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FATOS LEGISLATIVOS, AUDIÊNCIA PÚBLICA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: O PODER DA CIÊNCIA NO JULGAMENTO DO CASO DA IMPORTAÇÃO DE PNEUS USADOS

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Academic year: 2021

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Fatos Legislativos, Audiência Pública e o Supremo Tribunal Federal:

o Poder da Ciência no Julgamento do Caso da Importação de Pneus

Usados

Legislative Facts, Public Hearing and the Brazilian Supreme Court: the Power

of Science in the Judgement of the Used Tyres Importation Case

mARGARIDA LACOmBE CAmARGO1

Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Faculdade Nacional de Direito (Departamento de Teoria do Direito), Professora de Teoria do Direito e Metodolo‑ gia nos Cursos de Graduação e Pós‑Graduação (PPGD/UFRJ), Pesquisadora aposentada da Fundação Casa de Rui Barbosa/RJ, Bolsista de Produtividade do CNPq, Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Líder do Grupo de Pesquisa CNPq Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ) desde 2007, Membro do Conselho Universitário e do Conselho de Ensino e Graduação da UFRJ, Pós‑Doutorado pela Fordham School of Law, EUA (2014‑ ‑2015), com bolsa CNPq.

mÁRIO CESAR DA SILVA ANDRADE2

Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ), Pes‑ quisador do Grupo de Pesquisa CNPq Novo Constitucionalismo Latino‑americano.

BERNARDO CAmARGO BURLAmAQUI3

Graduando em Direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), Membro do Grupo de Pesquisa CNPq Observatório da Justiça Brasilei‑ ra (OJB/UFRJ), Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) – UFRJ‑CNPq.

RESUMO: O presente artigo analisa a repercussão de dados técnicos e científicos levantados em au‑ diência pública, em sede de controle de constitucionalidade, realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Partindo do conceito de fatos legislativos, trabalhado por Kenneth Culp Davis, investiga‑se a importância do conhecimento de fatos, cientificamente comprovados, sobre o juízo decisório no con‑

1 <http://orcid.org/0000-0003-0209-8999>. 2 <http://orcid.org/0000-0001-7277-8274>. 3 <http://orcid.org/0000-0003-1042-6526>.

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trole de constitucionalidade das leis. Metodologicamente, a pesquisa qualitativa confronta os argu‑ mentos científicos levados ao STF pelos expositores da audiência pública que subsidiou o julgamento da ADPF 101, conhecida como o Caso dos Pneus Usados, com os votos dos Ministros. O julgamento envolveu controvérsia altamente especializada e que envolve conhecimentos provenientes da Quí‑ mica, da Física, da Engenharia e da Economia. A pesquisa mostra o papel determinante das provas científicas, levadas pelos cientistas em audiência pública, para a tomada de decisão, notadamente, quando da decisão resulta um precedente judicial. Os fatos auxiliam na interpretação da Constituição e na identificação da hipótese normativa da lei infraconstitucional. Em conclusão, aponta‑se que, não raramente, como é o caso, os Ministros e as Ministras do Supremo Tribunal Federal lançam mão do conhecimento especializado de outras áreas para julgar, demonstrando que as provas científicas podem ser essenciais à capacidade de decidir.

PALAVRAS‑CHAVE: Fatos legislativos; direito e ciência; audiências públicas.

ABSTRACT: The present article analyses the repercussion of technic and scientific data collected in public hearing in place of judicial review exercised by the Brazilian Supreme Court (STF). From the concept of legislative facts, developed by Kenneth Culp Davis, it is investigated the importance of the knowledge of scientifically proved facts, about the decision‑making in judicial review. Methodo‑ logically, the qualitative research confront the scientific arguments taken to the STF by the public hearings that subsidized the judgement of the ADPF 101, known as the Case of the used Tyres, exhi‑ bitors, with the Justices’ votes. The judgement involved highly specialized controversies that involve the knowledge of Chemistry, Physics and Economy. The research shows the determinant role of the scientific proofs, taken by the scientists in public hearing, to decision‑making, notably, when a judicial precedent results from the decision. The facts support in the constitutional interpretation and in the identification of the normative hypothesis of the infraconstitutional law. In conclusion, it is indicated that, as it is not uncommon, as in the case, the Justices of the Brazilian Supreme Court utilize the specialized knowledge of other areas to judge, showing that he scientific proofs can be essential to the decision capacity.

KEYWORDS: Legislative facts; law and science; public hearings.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Fatos adjudicativos e fatos legislativos; 2 Fato, evidência e prova; 3 A audiência pública e as provas científicas na ADPF 101; 3.1 Questão 1: Destinação ambientalmente adequada para os pneus usados importados; 3.2 Questão 2: Proliferação da dengue; 3.3 Questão 3: Poluição atmosférica e danos à saúde; 4 A decisão; Conclusão; Referências.

IntRODuçãO

A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) tem recebido cada vez mais atenção, tanto da comunidade jurídica quanto da grande imprensa ou mesmo da sociedade civil. Se, anteriormente, o STF era uma Corte desconhe-cida da população e que raramente aparecia nos noticiários, hoje, a instituição máxima do Judiciário brasileiro está em evidência, seja pela transmissão televi-siva ao vivo de suas sessões, seja pelos julgamentos sobre questões altamente controversas e pelas repercussões de suas decisões na sociedade.

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Nesse cenário, houve um aumento na preocupação da Corte em com-preender os problemas submetidos à sua apreciação, como também em res-guardar suas decisões de críticas por meio de uma mais robusta fundamentação técnico-científica. Os Ministros do STF passaram, assim, a buscar a oitiva pú-blica de diferentes especialistas sobre temas distantes da sua formação jurídica. Encontra-se positivada, nas Leis nºs 9.868/1999 e 9.882/1999, a possi-bilidade de realização de audiências públicas no âmbito do STF. Convocadas pelo Ministro Relator ou pelo Presidente do Tribunal, essas audiências possuem o objetivo legal de recolher informações especializadas, a fim de nutrir a Corte com subsídios necessários para a melhor apreciação da questão sob julgamen-to, a qual envolve elementos que vão além do âmbito estritamente jurídico. Para tanto, nas audiências, é recorrente a participação de médicos, químicos, sociólogos, economistas, antropólogos, entre outros cientistas. Nas contribui-ções dos especialistas, os Ministros buscam ter uma visão mais ampla e consis-tente do que poderia fornecer uma análise limitada à dogmática jurídica.

Porém, surgem algumas dificuldades, sobretudo por se tratar do cam-po da jurisdição constitucional. As decisões do STF são dotadas de ampla re-percussão na sociedade, com impacto no exercício dos mais diversos direitos fundamentais e na vida institucional do Estado Democrático de Direito. O seu alcance faz, então, com que a formação do convencimento dos decisores me-reça especial atenção.

Os argumentos levados pelos especialistas ao STF pretendem-se legitima-dos pela chamada objetividade científica, a qual forneceria uma base de apoio que ultrapassaria a mera valoração subjetiva ou o consenso conjuntural. Assim, o caráter científico que qualifica os argumentos especializados tende a ter um peso peculiar no processo decisório, especialmente no caso de questões contro-versas, de forma a torná-las o mais objetivas possível. Todavia, qual tem sido o efetivo impacto diretivo da contribuição dos especialistas nos julgamentos sub-sidiados por audiências públicas? Há, nas decisões, um verdadeiro predomínio dos argumentos científicos levados ao Tribunal pelos especialistas?

