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Os fazedores de cidade: uma história da mudança da capital no Piauí (1800-1852)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Gustavo Henrique Ramos de Vilhena

OS FAZEDORES DE CIDADE – UMA HISTÓRIA DA MUDANÇA

DA CAPITAL NO PIAUÍ (1800-1852)

RECIFE 2016

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Gustavo Henrique Ramos de Vilhena

OS FAZEDORES DE CIDADE – UMA HISTÓRIA DA MUDANÇA DA CAPITAL NO PIAUÍ (1800-1852)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Paulo Rezende.

RECIFE 2016

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB-4 1291

V711f Vilhena, Gustavo Henrique Ramos de.

Os fazedores de cidade : uma história da mudança da capital no Piauí (1800-1852) / Gustavo Henrique Ramos de Vilhena. – 2016.

272 f. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Paulo Rezende.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2016.

Inclui referências.

1. Piauí - História. 2. Cidades e vilas. 3. Capitais (Cidades). 4 Teresina (PI). I. Rezende, Antonio Paulo (Orientador). II. Título.

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Gustavo Henrique Ramos de Vilhena

“OS FAZEDORES DE CIDADE – UMA HISTÓRIA DA MUDANÇA DA CAPITAL NO PIAUÍ (1800-1852)”

Tese apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em História.

Aprovada em: 25/02/2016

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Antonio Paulo de Morais Rezende

Orientador (Universidade Federal de Pernambuco)

Prof. Dr. Antonio Jorge de Siqueira

Membro Titular Interno (Universidade Federal de Pernambuco)

Prof.ª Dr.ª Tanya Maria Pires Brandão

Membro Titular Interno (Universidade Federal de Pernambuco)

Prof. Dr. Daniel de Souza Leão Vieira

Membro Titular Externo (Universidade de Pernambuco)

Prof. Dr. Márcio Ananias Ferreira Vilela

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Paulo e Jacinta, ao meu tio, Vicente, e à minha avó, Marisa, pelo apoio incondicional durante os anos de viagens entre Teresina, Campina Grande e Recife. Aos meus irmãos, Hermano e Paulo, parceiros e melhores amigos. Aos meus tios, Alba, Magdala, Fernando e Ubirajara, pela amizade e força. Ao meu primo Marcos, parceiro no ofício de historiador e incentivador deste trabalho. Aos primos Elmano, Júnior, Vinícius, Alexandre, Aline, Patrícia e Flávia.

Aos amigos Luís Gonzaga Baião e Mairton Celestino. Verdadeiros irmãos, amigos, e parceiros no ofício da história. Os anos de sacrifício no doutorado não seriam possíveis sem a ajuda mútua e a solidariedade entre nós. Grande parte dessa pesquisa aconteceu graças à inteligência e generosidade de suas críticas.

A todos os meus professores da UFPI. Paulo Ângelo, João Kennedy, Fonseca Neto, Áurea Paz, Teresinha Queiroz, Alcides Filho, Edwar Castelo Branco e Pedro Vilarinho. Figuras fundamentais em minha formação acadêmica.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação da UFPE. Izabel Guillen, Regina Guimarães, Durval Muniz e Antonio Montenegro. Agradecimentos especiais a Daniel Vieira, Tânya Brandão, Jorge Siqueira e Antonio Paulo Rezende. A convivência com vocês foi uma experiência enriquecedora da qual jamais esquecerei.

À Sandra Regina e Patrícia. São o coração deste Programa, e minha gratidão pela força de ambas é simplesmente imensurável.

Aos parceiros da FACEPE pelo financiamento desta pesquisa.

A todos os amigos que abandonei nesses anos de viagens e reclusão. As verdadeiras amizades não respeitam nem o tempo nem as fronteiras. Espero que meu retorno faça desses laços mais fortes.

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RESUMO

Este trabalho busca investigar o fenômeno da transferência da capital do Piauí, em 1852, de Oeiras para Teresina. Fato inédito na história do Brasil, nunca antes uma cidade fora pensada e construída para abrigar uma sede administrativa no país. Desde 1844, o debate político no universo da Província resultou numa série de atos legislativos que culminaram na mudança definitiva, a partir da lei provincial de agosto de 1852. Mais precisamente, a pesquisa procura compreender a natureza do discurso mudancista, com o objetivo de historicizar seus temas e desconstruir os conceitos que lhe deram sentido. Para isso, foram analisados os relatórios provinciais de 1836 até 1863, o espaço privilegiado onde a mudança da capital foi construída. Teresina foi resultado de uma projeção de futuro do Império, que a partir de conceitos como civilização e progresso, procurou elaborar a sua imagem política. Esse esforço de legitimação produziu o esquecimento sobre as expectativas que definiram a primeira capital do Piauí, Oeiras. Sua fundação, em 1762, foi resultado da criação da Capitania de São José do Piauí a partir de um projeto urbanístico e civilizatório do Estado português, com conceitos políticos específicos daquele período. No final do século XVIII, a mudança da capital foi deliberada através de uma consulta formal no Conselho Ultramarino, que decidiu a permanência em Oeiras. Apesar disso, o processo elaborou todas as possibilidades que foram apropriadas, quase meio século depois, pelo discurso mudancista no Segundo Reinado. Projetando o futuro de Teresina como o da própria Província, as narrativas políticas oitocentistas representaram a cidade como ícone da civilização, e superioridade do universo urbano sobre o sertão – o obstáculo à materialização plena desta visão. Essa perspectiva foi incorporada pela historiografia local a partir da publicação do primeiro livro de história do Piauí, a Memória Cronológica, Histórica e Corográfica, de autoria de Martins Pereira de Alencastre, e publicada na Revista do IHGB em 1857. Porém, décadas depois, a literatura romântica – através da obra poética Lira Sertaneja, de autoria de Hermínio Castelo Branco, mobilizou os mesmos conceitos de civilização,

cidade e sertão para operar uma inversão: a construção da identidade do Piauí a partir

da crítica ao universo urbano representado pela nova capital, e a valorização da experiência rural através da vida sertaneja.

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RESUME

This work seeks to investigate the phenomenon of the transfer of the capital of Piauí, in 1852, of Oeiras to Teresina. Unprecedented fact in the history of Brazil, never before a city outside conceived and built to house an administrative headquarters in the country. Since 1844, the political debate in the universe of the Province has resulted in a series of legislative acts which culminated in the definitive change, from the Provincial Law of August 1852. More precisely, the research seeks to understand the nature of the speech change, with the objective of its themes and historicizar deconstruct the concepts that gave him the direction. For this reason, it was analyzed the reports of 1836 until 1863 provincial, the privileged space where the change of the capital was built. Teresina was the result of a projection of the future of the Empire, who from concepts such as civilization and progress, has sought to develop its political image. This effort to legitimize produced the forgotten about the expectations that have defined the first capital of Piauí, Oeiras. Its foundation, in 1762, was a result of the creation of the Captaincy of St Joseph of Piauí from an urban project and the civilizing the Portuguese State, with specific political concepts of that period. At the end of the 18th century, the change of the capital was deliberate through a formal consultation in the Ultramarine Council, which has decided to overseas permanence in Oeiras. Despite this, the process has produced all the possibilities that were appropriate, almost half century after, by speech change in Second Reign. Designing the future of Teresina as the own province, the narratives nineteenth century policies represented the city as an icon of civilization, and superiority of urban universe on the hinterland - the obstacle to the materialization of this vision. This perspective was incorporated by the historiography location from the publication of the first book on the history of Piauí, Memória Cronológica, Histórica e

Corográfica of Martins Pereira Alencastre, and published in the Journal of the IHGB in

1857. However, decades later, the Romantic literature - through the poetic Lira

Sertaneja, authored by Hermínio Castelo Branco, mobilized the same concepts of

civilization, city and hinterland to operate a reversal: the identity construction of Piauí from the criticism of the urban universe represented by the new capital and the valorization of rural experience through the rustic life.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...8

