas predominam sobre as de louvor, numa proporção de nove por um.

As cantigas de loor são poemas líricos nos quais D. Afonso X louva as virtudes e a beleza da Virgem. Leão (2007) compara o comportamento do trovador da Virgem com o do comportamento masculino encontrado nas cantigas d’amor, em que o trovador está sempre prostrado diante da dama para enaltecer e louvar todas as qualidades que fazem dela uma dama – a Sennor – sem par, perfeita de caráter. Nas cantigas de louvor, mesclam-se os ideais do amor cortês com os do Cristianismo, o amor carnal e a mulher amada ficam sublimados na figura da Virgem. O rei se coloca como o entendor da Virgem – seu namorado – não exigindo dela nenhuma exclusividade, mas, ao contrário, querendo vê-la numa verdadeira rede amorosa, louvada por todos os trovadores e a eles correspondendo com suas graças.

As cantigas de miragre pertencem ao gênero narrativo. Narram intervenções milagrosas da Virgem em favor de seus devotos. O milagre é acontecimento maravilhoso, com toques de fantástico, o beneficiário muitas vezes é levado à conversão religiosa. O milagre para ser considerado como verdadeiro precisa conter quatro elementos: 1) necessita ser produzido pelas mãos de Deus; 2) requer que seja contra as leis da natureza; 3) que decorra por merecimento de santidade e de bondade que há naquele que foi escolhido; e 4) que aconteça sobre algo que seja confirmamento da fé.

Silveira (2009) explica que esses quatro elementos estão presentes em todas as narrativas milagrosas nas Cantigas de Santa Maria: os milagres são produzidos por Deus ou Maria, por meio de diversas situações fantásticas, partindo contra as leis da natureza e em favor daqueles que verdadeiramente acreditam no poder divino e, mesmo que não sejam fiéis, os beneficiários ou testemunhas do milagre tornam-se devotos após a sua realização.

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textual extensiva, com mais ou menos episódios escritos em versos; uma narrativa iconográfica em iluminuras, que se dispõem numa só página, dividida, geralmente, em seis quadros e outra narrativa textual resumida, sob a forma de seis legendas, cada uma delas colocada acima de um quadro de sequência das iluminuras. Esclarece-nos Leão (2007) que

Enquanto a narrativa verbal se expressa em sintético poema cheio de subtendidos, a narrativa visual a acompanha através da seqüência das iluminuras, podendo às vezes extrapolá-la para preencher eventuais lacunas da narrativa poética.

(LEÃO, 2007, p.27)

As cantigas marianas são distribuídas em quatro códices:

a) Códice de Madri, antigo de Toledo (códice To), com 126 cantigas;

b) Códice dos escurialenses (códice E), conhecido como "códice dos músicos", com 402 cantigas;

c) Segundo códice dos escurialenses (códice T), conhecido como "códice rico", graças às suas numerosas e belíssimas iluminuras com 200 cantigas;

d) Códice florentino (códice F), que contém 104 cantigas e, embora não acabado, complementa o anterior.

Castro (2006) considera que as Cantigas de Santa Maria são uma espécie de catedral gótica literária. Além de representarem as transformações históricas, guardando ligações com o culto mariano, elas apresentam um vasto espaço ao diabo como personagem, mas também se assemelham às catedrais na representação da diversidade populacional e das crenças fantásticas, algo demonstrado nas imagens ora esculpidas nas paredes, ora iluminadas nos vitrais dessas construções sagradas. Em sua imensidade, o texto apresenta uma admirável variedade de povos (etnias, religiões, nacionalidades, classes sociais) e os mais fantásticos acontecimentos. O autor compara as riquíssimas iluminuras que acompanham originalmente os textos e as notações musicais como os vitrais, que trazem um encanto inigualável às construções religiosas. Castro (2006) esclarece que a criação das cantigas possui uma dimensão exclusivamente voltada para a experiência, devido ao prazer do contato com a obra de arte algo valorizado por D. Afonso.

