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Santos do Ordinário

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Santos do Ordinário: hagiografias e função da

santidade entre os “amigos de Deus” na Ris

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al-Quds de Ibn

ʿ

Arab

ī

de Múrcia (séc. XII-XIII)

Saints of the ordinary: hagiographies and sainthood’s function in the “God’s friends” on Risālat Rūḥ al-Quds of Ibn ʿArabī of Murcia (séc. XII-XIII)

BARCELOS, Matheus Melo*

RESUMO: Awliyā’ Allāh, os amigos de Deus,

são os considerados santos islâmicos. Neste texto, abordaremos algumas hagiografias islâmicas (ṭābaqāt – gerações) de mestres sufis andaluzes relatados por Ibn ʿArabī de Múrcia em uma de suas obras, a Risālat Rūḥ al-Quds fī muḥāsabat al-nafs (Epístola do Espírito da Santidade sobre o exame de Consciência da Alma), texto em que são apresentadas algumas hagiografias de mestres sufis, considerados pelo autor como santos. Para o autor murciano, os “amigos de Deus” participavam da condição perfeita de servos, elemento essencial para a classificação como santo. Como homens de Deus, eram simples, como homens sociais eram ordinários, sendo membros do Povo da Reprovação (malāmiyya). Neste artigo buscaremos apresentar como os santos andaluzes de Ibn ʿArabī nos introduzem na discussão da santidade islâmica e de sua principal característica: os santos místicos como homens e mulheres do ordinário.

PALAVRAS-CHAVE: hagiografia; santidade;

islamismo; mística.

ABSTRACT: Awliyā’Allāh, God's friends, are

considered the Islamic saints. In this text we will address some Islamic hagiographies (ṭābaqāt - generations) of Andalusian Sufi masters reported by Ibn ʿArabī of Murcia in one of his works, Risālat Rūḥ al-Quds fī muḥāsabat al-nafs (Epistle of the Spirit of Sainthood on the examination of Consciousness of the Soul), a text in which some hagiographies of Sufi masters are considered, considered by the author as saints. For the Murcian author, the saints, or "God’s friends," participated in the perfect condition of servants, an essential element of classification as a saint. As men of God, they were simple, as social men were ordinary, being members of the People of Blame (malāmiyya). In this article we will try to present how the Andalusian saints of Ibn ʿArabī introduce us the discussion on islamic sainthood and its central feature: the mystical saints as ordinary men and women.

KEYWORDS: hagiography; holiness; Islam;

mysticism.

Recebido em: 12/05/2019 Aprovado em: 09/09/2019

* Graduado em História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciência Humanas da Universidade de São

Paulo (FFLCH-USP,) estado de São Paulo (SP), mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. Texto associado à dissertação de mestrado Caminhantes na Senda Reta: os santos mestres sufis da Andaluzia segundo os relatos de Ibn

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No islamismo, a tradição da veneração de relíquias e pessoas excepcionais está presente desde a formação das bases religiosas desta fé.1 As figuras humanas, os homens de Deus, os rijāl,2 participam desta formação religiosa como modelos, tipos. Muḥammad tem sido o modelo maior, assim como os patriarcas e profetas corânicos.3 No entanto, outros seres humanos adentraram esta tradição como sujeitos exemplares: O Povo da Casa (Ahl al-Bayt);4 o Povo do Banco (Ahl al-Ṣūffa), amigos próximos de Muḥammad, durante a sua estadia em Medina;5 os Ajudantes (Ansār), medinenses pobres que auxiliaram a comunidade muçulmana inicial (Umma) após a Hégira; os Quatro Califas Bem-Guiados, com devoção especial entre o Povo da Sunna; os Sucessores;6 os fundadores de madrasas; os principais mártires, tanto nas fitnas,7 quanto nos processos judiciais;8 os grandes místicos, cujas tumbas são focos de peregrinação, como as existentes no Shiraz. Nestas figuras, a tradição islâmica assenta seus discursos sobre os “Amigos de Deus” (awliyāʿ Allah), a quem denominaremos “santos”.

