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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do

Atomismo

∗∗∗∗

JOÃO QUARTIM DE MORAES Departamento de Filosofia

Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

quatis@uol.com.br

Resumo: A primeira versão do atomismo deixou indeterminada a causa e a trajetória do movi-mento dos corpúsculos elementares no vazio infinito. Epicuro, porém, sustenta que eles se movem em linha reta, propelidos pelo próprio peso. Seus críticos ponderaram, entretanto, que se os átomos caíssem paralelamente com igual rapidez (já que, não tendo nenhuma propriedade, salvo tornar possível o movimento, o vazio não lhes opõe nenhuma resistência), eles descreveriam rotas paralelas no vazio infinito, não se encontrando nunca e, portanto não formariam mundos. Para evitar esta conseqüência absurda (já que evidentemente, há mundos, o nosso em todo caso), os epígonos, nomeadamente Lucrécio, atribuíam a Epicuro a doutrina (sintomaticamente designada pelo termo latino clinamen) de que ocorrem desvios na trajetória retilínea dos átomos, que os fazem colidir uns contra os outros e, através destes entrechoques, gerar um mundo. Argumentamos que esta pretensa solução repousa numa interpretação do sentido da queda dos átomos que Epicuro recusou explicitamente, ao declarar que não se deve predicar o alto e o baixo no infinito. Queda vertical não denota uma direção rumo ao ponto mais baixo: o vazio infinito não tem “fundo”. Na conclusão, comparamos o primado do círculo na cosmologia aristotélica ao da reta na cosmologia epicureana. Palavras-chave: Movimento. Átomo. Clinamen. Vazio. Infinito.

Registro meu reconhecimento à FAPESP, que financiou em 2001-2002 o projeto de pesquisa em cujo âmbito desenvolvi a pesquisa de que resultou o presente artigo, bem como ao CNPq, o qual, com uma bolsa iniciada em 2003, encorajou-me a prosseguir nesta linha de estudo. Agradeço muito ao autor do parecer dos Cadernos pelas minuciosas e pacientes observações, de forma e de fundo, que me permitiram eliminar várias falhas da versão original. Agradeço também ao relator da FAPESP que examinou meu Relatório de Pesquisa de 2001 pelas observações e comentários.

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1. O movimento dos átomos segundo Leucipo e Demócrito

Tal como legada por Leucipo e Demócrito, a doutrina do movimento corpuscular no vazio infinito apresenta uma omissão e uma ambigüidade. A omissão foi apontada por Aristóteles: Demócrito nada diz sobre as causas do movimento. A ambigüidade foi explicitada na polêmica suscitada, no final do século XIX, entre os historiadores alemães da filosofia antiga, a respeito da natureza do movimento dos corpúsculos elementares no vazio infinito. Os fragmentos dos dois primeiros atomistas sugerem um deslocamento voltejante, à maneira de grãos de poeira, ao passo que Eduard Zeller sustentou que eles se deslocam em queda vertical1. Esta interpretação foi, desde o início, muito

criticada, sendo atualmente rejeitada por praticamente todos os estudiosos da questão, a ponto de W. Guthrie considerar-se dispensado de discuti-la2. O

próprio Zeller, de resto, em Delineamentos da história da filosofia grega, modificou em parte sua interpretação, afirmando que:

Enquanto Empédocles e Anaxágoras tinham acreditado serem necessárias forças que pusessem em movimento a substância primária (Amor e Ódio, segundo aquele, Mente segundo este), os atomistas , como os antigos físicos jônicos, transferiam movimento à própria substância primária. Os átomos, graças a seus diferentes tamanhos e pesos, estão desde o início em movimento rotatório. Por meio deste movimento, de um lado, os átomos similares são agrupados e, de outro lado, complexos atômicos ou mundos separados e isolados são formados pela conjunção de átomos de diferentes formatos.3

A modificação merece registro, mas tampouco é satisfatória. Em si mes-mas, as diferenças de tamanho e de peso não explicam a natureza originariamente

1 Zeller em Die Philosophie der Griechen III, Theil I, Abtheilung, 3 Aufl., p. 400.

2 Cf. W. Guthrie, A History of Greek Philosophy, II, p. 400-1. Guthrie apresenta-o (p. 401, n. 1) como o principal defensor desta interpretação.

3 Eduard Zeller, Outlines of the History of Greek philosophy, Meridian Books, Nova Iorque, 1958, p. 83. Consultamos este livro na tradução inglesa de L.R. Palmer, efetuada sobre a 13º edição alemã, revista por Wilhelm Nestle. Zeller reitera mais adiante: “Em contraste com a teoria de Demócrito de um movimento rotatório, Epicuro concebia os átomos como caindo no espaço vazio” (ib., p. 253-54).

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rotatória do movimento dos átomos livres no vazio. Os comentadores do século XX nos parecem ter discernido o elo ausente no comentário do eminente historiador alemão: isolados na imensidão, os átomos voltejam sem rumo (como sugere a imagem de grãos de poeira flutuando no ar calmo); só assumem movi-mento rotatório ao serem colhidos pelo turbilhão ou vórtice cosmogônico (o termo grego é di/ne). Tal é o cerne da questão: a concentração aleatória, numa zona qualquer do vazio, de átomos até então flutuando isoladamente, provoca uma turbilhonante interação que aglomera os átomos mais pesados e rechaça os mais leves4. Margherita Isnardi Parente, contrapondo Epicuro, para o qual “o

peso dos átomos tem uma função fundamental em seu movimento”, a Leucipo e Demócrito, nota que, para estes, “o pesado e o leve só se ativam quando se produz um turbilhão [...], não tendo função alguma no movimento absoluta-mente livre dos átomos voltejando no espaço”5. A expressão “movimento

4 Na explicação de Émile Bréhier, uma vez formado este vórtice, os corpúsculos mais leves são expelidos “para o vazio exterior”, “como ocorre com um turbilhão de vento ou de água”, enquanto que “os átomos compactos se reúnem no centro, onde formam um primeiro agrupamento esférico”. Emile Bréhier, Histoire de la Philosophie, tome premier, L’Antiquité et le Moyen Age, fascicule 2, Paris, P.U.F., 1967, p. 69. Descontada a impropriedade do termo “compacto” para denotar os átomos mais pesados (todos os átomos são compactos, no sentido de que não podem ser comprimidos), esta explicação nos parece adequada.

5 Cf. Margherita Isnardi Parente (org.), Epicuro, Opere, Torino, Unione Tipografico-Editrice Torinese, 2° edição, 1983, p. 15. Demócrito, com efeito, segundo Diogenes Laertius (IX, 44), sustentou que

...ta\j a)to/mouj de\ a)pei/rouj ei=)nai kata\ me/geqoj kai\ plh=qoj, fe/resqai d” e)n t%= o(/l% dinoume/naj, kai\ ou(/tw pa/nta ta\ sugkri/mata genna=n, pu=r, u(/dwr, a)e/ra, gh=n.

O termo “vórtice” aparece na forma do particípio dinoume/naj. Mais adiante (IX,45) encontramo-lo na forma de substantivo:

Pa/nta te kat” a)na/gkhn gi/nesqai, th=j di/nhj ai)ti/aj ou)/shj th=j gene/sewj pa/ntwn, h(\n a)na/gkhn le/gei.

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absolutamente livre” parece exagerada numa filosofia em que tudo é regido pela necessidade. É plausível, entretanto, supor que a “a)na/gke” democritiana signi-fique estritamente ausência de um logos ou nous; discutindo a causalidade no ato-mismo de Leucipo e Demócrito, Guthrie6 mostra que tanto a necessidade quanto

o acaso (tu/xh ou au)to/maton) são considerados causas.

A explicação é compatível com a de M. Isnardi Parente: resultado de uma determinada configuração de um complexo de átomos, o vórtice, por sua vez, reage sobre eles, ativando a oposição pesado/leve, até então irrelevante: os mais pesados (e não “mais compactos” como diz impropriamente Bréhier) se agru-pam, repelindo os mais leves.

Para Guthrie, não é tanto o peso, mas o tamanho (size) e o formato (shape) que se ativam no grande redemoinho originário: nele, com efeito, “começa a operar uma lei cardeal do atomismo: o semelhante tende ao semelhante e o semelhante age sobre o semelhante”7. Não nos parece evidente que esta “lei”

tenha validade para o atomismo de Epicuro, segundo o qual os átomos se articulam (em vez de se repelirem) na medida em que suas diferenças de tamanho e de formato são complementares. Dois átomos semelhantes, por exemplo, de formato esférico, tendem a se repelir quando se chocam. Mas, justamente, o peso é a causa fundamental dos entrechoques e, quando estes ocorrem, são os des-semelhantes que mais facilmente tendem a se agregar uns aos outros (o côncavo e o convexo, por exemplo).