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(...) a estética, enquanto esmero com as iluminuras, música e literatura, não possui um caráter doutrinário nem moral. Isso não quer dizer que o autor não tenha tido como objetivo fundamental o louvor à virgem, nem que ele se furtou da oportunidade para se promover ou para dar devoção: quando se dispôs a produzir uma obra tão refinada e suntuosa, esplêndida, pode-se dizer que construiu uma catedral sem pedras (CASTRO, 2006, p. 43).

Os templos propiciavam vantagens aos clérigos e à Igreja, bem como atraíam peregrinos e curiosos promovendo as economias locais e insuflando as cidades ao seu redor. Enquanto ideologicamente as Cantigas de Santa Maria serviam apenas ao rei, que chegou a se valer delas até para difundir suas conquistas e promover o sul de Castela.

As Cantigas de Santa Maria são de grande importância como documento da mentalidade e dos costumes de uma época. As cantigas de milagres são consideradas como “a verdadeira comédia humana do século XIII”. Nelas todas as classes sociais são representadas. Consideradas um precioso documento linguístico e verdadeira obra de arte literária, iconográfica e musical, constituem valiosa fonte histórica para o conhecimento do viver e do morrer, das doenças e calamidades, do jogo e da prostituição, dos ofícios e dos lazeres, das crenças e das religiões, da vida quotidiana e do imaginário popular, enfim de toda a cultura ibérica, na Idade Média.

OBJETIVO

Objetivamos apresentar uma leitura comparativa de textos selecionados de

Cantigas de Santa Maria, de Afonso X e de ilustrações sobre a criança como subsídios

para analisar a situação da infância nas práticas religiosas da Idade Média. Informações sobre a infância nesse período, principalmente sobre a situação da criança na família e na sociedade da época foram fundamentais para a concretização da leitura comparativa das cantigas selecionadas (o texto verbal) e das ilustrações referentes ao tema encontradas nas obras selecionadas (o texto não verbal).

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Ao discutir a relação da literatura com a pintura, Aguiar e Silva (1990), em seu livro Teoria e Metodologia Literárias, traça um percurso histórico, desde a Antiguidade até o movimento da poesia concreta, para expor como se evidenciam o que chama de “inter-relações”. Considera, assim, que os estudos das relações entre texto e imagem têm origem remota e já eram motivos de especulações há muito tempo, como demonstra o dito aforismático de Simónides de Céos (recolhido por Plutarco), poeta que viveu entre os séculos VI e V a. C, em que a “pintura é poesia muda e a poesia é pintura falante”. (AGUIAR e SILVA, 1990, p. 163). O autor sublinha ainda a contribuição de Plutarco, para quem “a arte da poesia é uma arte imitativa e que é uma faculdade análoga à pintura, tornando-se assim claro que a analogia entre as duas artes se funda na imitação (mimesis) da realidade”. Nesta perspectiva, a pintura é considerada como uma “expressão artística paradigmática”, pois realizaria melhor, do que qualquer arte, a relação mimética com o real.

Souriau (1983) em Correspondências das Artes: elementos de estética

comparada avalia as diferentes formas de arte sob a perspectiva da estética comparada.

Ao discutir o parentesco das artes, explica que elas apresentam um mesmo princípio, porém, as estruturas e o modo fundamental de vida estão implicados nas diferenças entre elas. Assim, a definição de arte fundamenta-se na diversidade dos comprometimentos artísticos e das linguagens, porquanto cada uma tem recursos próprios e insuficiências, tratando o assunto ao seu modo:

Poesia, arquitetura, dança, música, escultura, pintura são todas atividades que, sem dúvida, profunda, misteriosamente, se comunicam ou comungam. Contudo, quantas diferenças! Algumas destinam-se ao olhar, outras à audição. Umas erguem monumentos sólidos, pesados, estáveis, materiais e palpáveis. Outras suscitam o fluir de uma substância quase imaterial, notas ou inflexões da voz, atos, sentimentos, imagens mentais. Umas trabalham este ou aquele pedaço de pedra ou de tela, definitivamente consagrados a determinada obra. Para outras, o corpo ou a voz humana são emprestados por um instante, para logo se libertarem e se consagrarem à apresentação de novas obras e, depois, de outras mais. (SOURIAU, 1983, p. 16).