A pesquisa pretende aferir se, diante de questões controversas, os Minis-tros e as Ministras do STF tendem a fundamentar seus votos centralmente em ar-gumentos técnicos e científicos, os quais, uma vez levados ao Tribunal, passam a ter uma eficácia condicionante sobre o livre convencimento dos decisores, tendo em vista a alegada certeza e objetividade das informações especializadas.

Para a análise do papel e desempenho da contribuição dos especialistas nas decisões do STF subsidiadas por audiências públicas, recorre-se à distinção teórica entre fatos adjudicativos e fatos legislativos, trabalhada pelo jurista ame-ricano Kenneth Culp Davis. Partindo-se do diagnóstico da frequência de alusão

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a fatos, qualificados por Davis como legislativos, na fundamentação dos votos dos Ministros do STF, apura-se a utilização deles pela Corte, discriminando também o uso epistemológico do retórico. Partindo dos argumentos levados ao Tribunal pelos especialistas ouvidos, avalia-se em que medida suas falas foram utilizadas ou negligenciadas pelos Ministros na fundamentação de seus votos.

A presente pesquisa, qualitativa, com caráter jurídico-compreensivo, va-le-se de fontes doutrinárias, legislativas e jurisprudenciais, com destaque para a consulta aos registros taquigráficos e em vídeo das falas dos expositores nas audiências públicas, os quais encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do STF, na rede mundial de computadores.

Para a análise pretendida, selecionou-se o julgamento realizado pelo STF da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101, que teve como objeto a constitucionalidade da legislação proibitiva da importação de pneus usados. Tendo em vista o tema essencialmente técnico, em princípio, desprovido de controvérsias morais, filosóficas ou religiosas, esse julgamento apresenta a centralidade científica propícia à investigação proposta.

De início, explora-se o conceito de fatos legislativos, a partir de Kenneth Culp Davis e desenvolvedores posteriores, diferenciando-os dos fatos adjudica-tivos, com o objetivo de mostrar que existe um substrato probatório no controle de constitucionalidade das leis, com características distintas da processualística tradicional. Trata-se, em seguida, da questão da valoração das provas, no sen-tido de investigar se e como tais fatos são destacados pelos magistrados diante de outras provas. Posteriormente, são analisadas as falas dos especialistas nas audiências públicas, a fim de identificar o grau de deferência, convencimento ou persuasão dos argumentos científicos no julgamento. Por fim, analisa-se, propriamente, a repercussão dos argumentos levados ao STF pelos experts na formação da decisão do STF no julgamento da ADPF 101, que tratou da consti-tucionalidade da proibição da importação de pneus usados, com especial aten-ção ao voto da Ministra Cármen Lúcia, Relatora do caso.

1 FAtOS ADJuDICAtIVOS E FAtOS LEGISLAtIVOS

A ciência pretende lidar com fatos relativos à verdade objetiva de acon-tecimentos empiricamente comprováveis. Nas audiências públicas, os especia-listas podem levar à Corte, por meio de exposição oral, conhecimento de natu-reza técnica ou científica, capazes de explicar a realidade: aquilo que existe ou como as coisas são. Tratam-se das provas de fato. Porém, a análise do uso de provas, sobre o livre convencimento motivado dos juízes na esfera constitucio-nal, ainda carece de maior acuidade analítica e até mesmo conceitual, como veremos, relativamente ao seu uso. O direito processual volta-se,

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fundamen-talmente, para o passado, enquanto, no âmbito constitucional, as decisões, de natureza normativa, voltam-se mais largamente para o futuro. Logo, a distinção conceitual entre fatos adjudicativos e fatos legislativos pode ser um significativo contributo para o esclarecimento epistemológico sobre os fatos no controle de constitucionalidade.

Inicialmente, importa expor o conceito de adjudicação, que qualifica a primeira categoria de fatos apresentada por Keneth Culp Davis (1942), quando fala de fatos adjudicativos. O verbo adjudicar se confunde, no Direito, com o ato formal de julgar. O juiz, ao decidir, diz qual é a norma que incide sobre o caso concreto. O autor verifica a hipótese fático-normativa que regula a ação sub judice, apura os fatos alegados, estabelece a correspondência entre hipóte-se e fato, e decide. Assim, ele aplica o direito ao caso concreto.

Adjudicar advém da junção ad + judicatio. Ad, indica “para” e judicatio “julgar”. Portanto, julgar para alguém, ou a favor de alguém, porque adjudicare, em latim, significa premiar. Então, adjudicar, no seu sentido etimológico, signi-fica “julgar em favor de alguém”, ou, como entendido modernamente, reconhe-cer o direito de alguém (Davis, 1955).

O Direito atua, basicamente, sobre o que aconteceu. Quando o autor, ou a autora, de uma ação leva o seu pleito ao juiz, reivindica uma solução jurídica para aquilo que prova ter acontecido. O direito processual considera, assim, fatos pretéritos e que podem ser provados como verdadeiros. Logo, os fatos que interessam ao processo de adjudicação, ou seja, de dizer o direito para o caso concreto, correspondem a eventos que já aconteceram. Nesse sentido, abre-se toda uma discussão conceitual sobre provas, fatos, meios de prova e verdade no Direito, que passa pela distinção entre fatos brutos e fatos institucionais, conforme acentua Michele Taruffo (2014). O Direito se enquadraria nesta últi-ma categoria, na medida em que “o que se prova ou se demonstra no processo judicial é a veracidade ou falsidade dos enunciados acerca dos fatos em litígio” (Taruffo, 2014, p. 18), sendo que os fatos em litígio ou os fatos da causa “são necessariamente determinados em normas jurídicas que são aplicadas com o objetivo de solucionar o caso” (Taruffo, 2014, p. 17).

Porém, se acrescentamos uma perspectiva consequencialista, os fatos que mostram o mundo real, agora, independentemente dos limites do caso con-creto, podem fazer sentido para o julgador. Keneth Culp Davis (1980, p. 932), administrativista norte-americano, verifica que os fatos, no processo decisório das agências reguladoras, de natureza técnica e normativa, voltam-se para o futuro. Em razão do que denomina de fatos legislativos aqueles utilizados para se compreender a realidade de agora a ponto de se criar o Direito, ainda que provocado por uma determinada demanda. Davis chama a atenção que, no Direito, os fatos também são utilizados prospectivamente.

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When a court or an agency finds facts concerning the immediate parties-who did what, where, when, how and with what motive or intent-the court or agency is performing an adjudicative function, and the facts so determined are convenien-tly called adjudicative facts. When a court or an agency develops law or policy, it is acting legislatively; the courts have created the common law through judicial legislation, and the facts which inform the tribunal’s legislative judgment are cal-led legislative facts. (Davis, 1942, p. 402)

No Brasil, com o advento das audiências públicas pelo Supremo Tribunal Federal, os fatos chegam à Corte pela fala dos especialistas de forma a ajudar os juízes a decidir. No controle de constitucionalidade das leis, o aspecto norma-tivo das decisões aflora com toda a sua força. Aplica-se a Constituição ao caso concreto, que, no controle abstrato, tem como objeto uma norma, sobre a qual deverá ser emitido um juízo de constitucionalidade. No controle incidental, o recurso à Corte Constitucional acaba provocando, por força da hierarquia, uma decisão que transcende as partes, na medida em que cria um precedente judi-cial a se impor sobre os demais Tribunais do País.