1 Importante repensar o islamismo e seus atributos dados pelo senso comum. Tradições puristas buscam

retirar esta veneração do islã por meio de interpretações literais do Corão. As obras sobre profetologia e santidade escritas por Ibn ʿArabī, como o Fuṣūṣ al-Ḥikam, foram criticadas duramente por Ibn Taymiyya (ca.1328) e pela salāfiyya (ADDAS, 1993, p. 278). O wahabismo saudita, vertente do islã mais presente nas mídias, por motivos de política internacional e devido ao fato da família real saudita estar na administração dos lugares santos de peregrinação, tem sido a principal condutora de destruição destes lugares de veneração, como a tumba de Muhammad ou sua casa em Medina. Para termos um exemplo da grande importância destes lugares e da veneração de relíquias e tumbas, podemos assistir, via redes sociais ou redes virtuais de audiovisual, as peregrinações dos xiitas ao santuário do Imān Ḥusayn em Karbalah na festa da Ashura, ou mesmo a peregrinação dos muçulmanos paquistaneses às tumbas de santos sufis do Shiraz (BENAREK; TUPEK, 2009).

2 Rijāl, substantivo plural de rajūl, designa em árabe “homens”. Nos escritos esotéricos tem a acepção de

homens que buscaram a união com Deus. Veremos adiante que Ibn 'Arabī utiliza o termo como uma tipologia dos buscadores (aqueles que adentram ao caminho esotérico, traduz o termo murīd), ao atribuir a uma de suas mestras, Šams, o qualificativo de rajūl.

3 Como religião abraâmica, o islamismo e a revelação corânica aceitam os principais profetas e patriarcas

presentes no antigo testamento, desde Adão, assim como figuras ligadas ao cristianismo, sendo Jesus, Maria, Zacarias e João Batista importantes profetas – conforme a interpretação do Corão – assim como figuras cristãs (Sete Dormentes de Éfeso). Além disso, outros profetas específicos do Corão existem, como Ṣāliḥ. Ao todo, conhecidos e desconhecidos, o Corão aponta mais de 120 mil profetas.

4 O Povo da Casa compreende, para os xiitas, os descendentes de Mu

ḥammad, via sua filha Fāṭima e seu primo ʿAlī. São considerados como os verdadeiros guardiões da interpretação interior do Corão (bāṭin).

5 O Povo do Banco constitui o modelo principal de ascetas do início do islamismo, assim como modelo para

os místicos.

6 Geração posterior aos que conviveram com Muḥammad, figuras importantes na transmissão e

legitimação dos aḥādīṯ (sing. ḥadīṯ), conjunto de narrações, questões morais, jurídicas e religiosas

atribuídas ao profeta muçulmano.

7 As fitnas foram os processos de luta, entre muçulmanos, sobre as questões da organização da Umma,

após a morte de Muhammad e a conquista de um vasto território. Desta guerra civil surgiram as principais vertentes do islamismo: os hariditas, os xiitas e os sunitas.

8 Quanto a santos mortos em processos judiciais, exemplo maior é o caso de

Ḥusayn Al-Ḥallāj, o mártir do amor divino, condenado e morto sob a acusação de novidade. Sua figura foi amplamente estudada por Louis Massignon (1922).

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Neste artigo, abordaremos as hagiografias de alguns destes “amigos de Deus”, escritas por Ibn ʿArabī de Múrcia,9 considerado um dos grandes escritores esotéricos do mundo islâmico, na obra intitulada: Epístola do Espírito da Santidade sobre o Exame de Consciência da Alma10 – Risālat Rūḥ al-Quds fī muḥāsabāt al-Nafs11 -, cuja escrita fora iniciada em Al-Andalus e finalizada provavelmente em Meca, no início do século VI da Hégira.12 O documento foi composto como um tratado, dividido em três partes: uma crítica às irmandades místicas que o autor conheceu durante sua estadia no Egito; um aprofundamento do método do exame de consciência da alma (muḥāsaba) e as hagiografias, que segundo o próprio autor, tinham por foco demonstrar como em sua época não estavam ausentes os sinceros “homens de Deus” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 85). Esta obra foi destinada a um amigo e companheiro de caminhada mística do autor, ʿAbd al-Azīz al-Mahdwī, que vivia em Túnis.

