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Construção de indicadores de saúde para os indígenas a partir do Censo Demográfico 2000: Reflexões a partir do caso dos Xavante de Mato Grosso

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Construção de indicadores de saúde para os indígenas a partir do Censo

Demográfico 2000: Reflexões a partir do caso dos Xavante de Mato

Grosso

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Nilza de Oliveira Martins Pereira** Ricardo Ventura Santos*** Carlos E.A. Coimbra Jr.**** Luciene G. Souza***** Resumo: A partir dos dados censitários brasileiros não é possível, com facilidade,

realizar inferências sobre a demografia de sociedades indígenas específicas. Não obstante, o censo brasileiro desempenha um papel fundamental na caracterização das condições de vida dos “indígenas”, incluindo aspectos relacionados à saúde. Neste trabalho pretendemos, a partir dos dados censitários de 2000, investigar aspectos demográficos básicos de um povo indígena específico, ou seja, os Xavante, cujas terras se localizam em Mato Grosso. As características investigadas foram obtidas a partir do questionário básico do Censo Demográfico 2000, que é aplicado a todos os domicílios pertencentes ao setor censitário. A alternativa utilizada para localizar os dados relativos aos Xavante na base do Censo Demográfico 2000 foi a de comparar a malha territorial de “setores censitários” do IBGE com a malha territorial das Terras Indígenas fornecida pela FUNAI. A associação das duas malhas territoriais geográficas, principalmente no tocante a sua localização e área geográfica, foi realizada utilizando o software ArcView versão 9.2 (ESRI 2006). Foram localizados nas terras Xavante um total de 61 setores censitários, com uma população total de 9 605 pessoas. Dados da Fundação Nacional de Saúde para o ano 2000 indicam uma população Xavante de 10 034 pessoas, portanto próxima daquela detectada no Censo 2000, inclusive no tocante à composição etária. Por outro lado, um número expressivo de domicílios Xavante (61,4%) foi classificado pelos recenseadores como “coletivos”, que é a classificação utilizada pelo IBGE para hotéis, presídios, quartéis, etc. Para domicílios “coletivos” o censo não coleta dados de caracterização dos domicílios, incluindo condições de saneamento. O caso Xavante permite discutir importantes dificuldades envolvidas na caracterização censitária de segmentos populacionais socio-culturalmente diferenciados, como e o caso dos povos indígenas, com reflexos sobre indicadores de saúde.

*

Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008”.

Proibida a reprodução total ou parcial do trabalho por qualquer meio ou processo sem autorização dos autores.

**

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e doutoranda na Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

***

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz e Professor adjunto do Departamento de Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro

****

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

*****

Fundação Nacional de Saúde – FUNASA e doutoranda na Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

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Construção de indicadores de saúde para os indígenas a partir do Censo

Demográfico 2000: Reflexões a partir do caso dos Xavante de Mato

Grosso

*

Nilza de Oliveira Martins Pereira** Ricardo Ventura Santos*** Carlos E.A. Coimbra Jr.**** Luciene G. Souza*****

Palavras Chave: indígenas; censos; saúde; Xavante

1. Introdução

Um dos mais surpreendentes resultados do último Censo Demográfico brasileiro, realizado em 2000, foi o aumento no número de pessoas que se autodeclararam “indígenas” para os recenseadores. Dentre todos as categorias de “cor ou raça” investigadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quais sejam, “branca”, “preta”, “amarela”, “parda” e “indígena”, foi nesta última que se observou o maior ritmo de crescimento populacional desde o censo anterior realizado em 1991 (10,8% ao ano para os “indígenas” em comparação com 1,6% para a população brasileira como um todo). Este incremento tem chamado a atenção por várias razões. Uma das principais é que, até a década de 1970, eram comuns previsões de que os povos indígenas não sobreviveriam no Brasil enquanto segmentos etnicamente diferenciados, ainda que na década de 1980 passaram a ser veiculadas interpretações que apontavam para a reversão da tendência de decréscimo (Pagliaro et al. 2005). Apesar desse crescimento, os “indígenas” ainda constituem a categoria de “cor ou raça” investigada pelo IBGE com menor proporção populacional na população brasileira (0,4%).1

As análises dos Censos de 1991 e 2000 acerca dos “indígenas” feitas até o momento avançaram significativamente quanto a descrever algumas de suas

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Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008”.

Proibida a reprodução total ou parcial do trabalho por qualquer meio ou processo sem autorização dos autores.

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e doutoranda na Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

***

Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz e Professor adjunto do Departamento de Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

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Fundação Nacional de Saúde – FUNASA e doutoranda na Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

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Um rápido crescimento demográfico dos indígenas tem sido observado em outros países da América Latina (ver McSweeney & Arps 2005 para uma revisão).

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características demográficas gerais, incluindo composição etária, fecundidade, mortalidade infantil e migração (IBGE 2005; Pereira et al. 2005). Uma limitação dos dados censitários brasileiros é que não é possível, com facilidade, realizar inferências sobre a demografia de sociedades indígenas específicas, ou seja, os “povos indígenas”. Por “povos indígenas” estamos nos referindo as quase duas centenas de sociedades indígenas que existem no Brasil, parcela importante das quais falam línguas nativas e habitam territórios (as “terras indígenas”) oficialmente reconhecidos pelo governo brasileiro. Buscar analisar os dados censitários considerando essa enorme sociodiversidade indígena é um desafio já que o censo brasileiro, mesmo no caso de uma pessoa se autodeclarar “indígena”, não coleta dados adicionais sobre língua falada, pertencimento étnico, dentre outras variáveis relevantes, para análises demográfico-antropológicas mais pormenorizadas.