Martine Joly (1996), em Introdução à Análise da Imagem, apresenta outra proposta para se estabelecer as relações entre texto e imagem, sob o ângulo da

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significação. No desenvolvimento deste método de estudo, que tem a semiótica como referencial teórico, afirma que é possível reconciliar os múltiplos empregos do termo “imagem”, como também a complexidade de sua natureza, entre imitação, traço e convenção. Depois de delimitar o objeto de estudo, a autora expõe ainda algumas implicações na análise das imagens, o que a recusa e o desejo podem significar, as precauções preliminares que as imagens exigem a expectativa que suscitam e o contexto de surgimento. Para discutir, ao fim, como imagens e palavras se relacionam no processo comum da significação.

Mediante as discussões apresentadas, compreende-se que uma abordagem que busque estabelecer relações entre texto e imagem pode partir de uma análise temática e/ou formal, entre manifestações artísticas de um mesmo período ou de períodos diferentes, pode privilegiar os elementos em comum ou aquilo que os diferencie e ainda observar como um e outro produzem significados. Cabe ao pesquisador desenvolver o percurso que melhor se adapte ao objeto de estudo, sempre respeitando as particularidades de cada manifestação artística, pois cada período parece apresentar princípios poéticos e plásticos, em que um pode desfrutar de maior primazia em detrimento de outro.

DESENVOLVIMENTO

A PRESENÇA DA CRIANÇA EM CANTIGAS DE SANTA MARIA E ILUSTRAÇÕES

Nas Cantigas de Santa Maria há presença de diversas personagens em situações do cotidiano medieval. Leão (2007) considera essas cantigas como verdadeiros documentos da mentalidade e dos costumes de uma época e a criança também se faz presente nessas composições. Por meio desses verdadeiros documentos podemos averiguar como a criança vivia na Idade Média.

Segundo Ariès (1981), no período medieval, as crianças participavam dos mesmos trabalhos e jogos que os adultos, também ingressavam na sociedade, sendo tratadas como tal, assim que tivessem condições de sem cuidados. Na Cantiga de Santa

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Maria de nº 6, intitulada A que do bon rey Davi, uma criança participa com adultos de

uma festa:

Depois, un dia de festa, / en que foron juntados muitos judeus e crischãos / e que jogavan dados, enton cantou o meno; / e foron en mui pagados todos, senon un judeu que lle quis gran mal des ende.

A composição narra um milagre que Santa Maria operou na Inglaterra. Havia na Inglaterra uma mulher, cujo marido faleceu, porém lhe ficara um filho que era seu conforto. A mãe do menino, grande devota da Virgem Maria, deixa o filho sob os cuidados de Santa Maria, “e log' a Santa Maria / o offereu porende”. A criança cresce com grandes talentos, “O men' a maravilla / er' apost' e fremoso, / e d' aprender quant' oya / era muit ' engoso”. Um de seus talentos era o canto, a canção que ele cantava melhor era “Gaude Virgo Maria”. Todos que ouviam o menino cantar desejavam levá-lo consigo.

Na cantiga, o menino participa de uma festa em que se reuniam cristãos e judeus e, embora todos tivessem aprovado a canção do menino, um judeu não gostou. Planejando vingar-se da criança, ele a leva para sua casa e a espanca, “e deu-lhe tal da acha, / que bem atro enos dentes / o fendeu bes assi, bem como quen lenna fende”. Isso provoca a morte do menino e o judeu o enterra em sua adega.