CAPÍTULO I: A MUDANÇA DA CAPITAL NO SEGUNDO REINADO...29

1.1 Mobilizando as forças...29

1.2 Os relatórios governamentais: a construção da mudança...42

1.2.1 O conceito de provincialização do comércio...50

1.3 1844 ou a mudança da capital...58

1.4 1848: a emergência da Vila do Poti...93

CAPÍTULO II: A MUDANÇA NO PERÍODO COLONIAL...107

2.1 Narrativas da mudança...107

2.2 1697 ou a invenção do Piauí...127

2.3 1759: Oeiras e a criação da Capitania de São José do Piauí...146

2.4 1800: a construção dos possíveis...184

CAPÍTULO III: DIZER A CIDADE...198

3.1 O futuro do Piauí nas narrativas políticas...198

3.2 A construção historiográfica: Martins Alencastre e a Memória...226

3.3 Literatura, cidade, sertão: Hermínio Castelo Branco e a Lira Sertaneja...240

CONSIDERAÇÕES FINAIS...263

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INTRODUÇÃO

Em 1851, durante os trabalhos da Assembleia Provincial do Piauí, ao argumentar em favor da ideia de transferência de sua sede administrativa de Oeiras para outra cidade, o presidente à época, um jovem de 27 anos chamado Antonio José Saraiva, assim se justificou: “Pobre, e longe de todos os grandes centros de civilização,

sem comércio e sem indústria, Oeiras carece de todas as condições para ser favorável ao progresso científico e literário do Piauí”.1 No mesmo relatório, fez referência a uma declaração oficial atribuída a um de seus antecessores na presidência da província, chamado Zacarias de Góes: “Oeiras nunca poderá ser um centro de luzes!”.2

E

comentou a frase de Góes dentro da lógica de sua argumentação: “Sentença terrível em

um século de movimento intelectual, e que deve merecer a atenção dos escolhidos da Província, tão empenhados em levá-la à altura da civilização de suas irmãs”.3

Os relatórios governamentais eram falas oficiais impressas e arquivadas pela Tipografia provincial, órgão público responsável pela produção e manuseio desse tipo de documentação. Eram discursos para a posteridade, que demandavam esmero retórico e político com as palavras.4 Se Antonio Saraiva citava Zacarias de Góes é porque lera seus relatórios, certamente como leitura de informação prévia para compreender elementos do contexto da província que viria a governar. Provavelmente também assim fizera com outros presidentes, o que nos permite supor que leu pelo menos os relatórios de 1844 em diante, até o momento de sua posse. Saraiva, portanto, viu o que nós contemporâneos podemos ver: que toda a argumentação em favor da transferência já estava contida nesses textos oficiais, inclusive no período referente à administração de Góes.5 Ou seja, seguindo tal linha de raciocínio, é possível vislumbrar um começo para

1 Fala do Presidente da Província Antonio Saraiva dirigida à Assembleia Legislativa Provincial em 3 de

junho de 1851. P. 14.

2 Idem. 3 Idem.

4 A ideia dos relatórios governamentais como lugares de produção de saberes tomada de empréstimo aqui

é elaborada pelo historiador Luis Gonzaga Baião Filho, que desenvolve pesquisa de doutoramento intitulada Criminalidade e justiça penal no sertão do Piauí, pela UFPE.

5 De todos os presidentes provinciais do Piauí, entre 1844 e 1850, Zacarias de Góes foi aquele que, em

seus discursos para a Assembleia Provincial, melhor racionalizou a questão da transferência, elencando suas principais motivações e justificativas. Há claramente a influência de sua perspectiva nos

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a ideia de mudança entre as décadas de 40 e 50 do século XIX. Pelo menos, essa ideia parece implícita no texto de Antonio Saraiva.

De forma simplista, os fundamentos do discurso mudancista sustentavam-se na premissa de que o Piauí, desde princípios dos oitocentos, atravessava uma grave crise econômica devido à decadência de sua principal atividade, a pecuária, e que a única possibilidade de transformação deste estado crítico seria através de uma mudança estrutural que deslocaria seu eixo administrativo da cidade de Oeiras para outro lugar, prioritariamente nas margens do rio Parnaíba.6 O desejo de torná-lo navegável justificava-se por sua grande extensão, seu regime permanente de águas, a possibilidade de cortar toda a Província, desde o extremo sul até o oceano Atlântico, e assim estabelecer uma linha de comércio interna e externa, que converteria o Piauí de um estado crítico para um horizonte de prosperidade. Entretanto, com sua capital administrativa distante centenas de quilômetros das margens do Parnaíba, qualquer esforço de empreendimento parecia infrutífero.

Era o argumento da distância o principal ponto da crítica mudancista. A ideia de navegar a bacia do Parnaíba correspondia ao desejo de estabelecimento de canais ou vias de comunicação que ligassem a província ao restante do Império e do mundo, já que ele permitia a ligação direta de léguas de sertão adentro com o Atlântico, algo promissor em termos econômicos.7 Era bem recorrente nesses relatórios oficiais a ideia de que a inoperância dessa rede de águas bloqueava o aproveitamento integral das possibilidades econômicas da província, que poderia perfeitamente engordar suas finanças caso pudesse comercializar as “riquezas da terra”. Sedimentava-se o discurso da natureza grandiosa, prenhe de recursos, mas inexplorados por essa deficiência estrutural da província.

Em meados do século XIX Oeiras contava basicamente com duas estradas oficiais. Uma para São Luís, no Maranhão, e outra para Salvador, na Bahia. Suas condições eram desfavoráveis para transportar grandes cargas, algo que limitava o deslocamento de mercadorias à quantidade que o lombo de burros poderia carregar. O

posicionamentos de Antonio Saraiva acerca do problema, e ele deixou bem claro em seu primeiro relatório essa filiação.

6

Ver as falas presidenciais dirigidas à Assembleia Legislativa do Piauí, referentes à administração de Sousa Ramos, Zacarias de Góes e Antonio Saraiva.

7 O desejo de tornar o rio Parnaíba navegável e utilizá-lo como acesso fluvial a grandes extensões do

sertão remete ainda ao século XVII, quando já se sabia da possibilidade de adentrar por ele através de sua desembocadura no mar e percorrer essas extensões.

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carro de boi praticamente não era usado. Tais condições encareciam consideravelmente o comércio devido aos altos custos de frete e, num âmbito geral, as consequências do problema dificultavam a arrecadação fiscal da província, paralisada pela falta de circulação monetária. A localização mediterrânea da cidade, portanto, prescindia de uma rede de estradas para ligar-se de forma efetiva a outros lugares, ou “centros” (segundo a fala de Saraiva). Entretanto, grande parte dessa rede imprescindível resumiu-se a caminhos que, resumiu-segundo um administrador oitocentista, eram resumiu-senão “obra do tempo,

e das pisadas dos viandantes!”.8

A perspectiva da argumentação mudancista convidava Oeiras ao sacrifício expiatório pelo crescimento da Província, e a cidade-sede desde 1761 parecia sem dúvida um erro histórico da administração ultramarina. No mesmo relatório, Saraiva citou novamente Góes, quando afirmou: “se esta cidade alguma influencia política

exerce sobre o resto da Província é unicamente devido á presença do governo, e das autoridades, que aqui residem”.9 Para a administração imperial, Oeiras fracassara em promover questões chave como a navegação efetiva da bacia parnaibana e/ou a provincialização da economia, tornando-se um fardo que ameaçava imobilizar o Piauí. A convicção deste problema era tamanha que Saraiva chegou a afirmar no mesmo relatório que “o futuro da Província depende essencialmente da mudança da capital”.10

O exercício de vislumbrar o futuro parecia recorrente nesse relatório de Antonio Saraiva. Em primeiro lugar, procurava estabelecer uma “genealogia” do projeto de mudança ao afirmar uma continuidade política entre ele e administrações anteriores, inclusive citando trechos inteiros do relatório Góes, de 1845. Sua intenção era certamente justificar-se em suas argumentações, buscando o referendo do passado para legitimar suas visões e construir a linha temporal do projeto. É interessante destacar que essa temporalização correspondeu somente ao período pós-regencial, quando a ideia de um Império brasileiro era construída institucionalmente. No entanto, certos elementos da argumentação mudancista não eram novos, pois seus começos podem ser fixados já em 1844. Seria uma estratégia retórica de Saraiva no sentido de arrogar para si, representante da ordem Imperial, a concretização do projeto? Em segundo lugar, um

8

Fala do Presidente da Província Sousa Ramos dirigida à Assembleia Legislativa Provincial em 7 de julho de 1844, p. 38.