O controle de constitucionalidade é, essencialmente, de natureza nor-mativa. Mostrar se a lei infraconstitucional está ou não em conformidade com a Constituição ou decidir sobre um caso concreto com parâmetro constitucional afeta a ordem jurídica positiva. Verificar, então, como os fatos que provam a existência de uma realidade, e se mostram indispensáveis para a interpretação e aplicação da Constituição, chegam à Corte e como, na medida do possível, eles são considerados pelos Ministros, no seu mister de julgar, é o nosso desafio.

Quando os Tribunais decidem sobre uma hipótese normativa, ela va-lerá, como não poderia deixar de ser, para o futuro. Os fatos que lhe deram origem, com possibilidade de se repetir no futuro, servem de substrato à ação do juiz, inclusive sob uma perspectiva consequencialista4. Logo, recorremos ao

conhecimento dos fatos não apenas para dizer quem fez o quê, quando, onde, como e porquê, como tradicionalmente no direito processual (Davis, 1942, p. 402). Contudo, também, para verificar o que a norma em consideração regu-lamenta, no controle abstrato, ou qual o direito que está sendo resguardado, nos casos concretos, tendo em vista a Constituição. Se é esperado que o Direito regulamente fatos concretos da vida, é necessário conhecê-los. E os juízes que compõem as cortes constitucionais atuam de maneira semelhante aos legisla-dores, ainda que não tenham a mesma liberdade de escolha, política, porque

4 O consequencialismo, no Direito norte-americano, é explicado por Richard Posner como um viés tipicamente pragmático. O pragmatismo corresponderia a uma guinada empirista em oposição à matriz europeia das verdades últimas. “They advocate a radical empirism in which propositions would be evaluated by their

observable consequences rather than by their logical antecedents – advocated, in other words, an extension of the scientific method into all areas of inquiry” (Posner, 2008, p. 231).

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adstritos aos limites, tanto da Constituição quanto da norma impugnada como inconstitucional.

O desafio é verificar o diálogo que juristas e cientistas estabelecem nos Tribunais, tomando como base, para isso, as audiências públicas, e qual a di-mensão institucional dos fatos legislativos, notadamente, na esfera constitu-cional.

Esclarecer os fatos pela luz que emana das Constituições é revelar uma perspectiva legislativa que faz com que o caráter contramajoritário das deci-sões do STF, no controle de constitucionalidade, exija uma carga argumentativa maior, por parte dos juízes, e fundamentações mais consistentes, de forma a sustentar a legitimidade de suas decisões. Nesse aspecto, o apoio do conheci-mento especializado também pode ser de grande valia, pois que, pela sua pró-pria essência, ou pelo menos em princípio, mostra-se apto a afastar polêmicas de natureza valorativa sobre a realidade à qual se volta o Direito.

David Faigman, da Universidade da Califórnia (2008, p. 117-118), de-senvolve as categorias de Keneth Culp Davis em uma realidade de sistema de precedentes, típica dos países de common law. Na medida em que as decisões dos Tribunais são dotadas de força vinculante, o aspecto normativo apresenta--se em todas elas. A diferença estaria mais no grau de abstração do que a de-cisão alcança, em correspondência à hierarquia e à competência do Tribunal. Na primeira instância, é onde os fatos e as provas são apurados, e, na segunda instância, onde, teoricamente, o direito adjudicado é revisado à luz dos fatos e das provas apuradas. Nos Tribunais Superiores, especialmente no constitucio-nal, a dimensão normativa é mais acentuada, pois, mesmo quando a matéria apreciada é circunscrita às partes e o julgamento depende da apuração de fatos sobre o passado, seus efeitos são erga omnes e o alcance do precedente é maior.

A key distinguishing feature between legislative and adjudicative facts is the level of decision making at which the asserted facts are relevant. Whereas legislative facts ordinarily relate to matters that transcend individual disputes and would likely recur in different cases involving similar subjects, adjudicative facts ordina-rily are peculiar to a particular case. (Faigman, 2008, p. 44)

As atenções de Faigman (2008) recaem mais sobre a Suprema Corte, onde os fatos legislativos incidem com mais força. Os fatos adjudicativos se cir-cunscrevem às partes e ao caso concreto, enquanto os fatos legislativos, como o próprio nome sugere, abrangem um maior número de casos. Os fatos adju-dicativos são regidos pelas regras do processo: “Legislative facts are usually the subject of expert testimony and extensive briefing” (Faigman, 2008, p. 44-45). De certa forma, os fatos legislativos são aqueles que não mais se veem circuns-critos ao caso concreto, alcançando uma dimensão política, de policy.

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Gilmar Mendes (2001) foi quem no Brasil primeiro destacou a existência dos fatos legislativos, a partir da teoria e da experiência alemã, a pretexto da justificação que traz ao projeto que deu origem à Lei nº 9.868/1999, na parte (arts. 9º, § 1º, e 20, § 1º) que autoriza o Relator, ou a Relatora, “em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notó-ria insuficiência das informações existentes nos autos, a requisitar informações adicionais” (Brasil, 1999), a designar perito ou comissão de peritos ou convocar audiência pública, para ouvir depoimento de pessoas com experiência e autori-dade na matéria. Ao contrário da distinção normalmente feita entre questão de fato e questão de direito, Gilmar Mendes acredita que exista uma comunicação entre norma e fato, a ponto de “a verificação desses fatos relacionar-se, íntima e indissociavelmente, com a própria competência do Tribunal” (Mendes, 2001, p. 12). Por isso, há muito tempo, parte da dogmática jurídica aponta como tri-vial à própria metodologia jurídica “a inevitabilidade da apreciação de dados da realidade no processo de interpretação e aplicação da lei”, como ocorre na Alemanha (Mendes, 2001, p. 13). E não à toa Gilmar Mendes (2001) fala em fatos e prognoses legislativas.

David Faigman (2008), a seu turno, cria uma taxonomia para o que passa a chamar de fatos constitucionais, e que nos permite compreender melhor esse fenômeno. Como a investigação dos fatos que servem de substrato à norma constitucional é, em última instância, uma questão de interpretação, vale falar-mos em: (1) fatos constitucionais doutrinários; (2) fatos constitucionais revisá-veis; e (3) fatos específicos para o caso. Os últimos, mesmo que necessários à compreensão de um caso que chegue à Corte Constitucional, ajudam a elucidar o caso concreto e são do interesse exclusivo das partes. Apura-se o que aconte-ceu, para aplicar adequadamente a Constituição ao caso concreto. No caso da comprovação da ofensa de algum direito fundamental, por exemplo, a parte é responsabilizada.

Os fatos constitucionais doutrinários ajudam na interpretação do direito constitucional a partir do que a doutrina tradicionalmente sustenta. Possuem o grau de abstração necessário para dar conta da vagueza própria do texto cons-titucional e validar regras e standards infraconstitucionais.