A autora acompanha o estudo de Ettore Bignone consagrado à “doutrina epicúrea do clinamen”, reunido em apêndice ao notável L’Aristotele perduto e la formazione filosofica di EpicuroUtilizamos a 2° edição, póstuma, Florença, La Nuova Italia, 1973. A 1° edição é de 1936. O apêndice sobre o clinamen está no volume II, p. 409-56. As citações de Diogenes Laertius, remetem a Lives of Eminent Philosophers, volume II, livro IX (a respeito de Demó-crito) e X (a respeito de Epicuro), com o texto original e a tradução para o inglês de R.D. Hicks, Loeb Classical Library, Harvard University Press, 1° edição 1925.

6 W. Guthrie, ib., p. 414 e ss. 7 ib., p. 409.

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Distinguindo entre a questão da causa ou origem do movimento e a de sua natureza, Guthrie nota, a respeito da primeira, que por ter tido a possibilidade, que não temos, de ler diretamente Leucipo e Demócrito, Aristóteles merece um crédito de confiança quando assegura que, contrariamente a Anaxágoras, para o qual o movimento teve um começo, os atomistas, por considerar que ele sempre foi, eximem-se de perguntar por sua causa ou origem8. Constatar que os átomos

se movem desde sempre não explica, porém, por que se movem. Não basta, com efeito, declará-los eternos para dar por resolvida a questão sobre seu princípio, entendido como causa e não apenas como (falta de) origem no tempo. Por isso, parece-nos válida a crítica implícita na observação de Aristóteles, desenvolvida por Alexandre de Afrodísia: “Leucipo e Demócrito [...] não dizem de onde

provém o princípio do movimento do mundo físico”9. Em defesa dos dois

pri-meiros atomistas, Guthrie observa que era próprio a um grego do século – V considerar as noções de começo, origem, princípio determinante e causa como estreitamente reunidas num único termo, arché, ao qual o movimento seria imanente10. Mas justamente, o desenvolvimento da cosmologia pré-socrática

consistiu em (a) identificar o princípio (arché), seja ele água, ar, ilimitado etc. e (b) distinguir o substrato imanente do devir da explicação da boa ordem (cosmos) do próprio devir. Esta segunda questão apareceu claramente quando o substrato deixou de ser identificado a uma só determinação. Se tudo é água, o movimento só pode ser o da própria água. Mas se os princípios são quatro e, “a fortiori”, se são ilimitados, é preciso explicar como se combinam ou se repelem, portanto, qual a causa de seus movimentos.

Quanto à natureza do movimento, a interpretação de Guthrie converge com a de M. I. Parente, acima referida: o movimento fundamental dos átomos livres é “irregular e sem direção (aimless)”11. O que mostra, de resto, que embora

8 ib., p. 400-1. 9 Cf. ib., p. 400. 10 ib., p. 400. 11 ib., p. 408.

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distintas, a questão da causa fundamental e a da natureza são inseparáveis. Ao silêncio a respeito da primeira corresponde o caráter indeterminado da segunda.

2. Cícero, Lucrécio e a aporia da queda vertical

Desde Cícero, pelo menos, os adversários de Epicuro consideraram pouco ou nada relevantes as inovações filosóficas do epicurismo relativamente às idéias de Demócrito12. A pretensão de nada dever a seus predecessores, de que se

felicitava o Mestre do Jardim, seria, para estes comentadores, inteiramente descabida. Do lado dos simpatizantes do epicurismo, notadamente, na época moderna, os enciclopedistas e os filósofos alemães do século XIX, valorizou-se sobretudo o conteúdo libertário de sua ética e, na física, a doutrina da declinação espontânea dos átomos. Assim, segundo Zeller, Epicuro encontrou no indivíduo o supremo fim prático (“im Einzelwesen den letzten praktischen Zweck fanden”), como Demócrito havia reconhecido na particularidade absoluta ou nos átomos a realidade originária (“... in dem absolut Einzelne oder in den Atomen das ursprünglich Wirkliche erkannt ...”)13. As lacunas da documentação

historio-gráfica permitem estas e outras hipóteses. Mesmo porque, incontestavelmente, as trilhas do atomismo e do hedonismo se entrecruzam. Mas sustentar que os seres são os corpos simples não leva necessariamente a considerar, como o fará

12 Esta acusação é referida por Diógenes Laércio (X, 4):

“ta\ de\ Dhmokri/tou peri\ tw=n a)to/mwn kai\ A)risti/ppou peri\ th=j

h(donh=j w(j i)/dia le/gein”.

Xénia Atanassiévitch, empenhada em salvaguardar a contribuição de Epicuro, classifica de “falsa e injusta” a opinião dos que o acusam de não ter idéias próprias, “apropriando-se inconfessadamente da física de Demócrito e da moral do cirenaico Aristipo”. Cf. L’atomisme d’ Épicure, Paris, PUF, sem data, p. 11.

13 E. Zeller, Die Philosophie der Griechen, op. cit., p. 400. Xénia Atanassiévitch propõe a hipótese oposta: Epicuro foi “primeiro atraído pela moral de Demócrito” e só depois, para lhe conferir fundamento físico, recorreu ao atomismo (ib., p. 13). Esta sugestão parece-nos um tanto forçada.

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curo, que o sumo bem é o prazer. Foi a física e não a ética de Demócrito que se inscreveu no pensamento grego posterior como seu principal legado, ao passo que encontramos na doutrina cirenaica a primeira expressão notável da ética hedonista14. De resto, Zeller enfatiza a analogia da individualidade ética em

Epicuro com a individualidade física em Demócrito, mas não a apropriação por aquele da moral cirenaica. Os próprios cirenaicos se encarregaram de explicitar polemicamente a profunda diferença entre sua própria concepção do prazer e a de Epicuro. Não considerando que possa haver prazer no repouso, mas somente no movimento, referiam-se ironicamente à tese epicurista de que a felicidade consiste na eliminação de tudo que acarreta sofrimento, tratando-a de “estabi-lidade do morto”.

No De finibus (I, 6, 18-9), Cícero questiona, com ênfase tão sarcástica quanto injusta, os fundamentos mesmos da cosmologia epicureana. Segundo ele, Epicuro só não escorrega quando segue Demócrito. Ambos teriam deixado de lado a força e a causa formadora15, considerando apenas a matéria (“de materia

disseruerunt, vim et causam efficiendi relinquerunt”). A este vício comum o filósofo do Jardim teria acrescentado outro erro de sua própria lavra, a saber que os átomos são arrastados em linha reta para baixo por seu peso (“... corpora ferri deorsum suo pondere ad lineam”). A seqüência do argumento é bem conhecida: se os átomos caem em linha reta no infinito, não se compreende como poderiam

14 Falta argumentação sistemática aos fragmentos de Demócrito consagrados à ética. O fragmento 69, Diels, por exemplo, declara que “o bem e o verdadeiro são idênticos para todos os homens; o prazer é diferente para cada um”. É difícil considerar como hedonista uma moral para a qual a natureza do bem se opõe à do prazer como o universal ao singular.

15 Traduzir “causam efficiendi” por causa eficiente seria deixar-se enganar por um “falso amigo”. Eficiente corresponde ao particípio presente do verbo latino efficio (efficiens) ao passo que efficiendi é o genitivo do gerundivo do mesmo verbo. Literalmente, a tradução seria: causa de formar, ou, fugindo um pouco da letra em função do sentido, causa da formação. O latinista Charles Appunh em sua tradução para o francês (Cicéron, Du bien suprême et des maux les plus graves, Paris, Garnier,s.d.) propõe “cause informatrice”. Cf. ib., p. 16-9.

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se encontrar. Para evitar tal conclusão, Epicuro, “homo acutus”16, teria recorrido

à declinação espontânea dos átomos. Recurso “pueril”, fulmina Cícero, além de gratuito (“ad libidinem fingitur”). “Nada mais torpe para um físico do que sustentar que algo se engendra sem causa”. Recurso inútil, enfim, porque se todos os átomos desviam, nada garante que venham a se encontrar. Enfim, se uns desviam e outros não, haveria como que esferas distintas para uns e outros (“quasi provincias atomis dare”) e o caótico entrechoque dos átomos declinantes com os de rota sempre retilínea não poderia ser causa formadora da bela ordem do mundo (“[...]hunc mundi ornatum efficere non poterit”).