9 Fala do Presidente da Província Antonio Saraiva dirigida à Assembleia Legislativa Provincial em 3 de

junho de 1851, p. 24.

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senso de urgência histórica focado num ideal de civilização como modelo político para o Piauí, tendo na visão de uma cidade nova o lugar de referências semânticas contidas nesse conceito. “Um século de movimento intelectual”, assim definia o momento em que se dirigia aos deputados da Assembleia, e assim justificava a substituição de Oeiras relegando a antiga capital à condição de retardatária do tempo. Confundia o “atraso” da província com o seu próprio, num movimento que a converteu em cidade-signo do atraso. Em 1851, tudo conspirava para torná-la a imagem desta distância que não se restringia a uma perspectiva espacial concreta, mas aquilo que as visões sobre Teresina deixariam para trás. Criava-se, assim, a imagem de uma cidade cuja lógica de existência parecia incompreensível, um anacronismo que a racionalidade da administração imperial, ao arrogar para si o status civilizatório, estava fadada a resolver. Antonio Saraiva personificava, em sua juventude e na impetuosidade com que conduzira o processo, esse ideal de um horizonte novo que se abria.

Até hoje vigora sobre o tema a perspectiva discursiva instaurada por ele e influenciada por seus antecessores.11 A ideia da transferência da capital para uma nova cidade às margens do rio Parnaíba como condição de superação de uma “crise” que estagnava a Província, com todas as promessas da navegação e do comércio, e a desconstrução do isolamento para integrar-se na rede dos civilizados, persiste como consenso, mesmo em sua estruturação retórica. É difícil resistir às tentações desse tipo de argumentação, que mobiliza ideias de progresso e civilização e os elementos de futuridade nela contidos. Oferece uma linha temporal com perspectivas de futuro e passado, definindo aquela outridade (Oeiras) como padrão identitário para legitimar uma cidade sobre a outra.

É óbvio que a construção de Teresina, como todo acontecimento em sua dramaticidade, envolveu seus contemporâneos em projeções e desejos acerca das consequências de tal mudança. Numa Província de população rarefeita, dispersa em fazendas de gado, e pontilhada por vilas que, segundo um administrador oitocentista “nos dias ordinários ficam desertas de gente, e aonde a população está tão espalhada,

que o mais vizinho dista do outro quatro ou cinco léguas”,12 não era de se esperar a proeminência de uma “cultura urbana” nos parâmetros imaginados por Saraiva em

11 MENDES, Felipe. Economia e desenvolvimento do Piauí. Teresina: Fundação Monsenhor Chaves,

2003.

12

Fala do Presidente da Província Sousa Martins dirigida à Assembleia Legislativa Provincial em 3 de junho de 1836, p. 12.

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1851. Erguer uma cidade nova, com Igreja Matriz e toda uma estrutura de edifícios capazes de abrigar o staff da administração burocrática, deslocando-o da capital original que cumpria essa função há quase um século, desde a criação da própria Capitania do Piauí, foi um processo de extrema audácia e habilidade política impressionantes mesmo para os padrões de hoje. É possível compreender a lógica urbana que fez Teresina a tecitura de futuros possíveis?

Não restam dúvidas que Antonio Saraiva foi misto de político astuto com ares de visionário. Como desfrutar dessa visão, nós historiadores, pelos restos conservados em suas palavras? Considero seus relatórios governamentais de 1851 e 1852 como pontos de partida fundamentais para a percepção desse horizonte de expectativas que a construção de Teresina despertou. Especialmente pelo fato de que eles estavam inseridos numa continuidade de outras narrativas de presidentes anteriores que, desde 1844, não apenas produziram saberes, como legislaram sobre a mudança. As perspectivas desses administradores sobre as demandas e consequências relacionadas ao projeto representava uma ação política maior, que tinha na mobilização dos conceitos de

civilização e progresso os pilares de um modelo de âmbito nacional, do qual era agente

e a própria personificação.

É mister que compreender a lógica urbana que permitiu a invenção de Teresina como um projeto viável, apesar de todas as dificuldades e desafios, passa pela desconstrução da palavra civilização enraizada nessas falas presidenciais. Até que ponto é possível compreender politicamente o uso desta palavra no período? Porque é a partir dela que se definiram os parâmetros discursivos para legitimar a superação de Oeiras como um imperativo histórico, como condição sine qua non para alçar a Província ao “progresso científico e literário”, “à altura da civilização de suas irmãs”. Simbolicamente, Teresina funcionou como depositório de visões; e o monopólio do futuro defendido por Antonio Saraiva era, senão, a ressonância do projeto político de construção identitária de um Império incipiente.

Se Teresina, como resultado de uma ideia de cidade no século XIX, existiu em seus começos personificada por visões que podem ser lidas nos relatórios provinciais de 1844 até 1852 – ano de sua fundação – a primeira questão a se resolver é: que cidade desejavam estes presidentes provinciais que em menos de uma década teorizaram, debateram e concretizaram algo até então sem precedentes13 na história das cidades

13

Teresina precedeu as experiências de Aracaju, Belo Horizonte, e Brasília, no sentido de representarem cidades construídas para abrigar funções administrativas exercidas por outras.

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brasileiras? Por que, especialmente neste período, a questão da substituição de Oeiras e consequente deslocamento do eixo administrativo para as margens do rio Parnaíba tornou-se tão relevante a ponto de suportar as imagens de futuro e passado da Província? Aparentemente, tratou-se da afirmação de uma nova racionalidade urbana em substituição à outra; e isso aparece recorrentemente na argumentação mudancista – que será profundamente analisada em momento oportuno da tese.

O que os relatórios não contam, ao condenarem a antiga capital pelo atraso estrutural da província, é que assim como Teresina em meados de sua idealização como cidade, também Oeiras suportou um horizonte de expectativas, ainda que significativo de um período anterior. Tanto que é difícil, mesmo para pesquisadores do tema, compreender seu papel sem desvencilhá-la das imagens construídas pelo discurso mudancista. Oeiras, em sua história, também carregou responsabilidades, e suportou uma ideia de cidade e um horizonte que deveria mirar, além, claro, das funções políticas e institucionais que cumpria. Seria possível pensar uma história de Teresina desconectada desta outridade que lhe serviu de parâmetro para sua própria constituição como cidade?

O horizonte de expectativas aberto com a elevação de Oeiras a foro de cidade não deve ser apartado das próprias ambições políticas que envolveram a criação da Capitania do Piauí, em 1758. As análises que atravessam os relatórios de Ramos, em 1844, Góes, em 1845, e Antonio Saraiva, em 1851 – impecáveis em elencar todas as necessidades e condicionantes que justificassem uma mudança de tal envergadura – silenciam totalmente acerca desta questão. Não há nessa documentação elementos que apontem para a compreensão do quadro político setecentista, certamente pela distância temporal envolvida, como também pelo motivo óbvio de que, para concretizar a mudança era necessário “descreditar” Oeiras nos domínios esperados de uma cidade, fazendo-a parecer um mal entendido histórico.