Os fatos constitucionais revisáveis são aqueles mais adstritos a um con-texto presente e que pode ser melhor descrito pelos especialistas. Oferecem maior apoio à decisão, mas sofrem os percalços da ciência: revisão do teste de falibilidade, divergências de natureza metodológica e demais alterações pró-prias do avanço do conhecimento (Faigman, 2008).

Na visão do autor, isso passa a ser um problema na medida em que, uma vez alterados os fundamentos que serviram de justificativa à

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constitucionalida-de ou à inconstitucionalidaconstitucionalida-de constitucionalida-de uma lei, como fazer para que essa constitucionalida-decisão se mantenha válida e não comprometa o sistema de precedentes (Faigman, 2008)?

Nesse sentido, a Corte Constitucional deve distinguir, segundo Faigman (2008), entre os fatos que cabem ser reafirmados e aqueles que devem ser revi-sados ou superados. O Tribunal Constitucional pode reafirmar fatos aceitos para a decisão de casos anteriormente apreciados ou indicar a necessidade de que novos fatos sejam apresentados, evidenciando a relevância da doutrina e dos precedentes e sua relação com os dados fáticos.

Por tudo, afere-se que os fatos legislativos podem desempenhar signifi-cativo papel no controle de constitucionalidade, corroborando o que foi res-saltado por Kenneth Culp Davis e Gilmar Ferreira Mendes, sobretudo porque, quando da definição da interpretação constitucional que deverá ser dotada de vinculatividade para as instâncias judiciais inferiores e para a Administração Pública, o Tribunal Constitucional estabelece os fatos legislativos que são rea-firmados ou superados (Faigman, 2008).

Contudo, se os fatos correspondem àquilo que se mostra como verdadei-ro, vale procurar diferenciar fato, prova e evidência, vez que todos nos remetem à objetividade de acontecimentos empiricamente verificáveis (Greco, 2004), de forma a melhor trabalhar com esses conceitos.

2 FAtO, EVIDÊnCIA E PROVA

Ainda que podendo assumir significados diversos, em diferentes autores e áreas de conhecimento, para os fins da presente pesquisa, o termo evidência designa a apreensão de fato manifesto ao exame de qualquer pessoa, podendo ser visto e verificado por qualquer observador, sem a necessidade de recursos especializados ou dados adicionais. Evidência inclui a percepção sensorial, a memória sobre a percepção sensorial anterior e o raciocínio inferencial, como afirma Rachel Herdy (2014, p. 130). O desabamento de um prédio, por exem-plo, torna-se evidente pelo seu próprio acontecimento, sendo constatável por qualquer observador que tenha presenciado o ocorrido. Nesse sentido, uma evi-dência prescinde de prova, exatamente por estar manifesta e ser imediatamente verificável (Perelman, 1997).

Nos sistemas de common law, o termo evidence designa elemento ou meio de prova, e proof (prova) designa o resultado, a verdade judicial, isto é, “quando existem boas razões para crer que tal fato seja verdadeiro” (Taruffo, 2014, p. 33). E como destaca Marina Gascón Abellán (2010, p. 76), “o objeto da prova não são fatos, mas enunciados sobre fatos”. Juridicamente, então, pro-va designa o meio de demonstrar a veracidade de um fato alegado. Por meio da reunião de provas, o julgador forma sua convicção sobre o que de fato, ou

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verdadeiramente, aconteceu: decide sobre o que deve crer para sustentar a hi-pótese que constrói, à luz das informações e provas existentes5.

Assim, evidência e prova não são sinônimos, ainda que a confusão entre os dois conceitos seja comum, principalmente por um problema de linguagem e, muitas vezes, de tradução. Nessa linha, uma evidência pode funcionar como um elemento ou meio de prova, o que, em português, é vulgarmente chamado de prova (Herdy, 2014, p. 122-123). Maior acuidade, entretanto, esses termos devem assumir, quando relacionados ao pensamento científico, extraído que é da observação e da verificação empírica, somado ao problema, conforme procuramos destacar, a importância que as provas científicas possuem para o esclarecimento das hipóteses previstas na Constituição.

E sobre o uso dos termos evidência e prova, seguem mais uma vez os esclarecimentos de Herdy (2014, p. 123):

Primero, uno identificará el empleo de palabras distintas para hacer referencia a una misma idea. “Evidencia” (en la epistemología) y “prueba” (en el derecho) indican la idea de conocimientos en general que pueden ser usados como premi-sas. Segundo, uno podrá identificar, en el ámbito exclusivamente jurídico, el em-pleo de una única palabra para hacer referencia a ideas distintas. “Prueba” signi-fica, a la vez, medio de prueba y resultado. De manera a evitar la proliferación de confusiones y buscar mayor precisión terminológica, usaré la expresión “medio de prueba” en las pocas referencias que hago a la idea de “evidence” en el de-recho. Sin embargo, ambos términos deben ser comprendidos como indicadores de la misma idea en sus respectivos campos de aplicación, es decir, la idea de un medio que puede ser usado como premisa hacia la formación de una creencia o decisión sobre hechos, y que merece ser distinguido de su posible resultado.

De acordo com Greco (2004), a convicção do julgador é construída a partir de fatos, enquanto acontecimentos da realidade objetiva. Na prática jurí-dica, fato e evidência aproximam-se, na medida em que esta última nada mais é do que um fato evidente, isto é, de veracidade verificável per se. Assim, um fato pode ser evidente (evidência) ou ser comprovado por meio de processos empíricos de teste e verificação, como as análises científicas de dados.

Devido a tais relações conceituais, a evidência pode ser apreendida ju-ridicamente da mesma forma que o fato, visto que a ligação entre o aconteci-mento e a sua constatação funda-se na apreensão imediata da realidade, obje-tificando a conclusão da certeza de sua verdade (Perelman, 1997, p. 154-156).

5 Marina Gascón Abellán trabalha o tema da valoração das provas partindo do princípio de que “la valoración

de la prueba es el núcleo de la decision probatoria y consiste en determiner lo que hay que creer sobre la hipótesis en consideración. Valorar la prueba científica, por conseguiente, consiste en atribuirle valor probatorio en relación con la hipótesis que descrive los hechos del caso” (Vázquez, 2013, p. 196).

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A evidência tem o papel de fornecer uma garantia aos argumentos cien-tíficos em sua contraposição a argumentos ligados à tradição (Arenhart, 2005).

Enquanto elementos extraprocessuais fundamentais para subsidiar a me-lhor apreciação do caso pelo julgador, os fatos podem ingressar no processo como evidências, na qualidade de dados objetivos imediatamente verificáveis e, como tais, prescindíveis da intermediação de especialistas. Para Sérgio Cruz Arenhart (2005, p. 94), as evidências se mostram essenciais para qualquer tipo de conhecimento, pois o raciocínio depende de algo que possa assegurar, em última instância e de modo suficiente, as afirmações científicas, principalmente quando estas se opõem a diversas e contrapostas opiniões. Já a produção de provas demanda processo mediato de verificação, por vezes, qualificado pela necessidade de conhecimento científico especializado. Nesse sentido, falar-se em prova pericial como a produzida por médicos legistas, engenheiros, quími-cos, físiquími-cos, etc. O processo de comprovação envolve a interpretação dos acon-tecimentos a partir de determinados conhecimentos, na construção racional e retrospectiva de ligações empiricamente justificadas (Greco, 2004). As provas são um conjunto interpretativo de fatos que são levados ao processo e que con-tribuem para o convencimento do juiz, o que envolve inescapável carga argu-mentativa e pretensão persuasiva (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2001, p. 18-19). As provas informam dados verificados ou cientificamente interpretados, permitindo a realização de inferências empiricamente justificadas e, conse-quentemente, a tomada de decisões racional e faticamente fundamentadas. Em uma visão mais ampla, o conceito de prova pode abarcar a própria argumenta-ção baseada em deduções, induções, máximas de experiência ou presunções (Greco, 2004, p. 229-230).