Nosso foco será a análise da parte da obra que compreende o resumo dos relatos das hagiografias dos mestres andaluzes, que contém 55 hagiografias de mestres esotéricos13 andaluzes e magrebinos, inspiradores e iniciadores humanos de Ibn ʿArabī na disciplina do conhecimento das realidades divinas, desde o primeiro mestre a aparecer no escrito, Abū Já’far Aḥmad Al-͑Uraybī, até Fāṭima bint Ibn al-Muṯanā. Escolhemos para apresentar apenas alguns destes mestres, sendo eles: Ṣāliḥ al-‘Adawī; Abū ʿAbd Allāh Muḥammad al-Ḫayyāt, o alfaiate, e Abū al-‘Abās Aḥmad al-Išbīliyān; Abū ʿAbd Allāh Muḥammad bin Ašraf al-Rundī; ʿAbd Allāh al-Ḫayyāṭ; Šams Umm al-Fuqarā.

9 Al-Šayḫ al-akbar (O maior dos mestres), Ibn Aflatūn (O Platonista), Muḥyī al-Dīn (Vivificador da Fé),

foram alcunhas atribuídas a Muḥammad b. Alī b. Muḥammad Ibn al- ͑Arabī al-Ṭa’ī al-Ḥātimī (ca. 1165-1240), autor de obras esotéricas e considerado um dos maiores místicos muçulmanos. Nascido em Múrcia, em Al-Andalus, falecido e sepultado em Damasco, foi o autor de mais de 300 obras, conhecidas ou citadas. Neste trabalho, utilizaremos o termo “akbari” como adjetivo que referencia os escritos deste mestre andaluz.

10 A principal tradução parcial desta obra encontra-se na Vida de santones andaluces (ASÍN PALACIOS,

2005). Há uma tradução inglesa que mescla esta Epístola do Espírito da Santidade com outra obra akbari,

al-Ḏurrat al-faḫira, também uma obra em que há excertos hagiográficos (IBN AL-ʿARABĪ, 2007).

11 Tivemos acesso a sua versão árabe por meio da edição comentada de Mahmud al-Ghurab, com que

cotejamos a tradução espanhola para leitura de termos e construções específicas (AL-GHURAB, 1985).

12 Osman Yahia elabora esta cronologia tanto da vida quanto da obra do mestre murciano, afirmando que a

Risālat Rūḥ al-Quds começou a ser escrita em meados de 586 A.H., em Marchena, quando o autor visitou

uma de suas mestras, Fāṭima bint Ibn al-Muṯanā e foi finalizada em 600 A.H., quando da estada do mestre murciano em Meca, sendo depois, por constatação dos manuscritos, lida em 601 A.H., em uma reunião de

samāʿ em Bagdá e em outra reunião, em 617 A.H., na cidade de Alepo (YAHIA, 1964, p. 93).

13 A devoção e teorização sobre a santidade islâmica que, segundo Michel Chodkiewicz, têm em Ibn ʿArabī

seu grande defensor e divulgador, estava bastante assentada entre os grupos de busca esotérica ou mística, bāṭin. Dentro do islã, esta busca mística compunha parte de um desejo de adentrar aos mistérios da divindade. Esta busca, este desejo, amparou a conformação da interpretação bāṭin, interior, da revelação corânica e dos mistérios da criação. Diversos métodos e grupos encontram-se nesta busca interior islâmica, tanto entre os xiitas quanto os sunitas. O ocidente debruçou-se sobre parte destes grupos a quem foram chamados “sufis”. Dois textos básicos para a compreensão destes movimentos são, a nosso ver: Las dimensiones místicas del Islam, de Annemarie Schimmel (2002); e Studies in Early

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Nestes mestres e em suas vidas, buscamos perceber a proposição de Michel Chodkiewicz, ao afirmar que os santos, no discurso akbari são membros do Povo da Reprovação (malāmiyya)14 e, como parte deste grupo, seriam seres do ordinário (1993, p. 110-111). Somamos também a proposição de Michel de Certeau, ao estudar os místicos cristãos, apontando como estes tornaram o cotidiano e o ordinário de suas vidas em momento de encontro com o Outro, a divindade, fazendo do simples, do comum, o espaço do mito (2015, p. 22).