Mas a questão é que o Piauí sempre exerceu para a administração colonial um papel geopolítico no mapa dos domínios lusitanos na América.14 A sua definição enquanto território institucionalizado, em 1758, derivou das guerras entre criadores de gado e nações indígenas, que por todo o século dezessete devassaram a bacia

14

Funcionava como ligação terrestre entre o Estado do Maranhão e o Estado do Brasil, além de território que abastecia de gados as regiões mineradoras. Cf. NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do

Piauí. v. 1. Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 2007; FONSECA, Rodrigo Gerolineto. A Pedra e o Pálio: Relações sociais e cultura na capitania do Piauí no século XVIII. UFPI: 2010 (Dissertação de

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sãofranciscana.15 A estratégia de montagem de fazendas permitia a posse sobre o território conquistado, assim como a ampliação dos espaços para os animais, cuja criação extensiva impunha a aquisição de terras mais providas de pasto natural e boas fontes de água. Nesse período, o caráter econômico se confundia com a violência e o militarismo da conquista: aqueles que viviam da criação do gado eram vaqueiros e soldados, prontos a guerrear sob pretexto de retaliações. Sob a forma de expedições punitivas, esses homens atravessaram o divisor de águas entre o São Francisco e o Parnaíba, sempre no rastro de seculares caminhos indígenas, até atingirem, na segunda metade do século, o rio Piauí e o rio Canindé, onde fixaram seus rebanhos em terras consideradas férteis.16

Quando a primeira freguesia foi criada, em 1697, há pelo menos duas décadas já existiam fazendas estabelecidas, e uma população incipiente, apesar de rarefeita e dispersa.17 Todas as terras conhecidas constavam como sesmarias doadas aos seus conquistadores: Domingos Afonso Mafrense e Francisco Dias D’Ávila.18 Este último herdara o portentoso patrimônio da Casa da Torre, como era conhecida a família Ávila. Estabelecidos na Bahia, desde o primeiro governo geral, dedicaram-se á conquista militar dos territórios indígenas que formavam a bacia do São Francisco. Em 1674, no encalço de índios rebeldes, uma expedição militar liderada por ambos encontrou as nascentes do rio Piauí, e em pouco tempo os demais rios que formavam a bacia sudeste do Parnaíba, como o Canindé e o caudaloso Gurguéia. Em 1676, as primeiras sesmarias foram concedidas em Pernambuco, representando léguas de sertão ainda desconhecido para a administração oficial.19

Essas sesmarias eram divididas e arrendadas por contrato àqueles dispostos a explorá-las economicamente, geralmente vaqueiros e membros das próprias expedições militares. Formavam-se currais e fazendas nas quais o rebanho, na maioria dos casos,

15 Sobre esse processo de conquista do Rio São Francisco através da instalação de fazendas e currais de

gado, Cf. PESSOA, Angelo Emílio da Silva. As ruínas da tradição: A Casa da Torre de Garcia D’Ávila – família e propriedade no nordeste colonial. USP: 2003 (Tese de Doutorado).

16

Cf. NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí, v. 1. Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 2007; MOTT, Luiz. Piauí Colonial: População, economia e sociedade. Teresina: APL, 2003; ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, histórica e corográfica da Província

do Piauí. Teresina: Comepi, 1981.

17

Cf. Carvalho, Miguel de. Descrição do Sertão do Piauí e Canindé [Carta ao Bispado de Pernambuco, 1697]. In:_____ENNES, Ernesto. As guerras dos palmares: subsídios para sua história. Companhia Editora Nacional: São Paulo, 1938.

18

Idem.

(16)

pertencia ao sesmeiro; após firmado o contrato, a cada quatro animais que nascessem, um pertenceria ao posseiro, sendo esta sua parte na sociedade. Além disso, pagava uma taxa anual pelo uso da terra, cobrada indefectivelmente por representantes autorizados. Não é difícil imaginar a existência de arbitrariedades nessas relações. Os primeiros anos de fixação deste sistema foram marcados por violências, extorsões e assassinatos, sempre ocasionados por disputas territoriais e abusos cometidos pelos donos das sesmarias contra os posseiros,20 aqueles que realmente assumiam todos os riscos de permanência na terra, nestes “dilatadíssimos sertões”.21

As primeiras intervenções sobre esses embates aconteceram por intermédio do Padre Miguel de Carvalho, responsável legal pelos procedimentos eclesiásticos que fundaram a freguesia de Nossa Senhora da Vitória sob as ordens do Bispado de Pernambuco. É de sua autoria a Descrição do Sertão do Piauí,22 documento valiosíssimo por traçar uma visão racional que abrangia dados físicos e geográficos, definia distâncias, enumerava a fazendas e seus moradores, e organizava a nomenclatura dos povos indígenas que coabitavam, quase nunca em paz, com os pioneiros que ousavam a fixação nessas fronteiras ainda sombrias para a administração colonial. Segundo Carvalho, todas as terras pertenciam legalmente a Domingos Afonso Mafrense e Leonor Pereira Marinho, que exerciam de tal forma violenta essa autoridade que as queixas contra os abusos, ouvidas pelo padre durante cerca de quatro anos, fizeram parte de uma campanha pessoal junto ao Rei em favor daqueles que arrendavam e trabalhavam nessas propriedades.23

Em princípios dos setecentos, a administração colonial iniciou um processo jurídico de intervenção acerca do problema de terras no Piauí. A Carta Régia de 3 de março de 170024 transferia a jurisdição sobre doação de sesmarias dos foros da Bahia e de Pernambuco para o Maranhão, com a intenção clara de diminuir a influência política de Sertão e dos Ávila, e aproximar os posseiros de um foro jurídico que atendesse suas

20 BRANDÃO, Tânya. A Elite Colonial Piauiense: família e poder. 2ª Ed. Recife: Editora Universitária

da UFPE, 2012.

21

[Consulta da Junta das Missões sobre as cartas do Bispo e Governador de Pernambuco em que representam a falta de igrejas e Párocos nos Presídios dos Palmares e Sertão de Rodelas, delitos que se cometem neste Sertão e dissolução com que vive o Mestre de Campo do Presídio das Alagoas]. In:_____ ENNES, Ernesto. As guerras dos palmares: subsídios para sua história. Companhia Editora Nacional: São Paulo, 1938. Documento 57, p. 352.

22 Carvalho, Miguel de. Descrição do Sertão do Piauí e Canindé [Carta ao Bispado de Pernambuco,

1697]. In:_____ENNES, op. cit.

23

NUNES, 2007, v. 1, p. 106.

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demandas legais. Exatamente dois anos depois, a Carta Régia de 3 de março de 1702,25 determinava a demarcação de todas as terras do Piauí, sob pena de ficarem devolutas. Em 1714, o governador do Maranhão declarou-as devolutas, mas um Alvará de 11 de Janeiro de 1715 protegeu as sesmarias doadas na Bahia e em Pernambuco.26 A questão era tão delicada que o Ouvidor Geral da Bahia fora autorizado “a notificar a Garcia de

Ávila Pereira que, sob pena de se lhe tirarem todas as suas sesmarias, não perturbe nem inquiete os moradores que no Piauí se achem de sesmarias ou datas que já têm povoadas”.27 Entre os primeiros anos do século XVIII, até 1758, quando toma posse o primeiro governador da Capitania, “o interesse que a Corte tomou para pôr termo ao

problema de terra no Piauí deu origem a sucessivas provisões, cartas régias, bem como a nomeações de notáveis autoridades para a execução das medidas preconizadas”.28

Em 1712, o governador do Maranhão havia sugerido a nomeação de um juiz de fora para o Piauí; entretanto, sua ideia fora recusada pelo rei, que achou ser de melhor conveniência a criação de uma vila no local da freguesia de N. S. da Vitória, “com

senado da câmara, juízes, vereadores, almotacés, provedor e seu escrivão e outro para o judicial, ou um só para ambas as escrivanias [...]”.29 A instalação da vila, nomeada de Mocha, aconteceria somente em 26 de dezembro de 1717. Em 1718, o Piauí foi convertido em capitania, mas só “legalmente”: na prática, isso se deu mais de quarenta anos depois, com a posse de primeiro governador em 1758. Esses dois eventos apontam para duas questões bem relevantes: primeiro, a opção pela instalação da vila como ferramenta de controle jurídico e representação da força e autoridades reais; segundo, o processo de institucionalização do território, que se deu num contexto de racionalização da administração ultramarina. Em ambos os casos, é possível observar tanto a afirmação do Estado sobre um contexto em que dominavam arbitrariamente forças privadas, quanto a necessidade de definir geopoliticamente seus limites. Lutas entre sesmeiros e posseiros, enfrentamentos contra tribos indígenas belicosas, e toda a violência implícita faziam do Piauí uma zona problemática e alvo constante de intervenções.