Chaïm Perelman (1997) defende que as provas não devem ser reduzi-das a uma categoria meramente analítica, como se constituíssem apenas ins-trumento para, a partir de evidências apresentadas, proporcionar uma decisão. As provas são suscetíveis a distintas possibilidades de interpretação, as quais, entretanto, podem permitir uma decisão suficientemente segura, desde que haja convergência ou verossimilhança entre as variadas interpretações. Para Perel-man (1997), deste modo, os fatos, bem como as evidências, não carecem de qualquer ferramenta retórica para serem o que são. Um fato já o é antes mesmo de ser percebido, tendo a evidência maior importância como critério de verda-de, já que, dotadas de maior grau de objetividaverda-de, se comparadas às provas.

A prova envolve, assim, uma essencial carga argumentativa, além de guardar intrínseca conexão com a evidência, na medida em que busca se am-parar em um conjunto de proposições consideradas evidentes (Perelman, 1997, p. 164-165).

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Pode-se traçar um alinhamento entre evidência e prova. Perelman (1997) entende que as provas, enquanto resultado de interpretação especializada, tor-nam-se possíveis apenas pelas evidências, porque são estas que amparam uma tese, a qual não deve se fundamentar apenas em intuições ou suposições.

Portanto, após essa análise comparativa das definições de fato, evidên-cia e prova, pode-se delimitar, com suficiente consistênevidên-cia epistemológica, os respectivos conceitos, para os fins da presente pesquisa. O temo fato designa o dado da realidade objetiva e sensível, o acontecimento em si mesmo, que, en-quanto tal, precede a percepção humana, podendo ser dela objeto de conheci-mento. Por sua vez, evidência define o conhecimento decorrente da percepção imediata da realidade, uma inferência imediatamente verificável por qualquer observador sem a necessidade de saberes especializados e dados adicionais, sendo evidente por si mesma. Já prova conceitua o conhecimento oriundo da interpretação de um ou mais dados da realidade, mediante a aplicação de um saber especializado, não incluído nas máximas da experiência acessíveis a to-dos. Percebe-se que, como parte da realidade sensível, o fato constitui objeto da percepção humana, logo, matéria-prima, tanto da evidência quanto da pro-va. Porém, enquanto a evidência é uma inferência imediatamente verificável por qualquer pessoa, a formação da prova envolve a necessária intermediação de um processo argumentativo, em que um fato (um dado ou acontecimento da realidade) é interpretado com base em um conhecimento empírico, técnico e/ou científico.

3 A AuDIÊnCIA PÚBLICA E AS PROVAS CIEntÍFICAS nA ADPF 101

Para a análise da repercussão dos dados científicos, com suas evidências e provas, nos votos dos Ministros do STF recortou-se como campo de investi-gação o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101, finalizado em 24 de junho de 2009.

A ADPF 101 foi ajuizada pela Presidência da República, com o objetivo de sanar controvérsia quanto à constitucionalidade da proibição da importação de pneus usados. A despeito de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de portarias do Departamento de Operações de Comércio Exterior (Decex) e da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e de decretos federais, vedando a citada importação, recorrentes decisões judiciais eram pro-feridas em sentido contrário (Brasil, 2009).

A audiência pública foi convocada pela Ministra Cármen Lúcia, Relatora do processo, a fim de que o Tribunal pudesse ser instruído com informações de especialistas sobre a possibilidade de destinação ambientalmente adequada aos pneus usados importados pelo Brasil. É usual que, nos casos em que haja dúvida

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quanto à circunstância de fato, e não de direito, o Ministro Relator de um pro-cesso convoque audiência pública, conforme previsto no art. 9º da Lei nº 9.868 (Brasil, 1999). Isto acontece, de maneira geral, quando há questões técnicas e/ou científicas, as quais, em razão de sua natureza, ultrapassam o âmbito da formação jurídica dos Ministros do STF.

O caso da ADPF 101 constitui significativo exemplo de como os argu-mentos de especialistas, sobre uma realidade fática que conhecem, chegam ao conhecimento do Tribunal, e de como os Ministros e as Ministras se utili-zam dessas informações para a formação de sua convicção. Marina Gascón Abellán trabalha o tema da valoração das provas partindo do princípio de que “la valoración de la prueba es el núcleo de la decision probatoria y consiste en determiner lo que hay que creer sobre la hipótesis en consideración. Valora la prueba científica, por conseguiente, consiste en atribuirle valor probatorio en relación con la hipótesis que descrive los hechos del caso” (Vázquez, 2013, p. 196). Portanto, há de se indagar, nesse aspecto, qual a hipótese construída pelos julgadores, tendo como base a Constituição, para justificar as escolhas que fazem sobre as provas trazidas em juízo.

A partir da análise dos votos e dos argumentos dos especialistas, esse jul-gamento pode ajudar a mostrar como a ciência entra no Direito e como a Corte Constitucional se utiliza das evidências e provas trazidas pelos especialistas.

Na audiência pública realizada no dia 27 de junho de 2008, treze espe-cialistas sobre temas relacionados ao problema levado à Corte pela ADPF 101 foram selecionados com base no despacho convocatório feito pela Relatora do caso, Ministra Cármen Lúcia. Variadas teses apresentadas, como as de natureza econômica, que se referem aos postos de trabalho existentes na indústria bra-sileira de recauchutagem de pneus; as de ordem internacional, referentes ao entendimento de organizações internacionais ou tratados multilaterais; e as de ordem ambiental, que tratam da destinação dos pneus importados, bem como dos possíveis danos que seu descarte pode causar ao meio ambiente (Brasil, 2009).

A presente pesquisa concentra-se nos argumentos de ordem ambiental, por se referirem a um direito fundamental protegido constitucionalmente, ponto central da discussão, e por depender de um tipo de conhecimento que foge completamente da formação dos magistrados. Ganharam destaque os argumen-tos relativos às ciências naturais, especialmente à Química. E é nessa perspec-tiva que é possível identificar como aquilo que a Química prova existir serviu de justificativa à norma decorrente do processo de tomada de decisão. Se não restasse provado o fato de que a importação de pneus usados efetivamente pre-judicasse o meio ambiente e, consequentemente, a saúde, a norma que proíbe a

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importação de pneus usados não se mostraria como decorrente da interpretação e aplicação da Constituição.

As controvérsias científicas envolvidas no julgamento da ADPF 101 con-centraram-se, basicamente, em torno de 3 pontos: (1) a existência de destina-ção ambientalmente adequada para os pneus usados importados, (2) a possível proliferação de mosquitos vetores da dengue; e (3) a poluição atmosférica e os danos à saúde provocados pela queima dos pneus usados inservíveis.