A figura dos santos e a hagiografia

“Santo”15 é um termo carregado de concepções cristãs. Peter Brown, em sua obra The cult of the saints, construiu sua tese sobre a questão da hagiologia, ou seja, o papel dos santos no cristianismo, como um elemento que nasceu do ambiente psicológico da Antiguidade Tardia. Para o autor, o clima deste período histórico e a importância das realidades supra-terrenas, com seus reflexos no cotidiano, marcaram o papel que o santo, o homem excepcional ganhou no cristianismo (BROWN, 1981, p. 21). Mesmo no cristianismo, a hagiologia e as funções dos santos são diversas. Definidos como intercessores, fontes de exemplos, símbolo de comunidades, os santos foram chamados de “amigos de Deus”, atletas, entre outros termos. Em outra obra, Peter Brown coloca o nascimento do islã como parte do clima psicológico tardo-antigo:

As funções imediatas das ideias orientadoras do muçulmano são fáceis de ver. Pense o que pensar acerca da Igreja cristã, o muçulmano procede exatamente com os mesmos motivos que qualquer cristão ou judeu do Crescente Fértil. Também é um homem ‘temente a deus’. Também pensa, dia e noite, no Juízo Final que lhe revela um inefável livro sagrado (BROWN, 1972, p. 203).

Para Isabel Velazquez, o santo continua sendo um ser excepcional, mesmo em sociedades com uma menor presença pública do elemento religioso, como nas sociedades ocidentais, todavia, ainda agregando elementos e colocando-se como ponto

14 Os malāmī ou malāmatī representam uma escola mística oriental, nem sempre considerados como parte

do sufismo. Suas principais características amparavam-se no conceito de reprovação. (CAVALEIRO DE MACEDO, 2014, p. 127-149). Há uma variação na nomenclatura da Via da Reprovação. No texto de al-Sulamī, a via é denominada malāmatiyya, no texto akbari, é chamada de malāmiyya. Neste trabalho, por nos debruçarmos sobre um texto de Ibn ʿArabī, utilizaremos a terminologia malāmiyya para designar a Via da Reprovação, e malāmī, seus membros.

15 Entre os cristãos árabes, por exemplo, a denominação dada aos santos é qiddīs, utilizando-se da raiz

q.d.s., que denomina a santidade em sua relação com a essência divina. Entre os muçulmanos, o termo que

denomina estas figuras exemplares é walī, palavra que pode, dependendo da colocação das vogais longas, designar o amigo, ou aquele que está sob a proteção de alguém, ou o governante, sendo também um dos Belos Nomes de Deus. Neste trabalho, estamos cientes desta distinção e das conotações que o termo “santo” possui, todavia, para uma melhor leitura, seguindo as traduções nos trabalhos acadêmicos, utilizaremos o termo “santo” para designar “os amigos e amigas de Deus”.

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referencial nas construções discursivas (2007, p. 21). Estas construções, na tradição cristã, marcaram as hagiografias: o estudo específico sobre a vida dos personagens que uma comunidade cultua e transforma em ser excepcional. Como aponta a autora, um escrito mais de sinceridade do que de verdade, com o fim primordial de edificação para os leitores (2007, p. 35).

Para Ronaldo Amaral, “a hagiografia não fala de homens, fala de santos, e mesmo o quinhão de testemunho factível que pode haver nela acerca do homem antes do santo poderá encontrar-se esmaecido, distorcido, recriado [...]” (2013, p. 75). O personagem narrado na hagiografia deixa de ser o homem de carne e osso e passa a ser exemplo e figura de culto. Suas ações, ou a possibilidade de ter agido da forma relatada, eram construções de um modelo em que interagiam perspectivas pessoais e tradições textuais:

O hagiógrafo cria o santo e para tanto recria sua personalidade histórica, ou seja, aquela, talvez a única, dada a conhecer pela história; assim, haverá na hagiografia sobretudo um santo e, portanto, um homem cuja história ficará, em grande medida, identificada mais com uma existência fabulosa que eminentemente profana. Poderíamos por fim dizer que, ao se criar o santo, recria-se o homem [...] (AMARAL, 2013, p. 75).