David Kertzer e Dominique Arel na introdução da coletânea “Census and identity: the politics of race, ethnicity, and language in national censuses” fazem um comentário particularmente relevante para as discussões sobre minorias étnicas em censos nacionais, como é o caso dos “indígenas” no Brasil. Afirmam: “Censuses are… generally viewed as matters of bureaucratic routine, somewhat unpleasant necessities of the modern age, a kind of national counting. Yet… the census does much more than simply reflect social reality; rather, it plays a key role in the construction of that reality” (2002:2). Abordaremos adiante neste trabalho alguns desdobramentos conceituais e práticos desse comentário, mas por agora basta afirmar que, se os censos nacionais brasileiros desde 1991 apresentam a demografia dos “indígenas” com recorte específico, por outro os dados censitários, com toda sua autoridade estatística e simbólica, desempenham também o papel de ajudar a “construir” uma identidade coletiva “indígena” que não é dada a priori. Neste sentido, ao mesmo tempo que “refletindo a realidade social”, o censo brasileiro é um influente partícipe na construção de uma identidade (censitária) “indígena”.

Neste trabalho pretendemos, a partir dos dados censitários de 2000, investigar aspectos demográficos de um povo indígena específico – os Xavante. Trata-se de uma das sociedades indígenas mais numerosas no Brasil, com uma população de aproximadamente 10 mil pessoas que vivem em seis terras indígenas demarcadas no leste do Estado de Mato Grosso. Já que através do Censo Demográfico não é possível identificar diretamente os dados referentes aos Xavante, ou a qualquer outra etnia indígena, a estratégia de análise será verificar dentro dos limites das Terras Indígenas Xavante o conjunto de setores censitários, menor unidade de investigação utilizadas nos censos demográficos, que fazem parte da sua composição. Portanto, aplicaremos uma abordagem territorial para o conjunto dos dados censitários de modo a recuperar informações sobre os Xavante.

Este estudo contempla ainda duas outras dimensões. Primeiro, nosso grupo de pesquisa vem realizando detalhados estudos sobre a ecologia, demografia e saúde dos Xavante nos últimos vinte anos, de modo que dispomos de dados demográficos coletados in locu em todas as comunidades da etnia (ver síntese em Coimbra et al. 2002; Souza & Santos 2001). Compararemos nossas informações com os dados censitários no que diz respeito à distribuição da população segundo terra indígena, idade e sexo. Segundo, a partir de um diálogo com a literatura etnológica, pretendemos analisar qual a caracterização que emerge sobre certos aspectos da sociedade Xavante a partir dos dados

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censitários. Nosso enfoque será sobre dois conjuntos de variáveis do censo (“características do domicílio” e “características dos moradores”). Interessa-nos evidenciar como os recenseadores classificaram, em categorias censitárias concebidas para retratar a população nacional, arranjos e morfologia sociais inerentes a outros contextos sócio-culturais. Em especial, através da análise das “características do domicílio”, faremos considerações sobre as possibilidades de delineamento, a partir dos dados censitários, das condições de moradia e de saneamento.

2. Os indígenas e os censos demográficos no Brasil

O primeiro censo demográfico no Brasil aconteceu em 1872. Desde então vem sendo realizados a cada dez anos aproximadamente, por vezes com interrupções e/ou intervalos diferentes de uma década (Nobles 2002; Osório 2002). Uma característica importante dos censos no Brasil é que há uma longa tradição de incluir uma pergunta sobre a “cor ou raça” do entrevistado. Ao longo do tempo, a pergunta assumiu diferentes formatos, ou chegou mesmo a não ser incluída em alguns dos censos (Tabela 1). Observa-se que, desde a década de 1940, há uma relativa estabilidade nas categorias censitárias de cor. Especificamente no caso dos “indígenas”, a categoria foi incluída nos censos demográficos somente em 1991. Anteriormente, segundo vários autores, é possível que os “indígenas” se classificavam majoritariamente na categoria “parda” (Oliveira 1999).

Data do censo

1872 Branco, preto, pardo e caboclo

1880 Censo não foi realizado

1890 Branco, preto, caboclo e mestiço

1900 Censo não inclui pergunta sobre cor/raça

1910 Censo não foi realizado

1920 Censo não incluiu pergunta sobre cor/raça

1930 Censo não foi realizado

1940 Branco, preto, amarelo e pardo

1950 Braço, preto, amarelo e pardo

1960 Branco, preto, amarelo e pardo

1970 Censo não incluiu pergunta sobre cor/raça

1980 Branco, preto, amarelo e pardo

1991 Branco, preto, amarelo, pardo e indígena

2000 Branco, preto, amarelo, pardo e indígena

Categorias de cor/ raça

Fonte: IBGE (2005:12-13); Nobles (2002:68); Osório (2002).

Obs.: Até o Censo de 1950 a pergunta sobre cor/raça era aberta. Foi somente a partir do Censo de 1960 que as categorias apareceram como

pré-codificadas nos questionários.

Tabela 1

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É importante compreender como são obtidas as informações sobre “cor ou raça” nos atuais censos brasileiros. A técnica de amostragem aplicada aos censos brasileiros data de 1960. O desenho amostral adotado compreende a seleção sistemática e com eqüiprobabilidade, dentro de cada “setor censitário”2, de uma amostra dos domicílios particulares e das famílias ou componentes de grupos conviventes recenseados em domicílios coletivos, com fração amostral constante para setores de um mesmo município. Foram definidas duas frações amostrais distintas para o Censo 2000: 10% para os municípios com população estimada superior a 15.000 habitantes e 20% para os demais municípios. Essa metodologia foi aplicada de forma semelhante ao Censo Demográfico de 1991 (IBGE 2003).