Há pouco para salvar nestas críticas, mesmo porque, certa ou errada, a tese de que os átomos caem verticalmente por seu peso próprio demonstra, ao menos, ser injusto acusar Epicuro de não haver dissertado a respeito da força eficiente (vim)17. É o próprio Cícero, pois, que reconhece, “malgré lui”, ao

escrever que os átomos são transportados “deorsum suo pondere ad lineam”, as duas inovações decisivas que ele introduziu na cosmologia legada por Demócrito: a causa fundamental do movimento dos átomos é seu próprio peso (“suo pondere”, tradução latina de dia\ tw=n i)di/wn barw=n)18; este movimento é

retilíneo. A primeira inovação, suficientemente clara e explícita nos textos e fragmentos de Epicuro, não dá lugar a discrepâncias hermenêuticas. A segunda

16 Como fica claro na contundente crítica que vem em seguida, a qualificação, na melhor das hipóteses, é apenas condescendente. A tradução mais apropriada parece-nos “Epicuro, homem esperto” ...

17 Assim traduzimos, pelas razões apontadas na nota 15, o termo “vim”. É este que tem a conotação mais próxima à famosa “causa eficiente” dos manuais de filosofia. Ao passo que “cause informatrice”, boa tradução francesa de “causam efficiendi”, corresponde às causas formal e final dos escolásticos. Ao acusar Epicuro de ignorá-la, Cícero arromba uma porta aberta, ou, o que dá no mesmo, rejeita dogmaticamente a própria posição filosófica atomista: a ordem do todo provém do acaso e não de um espírito transcendente ou imanente.

18 Carta a Heródoto, §61. As referências ao texto de Epicuro conservados por Diógenes Laércio remetem à edição inglesa, Lives of Eminent Philosophers, já citada, e à edição italiana, Epicuro. Lettere sulla fisica, sul cielo e sulla felicità, de Francesco Adorno, que se serve do texto estabelecido por Arrigheti. Milão, Biblioteca Universale Rizzoli, 1994.

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suscitou e continua suscitando, desde as acerbas críticas que recebeu por parte de Cícero, uma longa série de polêmicas.

Num estudo cujos resultados foram parcialmente publicados19,

procura-mos procura-mostrar, reconstruindo, em suas grandes linhas, este longo debate transmi-tido dos antigos aos modernos, que a doutrina do clinamen, exposta por Lucrécio, mas associada por uma longa tradição de dois milênios ao pensamento original do próprio Epicuro, longe de constituir, como pretenderam tanto os críticos como muitos epígonos, um recurso indispensável (porque se não desviassem da queda vertical, os átomos nunca se encontrariam, nem portanto formariam mundos), não somente não corresponde a nenhuma exigência de sua física, como também nela introduz, desnecessariamente, uma brecha teórica, na medida em que apela para um efeito sem causa20. Sustentamos, em particular, que a ausência

do termo pare/gklisij21, referente grego de clinamen, e do argumento

19 “Clinamen: o milenar prestígio de um falso problema”, p. 179-212, in Ética e política no mundo antigo, H. Benoit e P.P. Funari (orgs.), Campinas, IFCH/FAPESP, 2001. Reproduzido em Amor Scientiae, “Festschrift” em homenagem a Reinholdo Aloysio Ullmann, Porto Alegre, Edipucrs, 2002, p. 405-37. Retomamos aqui, com modificações, passagens deste estudo, cujo título vale apenas na medida em que refuta, no terreno da historiografia filosófica, uma certa linha de interpretação que imputa a Epicuro a doutrina do clinamen. Mas essa doutrina, tal como enunciada em Lucrécio e retomada ao longo de dois milênios por intérpretes e comentadores do epicurismo, não é, em si mesma, um falso problema filosófico. Mesmo porque o critério para aferir a “falsidade” de um problema depende de uma posição filosófica prévia ...

20 Bréhier, enfatizando o caráter espontâneo do desvio cosmogônico, que ocorre em lugar e tempo indeterminados, lembra que os adversários do epicurismo não pouparam sarcasmos contra este “coup de pouce” do “físico atrapalhado ao não ver os fatos se enquadrar em sua teoria”. Menciona ainda a observação de Santo Agostinho em Contra os Acadêmicos, de que assumir tal indeterminação era “abandonar toda a herança de Demócrito”. Émile Bréhier, Histoire de la Philosophie, tome premier. L’Antiquité et le Moyen Age. II Période Hellénistique et Romaine, Paris, Felix Alcan, 1934, p. 346-47.

21 O Thesaurus Graecae Linguae, volume 6, Paris, Firmin Didot, 1842-1847, refere no verbete pare/gklisij os significados: “Defluxio et inclinatio in latus”, empregado por Galeno em anatomia (por exemplo, “vulvae ad latus inclinatio”) e “Declinatio”, acrescentando: “De atomis Epicuri”. Só que, como o fará também A. Bailly no mesmo

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dente, nas Cartas a Heródoto e a Pitocles, em que Epicuro sintetiza seu pensamento cosmológico, explica-se pela simples razão de que não integram sua concepção do fundamento das coisas e que, portanto, longe de constituir um indispensável complemento, configuram um corpo estranho à lógica interna de sua filosofia. Do ponto de vista da história da filosofia, para a qual (como para todos os demais ramos da história), a referência aos documentos é indispensável, este silêncio de Epicuro constitui, por si só, um forte argumento a favor de nossa posição, a saber, que, enquanto tal, a segunda inovação de sua física, denotada por Cícero e, antes dele, por Lucrécio, pelo advérbio “deorsum” (para baixo), tradução latina de h( ka/tw fora/22 (literalmente, o transporte para baixo), não conduz a

nenhu-ma aporia, nem exige, portanto, o apelo à doutrina do desvio ou declinação es-pontânea dos átomos.

Vale notar que Lucrécio utiliza muito menos, quando expõe esta sua doutrina no De rerum natura (II, 216-93), o substantivo latino clinamen, pelo qual a posteridade a designou, do que das formas verbais decedere (v. 219), declinare (v. 221), inclinare (v. 243), declinare (v. 250), declinando (v. 253), declinamus (v. 259). Cli-namen só aparece no final desta exposição (verso 292). O termo, muito pouco empregado, vem do verbo clino, que também existe em grego (kli/nw), com o mesmo significado (inclinar). O parentesco com inclinare e declinare salta aos olhos. Muito provavelmente, sob reserva de uma investigação filológica mais acurada, o prestígio do termo clinamen se deve justamente ao fato de, por ser raro, prestar-se mais do que declinação ou inclinação para denotar o desvio espontâneo.

Ele não comparece, porém no enunciado inicial da doutrina:

verbete de seu Dictionnaire Grec-Français, define pare/gklisij como “inclinaison de côté”, referindo dois exemplos, ambos atribuídos a Epicuro, mas tirados de dois doxógrafos que viveram respectivamente cerca de trezentos e cinqüenta e setecentos e cinqüenta anos depois do Mestre do Jardim: Plutarco (Moralia, 883a, etc.) e Stobeu (Eclogarum physicarum et ethicarum libri II, 1, 346).

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Corpora cum deorsum rectum per inane feruntur, Ponderibus propriis, incerto tempore ferme, Incertisque locis, spatio decedere paulum,

Tantum quod momen mutatum dicere possis. (De rerum natura, II, 217-220).

As palavras-chave destes quatro versos são deorsum, rectum e decedere. (Cícero, na passagem acima citada, emprega também “deorsum”, mas escreve “ad lineam” em vez de “rectum”). A prova de que os átomos23 devem

necessa-riamente declinar vem logo a seguir, sob a forma de um raciocínio por absurdo:

Quod nisi declinare solerent, omnia deorsum, Imbris guttae, cadere per inane profundum, Nec foret offensus natus, nec plaga creata

Principiis : ita nil unquam natura creasset. (221-24)

Se os átomos não “costumassem declinar”, não se entrechocariam, nem criariam natureza alguma ... Para evitar esta conseqüência absurda (já que evidentemente, há mundos, o nosso em todo caso), Lucrécio afirma que Epicuro teria introduzido a hipótese de que ocorrem desvios na trajetória retilínea dos átomos, que os fazem chocar-se uns contra os outros e, através destes entrechoques, gerar um mundo, ou modernizando a expressão, um sistema solar ou uma galáxia. Este desvio, que ocorreria em lugar e tempo indeterminados, de maneira espontânea, isto é, sem causas, estaria aquém do limite de nossa percepção, constituindo pois uma inferência sobre o invisível.