A elevação da vila da Mocha à categoria de cidade, em 1761, com o nome de Oeiras foi uma ação de seu primeiro governador, João pereira Caldas, em cumprimento

25 Idem. 26 Ibidem, p. 118. 27 Idem. 28 Ibidem, p. 133. 29 Ibidem, p. 116.

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da Carta Régia de 19 de junho de 1761.30 Esse período foi um marco para a organização político-administrativa da capitania, por sua vez criada num contexto bem mais amplo de racionalização dos domínios lusitanos de além-mar. O ministério do Marquês de Pombal, num curto período de tempo, agiu sobre o Piauí como nunca fora feito até então: materializou o projeto de criação da Capitania, confiscou os bens da Companhia de Jesus corporificados em dezenas de fazendas de gado ao longo do território, organizou o corpo burocrático-administrativo e as forças militares, e definiu a criação de vilas e cidades como projeto de institucionalização da ordem sobre um espaço vasto e de difícil administração como era o Piauí na metade do século XVIII.

A constituição de uma “política metropolitana” materializada na criação de vilas e cidades não foi um aspecto sui generis da administração no Piauí, podendo ser considerada como estratégia de amplo espectro no período em questão.31 Mas não deve ser desconsiderado o fato de que, somente a partir desse momento histórico, “estabeleceu-se a situação jurídica dos habitantes em relação ao Estado português”.32 As vilas criadas no Piauí concomitantes com a cidade de Oeiras e sua respectiva elevação a foro jurídico de sede administrativa provincial, num contexto geral, apontam a necessidade de estabelecimento de “pontos limites da estrutura

político-administrativa da Colônia”.33

Da mesma forma, as questões acerca do urbanismo português dos setecentos já apontam para a existência de um projeto político que fazia da cidade a representação temporal do Estado sobre territórios mediterrâneos, e subvertem certas perspectivas historiográficas que minimizam ou mesmo desconsideram a ordem e o planejamento urbanos como marca da administração colonial.34 A carta régia de 1761 estabelecia ordens claras acerca da estruturação do espaço e alinhamento das ruas da cidade de Oeiras, e a mesma preocupação pode ser observada na criação de inúmeras vilas durante o mesmo período. Havia certamente, por parte do Rei, considerações de caráter estético, demonstrando cuidado em relação à aparência, ou visualidade, de seus domínios

30 COSTA, Pereira da. Cronologia Histórica do Estado do Piauí: desde seus tempos primitivos até a

proclamação da república. Artenova. Rio de Janeiro: 1974, p. 143.

31 Exemplos de criação de vilas no Ceará e no Rio Grande do Sul com as mesmas finalidades

político-institucionais.

32 BRANDÃO, 2012, p. 76. 33 Ibidem, p. 77.

34

Nestor Goulart Reis, na década de 60, criticou as considerações de Sérgio Buarque de Holanda sobre a ausência de planejamento urbano nas políticas do Estado português.

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mar. A cidade deveria ser a materialização de uma ordem compacta e visível, sempre a mesma aonde quer que se fosse, para demonstrar força na unidade. Para o viajante que andasse pelas campinas de capim e gado desses sertões, a visão do espaço urbano deveria proporcionar essa visão, de que ali, à revelia das vastidões do território, estava a ordem burocrática do Estado português.

Dessa forma, o elemento urbano foi, na perspectiva da administração colonial, o caminho para a constituição de uma sociedade civil para uma Capitania incipiente, como também para discipliná-la aos costumes, normas ou padrões de comportamento. Obviamente, existiram resistências, assimilações e confrontos, e a própria dificuldade de se imprimir uma cultura urbana, sobre um território constituído já há quase um século na estrutura fundiária da fazenda de gado, de população reduzida e dispersa, parece ser desafiador mesmo para os julgamentos contemporâneos. Mas era esse desejo que transparecia nas cartas régias: a visão de um futuro que tinha nas vilas e cidades o seu foco de irradiação.

Portanto, é lícito corroborar a existência de um horizonte de expectativas na intervenção urbana que caracterizou a ação governamental na criação da Capitania de São José do Piauí. Oeiras foi portadora, em seu tempo, de uma “lógica” urbana e signo da política ultramarina, elementos que não foram problematizados no discurso mudancista dos relatórios governamentais já citados. Entretanto, quando olhados de perto, até mesmo se parecem.35 É possível afirmar uma semelhança, e até mesmo uma continuidade, no uso do urbano como projeto político de afirmação da ordem, no caso da construção de Teresina? No entanto, colocado o problema sob tal perspectiva, não estaria justificando discursivamente o fracasso de Oeiras e a necessidade de substituí-la, da forma como defendiam os mudancistas? Não parece ser correto o movimento de julgá-la em termos de certo ou errado, mas constatar que ambas as cidades, nos anos chave de 1761 e 1852, suportaram visões de futuro, e que essa semelhança histórica é inegável.

Pode-se observar certas aproximações, algumas bem óbvias, como por exemplo, o fato de que Antonio Saraiva procedeu da mesma forma que fora feito com

35 Também a questão das “luzes” foi problematizada no século XVII. Era desejo da administração

ultramarina que a convivência urbana tirasse os moradores de suas fazendas para habitarem as recentes vilas, com o intuito de evitar que essa população vivesse “com os gados e com os irracionais nessas distâncias para se escurecer até vir a perder a nobreza na habitação de ermos tão remotos”. [Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a João Pereira Caldas. Palácio de N. S. da Ajuda, 19 de junho de 1761]. In:_____ COSTA, 1974, v. 1, p. 149.

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Oeiras, elevando uma vila a foros de cidade com a função de sede administrativa. O seu discurso contém a construção de Teresina como pilar do desejo de ter no urbano a cristalização do projeto político do qual fazia parte e de onde partia essa ação. Por outro lado, existe nas Cartas Régias a visão de uma rede institucional de vilas e cidades que serviu de base para a consolidação da América portuguesa dentro dos parâmetros legais e em conformidade com as leis, pois também no século XVIII optou-se pela delineação do espaço urbano como agente condicionante da mudança. E mesmo em termos estritamente técnicos, é coerente afirmar que Antonio Saraiva, ao definir os padrões organizacionais do espaço material de Teresina, tenha aprimorado os modelos urbanísticos coloniais especialmente no alinhamento das ruas e centralidade das praças: o tabuleiro de xadrez era um tipo de organização oriunda do pragmatismo militar português, com raízes bem distantes.