3.1 Q

uestão

1: d

estInAçãoAMbIentAlMenteAdeQuAdApArAospneususAdosIMportAdos

Um dos argumentos levantados na exposição oral da Coordenadora de Gestão Ambiental do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), Zilda Maria Veloso, consolidou-se como base para diversos outros argumentos, en-contrando ampla acolhida pelos Ministros: o de que, pelo menos, 30% dos pneus importados são inservíveis, não podendo nem mesmo ser recauchu-tados, consistindo, portanto, lixo impossível de reutilização (Brasil, 2008, 42:31-42:526).

A liberação da importação de pneus usados interessava às indústrias bra-sileiras de recauchutagem de pneus, que, dessa forma, obtinham matéria-prima, principalmente importada da Europa, alegando motivos econômicos. No entan-to, pneus inservíveis não são passíveis de recauchutagem.

Os defensores da importação, como o Presidente da Associação Brasilei-ra da Indústria de Pneus Remoldados, FBrasilei-rancisco Simeão, argumentaBrasilei-ram contBrasilei-ra- contra-riamente ao Ibama e ao Conama, afirmando existir destinação ambientalmente adequada mesmo para os pneus inservíveis, que seria a sua utilização como combustível de fornos de fábricas de cimento (Brasil, 2009).

Contudo, a Conselheira do Conama, Zuleica Nycs, mostrou que a quei-ma de pneus nos fornos de fábricas cimenteiras gera poluição ambiental, em razão da liberação de gases poluentes na atmosfera (Brasil, 2008, 29:04-29:40).

Da análise do acórdão afere-se que a soma dos fatos informados por es-ses especialistas colaboraram, decisivamente, para a formação de, pelo menos, 4 (quatro) Ministros (Brasil, 2009).

As Ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie, e os Ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes manifestaram-se, especificamente, sobre os fatos,

6 Diferentemente do ocorrido nas audiências públicas referentes a outras ações, no caso da ADPF 101, as exposições orais dos especialistas não foram degravadas, não havendo, portanto, notas taquigráficas produzidas pelo próprio STF. Em razão disso, nesta pesquisa, as referências a manifestações orais foram feitas a partir da gravação em vídeo das audiências públicas, explicitando o intervalo em que consta a fala aqui transcrita.

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concluindo pela inadequação da queima de pneus, em razão da alteração dos níveis de poluição ambiental resultantes da emissão de gases tóxicos, em par-ticular dos dióxidos de enxofre e amônia, causadores do fenômeno conhecido como chuva ácida (Brasil, 2009, p. 78)7.

A dinâmica da audiência pública limitou-se à sucessão de exposições orais individuais, sem qualquer interação entre os presentes, o que impediu que certas contradições pudessem ser elididas pelos próprios especialistas. Nas audiências públicas, deve ser garantida equivalência de representantes das te-ses contrárias, mas, diferentemente do que ocorre comumente nos congressos científicos, não é dada oportunidade de os especialistas se contraporem direta-mente, sendo limitados a deixarem os seus testemunhos.

A audiência pareceu ter cumprido o objetivo de fornecer informações especializadas aos magistrados, mas não foram capazes de sanar as inconsistên-cias das manifestações dos expositores.

Do acórdão, depreende-se que os Ministros se mobilizaram, em especial, com a prova de inexistência de destinação ambientalmente adequada para os pneus usados, especialmente para os inservíveis. Não se ocuparam das possí-veis insubsistências dos argumentos contrários, limitando-se a negligenciá-los, ao menos formalmente, o que pode ser compreendido pela subjetividade típica do processo de valoração das provas.

3.2 Q

uestão

2: p

rolIferAçãodAdengue

Cinco expositores mostraram que a importação de pneus usados contri-buiria para a proliferação de mosquitos vetores da dengue. O representante do Ministério da Saúde e Coordenador do Controle da Dengue, Haroldo Sérgio da Silva Bezerra, afirmou que uma das espécies de mosquito transmissor da den-gue não era encontrada no Brasil antes da década de 80, quando a espécie foi introduzida no País. Segundo o expositor, essa espécie, proveniente do sudeste asiático, pode ter sido introduzida em pneus importados (Brasil, 2008, 34:53- -35:20).

O então Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, atribuiu à importação de pneus uma maior proliferação da doença nas últimas décadas, visto que os pneus descartados servem de abrigo e local de depósito de ovos dos mosquitos vetores da dengue (Brasil, 2008, 38:20-38:27).

7 A fundamentação baseada neste fenômeno é vista no voto da Ministra Cármen Lúcia (Brasil, 2009, p. 78): “Em resumo, o ponto negativo desse tipo de destinação dada aos pneus é que produz poluição ambiental, pois nesse processo são emitidos gases tóxicos, em especial o dióxido de enxofre e a amônia, que, em contato com as partículas de água suspensas no ar, provocam o fenômeno denominado chuva ácida”.

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Nesse ponto, há duas questões de ordem fática: a primeira, relativa à possibilidade de a importação de pneus, por si só, introduzir novas espécies de mosquitos transmissores da dengue; e a segunda, que resulta da conclu-são de que a permisconclu-são da importação, e o consequente aumento do descarte de pneus, aumentará o número de abrigos para a reprodução dos vetores da doença.

A Ministra Cármen Lúcia considerou os dois argumentos, ressaltando as pesquisas existentes e as estatísticas capazes de comprovar o fato de que pneus usados e descartados irregularmente contribuem significativamente para a proliferação da dengue (Brasil, 2009, p. 105):

Entretanto, as pesquisas e as estatísticas são taxativas ao comprovar os riscos à vida acarretados pelas doenças tropicais, em especial a dengue, que tem como uma de suas principais causas exatamente a presença de resíduos sólidos, como os pneus, não utilizados e não descartados de forma a garantir a salubridade.

Nesse ponto, o voto da Ministra Relatora foi seguido pelos Ministros Joaquim Barbosa (Brasil, 2009, p. 222), Gilmar Mendes (Brasil, 2009, p. 260) e pela Ministra Ellen Gracie (Brasil, 2009, p. 233-234).

Cabe ressaltar que, do fato de que os pneus descartados no meio ambien-te servem à reprodução de mosquitos transmissores da dengue, não é possível inferir que a importação de pneus usados aumentará, necessariamente, tal des-carte irregular. A relação consequencial somente pode ser estabelecida pela adição de outros fatores, como a insuficiência da absorção dos pneus impor-tados pelas fábricas de recauchutagem e pelos fornos das fábricas cimenteiras, para os quais, entretanto, não foram apresentadas provas.

3.3 Q

uestão

3: p

oluIçãoAtMosférIcAedAnosàsAúde

Outro fato alegado pelos expositores contrários à importação de pneus usados foi o de que a queima de pneus emite substâncias que causam danos ao meio ambiente e à saúde (Brasil, 2008).

Os representantes do Ibama e do Conama destacaram que a utilização de pneus inservíveis como combustível dos fornos de fábricas cimenteiras não é uma destinação ambientalmente adequada. Segundo esses especialistas, a quei-ma de pneus libera na atmosfera gases tóxicos, em especial dioxinas e furanos, substâncias de difícil degradação e, por isso, prejudiciais à natureza e aos indi-víduos, devido ao seu potencial cancerígeno. Destacaram, ainda, o fato de que o Brasil é signatário da Convenção de Estocolmo, que estabelece como meta a eliminação da emissão de poluentes organicamente persistentes (POPs), catego-ria que inclui dioxinas e furanos (Brasil, 2008, 29:58-30:26).