Sem dúvida, a fórmula “nisi declinare solerent”, isolada de seu contexto, poderia ser interpretada como significando apenas que os átomos habitualmente desviam-se da queda vertical para descrever, em conseqüência das constantes colisões, trajetórias ascendentes ou oblíquas. Mas a estrofe 217-220 é hermeneu-ticamente inseparável da seguinte (221-24) e nesta, o omnia deorsum do verso 221 abre a frase que conclui no verso 222: Imbris guttae, cadere per inane profundum. Todos os átomos (livres), como gotas de chuva, cairiam (se não declinassem) em direção do “fundo” do vazio. Declinare do verso 221 só pode, pois ser

23 Os versos 221-24 não deixam nenhuma dúvida a respeito da tradução de “corpora” no verso 217: o poeta ali designa os átomos e não os corpos compostos.

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pretado em termos de mudar de rumo abrupta e arbitrariamente, por “iniciativa” própria e não por força de uma colisão. Esta declinação espontânea é, portanto apresentada por Lucrécio como causa, ou condição no sentido forte, da gênese dos compostos. Sem ela, os átomos estariam condenados a nunca se encontrar, não podendo, portanto, gerar corpos compostos (versos 223-24). Para Epicuro, ao contrário, a prova evidente de que os átomos são infinitos em número está em que, como vimos, se finitos fossem, aí sim, seriam arrastados e dispersos pela imensidão. O fato de serem infinitos constitui condição suficiente para que colidam (Carta a Heródoto, §42).

Por isso subscrevemos, contra a opinião de Marie Cariou, a de Solovine, que considera os versos II, 217-24 como estando “em contradição flagrante” não somente com o pensamento do Mestre, mas também “com tudo o que (Lu-crécio) diz alhures”24, isto é, nos versos 80-132, que descrevem o movimento dos

átomos no vazio como expansão “in cunctas undique partis”. Particularmente significativa é a passagem em que o poeta compara o movimento dos átomos isolados no vazio à agitação dos pequenos grãos de poeira que podemos observar quando um raio de sol penetra numa zona de sombra. Este permanente combate das partículas de matéria no feixe luminoso permite formar uma imagem “da contínua agitação dos elementos primordiais no vazio imenso”25. A imagem nos

parece, entretanto, adequada à física de Leucipo e Demócrito e não à de Epicuro. Sugere, com efeito, átomos inumeráveis flutuando (e não em queda livre) no vazio.

A explicação proposta por Solovine para a origem da divergência filosófica de Lucrécio relativamente a Epicuro é a mesma de que se servira Bignone para sustentar a hipótese de que a doutrina do clinamen foi inventada por este, numa

24 Maurice Solovine, “Note sur le clinamen”, in Épicure.Doctrines et maximes, Paris, Hermann, 1965, p. 179. A edição original do livro, publicada em 1940, contém um prefácio do próprio Solovine, datado de Paris, abril de 1938. Na edição de 1965, de que nos servimos, há uma introdução de Jean Pierre Faye, infelizmente demasiado carregada de efêmeros modismos intelectuais, em que retoma contra Solovine, mas sem qualquer argumento novo, a imputação a Epicuro da doutrina do clinamen.

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fase tardia de sua trajetória filosófica, para replicar a críticas dos acadêmicos e peripatéticos. O poeta romano, preocupado em provar, contra os aristotélicos e os estóicos, que os corpos (compostos) leves não tendem naturalmente para cima, argumenta, nos versos II, 184-215 (logo antes, portanto, de atribuir aos átomos a faculdade de declinar afim de formar mundos), que a chama não se ergue por si própria, e sim porque é pressionada pelo ar. Não fosse esta pressão, ela cairia para baixo, “já que todos os corpos pesados, por si próprios, dirigem-se para baixo” (verso 190). Escapou-lhe que “para baixo” só designa uma direção unívoca no interior de um mundo constituído e que, portanto os corpos elementares, dirigindo-se para baixo, não caem no vazio profundo à maneira de gotas de chuva. Cair no interior de um aglomerado sideral não tem o mesmo sentido que cair no vazio, já que neste os átomos isolados não caem na mesma direção. Não é preciso, pois que os átomos declinem para se encontrar e criar mundos.

Também Mayotte Bollack empreendeu, com o objetivo de restabelecer o significado verdadeiro da doutrina do clinamen , um esforço de análise de De rerum natura II, 184-293, em que, retomando a linha hermenêutica predominante, imputa a Epicuro o princípio da declinação espontânea dos átomos26. Sua análise

é rigorosa e minuciosa, mas a argumentação filosófica não tem o mesmo fôlego que a filológica. Sustenta que a “teoria dos minima” (Carta a Heródoto, §58 e ss.) permitiu “distinguir as duas trajetórias anteriores aos choques”27. Oferece como

26 Mayotte Bollack, “‘Momen mutatum’ (La déviation et le plaisir, Lucrèce, 184-193)”, acompanhado de um apêndice da autora e de Jean Bollack e de “Histoire d’un problème” de Heinz Wismann, in Cahiers de Philologie 1, Études sur l’épicurisme antique, Université de Lille III, 1976.

27 loc. cit., p. 195-96. Curiosa ou sintomaticamente, a nota a que remete esta afirmação (nota 4, p. 195), em vez de citar a fórmula precisa em que Epicuro teria confortado tal interpretação, cita Derrida (!), que em “Lucrèce et le naturalisme”, Les études philosophiques, 16, 1961, p. 22, vê no “clinamen ... a determinação originária da direção do movimento do átomo, a síntese do movimento e de sua direção” (itálico no original). Ela mesma reconhece, entretanto, que o estudo de Derrida não permite “resolver os problemas do texto nem compreender as aporias da doutrina”. É o caso de perguntar por que então o citou.

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prova um fragmento de Aétio: “os átomos se movem ora segundo a reta (kata\ stagmh/n), ora segundo o desvio (kata\ pare/gklisin); os (movimentos) para cima (ta\ de\ a)\nw kinou/mena) (ocorrem) segundo o choque e a rebatida (kata\ plhgh\n kai\ palmo/n). Para a autora, daí se infere que “a queda retilínea e o desvio são apresentados como as duas possibilidades alternativas de um mesmo movimento, que é expressamente oposto ao movimento das rebatidas, oriundo dos choques”28. Note-se que o texto de Aétio refere-se ao movimento

dos átomos sem aludir a qualquer anterioridade relativamente aos choques e que fala em movimento segundo a reta e não, como ela diz, em “queda retilínea”. Além disso, salvo incontestável prova gramatical em contrário, não nos parece obriga-tório entender que os dois movimentos do átomo estão expressamente contra-postos às rebatidas.

Ainda que fosse justa a interpretação de M. Bollak, dela não se poderia extrair nenhuma conclusão definitiva a respeito do pensamento original de Epicuro, nem de Lucrécio. O doxógrafo Aétio viveu no século I de nossa era. Três séculos separam-no, pois do Mestre do Jardim e um século do grande epígono romano. Constatação que nos conduz de volta à única fonte incon-testável do pensamento dos dois filósofos, a saber, os textos que se lhes podem atribuir com certeza.

Segundo Lucrécio, o desvio espontâneo é necessário não somente para explicar a gênese dos compostos, mas também a autonomia da conduta. Se imperasse na natureza um inelutável encadeamento de todos os movimentos, se nada pudesse romper os nexos mecânicos, donde proviria a liberdade de movimentos que constatamos em todos os viventes?

Libera per terras unde haec animantibus exstat, Unde est haec, inquam, fatis avolsa potestas,

Per quam progredimur quo ducit quemque voluntas? (256-58)

No De fato (X, 22) e no De natura deorum (I, 25), Cícero dirige contra Epi-curo o argumento de Lucrécio. No De fato declara que “EpiEpi-curo introduziu esta

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explicação por temer que se os átomos fossem arrastados por seu peso natural e necessário, não haveria nada livre em nós, já que o movimento da alma resultaria do movimento dos átomos” e, no De natura deorum, que “se os átomos fossem arrastados para baixo por seu próprio peso (in locum inferiorem suopte pondere), nada estaria em nosso poder”. Seríamos submetidos, como tudo mais, à férrea necessidade do movimento atômico. Para fugir desta conclusão, Epicuro teria atribuído aos átomos a faculdade “de declinar um pouquinho (declinare paululum) do movimento para baixo (deorsum)”. “Melhor teria sido calar-se do que resistir tão descaradamente (impudenter)! É mais torpe (turpius) lançar tal

argumento do que reconhecer não dispor de argumento algum!”29. Não ocorreu

ao grande autor romano a hipótese de que nem tudo que Lucrécio escreveu pode ser imputado ao filósofo do Jardim, nem, menos ainda, que este não precisava de argumento algum para resolver um problema estranho a seu pensamento!