Quanto à coleta das informações do Censo 2000, foram usados dois modelos de questionário: aplicou-se um “Questionário Básico” nas unidades não selecionadas para a amostra e contendo perguntas referentes às características que foram investigadas para 100% da população (ou seja, um conjunto de itens incluídos nos questionários dos censos realizados no mundo, em particular “características do domicílio” e as “características dos moradores”); e um segundo (o chamado “Questionário da Amostra”) aplicado somente nos domicílios selecionados para a amostra contendo, além das perguntas que também constam do “Questionário Básico”, outras perguntas mais detalhadas sobre características do domicílio e de seus moradores, referentes aos temas religião, “cor ou raça”, migração, escolaridade, fecundidade, nupcialidade, mão-de-obra e rendimento, entre outras (IBGE 2003; Albieri 2007).

Em 2005 foi publicado um detalhado estudo sobre os “indígenas” nos Censos Demográficos de 1991 e 2000, intitulado “Tendências Demográficas: Uma Análise dos Indígenas com Base nos Resultados da Amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000” (IBGE 2005). Esta pesquisa foi realizada conjuntamente por técnicos do IBGE e pesquisadores (antropólogos, epidemiologistas e demógrafos) ligados à Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO). Um dos principais achados do estudo foi o crescimento populacional expressivo da população “indígena” no Censo 2000 em relação ao censo anterior (1991), passando de 294.131 para 734.127 pessoas (IBGE 2005:19). Esse incremento populacional foi em maior escala na área urbana (aumento de 5,4 vezes) que na rural (aumento de 1,6 vezes).

Não é o intuito aqui detalhar o volumoso conjunto de resultados e interpretações demográficas sobre os “indígenas” nos dois censos, mas é importante indicar que, particularmente na área urbana, o perfil da população apresenta uma série de características bastante particulares. Os “indígenas” urbanos acompanham o padrão da composição por sexo e idade da população brasileira como um todo, que apresenta como características baixa fecundidade e mortalidade, e também uma razão de dependência baixa e idade mediana alta.

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Setor Censitário é uma das unidades básicas dos censos demográficos realizados no Brasil, sendo definido como “unidade de controle cadastral formada por área contínua urbana ou rural, cuja dimensão e número de domicílios ou de unidades não-residenciais permitem ao recenseador cumprir suas atividades censitárias em um prazo determinado, respeitando o cronograma de atividades” (IBGE 2000:15). Como veremos adiante, no caso do Censo Demográfico de 2000, o conjunto das terras Xavante foram divididas em 61 setores censitários. Para o país como um todo, havia mais de 200 mil setores censitários em 2000.

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Se no caso dos “indígenas” das áreas urbanas não se delineia a partir do Censo Demográfico uma população claramente discernível do ponto de vista antropológico, na área rural emerge um contingente populacional cujas características permitem aproximá-lo dos “povos indígenas”, na acepção antropológica da expressão. Assim, no caso dos “indígenas” rurais, um dos achados mais expressivos dos estudos já realizados é o de que 85% dos 350.829 indivíduos residem na área rural de municípios nos quais há terras indígenas reconhecidas pela FUNAI. Além disso, as características demográficas dessa população apresenta várias semelhanças com aquelas que vem sendo descritas em estudos em antropologia demográfica em comunidades indígenas específicas (ver síntese em Pagliaro et al. 2005). Dentre elas se destacam uma população majoritariamente composta por crianças e jovens (45,2% abaixo de 15 anos), baixa escolaridade formal, elevada fecundidade (taxa total de fecundidade de 5,8 filhos), elevada mortalidade infantil (47 por mil), dentre outras características. Ainda que o volume populacional de “indígenas” na área rural do país revelada pelo Censo de 2000 seja inferior às estimativas para a população dos povos indígenas segundo a FUNAI e a FUNASA (em torno de 400-450 mil em 2000), a conclusão é que o Censo, em linhas gerais, foi capaz de captar importantes características demográficas dos povos indígenas.

3. O nível micro iluminando o macro: Os Xavante no Censo Demográfico 2000

Infelizmente não há informações demográficas confiáveis (natalidade, mortalidade, migração, etc) sobre as centenas de sociedades indígenas que habitam o território brasileiro. No caso de algumas delas foram realizados estudos demográficos mais aprofundados, ainda que referentes a intervalos de tempo circunscritos (ver revisão em Pagliaro et al. 2005). A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), apesar de ter a atribuição legal de colher, sistematizar e divulgar dados demográficos sobre os povos indígenas, nunca realizou essa tarefa. A partir de 1999, quando a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) assumiu a responsabilidade pela saúde dos povos indígenas, houve a criação do chamado “Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena” (SIASI). Um dos módulos desse sistema está relacionado à manutenção de dados demográficos. Apesar de seu potencial, problemas estruturais do sistema de informação, interrupção da alimentação de dados e alta rotatividade de pessoal impediram que o SIASI se tornasse, nacionalmente, uma fonte confiável de dados sobre a saúde e a demografia dos povos indígenas (Sousa et al. 2007).

Os Xavante constituem um povo Jê cujas terras estão localizadas no leste de Mato Grosso. No cenário da etnologia brasileira, o povo Xavante está entre os mais estudados, com investigações sobre temas tão diversificados como ecologia, saúde, demografia, etnohistória e estrutura e organização social (ver revisão em Coimbra et al. 2002). A população Xavante, superior a 10 mil pessoas, faz com que seja um dos mais numerosos povos indígenas do Brasil. Segundo dados compilados pelo Instituto Socioambiental, somente uma poucas etnias dentre as mais de 200 existentes no Brasil contavam com uma população superior a dez mil no início do século XXI, dentre elas, além dos Xavante, os Tikuna, os Terena, os Guarani e os Yanomami.