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O Ministro do Meio Ambiente e o Subprocurador da República, Mário José Gisi, também sustentaram a tese da emissão de gases tóxicos e canceríge-nos, ainda que sem citar a Convenção de Estocolmo. O primeiro trouxe o exem-plo de cidades no entorno do polo de Cantagalo, no Estado do Rio de Janeiro, onde a população apresentou maior frequência de problemas respiratórios, por ter a saúde afetada pela proximidade de polos cimenteiros que utilizam a quei-ma de pneus usados como combustível de seus fornos (Brasil, 2008, 24:39- -25:09). O segundo apresentou estudos de analistas da 4ª Câmara do Ministério Público Federal comprovadores de que os filtros das chaminés dos fornos das indústrias cimenteiras não são capazes de impedir a liberação das emissões poluentes (Brasil, 2008, 37:25-38:11).

Há, entretanto, uma importante incompatibilidade entre os fatos levados às audiências públicas, principalmente diante das exposições orais do Presiden-te da Associação Brasileira da Indústria de Pneus Remoldados (Abip), Francisco Simeão, e do representante do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), Vitor Hugo Burko. O primeiro alegou que os dados expostos pelo Ibama distorcem a reali-dade, uma vez que dioxinas e furanos são destruídos a 1.400ºC, temperatura al-cançada nos fornos cimenteiros. Assim, tratando-se especificamente da queima por fábricas de cimento, não haveria a emissão dos referidos POPs na atmosfera (Brasil, 2008, 12:12-12:48). Ressalte-se que, em razão da destruição dos refe-ridos compostos tóxicos em alta temperatura, a capacidade ou incapacidade de filtragem das chaminés dos fornos não seria o ponto decisivo. O segundo valeu-se de outra argumentação. O representante do IAP buscou diminuir a im-portância dos dados apresentados, sob a alegação de que dioxinas e furanos são emitidos pela combustão de diversos outros materiais, nas mais diversas e coti-dianas atividades, como, por exemplo, churrascos (Brasil, 2008, 12:12-12:48).

A contradição dos dados mostra ser impossível que ambos os lados este-jam certos: ou dioxinas e furanos são destruídos a 1.400ºC ou não são. Porém, a audiência pública não pareceu ter sido útil para dirimir esse tipo de controvér-sia. Se, por um lado, as audiências servem para trazer certeza sobre algo desco-nhecido, as contradições que apresentam acabam produzindo novas dúvida8.

Não havendo a oportunidade de debates, onde a crítica pode se desenvolver, contradições podem permanecer, dificultando a atuação dos juízes e abrindo a possibilidade para mais incertezas, na medida em que aparecem argumentos científicos em sentidos, por vezes, contrários.

8 O Direito norte-americano procura contornar esse tipo de problema ao estabelecer critérios de aceitação de especialistas. O Caso Daubert, 1993, é o leading case da matéria.

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4 A DECISãO

Toma-se como referência para a análise da decisão, com certa ênfase, o voto da Ministra Cármen Lúcia, uma vez que corresponde à tese que liderou a discussão, não havendo divergências significativas em plenário. Tendo sido a Ministra Relatora da ADPF 101 e quem convocou a audiência pública para sub-sidiar o julgamento, acredita-se ser seu voto o mais significativo e o mais rico na argumentação, tendo subsidiado, inclusive, a ementa do acórdão.

Da análise dos votos, verifica-se a baixa referência expressa pelos Mi-nistros e pelas Ministras do STF aos argumentos trazidos em audiência pública. A despeito do que foi dito na fala dos especialistas, a Ministra Cármen Lúcia preferiu amparar-se em outras fontes, como a Convenção de Estocolmo, susten-tando não ser possível ignorar o compromisso, assumido internacionalmente pelo Brasil, de reduzir a emissão de POPs. Uma base factual determinante, e que foi ignorada pelos demais membros da Corte em seus votos. Essa omissão permite inferir que, apesar dos esforços da audiência pública, nada impede que se busque outros recursos para julgar.

Com relação à divergência científica entre os expositores, a Ministra Cármen Lúcia entendeu que a queima de pneus pelas fábricas cimenteiras libe-ra na atmosfelibe-ra os POPs referidos; entretanto, sem desconstruir, diretamente, a questão científica subjacente à alegação contrária. A Ministra Relatora não fez referência a nenhuma prova específica, química ou física, no sentido de que dioxinas e furanos não são destruídos a 1.400ºC ou que os fornos cimenteiros não chegam a essa temperatura. Ou seja, não entrou no mérito da questão cien-tífica, limitando-se a creditar seu entendimento ao Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana – Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Brasil, 2009, p. 79), que se manifestou nesse sentido. É um exemplo de deferência epistemológica.

Amparando-se em estudos provenientes de outras fontes, que não a au-diência pública, a Ministra Cármen Lúcia assenta as bases do seu voto. To-mando como certos os resultados apresentados por um estudo da Universidade de Coimbra9, a Ministra Cármen Lúcia parte do princípio de que a queima de

pneus realizada pelas fábricas de cimento gera poluição atmosférica e libera gases tóxicos e cancerígenos. Nesse ponto crucial para o deslinde da questão, ela dispensou as contribuições dos participantes da audiência pública. Deve-se destacar o fato de que o estudo do qual ela se vale para fundamentar seu voto não apareceu na audiência pública, como também não chegou pelas mãos dos

9 Pesquisa elaborada pelos médicos Salvador Massano Cardoso e Carlos Ramalheira, do Instituto de Higiene e Medicina Social, da Faculdade de Medicina de Coimbra. Disponível em: <http://noalaincineracion.org/wp- -content/uploads/relatorio-oficina-coincineracao-versao-final-14052007.pdf>.

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amici curiae, conforme podemos constatar dos documentos disponibilizados no site do STF.

Nesse sentido:

O Diário de Coimbra de 12.01.2001 divulgou estudos da Sociedade Portuguesa de Senologia que constataram que “as dioxinas desempenham um papel

impor-tante no aparecimento do cancro da mama. Ao comentar o relatório divulgado

sobre o estado de saúde da população de Souselas, pelo movimento que luta contra a instalação da co-incineração na freguesia, o médico Carlos Oliveira con-firmou que os produtos de contaminação do ambiente (xenobióticos) – nos quais se incluem as dioxinas – ‘interferem com as hormonas femininas e podem provo-car várias doenças’, entre as quais neoplasias mamárias [...]”. (Brasil, 2009, p. 86)

A pesquisa de Coimbra teve como objeto de análise a saúde da popula-ção da vila de Souselas, em Portugal, vizinha a uma fábrica que utiliza a queima de pneus como fonte de calor, e que apresentou um maior índice de ocorrên-cia de problemas de saúde, como doenças respiratórias e câncer, comparativa-mente às populações de outras localidades. As estatísticas que nutrem o estudo apontam, assim, para uma relação de causalidade entre as emissões resultantes da queima de pneus e o índice de doenças comprometedoras da saúde humana (Brasil, 2009, p. 86). Portanto, a Ministra baseou-se, decisivamente, em provas de proveniência externa às audiências públicas, sem esclarecer como chegaram ao seu conhecimento, de forma a impossibilitar algum tipo de controle sobre as informações que chegam à Corte, principalmente quando se trata do ponto central do julgamento.