Dito isto, busca-se na narrativa hagiográfica não tanto os aspectos de verdade, mas a sinceridade possível que permite perceber o santo como um homem que, em sua vida alcança as realidades divinas. As hagiografias, assim, trabalham com um elemento simbólico, atrelado a uma narração cujos dados assentam-se na sinceridade e na transmissão da mensagem.

As hagiografias islâmicas

Para Velazquez, as hagiografias têm entre suas funções ser um texto edificante, seja em leitura pública ou privada (2007, p. 35). O hagiógrafo justificou a elaboração da Risālat Rūḥ al-Quds como uma missão: “Esta missão me foi legada e a mim em particular, mais que a qualquer outro homem”. Ele recebera a inspiração e, ao escrever, externava-a: ao “escrever estes trabalhos não fora minha intenção assumir a tarefa de um escritor, nem de seguir um modelo preciso. Contudo, meu propósito era me libertar de uma inspiração que queimava meu coração e esmagava meu peito”16 (ADDAS, 1993, p. 160, tradução nossa). As vidas de santos são textos modelares destinados a serem espalhados

16 [No original] “In writing these works it has not been my intention to perform the task of a writer, nor has

it been my intention to follow a precise aim. Rather, my purpose has been to free myself from an inspiration that burns my heart and crushes my chest” (ADDAS, 1993, p. 160).

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e lidos e, ao que indicamos acima, todos os livros, epístolas e tratados akbaris tinham por função serem lidos na madrasa akbari, em Damasco.17

Classificamos a terceira parte do texto desta Epístola do Espírito da Santidade, destinada ao companheiro de caminhada mística Al-Mahdwī, tendo como foco a questão do exemplo e do ensino, como hagiografia, pois se constitui em relatos da vida e milagre dos mestres, destacando-se não a precisão biográfica, mas na opção da construção de modelos éticos para o leitor devoto. Segundo Gril, Ibn ʿArabī buscava apresentar apenas elementos que pudessem localizar os mestres em sua época e em sua metodologia na via: “No plano formal, a escrita não está sujeita a nenhuma ordem aparente. O autor é guiado por uma memória. [...]. Algumas indicações muito breves permitem situar o personagem e seu ambiente”18 (GRIL, 2007, p.75, tradução nossa).

As hagiografias, sejam cristãs ou muçulmanas, possuem intentos diversos, sejam teológicos, escatológicos, psicológicos ou pedagógicos. O sentido pedagógico é para nós o principal, pois visa a constituição e publicização de um método e um modelo, como bem colocou Denis Gril: “Todo escrito e todo discurso sobre a santidade visam propor um modelo”19 (2007, p. 55), e como modelo tem como intuito imprimir um caminho ao leitor. Muito mais que teorizar sobre um homem, a hagiografia teoriza sobre uma forma de vida e sobre um método, um modelo a ser seguido pelos fiéis.

Estas tradições de biografias de santos islâmicos, inspiradas, talvez, na Ṣirāt Rasūl Allāh de Ibn Isḥāq (ca. 768 E.C.) em que são apresentados os elementos que a comunidade islâmica nascente guardava de seu profeta, e em exemplos de autores do início do Islã clássico, como al-Sulamī (ca. 1021) e al-Qushayrī (ca. 1074 E.C.), recebem o nome de ṭabaqāt, textos que apresentam aspectos da vida e ensinamentos de mestres esotéricos, sendo as obras destes dois últimos autores citados, respectivamente, Ṭabaqāt al-ṣūfiyya, “A geração dos santos” e Risālat fī ‘ilm al-taṣawwuf, “Epístola sobre o conhecimento do sufismo”, apresentado mestres ligados ao movimento malāmiyya, como caminho místico originário do Ḫurāsān.20

17 Podemos, aqui, destacar o papel do samāʿ, o atestado de leitura, é uma forma comum de autoridade no

islã. Asseguravam, com a assinatura dos ouvintes e do autor, data e locais, a autenticidade da obra. Além de demonstrar a presença dos aspirantes à santidade ante a leitura (ADDAS, 1993, p. 221). Ao se fixar em Damasco, por volta de 1226, Ibn ʿArabī contava com um grupo de discípulos e ouvintes que se reuniam para apreciar as leituras de suas obras.