Desde a década de 1990 nosso grupo de pesquisa sediado na Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com pesquisadores de outras

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instituições e técnicos de agências governamentais associadas à questão indígena, como a Fundação Nacional de Saúde, vem realizando investigações sobre variados aspectos da saúde, ecologia e demografia dos Xavante (ver síntese em Coimbra et al. 2002). Parte deste esforço tem sido com profissionais ligados aos serviços de saúde voltados para os Xavante, incluindo técnicos que trabalham com o “Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena” (SIASI). Esse sistema é alimentado diretamente pelos profissionais de saúde que trabalham nas comunidades, que devem registrar em planilhas e alimentar em bases de dados eletrônicas eventos vitais e de saúde (nascimentos, mortes, doenças, internações, etc) (Sousa et al. 2007). No caso dos Xavante, já tem sido gerados estudos demográficos sobre comunidades específicas (Souza & Santos 2001) e no momento estão sendo desenvolvidas investigações para a área Xavante como um todo. A metodologia desses estudos envolve uma minuciosa revisão dos dados coletados pelo SIASI, buscando-se duplicação de registros, subestimativas e outros problemas ligados a uma coleta deficiente de dados.

Feitas essas considerações, segundo dados do SIASI para o Distrito Sanitário Especial Indígena Xavante, a população residente nas terras indígenas era de 10.034 pessoas em 2000 (Tabela 2). Aproximadamente 40% da população residia em uma única terra indígena (Parabubure). São Marcos é uma outra terra indígena com grande concentração de população. Os dados mostram que aproximadamente metade da população Xavante é composta de menores de 15 anos de idade (Tabela 3), o que é uma característica bastante freqüente em povos indígenas no Brasil (Pagliaro et al. 2005).

Terras Indígenas e sexo

Censo Demográfico 2000

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Dados primários Diferenca (% em relacao a (1) Total 9605 10034 -4.5 Homens 4911 5163 Mulheres 4694 4871 Areões 857 925 -7.9 Homens 445 469 Mulheres 412 456 Marechal Rondon 436 440 -0.9 Homens 223 225 Mulheres 213 215 Parabubure 3761 4023 -7.0 Homens 1917 2062 Mulheres 1844 1961 Pimentel Barbosa 1349 1362 -1.0 Homens 652 670 Mulheres 697 692 Sangradouro-Volta Gr 1077 1055 2.0 Homens 553 545 Mulheres 524 510 São Marcos 2125 2229 -4.9 Homens 1121 1192 Mulheres 1004 1037

Comparaçao dos dados censitários coletados nas Terras Indígenas Xavante no Censo Demográfico 2000 e dados primários coletados nas aldeias

Xavante Tabela 2

Fonte: Censo Demográfico 2000 (tabulação especial). Dados primários coletados nas aldeias Xavante (Souza).

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E o que nos dizem os dados do Censo 2000 para os Xavante? Já que a partir dos dados do censo não é possível obter diretamente informações sobre a população Xavante, ou qualquer outro povo indígena, uma alternativa metodológica é aplicar um tratamento territorial, com base no conceito de “setor censitário” (ver nota 2). Em 2000, o Brasil foi dividido em 215.790 setores censitários.3 No conjunto da relação das variáveis

3

A definição da malha dos setores censitários é uma importante atividade que antecede o censo propriamente. Assim, para o Censo Demográfico de 2000, no ano de 1997 uma equipe de técnicos do IBGE iniciou os trabalhos de elaboração da chamada “Base Operacional Geográfica”. Durante o processo de delimitação dos setores censitários algumas referências são levadas em consideração, tais como: pontos de referência estáveis e de fácil identificação no terreno, como, por exemplo: logradouros, praças, linhas férreas, nas áreas urbanas; e divisores de águas, cumeadas de morros, estradas, sedes de fazendas, nas áreas rurais; respeito aos limites legais; e respeito aos limites de áreas de apuração (áreas especiais, aglomerados subnormais – favelas e similares – aglomerados rurais, aldeias indígenas, bairros e similares, áreas urbanizadas e áreas não urbanizadas).

Terras Indígenas e grupos de idade Censo Demográfico 2000 (a) Dados primários (b) Diferenca (a - b) Total 0 a 14 anos 52,6% 53,3% -0,7% 15 a 64 anos 38,6% 38,7% -0,1% 65 anos ou mais 8,8% 8,0% +0,8% Areões 0 a 14 anos 49,5% 51,1% -1,6% 15 a 64 anos 44,7% 44,1% +0,6% 65 anos ou mais 5,7% 4,8% +0,9% Marechal Rondon 0 a 14 anos 52,7% 53,7% -1,0% 15 a 64 anos 39,9% 39,7% +0,2% 65 anos ou mais 7,4% 6,6% +0,8% Parabubure 0 a 14 anos 54,7% 55,7% -1,0% 15 a 64 anos 36,2% 36,2% +0,0% 65 anos ou mais 9,1% 8,1% +1,0% Pimentel Barbosa 0 a 14 anos 47,6% 53,4% -5,8% 15 a 64 anos 47,5% 42,0% +5,5% 65 anos ou mais 4,8% 4,6% +0,2% Sangradouro-Volta Grande 0 a 14 anos 52,8% 53,2% -0,4% 15 a 64 anos 42,4% 43,5% -1,1% 65 anos ou mais 4,8% 3,3% +1,5% São Marcos 0 a 14 anos 52,3% 53,6% -1,3% 15 a 64 anos 40,9% 40,4% +0,5% 65 anos ou mais 6,8% 5,9% +0,9% Tabela 3

Comparação das distribuições etárias nas Terras Indígenas Xavante no Censo Demográfico 2000 e a partir dos dados primários coletados nas aldeias

Xavante

Fonte: Censo Demográfico 2000 (tabulação especial). Dados primários coletados nas aldeias Xavante (Souza).