Da análise de como a questão da poluição atmosférica e dos danos à saúde foi trabalhada pelos Ministros do STF, em especial pela Ministra Rela-tora Cármen Lúcia, verifica-se que a conclusão, pautada no que disseram os especialistas, foi no sentido de que não há possibilidade efetiva de destinação ambientalmente adequada para os pneus usados importados, especialmente para os inservíveis, e que, por isso, acabam sendo descartados ou incinerados, causando prejuízos ao meio ambiente e à saúde. A liberação de gases tóxicos originada da queima de pneus nos fornos cimenteiros consiste, então, no fato que levou a Corte a decidir pela constitucionalidade da legislação proibitiva da importação de pneus usados. Fatos que, na esfera constitucional, fazem com que o julgador deva interpretar a Constituição em determinado sentido. Retira--se da Constituição uma norma de caráter proibitivo, a impedir normas legais, infralegais e decisões judiciais contrárias, de caráter permissivo.

Resgatando a classificação de David Faigman, seriam fatos constitu-cionais revisáveis, e que, no contexto, serviram para a construção da hipóte-se normativa que dali hipóte-se hipóte-seguiu: é proibida a importação de pneus usados. O problema dos danos decorrentes da liberação de gases tóxicos pela queima de

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pneus não era do conhecimento dos julgadores, demandando, por esse motivo, recurso ao conhecimento especializado.

Em última instância, a Ministra Relatora ancorou o seu juízo na Conven-ção de Estocolmo, que regula a emissão de poluentes orgânicos persistentes (POPs). Mas foi o recurso aos especialistas que lhe permitiu conhecer os fatos que correspondem à hipótese normativa constante do Tratado. Fatos esses, vale dizer, comprovados pelo testemunho dos especialistas, ainda que de especialis-tas não participantes da audiência pública, ao contrário do que seria de se es-perar. Portanto, o principal fato que, expressamente, baseou o voto da Ministra Relatora foi proveniente da Universidade de Coimbra e chegou ao Tribunal por meios sobre os quais não se tem controle.

COnCLuSãO

Por meio das audiências públicas, os Ministros e as Ministras do STF têm acesso a dados e interpretações apresentados pela ciência, que contribuem para a formação de um juízo com implicação normativa, “legislativa”. A Suprema Corte, ao exercer o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normati-vos, pode alterar a configuração do ordenamento jurídico vigente, nos moldes estabelecidos pelo legislador ordinário. Nesse sentido, podemos dizer que exis-te uma relação entre ciência, direito e política, a ensejar uma melhor análise da categoria fatos legislativos.

Os fatos legislativos são aqueles que, no âmbito dos Tribunais, transcen-dem o caso concreto e contribuem para a criação de uma norma de decisão com efeitos futuros. A sua generalidade coincide com o que os cientistas fazem e produzem. E, por isso, não raramente, o conhecimento especializado é de-mandado pelos julgadores.

A pesquisa se concentrou na esfera da jurisdição constitucional. Para a apreciação da constitucionalidade de um ato normativo, é preciso interpretar a Constituição, sendo necessário confrontar as hipóteses fáticas que ela admite com a hipótese fática da norma impugnada. E como o Direito existe para re-gular relações sociais, é preciso conhecer a realidade circundante. Logo, não raramente, os juízes se valem do que dizem os especialistas em outras áreas do conhecimento. A relação de causalidade e objetividade exposta no argumento científico tende a revesti-lo de certo caráter impositivo. Ocorre que os cientistas nem sempre concordam entre si e os juízes não têm condições de sanar a even-tual discordância. Valem-se, então, de outros recursos para valorar as provas que chegam ao seu conhecimento. Algo que não temos condições de alcançar, mas que percebemos pelos princípios que servem de fundamento à justificativa que acompanham seus votos.

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Tratando-se de uma temática, como a da constitucionalidade das normas que permitiam a importação de pneus usados, calçada, fundamentalmente, em bases científicas, os Ministros e as Ministras buscarão provas sobre os fatos que instruem o problema. São fatos provados pelo discurso competente dos especia-listas, assentados sobre sólidas bases metodológicas, portanto, com forte poder de persuasão e convencimento imediato ou pela via transversa da deferência àquele que conhece, dadas as credenciais que apresentam, ainda que todos esses fatores atuem em conjunto.

A pesquisa se concentrou sobre um caso em que esses aspectos ficam claros. E mostrou que, apesar dos esforços para a promoção de uma audiên-cia pública, para a qual são convocados espeaudiên-cialistas em determinada matéria, nada impede que o que venha a prevalecer, no final, seja um estudo obtido por fonte diversa. Isso pode gerar um problema, na medida em que a via das au-diências públicas e dos amici curiae cerca o processo de garantias que a pesqui-sa livre realizada nos gabinetes não oferece, principalmente no que diz respeito à circulação das informações entre os membros do colegiado que irá julgar e, mais grave ainda, quando a decisão implicar o direito das partes, situação em que deveria ser assegurada alguma possibilidade de questionamento.

Os fatos levados ao conhecimento dos juízes na ADPF 101 provaram a relação de causa e efeito entre a queima de pneus usados em fornos cimenteiros e a geração de doenças respiratórias. Caso o Tribunal tivesse ignorado essa re-lação, ele não seria capaz de dizer se a importação de pneus usados é proibida ou permitida pela Constituição.

Contudo, apesar de a audiência pública ter sido concluída, ela não foi conclusiva, na medida em que a dúvida científica permanece: alguns susten-tam, e outros não, que os gases tóxicos produzidos pela queima de pneus – os poluentes organicamente persistentes (POPs) dioxinas e furanos, são destruídos a 1.400ºC. Mas para o Direito o problema foi sanado. O STF pôs fim ao proble-ma jurídico, ou seja, se a conduta é lícita ou ilícita, quando decidiu. Indepen-dentemente do sentido da decisão, ela é que vale e define, para o mundo do Direito, se é proibida ou permitida a importação de pneus usados. Se esse era o problema, ele ficou resolvido. Não mais existe insegurança jurídica; sabe-se, a partir do que o STF disse, que é proibido.

Mas essa é uma decisão que não é tomada arbitrariamente. Ela há de ser justificada. E a grande justificativa, ainda que paradoxalmente, foi encontrada na Química. Os juízes formaram a sua convicção para julgar com base nas provas existentes no processo, notadamente as provas trazidas em audiência pública e em outros elementos de convicção. Foi visto que a Ministra Relatora se valeu, especialmente, de pesquisa oriunda da Universidade de Coimbra que, como se depreende do acórdão, serviu de baliza para a decisão da Corte,

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en-quanto voto condutor. Por tudo, em que pese a autoridade científica e a prova dos fatos, vale mais para o Direito a autoridade jurídica de que deles se utiliza.

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Data de submissão: 4 de abril de 2018 Data de aceite: 11 de fevereiro de 2019

Referências

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