A mãe busca desesperadamente pelo filho, pois já passara da meia noite e o menino não havia retornado. Entre lágrimas, ela busca informações sobre seu filho e alguém lhe conta que ele fora levado por um judeu. A mãe apela, então, para Santa Maria:

Pois diss': «Ai, Santa Maria, | Sennor, tu que es porto u ar[r]iban os coytados, | dá-me meu fillo morto

ou viv' ou qual quer que seja; | se non, farás-me gran torto, e direi que mui mal erra | queno teu ben atende.»

Nesse momento o menino, que se encontrava enterrado na adega do judeu, começa a cantar a canção “Gaude Maria”. Todos ouvem a música e seguem até o local de onde ela vem. Na casa do judeu, retiram o menino vivo da adega e ele conta à mãe o

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que sucedeu. Nos versos, fica evidente que ele fora salvo da morte por Santa Maria, “o judeo o ferira, / e que ouvera tal sono / que sempre depois dormira, ate que Santa Maria / lhe disse: «Leva-t' ende;”. Registra a cantiga que o judeu que cometera tal ato foi castigado, morto e queimado no fogo.

A morte de crianças é um fato comum no período medieval. Segundo Delobre (1999, p.16), a grande mortalidade infantil se explica, primeiramente, pela deficiência de higiene, porém, muitas crianças são vítimas de agressões, conduzidas à escravidão, maltratadas. A disenteria e a febre eram as doenças que mais matavam as crianças, principalmente, os recém-nascidos. A Idade Média é marcada por terríveis epidemias (as pestes) e a fome, atingindo primeiramente as crianças. Há também relatos de crimes, maltratos e massacres de crianças cometidos, muitas vezes pela própria família ou por pessoas da comunidade, principalmente, durante as guerras que ocorreram nesse período. Na cantiga, a criança morre devido à maltratos cometidos por uma pessoa da comunidade, um judeu. A morte também é registrada pela iconografia da época, como podemos observar nessa ilustração de um manuscrito do fim do século XV, em que a morte surge perseguindo uma criança e sua mãe, conforme imagem abaixo:

Figura 1. Manuscrito do fim do século XV – A morte persegue a criança e sua mãe.

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questão do maltrato cometido contra crianças. Nesse caso, a criança é vítima de seu próprio pai. O milagre relatado ocorreu na cidade de Burgos, na Espanha. Havia um judeu fabricante de vidro, que tinha um filho. Um dia o menino entrou em uma igreja e teve a visão de Santa Maria no altar distribuindo hóstias. O garoto ficou maravilhado e quis provar a hóstia oferecida pela santa. Esta entrega ao menino o alimento:

Santa Maria enton a mão lle porregia, e deu-lle tal comuyon que foi mais doce ca mel.

Ao chegar a sua casa a criança relata ao pai sobre o acontecimento, deixando-o furioso a ponto de jogá-lo em um forno. A mãe do menino, Rachel, fica desesperada, grita atraindo muitas pessoas querendo saber o que estava acontecendo: Rachel, sa madre (...)/cuidando sen outra ren/ que lle no forno ardia / deu grandes vozes poren(...). Ela conta o que o marido fizera com o filho e imediatamente as pessoas retiram a criança viva do forno. O menino conta que fora salvo pelo manto de Santa Maria. Depois do milagre, ele se converte ao catolicismo e o pai é punido com a morte por seu crime:

Por este miragr' tal log' a judea criya, e o meno sen al o batismo recebia; e o padre, que o mal fezera per sa folia, deron-ll' enton morte qual quis dar a seu fill' Abel.

A literatura e a pintura da Idade Média revelam não só as doenças e os maltratos, mas também os poucos registros de afeição que une os pais a uma criança, tal como ocorre na cantiga. O amor da mãe tem como principal exemplo e ilustração a figura da Virgem Maria levando em seus braços o menino Jesus, expressando a sua veneração e carinho pela criança. Mesmo no momento de receber nos braços o seu filho morto na cruz, ela o contempla com amor e carinho.