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investigadas no censo, existe a variável “tipo do setor censitário”, que se subdivide em “não especial” e “especiais”. Dentre os “especiais” estão “aglomerados subnormais”, quartéis, alojamentos, embarcações, aldeias, cadeias e asilos-hospitais. Apesar do potencial dessa classificação para identificação dos setores censitários de aldeia, na prática não é muito útil. Isso porque, aparentemente, nem todos os setores censitários localizados nas Terras Indígenas foram apropriadamente classificados nesta categoria (ou seja, um agrupamento de, no mínimo, 20 habitantes indígenas em uma ou mais moradias). Para dar uma dimensão da situação, para o Censo de 2000, somente 358 de um total de 214.319 setores censitários com população, em todo o país, foi classificado com “de aldeia indígena”. Desses, 146 estão situados em um único Estado (Mato Grosso), correspondendo a 40,8%.

Considerando que não é possível nos apoiarmos na identificação dos “setores de aldeia indígena”, a alternativa para localizar os dados relativos aos Xavante é comparar a malha territorial de “setores censitários” do IBGE com a malha territorial das Terras Indígenas fornecida pela FUNAI. A associação das duas malhas territoriais geográficas requer um conhecimento cartográfico técnico minucioso das terras indígenas, principalmente no tocante a sua localização e área geográfica, para as quais o georeferenciamento se faz necessário. Para esse processo foi utilizado o software Arc View, que consiste num desktop Gis (sistema de mapeamento adequado para o uso em microcomputador) que carrega dados espaciais e tabulares transformados em mapas. No Arcview visualizam-se informações de modo a revelar novas relações, modelos e tendências a partir dos arquivos da base de dados.

Foram analisadas as seguintes terras indígenas Xavante: Areões, Marechal Rondon, Parabubure, Pimentel Barbosa, Sangradouro - Volta Grande e São Marcos. Foi excluída a Terra Indígena Maraiwatsede, já que sua ocupação pelos Xavante aconteceu depois de 2000. Nas seis terras Xavante foram localizados 61 setores censitários, distribuídos da seguinte forma: cinco em Areões, um em Marechal Rondon, quarenta em Parabubure, seis em Pimentel Barbosa, cinco em Sangradouro - Volta Grande e três em São Marcos.4

De maneira geral, as análises evidenciam uma alta concordância entre os dados do Censo 2000 coletados nos setores censitários localizados nas terras Xavante e as informações por nós sistematizadas para o mesmo período (Tabela 2). Observa-se que o Censo 2000 enumerou 9605 pessoas nas terras Xavante, que é um número bastante próximo (10034 pessoas) daquele por nós computado. As maiores discrepâncias foram observadas nas Terras Indígenas de Areões e Parabubure. Além disso, as distribuições percentuais da população segundo idade e sexo são bastante próximas (Tabelas 2 e 3).5

A comparação entre as pirâmides demográficas derivadas dos dados do Censo 2000 e da fonte primária indica estruturas etárias bastante semelhantes (Figura 1). Em ambas as pirâmides chama atenção a parte superior, na qual se vê uma proporção

4

Dentre os 61 setores localizados nas terras Xavante, 54 (88,5%) foram classificados como “setor de aldeia indígena” por parte do IBGE. Se considerarmos que no Estado de Mato Grosso um total de 146 setores foram classificados como “de aldeia indígena”, deduz-se que a malha dos setores censitários para o caso Xavante foi particularmente bem construída e classificada.

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Para fins deste trabalho estamos assumindo a hipótese de que as pessoas recenseadas no Censo 2000 nas terras indígenas Xavante são índios Xavante. É possível que haja um contingente que não seja de indígenas, mas que deve ser reduzido (ver também nota 7).

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importante de pessoas acima de 60 anos. Esses são dados autodeclarados e estão possivelmente associados a sobre-estimativas de idade para fins de aposentadoria no sistema previdenciário público brasileiro.

Portanto, a análise comparativa do Censo 2000 com dados primários coletados diretamente nas comunidades Xavante mostra uma elevada concordância no que diz respeito ao tamanho de população, à sua composição segundo sexo e idade e também à distribuição segundo terras indígenas. Em outras palavras, houve uma captação adequada, por parte do Censo 2000, de características básicas da população Xavante.

Figura 1

Comparação das pirâmides Censo Demográfico 2000 e dados primários coletados nas Terras Indígenas Xavante referentes a 2000.

Fonte: Censo Demográfico 2000 (tabulação especial). Dados primários coletados nas aldeias Xavante (Souza).

To tal das Terras

-15.0 -10.0 -5.0 0.0 5.0 10.0 15.0 0 a 4 anos 10 a 14 anos 20 a 24 anos 30 a 34 anos 40 a 44 anos 50 a 54 anos 60 a 64 anos 70 a 74 anos 80 anos ou mai s

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4. Um olhar sócio-antropológico sobre as categorias censitárias

Em alguns países da América do Sul, como é o caso do Paraguai6, além dos censos nacionais, vêm sendo realizados censos indígenas específicos. Esses censos permitem não somente a coleta de dados de particular interesse para a questão indígena (uso da terra, línguas faladas, etc), como também há a possibilidade de elaborar as questões de forma a se estar mais próximo das categorias e realidades sócio-culturais nativas.

