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O Legado: Cartas de Amor

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REVISTA PORTAL de Divulgação, n.22, Ano II, jun. 2012: 62-66. ISSN 2178-3454 http://www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista/index.php

O Legado: Cartas de Amor

Por Anne Lanchon1

entimentos de desconforto, medo de descobrir um segredo doloroso... Recuperar cartas ou diários íntimos de nossos pais, depois de sua morte, não é sempre um acontecimento fácil. Devemos lê-los, conservá-los, queimá-los? Nossos três depoentes cederam à curiosidade...

A fantasia mais partilhada do mundo é descobrir o que se passou no quarto de papai e mamãe. Um sonho possível quando nos deparamos – por sorte ou buscando – com seus diários íntimos. Mas o que é transgressão, quando nossos pais são vivos, pode se transformar em inquietação quando eles se vão.

Devemos ler esta correspondência? É um dever de memória ou uma traição? “Se eles guardaram estes papéis, afirma o psiquiatra e psicanalista Serge Tisseront2, significa que eles desejavam, conscientemente ou não, serem lidos”.

1 Traduzido por Vera Brandão. Texto da Revista Psychologies Magazine. Nº 317, Avril 2012.

www.psycologies.com

2 Autor de Secret de famille – PUF,” Que sais je?”, 2011.

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REVISTA PORTAL de Divulgação, n.22, Ano II, jun. 2012: 62-66. ISSN 2178-3454 http://www.portaldoenvelhecimento.org.br/revista/index.php

“Esvaziando a casa de minha mãe, relata Laure de 52 anos, descobri as cartas de amor de meus pais. Tive vontade de lê-las, para saber o que os atraiu um ao outro, antes do casamento terminar. O pudor me impediu. Esta história pertencia a eles, e não me dizia respeito”.

Mas, a curiosidade, frequentemente, pode nos levar ao desconforto de descobrir um segredo doloroso. Saudade, encanto, amargura: esta leitura faz surgir emoções ambíguas, intensas, em relação a imagem da relação que tivemos com nossos “desaparecidos”.

Emoções que refletem também nossa história pessoal, nosso estado de espírito, neste momento. A mesma revelação pode desestabilizar um e encantar outro, como as crianças de Sur la route de Madisson3 que descobrem, posteriormente, o adultério da mãe, reagindo de maneiras opostas.

Os escritos íntimos de nossos pais permitem, sobretudo, que os enxerguemos sob outra luz. Não são nosso pai e nossa mãe, estes adultos capturados no papel que nós lhes atribuímos, mas um homem e uma mulher, com seu entusiasmo, suas fraquezas e dúvidas. Seres humanos ao mesmo tempo universais e próximos.

Descobrir seus estados d`alma pode nos auxiliar a compreender seus comportamentos passados e a nos reconciliar, eventualmente, com traços de seus carácteres que nos feriram.

“Meus pais, frequentemente, me reprovaram privilegiar mais trabalho que a minha filha, relata Lydia Flem, escritora e psicanalista. Conflito de gerações - pensava eu. Lendo suas cartas, pude compreender quanto meu pai havia sofrido com a falta de sua mãe, morta em Auschwitz; e minha mãe com a extrema frieza da sua”.

Ao contrário, as desilusões podem, em alguns casos, ser uma descoberta inesperada, como as de Janine de 82 que descobriu, na correspondência de seu pai, a quem admirava muito, posições antissemitas.

“Não devemos julgar com a visão atual, mas recompor o fato no contexto histórico pondera Vincent Gaulejac4, sociólogo clínico. O antissemitismo era muito comum nos anos 1930. Os escritos pessoais testemunham mentalidades e modos de vida de uma época, eles têm um valor coletivo que nos sugere a revisão e relativização de nossos sentimentos”.

Nossos pais estão inseridos em uma história familiar que reconhecemos ao longo das cartas, ou que surgem ao virar uma página, com uma rápida

3 Sur la Route de Madison / As pontes de Madisson, Filme de Clint Eastwood, 1995, DVD.

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tempestade: amores clandestinos, filhos ilegítimos, suicídios mascarados com acidentes...

Muitos romances são inspirados em correspondências íntimas: uma transformação que permite ao autor se apropriar da sua história familiar. Foi isto que fez Lydia Flem5.

“Meus pais, por meio dos relatos, me acompanharam durante dois anos. A partir disto criei personagens literários, para tomar distância e torná-los imortais”.

Pouco importa que nossa visão seja subjetiva. “Não existe uma verdade única, mas verdades múltiplas” afirma Serge Tisseron.

Um legado propício ao trabalho de luto

Esta leitura que acontece em uma etapa de mudança em nossas vidas, àquela que nos faz órfãos, nos convida a um balanço. Qual herança, consciente ou não, meus pais me deixaram?

“Esvaziando a casa de minha mãe, diz Laure, me questionei sobre qual de meus traços eu deixaria aos meus filhos. Eles teriam necessidade de conhecer meus erros passados? Não consigo resolver se queimo meu diário”.

Alguns preferem destruir tudo, para preservar até o final sua imagem. Outros, ao contrário, querem se revelar em toda a sua complexidade. Esta é uma responsabilidade pessoal.

“Se a pessoa tem o cuidado de preservar seu jardim secreto ao longo da vida, porque impedir o acesso aos seus descendentes depois? pergunta Ginette Lespine, psicoterapeuta. Isto pode privá-los de outra visão sobre ela, mais rica, e propícia ao trabalho de luto”.