Tampouco ocorreua Cícero, mas nisso o zelo crítico o terá levado a forçar o pensamento do próprio Lucrécio, que, em boa lógica, se o desvio espontâneo é necessário para explicar o encontro dos átomos, ele será supérfluo para explicar a liberdade, que já estaria inscrita na indeterminação radical dos próprios átomos. É aceitável que Lucrécio, num poema didático, em que defende e ilustra o epicurismo, apresente (nos versos 256-58 acima referidos) a vontade livre dos viventes como uma das conseqüências desta indeterminação radical. Mas não que um crítico aponte duas aporias, independentes uma da outra, que teriam obrigado Epicuro a introduzir uma explicação torpe e descarada ... Fundamentar a liberdade na espontânea mudança de rota dos átomos só teria sentido se esta não fosse necessária para explicar os entrechoques de que mundos se engendram.

Note-se, ademais, que Epicuro não julgou necessário recorrer ao desvio espontâneo dos átomos para rejeitar peremptoriamente, na Carta a Menequeu (§133-34), a tese de Demócrito de que tudo se produz pela necessidade

29 Vale notar que “declinare paululum” corresponde a “decedere paulum” de De rerum natura, II, 217.

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(“pa/nta te kat” a)na/gkhn gi/nesqai”)30 e para declarar que nosso arbítrio não

tem dono (to\ de\ par” h(ma=j a)de/spoton).

A mais elaborada defesa da atribuição a Epicuro da doutrina do desvio espontâneo é a de Ettore Bignone. No estudo que consagrou à “doutrina epicú-rea do clinamen”, reunido em apêndice ao notável L’Aristotele perduto e la formazione filosofica di Epicuro31, reconhece que a ausência de qualquer alusão à declinação dos

átomos nos textos remanescentes do Mestre do Jardim é filosoficamente motivada, já que a Carta a Heródoto, que se propõe explícita e enfaticamente expor ao discípulo as “doutrinas fundamentais da física” (§35 e ss.), explica o movi-mento dos átomos sem qualquer referência à declinação. Tampouco nos fragmentos do Sobre a natureza encontrados em Herculanum e restaurados graças à laboriosa paciência de gerações de eruditos, encontrou-se qualquer alusão a um desvio espontâneo dos átomos no vazio. Desta constatação Bignone não infere, entretanto, que o princípio da declinação espontânea seja estranho ao pensa-mento de Epicuro, mas sim que se trata de uma elaboração tardia, posterior aos textos remanescentes, visando a responder às críticas provenientes dos acadê-micos e dos peripatéticos. Como todas as interpretações “evolucionistas”, esta se apóia na sólida evidência de que nenhuma filosofia nasce pronta no cérebro do pensador, mas também no potencialmente falacioso recurso de resolver dificuldades hermenêuticas dissolvendo-as no fluxo do tempo.

A demonstração de que a doutrina do clinamen não corresponde a nenhu-ma exigência do sistenenhu-ma de Epicuro (além de nele introduzir, desnecessariamente, uma brecha teórica, a saber, o recurso a um efeito sem causa, por onde investiram seus críticos antigos e modernos) deve contemplar os dois argumentos em que se desdobra a tese oposta: a explicação das cosmogonias e a da liberdade ética. A segunda foge a nosso tema, mas pouco teríamos a acrescentar à fina e concisa

30 D. L., IX, 45.

31 Utilizamos a 2a. edição, póstuma, Florença, La Nuova Italia, 1973. A 1a. edição é de 1936. O apêndice sobre o clinamen está no volume II, p. 409-56.

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contra-argumentação de Maurice Solovine32. Quanto à primeira, que concerne ao

movimento dos átomos no vazio, a aporia surgiu na medida em que, na trilha do deorsum e do cadere de Lucrécio33, a maioria dos tradutores e comentadores

modernos entendeu por “caduta”, “chute”, “fall”, “queda” etc., a queda vertical dirigida para o “fundo” do vazio e daí inferiu que, sem o clinamen, os átomos não se encontrariam nunca.34 Os partidários do clinamen simplesmente não

levam em conta que o infinito não tem fundo nem topo, nem “o” ponto mais alto, nem “o” ponto mais baixo, como declara enfaticamente a mesma Carta a Heródoto (§60): não se deve predicar o alto e o baixo a respeito do infinito (tou= a)pei/rou w(j me/n a)nwta/tw kai\ katw/tatw ou) dei= kategorei=n to\ aÓnw hÄ ka/tw), como se nele houvesse um ponto absolutamente mais alto (a)nwta/tw) e um ponto absolutamente mais baixo (katw/tatw). No infinito, com efeito, não

32 Maurice Solovine é particularmente incisivo a propósito do pretenso condicio-namento da liberdade do querer pela declinação dos átomos. Pondera que decido agir ou abster-me da ação, interromper a ação ou a inação, em função de um quadro de circunstâncias configuradoras da situação em que decido ou deixo de decidir, ou em função de uma reflexão mais madura. O que significaria, em qualquer e em todas estas hipóteses, a pretensa intervenção ou ao menos condicionamento do clinamen? “Se é ele que desempenha papel decisivo em minha determinação, minha reflexão é inútil e não sou livre. Mas se minha conduta é determinada por motivos sérios, não vejo direito a que serve o clinamen”. Solovine, “Note sur le clinamen”, in Épicure. Doctrines et maximes, Paris, Hermann, 1965, p. 182-83. Acrescenta que sendo a alma, para Epicuro, composta de um gênero particular de átomos e dividida em alma irracional, espalhada pelo corpo todo e alma racional, situada no peito, “os atos instintivos e automáticos, devidos à primeira, distinguem-se nitidamente dos atos refletidos, devidos a esta” (ib., p. 183).

33 Sem excluir a hipótese de que Lucrécio pode ter sido inspirado por algum epicurista, grego ou romano, dos muitos cujos escritos se perderam.

34 Entre os intérpretes modernos, não há acordo nem a respeito da justificação filosófica da hipótese do clinamen (uns enfatizam o aspecto cosmogônico; outros a liberdade ética), nem da razão pela qual não a encontramos nos textos do próprio Epicuro. Muitos contentam-se com constatar essa ausência para recorrer imediatamente a Lucrécio, dando por garantido o direito de imputar àquele o que este escreveu. Mas já no século XIX a ausência do termo e da questão nos textos dele remanescentes está claramente assinalada.

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tem sentido falar em posições absolutas. A trajetória (fora/) dos átomos isolados no vazio não pode, pois receber tais predicados.

Este enunciado em forma de preceito (ou) dei=) leva em conta, sem dúvida, as críticas formuladas por Platão e principalmente por Aristóteles contra os que, concebendo o infinito separado dos sensíveis, sustentam haver algo que seja ele próprio infinito: “como uma parte do infinito poderia estar em cima, outra em baixo, outra na extremidade, outra no centro?35”. E acrescenta: “todo corpo

sensível está num lugar e as espécies e diferenças do lugar são alto, baixo, em frente, atrás, direita e esquerda e estas se determinam não somente em relação a nós e por posição, mas também no próprio todo. Ora, é impossível que elas estejam no infinito”36. Portanto, a pergunta “onde?” só tem sentido relativamente

aos corpos.

Em que pese à autoridade que lhe confere sua estupenda edição de Epicuro, consideramos inadequada a tradução que Isnardi Parente oferece da fórmula acima referida de X, 60: “Quando si parli dell’infinito, non si devono intendere l’alto e il basso nel senso dei due valori estremi”37. Ela enfraquece as

palavras a)nwta/tw kai\ katw/tatw, vertendo-as por “due valori estremi”, o que sugere haver alto e baixo no infinito, mas não o ponto mais alto e o ponto mais baixo. Entendamos: haveria uma direção absoluta para cima e para baixo, embora não haja o ponto ou valor extremo destas duas direções. Em abono desta interpretação, M. Isnardi Parente assume a tese de “um universo perpendicular

35 Aristóteles, Phys. III, 5, 204 a 8-9.

36 ib., 205b 30-5. Note-se que a conclusão principal do argumento é de que não há corpo infinito em ato; que não há lugar infinito em ato é uma conclusão secundária utilizada como premissa para a conclusão principal:

!))(r plw=j d ¦ei) a)du/naton to/pon aÓpeiron eiÅnai, e)n to/p% de\ pa=n sw=ma, a)du/naton aÓpeiron ti eiÅnai sw=ma. (ib., 205b 35-206 a 2).