Conforme já mencionado, os censos demográficos realizados no Brasil incluem a possibilidade de identificar os “indígenas”, mas não está concebido e estruturado de modo a coletar informações para segmentos da sociedade, como os povos indígenas, que são étnica e culturalmente diferenciados. Isso fica não somente evidente na ausência de perguntas sobre a etnia do indivíduo ou sua língua nativa, como também na forma como alguns dados são captados, considerando que os censos não tratam o indígena especificamente, e sim fazendo parte do conjunto do povo brasileiro. Inúmeros exemplos poderiam ser dados. Assim, há no “Questionário da Amostra” uma série de perguntas sobre “incapacidade física”, uma das quais se a pessoa é incapaz ou se tem alguma ou grande dificuldade de caminhar ou subir escadas, que é um equipamento ausente da maioria das comunidades indígenas. Os itens relativos à trabalho e religião, dentre muitos outros, são também ilustrativos da baixa aplicabilidade para os indígenas, já que se baseiam em uma perspectiva ocidental relacionada a ambas as categorias.

Na seção anterior foi demonstrado que os resultados do Censo 2000 para as Terras Xavante, no que diz respeito a volume de população e composição por sexo e idade, são bastante compatíveis com dados de outras fontes, captadas de forma independente e baseadas em investigações in locu nas comunidades (Tabelas 2 e 3) . Mas o que dizer sobre outras dimensões da sociedade Xavante? Em outras palavras, em um contexto de inter-culturalidade, como foram captadas pelo Censo categorias sócio-antropologicamente particularmente complexas, como a composição dos domicílios e as relações entre seus moradores?7

Uma vez que há uma extensa literatura antropológica sobre os Xavante, a organização de seu “domicílio” é bem conhecida. Ainda hoje, na maioria das terras Xavante, as moradias mantêm o arranjo tradicional de disposição na forma de um semicírculo típica dos grupos Jê do Brasil central. A posição das casas no semi-círculo é definida por aspectos de ordem social e cultural, como liderança, arranjos clânicos, dentre outros fatores. Na maioria das terras Xavante permanecem domicílios habitados por famílias extensas (Figura 2). Tradicionalmente, os Xavante são matrilocais, ou seja, após o casamento, os maridos, em geral entre 18-25 anos, vêm morar na casa das esposas. Como é comum que um conjunto de irmãos se case com um conjunto de irmãs (ou que um dado homem se case com duas ou mais irmãs), há um dado momento do ciclo de vida

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Censos Indígenas realizados em 1981, 1992 e 2002

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Neste trabalho optamos por abordar somente os dados a partir do “Questionário Básico” do Censo 2000, que foi aplicado em todos os domicílios Xavante. Como o quesito da “cor ou raça” está contido no “Questionário da Amostra” (que no caso Xavante envolveu 20% dos domicílios, já que estão localizados em municípios com menos de 15.000 habitantes), as informações dos “indígenas” necessitam passar pelo processo de expansão, onde são atribuídos pesos. Trata-se de procedimento estatístico complexo, cujos resultados serão analisados em um outro trabalho em preparação.

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do domicílio no qual convivem várias gerações, não sendo incomum que 30 ou mais pessoas vivam sob o mesmo teto. Internamente às casas Xavante, que apresentam uma única entrada, há uma elaborada divisão do espaço, com cada casal e respectivos filhos ocupando espaços demarcados e identificados pelas esteiras e cobertas dispostas no chão lado a lado. Não há paredes internas e as refeições são feitas em um espaço coletivo externo. Portanto, a base da composição do domicílio Xavante encontra-se na família extensa, ou seja, um casal mais velho, suas filhas e respectivos esposos, além dos netos e, eventualmente, pessoas idosas (mães, tias, etc) cujos núcleos familiares originais se dissolveram.

Antes de detalhar os resultados do Censo 2000 sobre os domicílios localizados nas terras Xavante, é necessário esclarecer como a categoria “domicílio” é captada do ponto de vista censitário. Para fins dos censos, domicílio consiste “em local estruturalmente separado e independente que se destina a servir de habitação a uma ou mais pessoas, ou que esteja sendo utilizado como tal”. O critério de “separação” aplica-se “quando o local de habitação é limitado por paredes, muros ou cercas, coberto por um teto e que permite que uma ou mais pessoas, que nele habitam, se isolem das demais, com a finalidade de dormir, preparar e/ ou consumir seus alimentos e proteger-se do meio ambiente, arcando, total ou parcialmente, com suas despesas de alimentação ou moradia”. Já o critério de “independência” é atendido “quando o local de habitação tem acesso direto aos seus moradores entrar e sair sem necessidade de passar por locais de moradia de outras pessoas”. Na caracterização dos domicílios pelo IBGE, os dois critérios tem que

Obs. Ver nota 8 sobre retângulos em vermelho.

Figura 2

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ser atendidos simultaneamente e deverão ser aplicados nas unidades residenciais localizadas em uma mesma propriedade ou terreno (IBGE, 2000:25).