Na tela de Giotto, A Natividade (1303-1305), da Capela D’ Arena, na cidade de Pádua, na Itália, a referência ao culto da infância do menino Jesus e da criança que

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frequenta a igreja para aprender a orar e cantar louvores:

Figura 2. A Natividade (1303-1305) – Giotto. Capela D’ Arena, Pádua, Itália.

A cantiga de n º 12, O que a Santa Maria, registra o amor da mãe. Nesse caso, o amor de Santa Maria por seu filho. A composição narra um milagre ocorrido em Toledo, na Espanha. Em um dia festivo de Agosto, durante a missa, ouviu-se a voz de uma senhora que lamentava o crime realizado pelos judeus, os quais haviam assassinado seu filho:

E a voz, come chorando, | dizia: «Ay Deus, ai Deus, com' é mui grand' e provada | a perfia dos judeus que meu Fillo mataron, seendo seus,

e aynda non queren conosco paz.

A senhora em questão é Santa Maria, que se queixa dos judeus por terem crucificado uma imagem de cera semelhante à de seu filho. Após a celebração da missa, as pessoas encontraram os judeus ferindo e cuspindo na imagem de Jesus Cristo. A cantiga termina com o narrador anunciando o castigo que esperava os judeus pelo crime cometido, a morte, “E por est' ouveron todos de morrer.”

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do que se livrou, e a cantiga 6, A que do bom rey Davi, a mãe sofre pelo filho que se

encontra em uma situação perigosa, jogado no fogo pelo pai ou assassinado por um judeu que lhe queria mal, não podendo salvá-lo, necessitando do auxílio de outras pessoas. A mãe da cantiga 6 suplica o auxílio à Virgem Maria. Na cantiga em questão, a mãe (Virgem Maria) tem a oportunidade de vingar-se dos malfeitores, punindo-os com a morte.

A figura da mãe implora auxílio para salvar seu filho. Rachel grita por socorro pela salvação de seu filho: “deu grandes vozes poren / e ena rua saya;”. Já a mãe do menino assassinado pelo judeu suplica à Santa Maria que lhe entregue seu filho morto ou vivo:

Pois diss': «Ai, Santa Maria, | Sennor, tu que es porto u ar[r]iban os coytados, | dá-me meu fillo morto

ou viv' ou qual quer que seja; | se non, farás-me gran torto, e direi que mui mal erra | queno teu ben atende.

Na cantiga 12, diferentemente a mãe não é indefesa, podendo denunciar os malfeitores e castigá-los com a morte, representando todas as mães que amam e sofrem pelos seus filhos.

As crianças nessas composições também aparecem como um ser indefeso, que se opõe a pessoas mais poderosas, seja o pai ou um adulto. Ela não consegue se defender, necessitando sempre de alguém que lhe auxilie. Na cantiga 6, depois que a mãe suplica pelo auxilio de Santa Maria, o menino assassinado pelo judeu é ressuscitado por Santa Maria; na cantiga 4, o menino é salvo do fogo pelo manto enviado pela virgem Maria. Portanto, a criança nessas cantigas surge como um ser fraco e indefeso.

A criança pode se encontrar sob os cuidados de sua mãe, de sua ama ou de seu irmão mais velho. Nas narrativas de milagre dos séculos XII e XIII, a mãe se entrega sempre à igreja ou ao trabalho, confiando a guarda dos pequenos aos primogênitos. A figura do irmão ou irmã mais velha ocupa, segundo Delobre (1999, p.11), posição importante na família, ao responsabilizar-se, desde o nascimento, pela saúde e segurança de seus irmãos, além dos afazeres domésticos. No Livro dos Costumes, que data do ano de 1500, há o registro da imagem da irmã mais velha cuidando de seu irmão (ou irmã) com varicela na cabeceira da cama, preparando-se para lhe dar o que beber.