Trabalhar com a hipótese de que as fundações de Oeiras e Teresina personificaram momentos em que a administração portuguesa – cada uma em seu tempo e dentro das suas singularidades – optou pela afirmação institucional e política através da cidade, significa adentrar na seguinte questão: como e que estratégias foram adotadas, em ambos os casos, na construção de uma cultura urbana para o Piauí? Houve pelo menos tal esforço? Certamente que sim, caso contrário o empreendimento simbólico presente em cada um desses eventos não se justificaria. Seria imprudente, em termos metodológicos, desconsiderar tal questão, o que não significa precisamente equiparar dois acontecimentos históricos particulares e que tiveram motivações distintas. Mas em precisamente três aspectos, não há como negar entre eles as semelhanças, pelo menos no campo semântico da documentação, tais como a presença da futuridade, a ideia de cidade “civilizante”, e a definição de regras na ordenação do espaço urbano. Mesmo durante toda a administração colonial, a navegabilidade da bacia parnaibana, eixo da argumentação mudancista, fora tema recorrente, como também o próprio desejo de mudança da capital.36

Então, se é possível falar em aproximações históricas sob tais termos, por que então o desejo de mudança? Por que a manifesta intenção de parte razoável da opinião pública desde 1844 até 1852, na execução da transferência? Oeiras não conteve o horizonte de expectativas exprimido pelo Rei em 1761? Por que, na perspectiva da

36 A visão de uma cidade às margens do Parnaíba, na antiga vila do Poti, e próximo de onde hoje está

localizada a cidade de Teresina, pode ser encontrada em carta datada de 8 de abril de 1798, de autoria de Dom João de Amorim, governador da capitania. Cf. ALENCASTRE, 1981, p. 65.

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administração provincial, a partir de 1844, era imperativo para o “desenvolvimento” do Piauí tirar-lhe a função de capital e promover todo um deslocamento do aparato burocrático? Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a hipótese de continuidade em termos urbanísticos e políticos na história das duas cidades é um esforço de abstração somente possível numa perspectiva horizontal e a partir de um distanciamento histórico que marca o lugar desta pesquisa. Mas na segunda metade do século XIX, Oeiras perdera o monopólio das visões de futuro e, em termos políticos, a incapacidade de conter essas projeções justificou, pelo menos em parte, a legitimidade dada ao projeto de transferência que culminou na construção de Teresina. Qual o motivo desta limitação simbólica observada e presente na documentação oitocentista?

Se há tantas semelhanças vistas de longe, também existem diferenças consideráveis. Quando Saraiva conclamou a Assembleia a aderir à mudança, utilizou-se de um artifício retórico poderoso: o uso político de um conceito, a palavra civilização. Ela apareceu diversas vezes, e nos momentos cruciais da argumentação. A Assembleia de 1851 foi crucial no sentido de apresentar a ideia da mudança como algo plenamente realizável e de agregar votos dos deputados a favor do projeto. E é em nome desta ideia que ele almejava legitimá-lo, num ambiente que mesmo naquele momento ainda hostilizava o plano de tirar de Oeiras os foros de capital.

Em 1851, na fala de Antonio Saraiva, a palavra civilização apontava para o futuro. Estabelecia na linearidade temporal sua força coercitiva capaz de converter a questão da mudança na encruzilhada histórica que poderia definir os rumos da província. Por outro lado, circunscrevia Oeiras numa espécie de lugar ermo no tempo, cristalizada, imóvel, ponto de partida sem chegada. Uma palavra que poderia ser definida como um conceito, porque naquele momento, em termos históricos, “a

totalidade das circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela”.37

Essa pesquisa está orientada no sentido de corresponder às demandas oriundas de duas questões. Primeiro, por que, em 1851, optou-se pela construção de uma cidade, Teresina, para abrigar a sede administrativa da Província, em substituição à Oeiras? Segundo, se Oeiras não correspondia às expectativas que motivaram a sua substituição, por que, afinal, fora escolhida para tal função em 1761? Um erro da administração ultramarina? Um mal-entendido histórico? Ou a afirmação de uma lógica urbana sobre

37

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 109.

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outra? Não são questões simples de responder. Existem trabalhos precisos em estabelecer análises acerca de questões referentes às formas urbanas, traçados geométricos, e a materialização de um projeto político manifesto através desses parâmetros urbanísticos, além das trocas entre os agentes da administração colonial e as forças locais na fixação de tais diretrizes, como bem nos alertou Nestor Goulart Reis38 ao defender uma “tradição” urbana setecentista. Estudiosos do urbanismo são categóricos em afirmar, especialmente em relação à história de Oeiras, o uso político do espaço, ou melhor, a delineação de uma cidade da ordem, materialização institucional da teia burocrática sobre os vastos sertões do Piauí.39

Proponho, para almejar um redirecionamento metodológico, uma exegese apurada da documentação envolvida, a saber: as cartas régias de 29 de junho de 1759 e 19 de junho de 1761,40 referentes à fundação da cidade de Oeiras e demais vilas na fase primária de instalação do aparato burocrático na Capitania de São José do Piauí, no período do ministério pombalino; os documentos oficiais produzidos no Conselho Ultramarino no período em questão; e os relatórios dos presidentes de província41 que, a partir de 1844, na administração de Sousa Ramos, até 1852, com Antonio Saraiva cristalizaram a ligação do projeto de mudança a uma urgência estrutural do Piauí. Isso permite vislumbrar a questão ou problema do urbano no Piauí dentro do universo semântico, dos usos da palavra, das cargas simbólicas que historicamente pôde suportar. A palavra urbano, se pesquisada no Dicionário da Língua Portugueza,42 de 1789, significava, enquanto adjetivo, aquilo que era “dotado de urbanidade”, ou “conforme

aos termos da urbanidade”.43 Urbanidade, por sua ver, foi definida como “a cortezia, e

bom termo, os estilos da gente civilizada, e polida, civilidade, policia”.44 Urbanizar, enquanto verbo, foi descrito como “fazer urbano, civilizar”.45

E a palavra policia – que materializava os desejos do Rei D. José com a criação de Oeiras – carregava, além do

38 REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução urbana no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1968. 39 Cf. RIGHI, Roberto e CARVAL, Silvia. A cidade de Oeiras e o urbanismo pombalino, apresentado no

IX Seminário da Cidade e do Urbanismo, São Paulo, 2006.

40 ALENCASTRE, 1981, p. 156-161.

41 Todos os relatórios referentes ao Piauí estão disponíveis on-line no site do Center for Research Libraries, no período correspondente a 1835-1889.

42

BLUTEAU, Raphael. Dicionário da Língua Portugueza. Tomo II. Lisboa, 1789. Disponível em Google livros.

43 Ibidem, p. 499. 44

Idem.

(23)

sentido referente ao “governo, e administração interna da República”, também o significado de “urbanidade dos cidadãos, no falar, no termo, na boa maneira”.46

Oeiras e Teresina projetaram visões inscritas em seus respectivos documentos fundantes, a partir do uso político de determinados conceitos. Já não é possível desconsiderar que a criação da primeira cidade suportou tantas expectativas quanto a primeira; e que seguiu uma racionalidade específica, conteve também um projeto e portou o signo da mudança, além de servir, em termos de dizibilidade, como o outro sobre o qual os relatórios presidenciais, já nos oitocentos, elaboraram identitariamente a cidade que sonhavam. Uma analogia interessante é possível de ser feita com a Marósia de Ítalo Calvino,47 feita de duas cidades, uma dos ratos, a outra das andorinhas. “É hora

de concluir o século dos ratos e iniciar o das andorinhas”, diziam alguns habitantes.48

Sobre essa duplicidade, dizia Calvino: “ambas mudam com o tempo; mas não muda a

relação entre elas: a segunda é a que está para se libertar da primeira”.49

Não é possível historicizar Teresina sem Oeiras: elas se cruzam. E as motivações de sua fundação, em 1852, já nos parecem tão distantes quanto eram para seus contemporâneos as motivações contidas em 1761. Sendo assim, o objetivo desta tese é traçar uma genealogia da experiência urbana no Piauí a partir das visões de futuro passadas, dos horizontes de expectativas delineados com a fundação de ambas as cidades, e como essas visões foram mobilizadas politicamente a partir do uso de certas palavras e conceitos. Além disso, analisar como a ideia de mudança da capital – pensada tanto na Colônia, quanto no Império – permitiu aos seus contemporâneos a construção de saberes e possibilidades no universo dessas visões. Em termos metodológicos, “compreender os conflitos sociais e políticos do passado por meio das delimitações

conceituais e da interpretação dos usos da linguagem feitos pelos contemporâneos de então”.50 Reinhart Kosseleck é preciso em afirmar que:

Quando se analisam conceitos passados cujos termos ainda poderiam ser os nossos, podemos ter uma ideia das esperanças e anseios, das angústias e sofrimentos dos contemporâneos de então. E mais, tornam-se manifestos, para nós, a extensão e os limites da força enunciativa dos testemunhos linguísticos do passado. Poderemos avaliar o espaço da experiência e da

46

Ibidem, p. 225.