A correspondência amorosa de nossos pais representa, sob este ponto de vista, o mais belo dos presentes: a prova que nascemos de duas pessoas de corpo e alma. E, às vezes, que nossos somos fruto, mesmo se duvidemos ou se a vida nos fez acreditar no contrário, de uma história de amor.

Testemunhos

“As cartas de minha avó me obcecaram por muitos anos”.

“Na morte de minha avó, minha mãe meu deu mais de seiscentas cartas:

5 Lettres d`amour em heritáge. Seuil, 2006. Romance no qual a autora incorpora trechos das

cartas trocados por seus pais antes do casamento, em 1949, que traz uma reflexão sobre esta herança e um testemunho sensível e discreto sobre o nascimento de um amor.

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a correspondência amorosa de Marguerite e Eugène, meus bisavós. Ela não as tinha lido, mas pensava que esta herança me pertencia: pois eu era a literata da família. Ela mesma detestava sua avó, mal humorada e “louca”. Eu descobri uma jovem sedutora, muito amorosa. Ela esperou, durante anos, que Eugène terminasse seus estudos na Suíça, depois veio a guerra e ele morreu no front da luta, aos 28 anos, e sem conhecer sua segunda filha, minha avó. Então compreendi a “loucura” de Marguerite: ela jamais se consolou pela perda, e não pode investir na criança. Esta tristeza foi transmitida da mãe para a filha. Estas letras se tornaram uma obsessão para mim, e eu as guardei num armário. Alguns anos mais tarde, uma amiga comediante pediu que eu escrevesse um texto para ela. A história de amor de Eugène e Marguerite se impôs. Escrevendo, descobri o quanto ela se assemelhava à minha: a paixão, a espera, o silêncio, o desespero... Os dois relatos se superpuseram naturalmente, como se eu tivesse encontrado, cem anos depois, o destino de minha bisavó. Tive a sorte de dispor de três ferramentas, que ela não teve, para transcender sua tristeza: uma profissão, a psicanálise e, sobretudo, a liberdade”. Valérie, 47 anos, jornalista e escritora6.

“Descobri outra mãe: sedutora e livre”.

“Um dia minha mãe me deu dois sacos de lixo repletos de cartas sem envelope: sua correspondência de jovem mulher. Comecei a ler ao acaso, soube que ela tinha se casado grávida, e que teve de mentir a este respeito. Descobri também cartas apaixonadas de um estudante que ela conheceu antes de meu pai. Muito incomodada de entrar na sua intimidade, deixei as cartas de lado. Dez anos depois, ela me deu a correspondência de seus pais- apaixonantes do ponto de vista histórico- e ricas em segredos. Meu avô teve outra “esposa” no Gabão com quem teve um filho. Todas estas cartas alimentaram nossos diálogos mãe-filha. De temperamento rebelde, eu era a única que podia entender estas histórias constrangedoras. Minha mãe era médica, uma intelectual brilhante, autoritária. Uma rainha mãe. Depois de sua morte mergulhei na correspondência e descobri outra mulher: sedutora, livre de corpo e espírito, segura de ser igual aos homens, muito avançada para seu tempo. Eu fiquei orgulhosa de ser filha desta mulher! Minhas irmãs, mais convencionais, me pediram que destruísse as cartas. Sem dúvida, se quebrava a imagem de uma mãe e esposa ideal? Esta questão não se colocava para mim. Minha mãe me confiou a missão de conservar a correspondência transmiti-las. Eu as classifiquei por ordem cronológica, e as reagrupei por tema. Duas sobrinhas quiseram ler algumas e descobriram, com alegria, uma avó mais humana. Este era, provavelmente, seu objetivo.” Marie-Alice, 57 anos,

advogada.

“Enfim soube que meu pai tinha amado minha mãe”.

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Valérie Péronnet colabora regularmente com Psychologies Magazine. É autora de Jeanne et Marguerite. Calmann-Lévy, 2011.

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“Fazendo uma triagem na correspondência de minha mãe, após seu falecimento, descobri uma carta de meu pai na qual ele dizia de seu amor, e da tristeza de não poder dizer isto a viva voz. Meus pais eram excessivamente pudicos, eu nunca os vi se beijarem. Brigar, sim, em revanche, quando ele tinha um problema! Eu me perguntei, frequentemente, quando criança, porque eles viviam juntos...Meu pai, ainda mais que minha mãe, era como que “deficiente” da palavra. Cada vez que eu tentava ter uma conversa séria, ele fugia. Senti uma grande falta na adolescência, e tenho a impressão de que me construí sozinho. Eu herdei esta inaptidão de expressar meus sentimentos, o que me sufocava e contaminava minhas relações amorosas. Não foi por acaso ter escolhido uma profissão de enfermeiro psiquiátrico: eu tinha necessidade de compreender o que não funcionava em mim, e na nossa família. Esta carta, simultaneamente, me tranquilizou e emocionou. Eu a guardo preciosamente. Ela me oferece a imagem de um marido amoroso, sincero, consciente de suas fraquezas. É o único testemunho do amor que meus pais nutriam um pelo outro. Ela me ajudou a fazer as pazes com meu pai, e o luto por minha mãe: constatei que ela tinha sido amada. Trouxe uma coerência para minha vida, reforçou minhas convicções que podemos construir uma relação sólida sendo diferentes, sem medo de se falar. A palavra é hoje o coração da minha vida de casal, de família e profissional”. Philippe, 53 anos, enfermeiro psiquiátrico.

Data de recebimento: 20/05/2012; Data de aceite: 28/05/2012. ____________________________

Vera Brandão (tradução) - Pedagoga. Mestre e Doutora em Ciências Sociais

– Antropologia. E-mail: veratordino@hotmail.com. Fotos extraídas de:

Referências

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