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Figura 3. Livro dos Costumes (1500), imagem de Mathaeus Schwarz – Criança doente e sua irmã mais velha.

Outro tema encontrado nas cantigas é o da criança prometida a Deus. De acordo com Delobre (1999), muitas crianças, no dia do nascimento, eram prometidas a Deus. Certas crianças recebiam a denominação de “oblats” (oferecidas), ofertadas à Igreja. Outras eram levadas aos monastérios e quando atingiam a idade de 6 ou 7 anos, o pai doava uma soma em dinheiro ou terras como garantia que o seu filho tivesse alimentação e cuidados. Normalmente, essas crianças pertenciam às famílias mais abastadas. AS regras monásticas e os tratados redigidos para a formação dos doados recebiam cuidados especiais. Em grupos de dez, os pequenos eram confiados a um monge que lhe serviam dia e noite. A cada duas ou três horas, eles recitavam orações, exercitavam o canto e a leitura. Aprendiam boas maneiras no refeitório e aprendiam com a prática do silêncio. Durante os primeiros séculos medievais, a doação de crianças era irrevogável. Mas a Igreja reprovou a vocação forçada. Somente em 1215, a doação é abolida, mas na prática ela se mantém até o fim do século XVI.

A cantiga de nº 122, Miragres muitos pelos reis faz, relata um milagre operado por Santa Maria, que ressuscita uma menina, filha de D. Fernando, rei da Espanha. A criança ao nascer foi prometida a Virgem: “A este Rei há filla naceu / que a Santa Maria prometeu, / dês i aa orden offereceu / de Cistel, que é santa e de paz”. Os versos expõem

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que uma grave enfermidade acometeu a menina, levando-a à morte: “Esta mena ssa madre criar / a fez pêra às Olgas a levar/ de Burgos; mais la men’ a[n]fermar/ foi e morreu, de que mão solaz”.

A morte provocou grande comoção na família, principalmente à mãe que, numa atitude desesperada, ordena a saída de todos da capela e, deitando-se aos pés da Virgem, clama pelo milagre da ressurreição da filha: “Ja mais non me partirei / daquesta porta, ca de certo sey / que me dará a Madre do bon Rei / mia filla viva; senon, de prumaz / Tragerei dôo ou dun anadiu.” Logo em seguida, ouviu o choro da menina que abre as portas e abraça a mãe. Essa prática também é registrada em inúmeras ilustrações dos Manuscritos dos séculos XII a XIV.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Cantigas de Santa Maria e as ilustrações não se destacam apenas pelas características estéticas, mas porque registram a mentalidade de uma época, as formas de agir e pensar das pessoas. Nas cantigas surgem personagens de toda condição social: homens e mulheres, religiosos e laicos, cristãos, mouros e judeus, reis, comerciantes, senhores e mendigos. Desse modo, as cantigas e as ilustrações são documentos importantes para o estudo da concepção da criança no período medieval. As cantigas e as ilustrações demonstram situações pelas quais passam a criança na Idade Média, a morte por maltratos ou doenças, a convivência de crianças e adultos, e até mesmo a vida familiar.

Ao se trabalhar tanto o texto como a imagem, constata-se a vantagem de se pesquisar duas formas artísticas diferentes que, com suas estruturas próprias de significação, apreendem de forma bastante particular o real para reconstruí-lo na obra.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria e metodologia literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 1990.

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Rio de Janeiro: Editora, 1981, 2.ed.

CASTRO, Bernardo Monteiro. As cantigas de Santa Maria: um estilo gótico na lírica ibérica medieval. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2006.

DELOBRE, Karine. Des enfants au Moyen Âge. Paris, 1999.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, São Paulo: Papirus, 1996.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Trad. PERES, Marcos Flamínio. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

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Referências

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