47 CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. Rio de Janeiro: O Globo, 2003. 48 Ibidem, p. 147.

49

Ibidem, p. 148.

(24)

expectativa passadas, na medida em que ele pôde ser apreendido conceitualmente dentro da economia linguística do passado e foi efetivamente articulado na linguagem das fontes.51

Não é sobremaneira intenção desta pesquisa ater-se a uma supervalorização da documentação escrita na construção de uma história; pois “toda semântica se relaciona

a conteúdos que ultrapassam a dimensão linguística”.52 Ou melhor, como diria poeticamente Ítalo Calvino, “jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a

descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”.53 Partindo desta premissa, desejo analisar o fenômeno urbano no Piauí em sua construção semântica e social, não “como a

identidade de um ‘Zeitgeist’ linguisticamente articulado e as circunstâncias nas quais se deram os fatos”,54 mas enquanto “tensão entre conceitos e fatos”,55 pois as possibilidades tão promissoras no âmbito do discurso, seja nos começos de Oeiras ou Teresina, são hoje como a cidade de Fédora: um lugar onde “há um palácio de metal

com uma esfera de vidro em cada cômodo. Dentro de cada esfera, vê-se uma cidade azul que é o modelo para outra Fédora. São as formas que a cidade teria podido tomar se por uma razão ou por outra, não tivesse se tornado o que é atualmente”.56 As cidades carregam a história dos seus possíveis e da infalibilidade do tempo, na medida em que, tal como Fédora, “o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não

passava de uma esfera de vidro”.57

Existe uma dificuldade inerente a este trabalho, referente ao extenso corte cronológico que almeja arrebatar. Não é uma tarefa simples para o historiador mobilizar um corpus documental tão vasto e que carrega a experiência semântica de pelo menos dois séculos. Porque pensar metodologicamente uma análise das forças envolvidas na criação de ambas as cidades significa trazer para a esfera da pesquisa a maturação do tempo, e regredir antes mesmo do ano chave de 1761, até os primórdios da criação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória, em 1697, o núcleo populacional que originou a primeira capital. Se pensar Teresina exige o esforço de pensar Oeiras, portanto uma análise crítica desta não deve desconsiderar um recuo temporal, tornando ainda maior o

51 Ibidem, p. 268. 52 Ibidem, p. 103. 53

CALVINO, op. cit., p. 61.

54 KOSELLECK, op. cit., p. 111. 55 Idem.

56

CALVINO, op. cit., p. 34.

(25)

desafio de não sucumbir à dispersão. A opção escolhida foi o estabelecimento de eixos históricos em que o termo urbano, ou outros adjuntos a ele, tais como polícia e

civilização aparecem na documentação relacionados a momentos políticos específicos,

sem perder de vista a necessidade de conexão com uma chave de leitura focada, especialmente, nos usos e projeções contidos nesses mesmos termos como registro de suas ações políticas.

O primeiro capítulo deseja analisar os meandros políticos da transferência da capital tomando como ponto de partida os relatórios governamentais entre 1836 e 1852, procurando analisar particularmente os elementos que compunham os fundamentos da argumentação mudancista. Por que optou-se pela construção de uma nova cidade como solução do problema da transferência? Por que, a partir de 1844, a mudança foi alçada a representação de um futuro promissor para a Província e executada sob esta condição histórica? Analisada em termos urbanísticos, a escolha do plano de construção da nova cidade, com ruas perpendiculares em forma de tabuleiro de xadrez, constituído a partir de uma praça central onde se materializavam, através das construções, o poder espiritual e secular, parece mesmo uma sofisticação da visão urbanística presente nas cartas régias de Oeiras, com ruas retas e casas alinhadas em torna da Igreja Matriz. No entanto, no campo discursivo, foi elaborada como uma ruptura em relação ao passado, como um leque de possíveis que se abriam para o futuro. Isso foi possível graças a uma construção identitária que tomou Oeiras enquanto seu outro, como também pelo uso político do conceito de civilização, que durante o Segundo Reinado captou a construção de um ideal de ordem e prosperidade e funcionou como ferramenta de representação do poder do Estado. Os presidentes provinciais, a partir da administração de Sousa Ramos, em 1844, recorreram a esse termo seja para reforçar a sua visão de cidade, como para afirmar a iminência de um tempo porvir que marcava e legitimava a sua urgência histórica. É objetivo deste capítulo analisar a relação entre o uso político da palavra civilização e a criação da cidade de Teresina. Quais as expectativas geradas com a criação de Teresina e a mudança da capital? Qual modelo de cidade ideal mobilizado nessas visões?

Portanto, o capítulo procura compreender as narrativas relacionadas à mudança da capital em sua natureza política, com a análise do conjunto de argumentos presentes em Antonio Saraiva. Por outro lado, promover um deslocamento para outros presidentes que, antes dele, pensaram e deliberaram sobre o tema. Dessa forma, estabelecer uma genealogia da mudança em seu universo político. Além disso, compreender as

(26)

representações de Oeiras a partir do discurso de civilização e sertão que estabeleciam a antiga capital como outridade no processo de invenção de Teresina. Este esforço deliberado de construção do esquecimento não apenas silenciou sobre as condições históricas que lhe determinaram como capital, mas sobre o fato de que as possibilidades mobilizadas para materializar a nova sede administrativa, no século XIX, já haviam sido pensadas durante o período colonial.

O segundo capítulo deseja problematizar o primeiro processo que deliberou sobre a possibilidade de saída da capital de Oeiras para um local nas margens do rio Parnaíba, entre 1797 e 1801. Sob a tutela do Conselho Ultramarino, ele produziu um documento vasto, em que a questão foi abordada profundamente. Quais os fundamentos do conjunto processual que produziu os saberes sobre a mudança no período colonial? Ela foi pensada no contexto de um projeto de criação de vilas como parte do esforço de criação da Capitania de São José do Piauí. Em 1761, ela serviu como afirmação do domínio institucional da administração colonial, como estratégia geopolítica de posse das regiões mediterrâneas, e como projeto de “civilização” do sertão, a partir de um plano deliberado de instituição de uma cultura urbana. Foram criadas seis vilas, e Mocha foi elevada a foros de cidade, sendo escolhida também como sede administrativa do incipiente corpo burocrático. Nas cartas régias dirigidas ao primeiro governador, João Pereira Caldas, o rei D. José descreveu suas visões acerca do projeto de criação da Capitania, definindo suas intenções, esperanças, expectativas e a formas de procedimentos formais da organização, tanto do espaço urbano, na definição de regras urbanísticas e escolha dos nomes das respectivas vilas, quanto da formação do corpo burocrático a partir da própria população local, que deveria assimilar as formas de convivência urbana. A palavra polícia, presente na documentação real, continha um elemento de futuridade por representar bem as expectativas oriundas da criação de Oeiras: como já foi dito, correspondia em termos semânticos uma noção de urbanidade para seus contemporâneos e apontava também para o uso político no período. Compreender esses usos e as visões contidas é a chave para compreender a escolha e prevalência da cidade de Oeiras como capital até meados do século XIX, quando o horizonte de expectativas resultante de sua criação já parecia incompreensivelmente distante. O objetivo deste capítulo, portanto, é entender essas projeções pela análise da documentação, avaliando a relação entre esse universo linguístico das fontes e seus correspondentes extralinguísticos, na mediana entre o que se desejou e projetou, e os rumos concretos que definiram a configuração da cidade, ora aproximando-se, ora