Mais adiante, em IV, 215 a 6-9 e ss., reitera não haver no infinito nem no vazio alto, baixo, ou meio.

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no qual as partículas de matéria física deslocam-se de cima para baixo”38, sem

maiores justificações além de remeter a um único intérprete, respeitável embora39,

nem preocupação de compatibilizá-la com a infinitude do todo, isto é, de explicar como ela própria entende o caráter alegadamente perpendicular do infinito e, mais radicalmente, como pode o infinito ter forma.

Mais razoável nos parece admitir que o espaço infinito não pode ser perpendicular nem adotar qualquer formato e que as direções para cima e para baixo não têm caráter absoluto e, portanto que não tem sentido caracterizar como queda, nem mesmo como linha vertical, o movimento originário e fundamental dos átomos dispersos pelo vazio infinito: ele é retilíneo, de velocidade igual à do pensamento, esclarece Epicuro, já que o vazio não lhes opõe nenhuma resistência, mas não “cai” já que não há um “em cima” absoluto do qual pudesse cair nem um “em baixo” absoluto para onde estivesse caindo.

3. O desvio atômico como desvio teórico

Se a atribuição da doutrina do “desvio espontâneo” a Epicuro baseia-se num falso problema, provocado pela interpretação em termos absolutos da “queda” dos átomos no vazio, daí não segue que esta doutrina, tal como enunciada em Lucrécio e retomada ao longo de dois milênios por intérpretes e comentadores do epicurismo, seja, em si mesma, um falso problema filosófico. O critério para aferir a “falsidade” de um problema depende de uma posição filosófica prévia, bem como o interesse filosófico de um debate não se restringe a seu aspecto histórico-documental e à reconstituição “ad auctoris mentem” de um “sistema” de pensamento. O fato de que, mesmo alheia, segundo nós, ao pensamento de Epicuro, a doutrina do clinamen tenha sido associada, ao longo de

38 ib., p. 13 e nota 4.

39 A saber o artigo “Epicurus. His perpendicular universe”, Classical Journal , XLIV, 1948, p. 58-9, de Norman De Witt, conhecido principalmente pelo livro Epicurus and his philosophy, Minneapolis, p. 168, ao qual ela também remete. Há boa resenha das obras de De Witt em O.R. Bloch, Actes VIII Congrès Ass. Budé, p. 95. Ver também a resenha de J. Brunschwig, R. phil., 1957, p. 386.

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dois mil anos de hermenêutica e de reflexão, ao atomismo epicurista, constitui, por si só, uma questão filosófica, que pode ser examinada em termos de uma “bifurcação” do epicurismo, cuja origem seria uma “visão” do movimento atô-mico no infinito, distinta da inspiração original de Epicuro, porque caracterizada pela introdução, na explicação da gênese dos mundos e na interpretação dos fundamentos da liberdade ética, de um princípio ativo de indeterminação.

Exatamente por ser filosófica, esta visão distinta não é inocente. Sustentar, com os partidários do clinamen, que a indeterminação da trajetória atômica seria a condição do encontro dos átomos e/ou a matriz da escolha entre duas condutas opostas (o arbítrio é livre porque os átomos desviam da linha reta), é aceitar que a derrogação das leis da matéria possa perturbar a certeza de que os corpos elementares não contêm desígnios impenetráveis à sabedoria. É manifestamente para conjurar esse efeito perturbador que Lucrécio (cujo projeto filosófico não tinha a pretensão de inaugurar uma nova vertente do epicurismo, mas, ao contrário, defender e ilustrar o do Mestre) insiste, em dois dos versos já referidos, em que o desvio espontâneo deve ser o mínimo necessário:

[...]incerto tempore ferme,

Incertisque locis, spatio decedere paulum, Tantum quod momen mutatum dicere possis. (De rerum natura II, 218-20)

A apresentação da tese do desvio nestes célebres versos é acompanhada, com efeito, de expressões que lhe atenuam o impacto. Em lugar e em tempo incertos, os átomos desviam um pouco a trajetória (“spatio decedere paulum”). Para evitar que os átomos abusassem da liberdade de declinar, provocando um caos carregado de incertezas suscetíveis de perturbar o mais sereno dos sábios, o poeta insistiu em que o desvio seria o mínimo possível: “tantum quod momen mutatum dicere possis” (“o bastante apenas para poderes dizer que mudou”). Parece-nos evidente, entretanto, que mesmo um mínimo desvio introduziria no cosmos um princípio de indeterminação suscetível de afetar a serenidade que traz ao sábio o conhecimento do fundamento das coisas.

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Do ponto de vista da história do atomismo, a introdução, ao lado das duas causas fisicamente determinadas do movimento dos átomos, o peso e os rebotes, de uma terceira, fisicamente indeterminável, que lhes seria intrínseca, configura uma perspectiva “monadológica”. Com efeito, como assinalou Xénia Atanassié-vitch remetendo a pertinente observação de O. Lange, ao atribuir “estados interiores” ao átomo, a doutrina do desvio espontâneo do átomo “transforma-o necessariamente em mônada”40. Embora essa conclusão nos pareça demasiado

enfática, já que Lucrécio reduzia o componente “monadológico” dos átomos ao “decedere paulum” cosmogônico (a faculdade de desviar é apresentada como intrínseca ao átomo, mas corresponde à necessidade extrínseca de que haja encontros), é incontestável que se abre aí uma trilha, pouco suscetível de ser caracterizada de materialista, que será percorrida, em distintos momentos e contextos filosóficos, nomeadamente por Giordano Bruno, Leibniz e o Marx da tese de doutorado41.

Sem dúvida, a filosofia não é escrava dos documentos: seu elemento é a transparência do conceito. Justifica-se, pois que alguns dos mais notáveis comentadores modernos de Epicuro, mesmo reconhecendo que a doutrina do desvio espontâneo está ausente de seus textos conhecidos, consideraram-na parte integrante de seu pensamento, cuja expressão completa estaria, nesta hipótese, em Lucrécio. Assim, Karl Marx, mesmo admitindo, já nos cadernos preparatórios de sua tese de doutorado sobre a Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e em Epicuro, que a doutrina do clinamen só está claramente atestada no poeta romano, considera “indiferente” que ele a tenha “extraído de Epicuro ou inventado”42. O

amálgama entre o Mestre do Jardim e seu ilustre epígono é portanto explicita-mente assumido: hegelianaexplicita-mente desinteressado do aspecto historiográfico do

40 X. Atanassiévitch, op. cit., p. 72.

41 Differenz der demokritischen und epikureischen Naturphisophie, in MEGA I, 1, Dietz Verlag Berlin, 1975.

42 Karl Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, Lisboa, Presença, 1972, p. 18. (A passagem citada pertence ao primeiro caderno preparatório sobre Epicuro, datado do inverno de 1839, Berlim). As traduções de que nos servimos não são satisfatórias. Confrontamo-las sempre com o texto original referido na nota anterior.

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pensamento e, no que concerne às diferenças filosóficas, exclusivamente interes-sado nas que separam Demócrito de Epicuro, trata o epicurismo de Lucrécio como se fosse em tudo conforme ao de Epicuro. O que lhe importa é justificar a interpretação do epicurismo como expressão mais conseqüente da tendência das filosofias helenísticas à afirmação da auto-consciência do sábio face ao cosmos desencantado e a conseqüente libertação dos espíritos subjugados pelo ancestral temor perante a fúria das forças naturais, que eles concebiam, claro, não como naturais e sim como manifestação de paixões divinas.

A hipótese de que a doutrina do clinamen, dominante na hermenêutica, configura uma das compreensões possíveis do atomismo e da ética materialista, que a justo título podemos designar por lucreciana, remete a outra compreensão possível do materialismo antigo, mais fiel ao pensamento de Epicuro, a saber, a que fundamenta a gênese dos mundos e/ou a liberdade da vontade na aglomeração fortuita de átomos que se entrechocaram mecanicamente no vazio infinito. Esta compreensão, originária, sustenta que os átomos, espontaneamente, seguem trajetória retilínea, mudando-a somente pela força de cegos entrechoques e não por iniciativa própria, portanto sem recorrer a uma declinação espontânea. O jogo de palavras se impõe: a doutrina lucreciana do desvio configura um desvio doutrinário relativamente aos textos de Epicuro.