Ainda dentro da classificação censitária, os domicílios podem ser classificados como “particulares” (com as subdivisões “permanente” ou “improvisado”) ou “coletivos”. O domicílio “particular” consiste numa moradia onde o relacionamento entre seus ocupantes é ditado por laços de parentesco, de dependência doméstica ou por normas de convivência. É “permanente” se “foi construído para servir exclusivamente à habitação e... tinha finalidade de servir de moradia a uma ou mais pessoas”; é “improvisado” se “localizado em unidade não-residencial (loja, fábrica, etc.) que não tinha dependências destinadas exclusivamente à moradia, mas que... estava ocupado por morador(es)”. São exemplos de domicílios “improvisados” prédios em construção, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, trailers, grutas, aqueles situados sob pontes, viadutos e etc. Já o “domicílio coletivo” é “registrado quando no estabelecimento ou instituição a relação entre as pessoas que nele habitavam... era restrita a normas de subordinação administrativa”. Exemplos incluem hotéis, pensões, presídios, cadeias, penitenciárias, quartéis, postos militares, asilos, orfanatos, conventos, hospitais e clinicas (com internação), alojamentos de trabalhadores, motéis e campings (IBGE, 2000:52-55).

Feita essa breve caracterização, o que nos informam os dados censitários sobre os domicílios Xavante? Como veremos, a maneira como os domicílios Xavante foram classificados no Censo 2000 mostra, de forma fascinante, como morfologias sociais nativas, distintas portanto daquelas ocidentais, foram percebidas e classificadas pelos recenseadores.

No total, o Censo 2000 identificou nas terras Xavante 1877 domicílios. A ampla maioria deles (1152 ou 61,4%) foram classificados como “coletivos”, variando de 36,8% em Sangradouro - Volta Grande a 83,9% em Pimentel Barbosa (Tabela 4). Três terras (Areões, Pimentel Barbosa e São Marcos) tiveram mais de 75% dos domicílios classificados como “coletivos”. Portanto, os domicílios Xavante foram, em sua maioria, classificados no Censo 2000 como equivalentes a estruturas com “normas de subordinação administrativa”, na qual, como vimos, se encaixam hotéis, pensões e alojamentos.

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Além de dimensão conceitual sobre o que é o “domicílio” Xavante, ao se comparar os dados censitários com informações primárias coletadas por nossa equipe de pesquisa observa-se uma outra diferença importante. Isto porque, se o Censo 2000 identificou 1877 domicílios, nossos dados para 2000 evidenciam um total de 1278 casas nas terras Xavante (Tabela 5). Como explicar essa diferença? Uma explicação plausível é que as grandes malocas Xavante, onde vivem famílias extensas, por vezes com até 20-30 indivíduos aparentados, foram classificadas pelo recenseadores não como domicílios em si, mas como agrupamentos deles.8

Paralelamente à discrepância entre o número de casas a partir de nossas pesquisas e o de domicílios indicados pelo Censo 2000, há um outro conjunto de dados relevante para reforça a explicação quanto à “simplificação” dos domicílios Xavante através do levantamento censitário. Nas Tabelas 5 e 6 há informações comparativas entre os tamanhos das casas Xavante averiguadas através de nossas pesquisas de campo e as médias de moradores no domicílio a partir dos dados censitários. Enquanto os dados do Censo Demográfico indicam que os domicílios nas terras Xavante variam entre 4,8 e 6,0 moradores, nossos dados apontam para médias entre 7,2 e 11,8 moradores.

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Esta possibilidade está graficamente sugerida na Figura 2, com a indicação de três famílias nucleares (em vermelho) em uma grande família extensa Xavante, habitante de uma única casa. Vale acrescentar que nos formulários do censo não é possível registrar a ocorrência de casamentos poligâmicos, que são freqüentes entre os Xavante (e presentes na genealogia).

Total Particulares Permanenres Particulares Improvisados Coletivo Total 1877 723 2 1152 % 100.0 38.5 0.1 61.4 Areões 174 30 0 144 % 100.0 17.2 0.0 82.8 Marechal Rondon 81 49 1 31 % 100.0 60.5 1.2 38.3 Parabubure 752 381 0 371 % 100.0 50.7 0.0 49.3 Pimentel Barbosa 224 35 1 188 % 100.0 15.6 0.4 83.9 Sangradouro-Volta Gran 204 129 0 75 % 100.0 63.2 0.0 36.8 São Marcos 442 99 0 343 % 100.0 22.4 0.0 77.6 Tabela 4

Classificação dos domicílios nas Terras Indígenas Xavante - 2000

Fonte: Censo Demográfico 2000 (tabulação especial). Terras Indígenas

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As implicações desse olhar “ocidentalizado” sobre os domicílios Xavante, que transformou as habitações onde vivem famílias extensas em agrupamento de unidades familiares, têm importantes ramificações para além das classificações em si. Por exemplo, no âmbito do censo, informações sobre abastecimento e canalização de água, assim como quantidade de banheiros e tipo de escoadouros (presença de esgoto, fossa, etc), somente são coletadas para os domicílios classificados como “permanentes”. Dado que a maioria dos domicílios nas terras Xavante não foram classificados nesta categoria, o resultado é que para uma minoria das comunidades foram coletadas informações sobre condições de saneamento. Se considerarmos que doenças relacionadas às condições ambientais, como as diarréias, são importantes causas de adoecimento e morte, sobretudo entre as crianças indígenas (ver Santos & Coimbra 2003), fica evidente as implicações das leituras censitárias acerca da realidade sócio-cultural indígena.

Terras Indígenas Número de

casas População Média de moradores por casa Total 1278 10034 7.9 Areões 106 925 8.7 Marechal Rondon 60 440 7.3 Parabubure 549 4023 7.3 Pimentel Barbosa 115 1362 11.8 Sangradouro-Volta Grande 137 1055 7.7 São Marcos 311 2229 7.2

Fonte: Dados primários coletados nas aldeias Xavante (Souza).