(27)

distanciando-se destas expectativas. Como Oeiras suportou as visões de futuro que lhe foram impostas em seu começo? De que forma a cidade foi colocada em dúvida por conta do pedido de transferência? Como o processo desencadeado pelo Conselho Ultramarino nos permite compreender a própria dinâmica desse projeto colonial? Para responder esses questionamentos, serão utilizadas como documentação primária as cartas régias de 1759 e 1761, referentes às vilas e à cidade de Oeiras; as cartas de João Pereira Caldas sobre os procedimentos por ele executados no processo de implementação das ordens reais e os desafios e limitações encontrados; e a Descrição

da Capitania de São José do Piauí,58 de autoria de Antonio Durão, ouvidor-geral que em 1772 analisou os resultados do projeto urbano aqui executado e traçou um perfil dos núcleos urbanos existentes no Piauí, se corresponderam ou não aos planos traçados pela Coroa.

O terceiro capítulo analisa a construção das imagens de futuro relacionadas ao Piauí com o advento da mudança da capital e a construção de Teresina. Quais as representações mobilizadas para a construção do futuro da Província? Os relatórios pós-fundação demonstraram que dois elementos personificavam as expectativas em torno da mudança: a navegação a vapor do Parnaíba, e as obras públicas na nova capital. Durante mais de uma década, pesou sobre os ombros dos presidentes provinciais a responsabilidade de materializarem ambos os aspectos; porém, o elemento da incerteza atravessou essa projeção de futuro, na medida em que ameaçada pelas dificuldades e obstáculos inerentes ao projeto. Dessa forma, o discurso político construiu uma imagem de futuro significada pelo conceito de civilização e os signos do progresso: a navegação, o vapor, a indústria e a ciência – onde Teresina personificava a possibilidade de consolidação dessas expectativas, como cidade modelar. Por sua vez, é possível afirmar que esse esforço era maior que o universo provincial: se tratava de uma construção identitária mobilizada para a legitimação da imagem política do Segundo Reinado. Assim, tal projeção de futuro construiu o seu próprio passado, representado pela imagem do sertão e do sertanejo conectadas à antiga capital, Oeiras – um espaço-tempo a ser superado e que aparecia como obstáculo ao discurso civilizatório que Teresina estava fadada a carregar. Essa perspectiva foi incorporada pelo discurso historiográfico com a publicação do primeiro livro de história do Piauí, a Memória Cronológica,

58

A transcrição deste documento na íntegra pode ser encontrada em: MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. 2ª Ed. Teresina: APL, 2006, p. 28.

(28)

Histórica e Corográfica da Província do Piauí, através da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1855. Como operava essa narrativa? De que forma ela corroborou o discurso político tanto em seus objetos, quanto no processo de silenciamento de uma história relacionada à experiência de Oeiras?

Se as narrativas políticas e historiográficas construíram uma identidade para o Piauí e o Brasil na relação entre os conceitos de civilização e cidade, tendo a nova capital como central nessa dinâmica, e com o ideal de apropriação do sertão no sentido de sua incorporação e disciplinarização – já que significado como principal obstáculo desta visão – pode-se observar que, no plano literário, uma outra construção semântica foi executada. A publicação da Lira Sertaneja, de autoria do poeta e jornalista Hermínio Castelo Branco, sinalizou para uma inversão completa dos mesmos objetos, com a produção de uma lírica fundamentada na proeminência da experiência rural sobre a experiência urbana. Na batalha de imagens para dizer o Piauí e o Brasil, Castelo Branco mobilizou o sertão e o sertanejo para afirmá-los como portadores da identidade da nação, e para elaborar uma crítica ao ideal civilizatório materializado pela cidade. Quais as características retóricas deste discurso? Como ele se articulava com o contexto político provincial? Assim, o período posterior à fundação de Teresina foi responsável pela produção de duas imagens antagônicas; e que se encontravam, porém, na mobilização de objetos em comum.

Esta pesquisa pretende pensar o fenômeno urbano no Piauí – especificamente, a mudança da capital – em suas manifestações sociais e linguísticas, e os usos da palavra em suas composições e variações semânticas, num período de tempo particularmente amplo. Manuel de Barros conta que em sua infância, observando o trabalho dos arqueólogos, inicialmente não os compreendia. “No começo achei que

aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam na terra o dia inteiro escovando osso”.59 Seu espírito poético o fizera reconhecer as devidas semelhanças para concluir que as palavras são “conchas de clamores antigos”;60 e que seu desejo era o de ir no rastro desses clamores, “que estariam guardados dentro das palavras”.61

De que jeito?

59 BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora

Planeta do Brasil, 2008, p. 21.

60

Idem.

(29)

Fazendo feito arqueólogo: “logo pensei de escovar palavras”.62

Nada descreve melhor o espírito metodológico deste trabalho.

(30)

CAPÍTULO I – A MUDANÇA DA CAPITAL NO SEGUNDO

REINADO

1.1 Mobilizando as forças

Em ofício de 20 de janeiro de 1852, o presidente da Província do Piauí, Antonio Saraiva, determinou ao secretário de obras provinciais – o português João Isidoro França – o castigo de qualquer escravo insurreto durante as obras de construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Amparo.63 Alguns dias antes, em 7 de janeiro, repreendeu veementemente França acerca dos atrasos da obra, iniciada um ano antes, em 8 de janeiro de 1851, quando a pedra fundamental foi lançada em cerimônia oficial. Nesse momento, ostentava a confiança no trabalho do mestre; meses depois, o tom de voz era outro.64 De janeiro até maio de 1852, Saraiva interferiu diretamente em diversos aspectos da construção: escreveu sobre castigos, escravos doentes, gastos com trabalhadores, estratégias de trabalho e sobre os custos desenfreados.65

Desde novembro de 1850 o presidente demonstrava a relevância e urgência da obra em sua plataforma de governo. Mestre Isidoro foi transferido dos trabalhos que realizava na capital da Província – uma série de melhoramentos na Ladeira do Castelo, trecho da estrada real que, partindo de Oeiras, ligava o Piauí ao Maranhão. Antonio Saraiva ordenou o seu fim imediato e o deslocamento de todos os recursos disponíveis – escravos, trabalhadores artífices, ferramentas, animais – para o porto de São Francisco, localizado nas margens do Rio Parnaíba nas proximidades da barra do Rio Poti, um de seus principais afluentes.66 Esse porto era o acesso fluvial ao local de construção da Igreja de N. S. do Amparo, cuja finalidade seria substituir a arruinada matriz da Vila do

63

Livro da Secretaria da Presidência do biênio 1851-52. Ofício de 20 de janeiro de 1852. Arquivo Público do Estado do Piauí – Casa Anísio Brito.

64 Livro da Secretaria da Presidência do biênio 1851-52. Ofício de 7 de janeiro de 1852. Arquivo Público

do estado do Piauí – Casa Anísio Brito.

65

O registro das questões relacionadas à construção da Igreja de N. S. do Amparo estão disponíveis nos livros da Secretaria da Presidência e nos relatórios presidenciais de 1853 a 1860, disponíveis para consulta no Arquivo Público do Estado do Piauí.

66

Livro da Secretaria da Presidência do biênio 1851-52. Ofício de 7 de janeiro de 1852. Arquivo Público do estado do Piauí – Casa Anísio Brito.

Referências

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