Ao desvelar-nos a radical contingência do destino humano, cuja trama se tece não, como pretendia Demócrito, sob o ditado inelutável da Necessidade eri-gida em lei da natureza, mas sobre o pano de fundo do entrechoque e aglome-ração fortuita dos átomos indiferentes a nosso destino, a física epicurista nos põe diante de nossa liberdade ética, cujo fundamento é a ausência de qualquer telos que nos transcenda. A deliberação incide sobre a contingência do futuro e, portanto se sobrepõe ao efeito mecânico da agitação dos átomos corpóreos.

Em “Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre”, texto que constitui, tanto pelo conteúdo filosófico quanto pela data em que foi escrito (1982)43, peça-chave de seu testamento intelectual, Louis Althusser apóia-se em

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Epicuro e na doutrina do clinamen para discernir, sob o nome de “materialismo aleatório”, “a existência de uma tradição materialista quase completamente desconsiderada (méconnue) na história da filosofia: o ‘materialismo’ da chuva, do desvio, do encontro (rencontre)44 e da pega (prise) ou do dar liga”45 ... Como

tantos outros antes dele, entretanto, inclusive e principalmente o Marx da tese de doutorado, interpreta Epicuro a partir de Lucrécio. Daí a chuva de átomos caindo paralelos no vazio e a conseqüência que dela extrai, “que antes do mundo não havia nada e que ao mesmo tempo todos os elementos do mundo existiam desde toda a eternidade”. Melhor, não interpreta Epicuro. Inspira-se nele para sustentar, grifando, que “a própria existência dos átomos só lhes provém do desvio e do encontro, antes do qual eles só levavam uma existência fantasmagórica”46.

Importa-nos salvar aqui não tanto (embora também) a letra, mas, sobre-tudo o espírito da filosofia de Epicuro. Para ele, o átomo é o ser absolutamente considerado. O que não é corpóreo não é. Althusser força portanto, e muito, a posição filosófica que identifica o ser aos átomos. Interpreta-a como significando a radical gratuidade do mundo, que resulta de um encontro aleatório dos átomos no vazio. Por isso, embora o cerne de seu argumento não seja o clinamen, mas, como ele próprio enfatiza no título de seu ensaio, o “encontro aleatório”, vê no desvio espontâneo a intuição fundante do epicurismo.

Por que o clinamen e não o mero encontro? Porque a “audácia” da filosofia de Epicuro consistiria em sustentar “que a origem de todo e qualquer mundo, portanto de toda e qualquer realidade e de todo e qualquer sentido se deve a um desvio” e portanto em que “o Desvio e não a Razão ou a Causa seja a origem do mundo...”. Dito “em outra linguagem”: o mundo é “fato consumado”, “suspenso

44 A tradução não satisfaz inteiramente. “Rencontre” tem forte conotação de espon-taneidade. Em francês, “marcar um encontro” diz-se “donner rendez-vous”. A conotação aleatória, a idéia do não-previsto, não marcado nem planejado, é essencial ao significado de “rencontre”, mas constitui um sentido secundário da palavra “encontro”, tal como a empregamos.

45 Louis Althusser, op. cit., p. 539-40. 46 Ib., p. 541-42.

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ao encontro aleatório[...] provocado pelo desvio do clinamen”47. A filosofia deixa

de ser “o enunciado da Razão e da Origem das coisas”. Torna-se teoria da contingência, da radical gratuidade. Mas nossa pergunta permanece: não bastaria, para pôr em evidência a radical faticidade do mundo, concebê-lo como resultado da aglomeração mecânica dos átomos? Mesmo porque nem todo encontro de átomos produz aglomeração. Se seus formatos respectivos não os engancham uns nos outros, eles se rebatem e se repelem.

4. A direção dos átomos no vazio

Dentre as contribuições recentes que ambicionaram trazer novos argu-mentos e perspectivas ao debate sobre o epicurismo em geral e o movimento dos átomos no vazio infinito em particular, merecem especial referência aquelas publicadas em revistas de língua inglesa, notadamente em Phronesis, especializada tematicamente na filosofia antiga e metodologicamente na filosofia analítica. Quase todos estes estudos assumem que se pode imputar a Epicuro (sem levar satisfatoriamente em conta que, para este, a infinidade dos átomos movendo-se em todas as direções, dispensa inventar um desvio cosmogônico) tudo que Lucrécio escreveu, inscrevendo-se, portanto na análise do que chamamos a vertente lucreciana do epicurismo48.

Deste viés escapa, em parte, Tim O’Keefe. Após rebater convincente-mente as justificações tradicionais do desvio (swerve) como “Archê of Collisions”, retoma a hipótese de Bignone, de que esta doutrina teria sido elaborada em contexto polêmico, sustentando que constitui réplica a críticas recebidas da escola aristotélica. Ultrapassando o argumento convencional (que pergunta pelo “primeiro choque”, esquecendo de que o movimento atômico é eterno),

47 Ib., p. 541.

48 A disputada questão do desvio espontâneo é o tema central de Elizabeth Asmis, “Free action and the Swerve”, Oxford Studies in Ancient Philosophy, VIII, 1990, que comenta, além do livro de Walker G. Englert, Epicurus on the Swerve and Voluntary Action, uma vasta bibliografia sobre o tema, e de Jeffrey S. Purinton, “Epicurus on ‘free volition’ and the atomic Swerve”, Phronesis, 1996, XLIV (4), 1999.

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transporta a questão para mais além do tempo. Admitamos que cada colisão singular possa ser explicada por colisões anteriores. Faltaria ainda explicar radicalmente porque há colisões (“why there are collisions at all), isto é, porque os tipos de movimento são tais (why there exists these types of motions) em vez de se reduzirem ao retilíneo para baixo49. Embora tenha antes lembrado que Epicuro,

provavelmente levando em conta a observação aristotélica de que “as noções de ‘em cima’ e de ‘embaixo’ não fazem sentido se o universo é infinito em tama-nho”50, supõe, para desenvolver seu argumento, que “se o único movimento

natural fosse retilíneo para baixo (were straight down)”, então “we would expect that the atoms would fall straight downwards, like drops of rain in the night”51.

Esta evocação, em ambiente noturno, da chuva primordial de Lucrécio, é sintoma claro da fonte efetiva de seu raciocínio.

Se não há um “embaixo” absoluto, a hipótese de O’Keefe não tem fun-damento, já que os átomos dirigem-se “para baixo” seguindo uma infinidade de trajetórias não-paralelas e o fato de que são infinitos constitui condição suficiente para que colidam. Tanto assim que Epicuro considera prova evidente de que são infinitos em número o argumento por absurdo de que, se finitos fossem, aí sim, seriam arrastados e dispersos pela imensidão52.

Além disso, como mostrou Marie Cariou, apoiada na estrutura argumen-tativa do segundo livro do De rerum natura, quando expõe, num primeiro tempo (a saber, em II, 80-114), as características do movimento atômico, o poema “não invoca de modo algum a declinação”53. Ao contrário, o verso 93 declara que os

átomos se propagam “in cunctas undique partes”. Note-se a ênfase da expressão (retomada no verso 131): o adjetivo “cunctus”, referido ao substantivo “partes” e regido pela preposição “in” + acusativo, indica que os átomos se dirigem para todas

49 Tim O’Keefe, “Does Epicurus need the Swerve as an Archê of Collisions?”, Phronesis, 1996, XLI (3), p. 314. A ênfase em itálico está no original.

50 Remete a Aristóteles, Física, IV, 8, 215 a 6-10. 51 O’Keefe, ib., p. 314-15.

52 Cf. Carta a Heródoto, §42.

53 Marie Cariou, L´atomisme. Gasendi, Leibiniz, Bergson et Lucrèce, Paris, Aubier, 1978, p. 153.

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as direções no vazio, enquanto o advérbio “undique” reforça a afirmação: eles en-caminham-se pela totalidade destas direções. Só bem mais adiante, quando esta-belece “a existência, nos seres vivos de um poder voluntário que permite escapar à fatalidade e... a correlação entre o que ocorre conosco e o que se passa no nível dos átomos” (versos 251-93) 54, é que Lucrécio introduz a doutrina do clinamen.