Tabela 5

Número de casas, população total e número médio de moradores por casa nas Terras Indígenas Xavante, dados primários coletados em pesquisa de campo - 2000

Total Particulares Permanenres Particulares Improvisados Coletivo Total 5.1 5.8 10.5 4.7 Areões 4,9 6,9 - 4,5 Marechal Rondon 5,4 5,6 12,0 4,9 Parabubure 5,0 5,5 - 4,4 Pimentel Barbosa 6,0 7,7 9,0 5,7 Sangradouro-Volta Grande 5,3 5,8 - 4,4 São Marcos 4,8 6,1 - 4,4

Fonte: Censo Demográfico 2000 (tabulação especial).

Número médio de pessoas por espécie do domicílio

Número médio de pessoas por domícilio nas Terras Indígenas Xavante - 2000 Tabela 6

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5. Considerações finais: Censo e sensibilidade

Este trabalho é um esforço preliminar no sentido de buscar estabelecer um diálogo entre os dados censitários, coletados no contexto de um amplo levantamento nacional, com um contexto micro-sociológico específico, qual seja, o de um povo indígena situado no Brasil Central. Para tanto, uma vez que os censos nacionais brasileiros não incluem informação sobre filiação étnica, foi necessário realizar um tratamento geográfico, a partir da qual se chegou às unidades censitárias (os chamados setores censitários) localizados no interior das terras indígenas Xavante.

Na introdução deste trabalho nos referimos às reflexões de Kertzer & Arel (2002) sobre como os censos, assim como “refletem” a realidade social, também têm um importante papel na “construção” dessa realidade. Isso sem dúvida está acontecendo no Brasil, assim como em outros países na América Latina, em anos recentes. No caso brasileiro, com a inclusão da categoria “indígena” nos censos desde 1991, o resultado foi que esta categoria apresentou as maiores taxas de crescimento dentre todas as categorias de “cor ou raça” investigadas nos levantamentos censitários brasileiros. Na linha sugerida por Kertzer & Arel, a maneira como os dados sobre os “indígenas” são captados pelo censo gera o que alguns antropólogos e demógrafos denominam de uma “identidade indígena genérica” (ver discussão em Pagliaro et al. 2005). Em outras palavras, do levantamento censitário emerge um “tipo” indígena, enquanto que, como bem sabido, no Brasil há uma notável sociodiversidade indígena, com mais de 200 diferentes etnias presentes no território brasileiro.

Especificamente em relação aos Xavante, os argumentos desenvolvidos neste trabalho mostram como características e arranjos sociais nativos são refletidos (e “transformados”) através da captação dos dados censitários. O domicílio Xavante, com toda sua complexidade demográfica e sócio-antropológica, que envolve conceitos particulares de família, é equiparado a instituições ocidentais peculiares, “totais” no sentido de Foucault, como asilos e presídios, nos quais a estrutura organizativa não se assenta no conceito de família. Assim, nossos resultados evidenciam que o censo não teve a sensibilidade necessária para retratar e registrar aspectos fundamentais da sociedade Xavante. Esse “achatamento” e “simplificação” de uma importante base organizativa da sociedade Xavante – a família – encontra eco no comentário de Arjun Appadurai: “statistics are to bodies and social types what maps are to territories: they flatten and enclose” (apud Kertzer & Arel 2002:6).

Interessou-nos neste trabalho, em particular, considerar as implicações da forma como o censo caracterizou os Xavante do ponto de vista dos potenciais desdobramentos sobre políticas públicas. O perfil de morbidade e mortalidade dos Xavante é caracterizado pela forte presença de doenças infecciosas e parasitárias, com destaque para as doenças diarréicas, infecções respiratórias e desnutrição, estreitamente associadas às condições ambientais, tanto do domicílio como do peri-domicílio (Coimbra et al. 2002). Neste sentido, uma detalhada caracterização das condições de moradia e de saneamento é de grande importância para a compreensão das condições de vida desse povo, em particular através da possibilidade de construção de indicadores de saúde. A forma como os domicílios Xavante foram classificados, com uma elevada proporção de “coletivos”, teve por conseqüência a não coleta de dados de moradia e saneamento que, como largamente

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reconhecido, são estreitamente associadas às características de morbi-mortalidade que predominam nas terras Xavante.

Mesmo frente a essas limitações e dificuldades, compartilhamos da idéia que se deve buscar, mais e mais, o aprimoramento da captação dos dados sobre os “indígenas” nos censos nacionais, como os realizados no Brasil. Dito de outra forma, o intuito deve ser buscar uma maior sintonia entre o censo nacional e especificidades fundamentais das sociedades indígenas no que tange a sua organização social e dinâmica demográfica. Ou seja, censos mais sensíveis para as realidades indígenas. Mesmo que no futuro venham a acontecer censos indígenas específicos no Brasil, ainda assim haverá a necessidade de manter e aprimorar nos censos nacionais a captação de dados sobre os “indígenas”. Por exemplo, há um crescente contingente de indivíduos que se auto-declararam “indígenas” vivendo em cidades, inclusive nas capitais de alguns estados. É improvável que censos indígenas específicos que, se ocorrerem, tenderão a se concentrar nas áreas rurais, disponham de tempo e recursos para localizar esses indivíduos nas cidades. Diante disso, a solução é o aprimoramento das questões relacionadas aos “indígenas” nos censos nacionais (incluindo língua(s) falada(s), pertencimento étnico específico, entre outras), assim como o desenvolvimento de uma maior sensibilidade sócio-antropológica na análise e interpretação dos dados.

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6. Referências bibliográficas

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