Seria o bastante para reabilitar a ortodoxia epicureana do poeta romano? Marie Cariou pensa que sim, interpretando o clinamen como um desvio relativo à queda vertical dos corpos compostos. Os átomos por si mesmos não desviariam, isto é, não mudariam espontaneamente de rota, contrariamente ao que têm entendido quase todos os hermeneutas, ao longo de dois milênios. Só abandonariam a trajetória retilínea “in cunctas undique partes”, relativamente ao movimento vertical dos corpos compostos, que são os que nossos sentidos podem perceber. Mas abandonam-na exclusivamente na medida em que acompanham o movimento para baixo dos corpos compostos em que estão encapsulados. Permanecem, entretanto, constantemente agitados pelo movimento fundamental de “queda para a frente”, o qual assume aspecto vibratório, na medida em que, chocando-se incessantemente contra a barreira que os envolve, descrevem curta trajetória de vai e vem, sempre repetida. Os átomos que correspondem a nossas sensações e idéias, vibram duplamente no composto humano, já que a alma está dentro do corpo e os átomos que nos transmitem as imagens e impressões do mundo estão dentro da alma.

O problema está em que não somente os críticos, mas também o próprio Lucrécio, concebem o clinamen como um desvio dos próprios átomos, portanto como uma declinação espontânea e não apenas provocada por seus entrechoques ou relativa à queda vertical dos corpos compostos. O poeta, com efeito, não poderia dizer mais com mais clareza, nos já referidos e comentados versos II, 221-24, que os átomos desviam espontaneamente, isto é, mudam de direção por conta própria. Podemos, no máximo, conceder ao Lucrécio de Marie Cariou o

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benefício da dúvida, já que, com efeito, a doutrina de II, 80-114 parece compa-tível com a da Carta a Heródoto.

Recusar a espontaneidade do desvio dos átomos implica em sustentar que se movem segundo princípios eternos e imutáveis. Ora, os princípios, no atomis-mo, são os próprios átomos. (O vazio não tem propriedades, salvo ser o imenso nada por onde se movem os corpos). Sabemos que a causa do movimento é o peso. Supor que ele possa propelir as partículas corpóreas para direções quaisquer seria introduzir uma indeterminação generalizada no fundamento mesmo das coisas. É evidente, pois, que o peso exerce um efeito constante, imprimindo aos átomos uma direção determinada. Qual? Antes de mais nada, o movimento é reti-líneo. Esta é, com efeito, a característica a mais fundamental e a única universal, do efeito exercido pelo peso sobre a trajetória dos átomos. Quer se dirijam para baixo, para cima ou para os lados, os corpos vão sempre em linha reta. Pode-se, claro, perguntar por que é retilíneo o movimento cuja causa é o peso. A resposta mais plausível é que, não tendo propriedades, o vazio não pode exercer nenhum efeito sobre a trajetória dos átomos. Eles se deslocam em linha reta porque ela é a menor distância entre dois pontos. Para que dela se desviassem seria necessária a intervenção de uma causa distinta do peso (ou o clinamen, uma não-causa), já que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos e o efeito do peso é propelir os átomos para a frente.

De um ponto dado, entretanto, podem-se traçar infinitas retas, mas, face à infinidade de trajetórias retilíneas possíveis, a trajetória de cada átomo só pode seguir uma delas, à exclusão de todas as outras. A resposta óbvia é que eles se dirigem para baixo. Mas como bem notou Jean-François Balaudé, em sua introdução às obras de Epicuro, “... é claro que os átomos não seguem nenhuma direção absoluta : não caem para baixo do todo, como se tendessem a se depositar no fundo, mas caem relativamente a eles mesmos, devido à não-resistência do vazio”, concluindo que “os átomos, que caem por seu próprio peso, não se dirigem entretanto para baixo”55. A interpretação seria excelente se

55 J.-F. Balaudé, Épicure. Lettres, maximes, sentences. Paris, Librairie Générale Française, 1994, p. 91.

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por “direção absoluta” pudéssemos entender apenas um ponto situado no fundo do vazio, portanto exterior ao átomo, para o qual ele se dirigiria. Mas o átomo, absolutamente considerado (isto é, em si e sem nenhuma relação com outro átomo), segue, segundo Epicuro, uma trajetória para baixo, que é absoluta não somente no sentido de que, determinada pelo peso próprio56, não obedece a

nenhum princípio extrínseco de determinação, mas também, diferentemente do que sustenta Balaudé, no de que sua direção não é qualquer, mas “para baixo”. Com efeito, após notar que a velocidade dos átomos no vazio é a mesma para os mais e os menos pesados (já que não encontram obstáculo algum que os retenha), ele acrescenta: “tampouco é diverso o movimento para cima ou oblíquo, pro-vocado pelos choques, do movimento para baixo causado pelo próprio peso” (h( ka/tw dia\ tw=n i)di/wn barw=n)57.

Mesmo tendo advertido que não se pode predicar o baixo (e o alto) do infinito, Epicuro caracteriza, pois, explicitamente o movimento fundamental, provocado pelo peso, como se dirigindo para baixo (ka/tw), portanto, como queda, para distingui-lo daqueles que, por efeito dos entrechoques, desviam-se para cima ou para os lados. Aquele, por ser fundamental, é perene: os átomos estão sempre “caindo”. Estes são muito prováveis, ocorrem freqüentemente, mas por definição são extrínsecos. Acrescentam-se, mais exatamente, sobrepõem-se, enquanto determinantes da direção, ao fator essencial. Não é, com efeito, somente por terem peso, mas, principalmente, por serem impenetráveis, inalteravelmente compactos, que os átomos, quando não se engancham uns nos outros, rico-cheteiam. A trajetória determinada pelos entrechoques corresponde, portanto, ao efeito composto de duas forças58: o peso próprio, que propele para “baixo” em

linha reta, e a impenetrável solidez dos átomos, que os rebate, quando eles

56 Vale insistir em que, se os átomos não tivessem peso, ou se o peso que tivessem fosse irrelevante para determinar-lhes o movimento, flutuariam no vazio, como supunham Leu-cipo e Demócrito, obrigados a recorrer à hipótese de turbilhões cósmicos para explicar a gênese dos mundos.

57 Carta a Heródoto, §61.

58 Note-se que Epicuro no §61 se serve do termo du/nameij para designar a força do choque.

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colidem sem se juntar, na direção determinada pelo ângulo do entrechoque. A segunda força se sobrepõe à primeira, sem que seus efeitos se confundam. O peso próprio continua a propelir “para baixo”, mas agora esta locução adverbial justifica plenamente as aspas: como o choque dirige os átomos para cima ou para os lados, “para baixo” torna-se sinônimo de “em frente”, isto é, o átomo “cai” na direção para a qual o choque o projetou. A rigor, esta também é a interpretação de Balaudé, quando declara que os átomos caem sem contudo se dirigir para baixo. Mas, assim como “cair” em português, “tomber” em francês significa, no sentido próprio, ser propelido para baixo pelo próprio peso. Se cair para baixo é um pleonasmo, cair, mas não para baixo é um paradoxo (como subir, mas não para cima). Para evitar este modo paradoxal de se expressar, recorremos a “em frente”. Quanto ao fundo, a questão se esclarece ao levarmos em conta que, no vazio infinito, ir para a frente e ir para baixo se confundem.

Por ter interpretado a queda em sentido absoluto, Howard Jones oferece uma análise fundamentalmente equivocada, a despeito de cuidadosa, do caráter “composto” do movimento atômico provocado pelo choque. Sustenta, com efeito, que

...what happens to particular atoms after this deflection” (a saber, aquela “determined by the angle at which the two atoms meet”) “can vary. Some atoms will experience in their new trajectory no further immediate contact which other atoms. In these cases, when the directional impulse which they have received as a result of the blow diminishes, the effect of their weight supervenes and they begin gradually to resume their former path downwards through the void.59

O raciocínio que sublinhamos é sintomático. Porque o “directional impulse” haveria de diminuir? Epicuro afirma claramente na Carta a Heródoto, §61, que no vazio os átomos se movem, quer na vertical, quer na oblíqua, com a velocidade do pensamento, já que não encontram nenhuma resistência. Em si mesma a expressão “impulso direcional” induz a erro. O choque não constitui um “impulso” mas meramente um desvio de trajetória. A força que impulsiona é

59 Howard Jones, The Epicurean tradition, Londres e Nova Iorque, Routledge, 1992, p. 33-4.

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