18 [No original] “Sur le plain formel, l’écriture n’est soumise à aucun ordre aparente. L’auteur se faisse

guider par as mémoire. [...] Quelques indications très brèves permeitent de situer le personnage et son environnement” (GRIL, 2007, p. 75).

19 [No original] “Tout écrit e tout discours sur la sainteté visente à proposer un modele” (GRIL, 2007, p. 55).

20 Ao que parece, distinguiam-se dos místicos de Bagdá, a quem foi dado pela primeira vez o título de

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A santidade islâmica

Margaret Smith aponta que, em meados do primeiro século da Hégira, aparece um certo adab al-ṣāliḥūn – moralidade dos piedosos (1995, p. 154). Com isto, os personagens a que se atribuíram características de ascetismo galgam posições privilegiadas na comunidade islâmica, principalmente como árbitros em disputas ou enviados de governantes. Desta moralidade dos piedosos deriva também uma subdivisão em suas condições ou forma ascéticas, que segundo a autora, resultaram num campo de construção da busca esotérica islâmica. Assim, aproxima-se a figura do “santo” à do místico.

Os “amigos de Deus”, e a raiz da santidade assentam-se no Corão, principalmente em relação com a dependência de Deus, ou seja, como apontou Schimmel, o santo muçulmano possui uma proximidade com o divino e a dependência deste, o que caracterizara a relação de “amizade”, a santidade (2002, p. 217).

O santo muçulmano também foi designado, em uma série de tradições (aḥadīṯ), por sua função modelar: “[...] meus servidores, meus amigos são aqueles que se lembram de mim”21 (CHODKIEWICZ, 1993, p. 25, tradução nossa), “os santos entre vocês são aqueles que alguém não pode ver sem lembrar de Allāh”22 (1993, p. 29). Diante disso, percebemos que os santos eram aqueles que perderam seu próprio “eu” (AL-QUSHAYRĪ, 2007, p. 237),23 mergulhados na servidão perfeita (‘ubūdiyya), na condição de muslim, submissos a Deus, sendo continuadores dos profetas e da profecia universal (nubūwwa al-‘amma), ocultando-se para os homens e o mundo (2007, p. 32). Um outro ḥadīṯ, atribuído a Umḥammad, descrevia os santos como “homens com os cabelos despenteados, cujas posses contam não mais que duas tâmaras, a quem ninguém quer mirar, [e que] podem, se eles rogarem a Deus, ter suas preces respondidas”24 (CHODKIEWICZ, 1993, p. 36), com isto, tais homens, que viviam na pobreza material, podiam realizar milagres (kāramāt).

Os amigos de Deus (awliyāʿ Allāh) tomavam sobre si a responsabilidade de implementar a justiça no mundo, cumprindo com os pilares da fé (arkām al-islām) e a

21 [No original] “[...] My servants, My awliyā are those who remember Me” (CHODKIEWICZ, 1993, p. 25). 22 [No original] “The saints among you are those whom one cannot see without remembering Allāh”

(CHODKIEWICZ, 1993, p. 29).

23 Perder seu próprio eu, quebrar seu ídolo interior seria descrito por al-Qushayrī como a principal

característica da Cavalaria Espiritual, futuwwa.

24 [No original] “with unkempt hair, whose possessions amount to no more than a couple of dates, whom

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mensagem corânica. Para Karen Armstrong, a mensagem básica do Corão constituiu-se, desde sua revelação, na construção de uma sociedade igualitária na história humana (2001, p. 9). Com isto, o santo passava a ser o foco da denúncia das desigualdades e injustiças, podendo sofrer até a pena capital, dando testemunho de sua fé, tornando-se um mártir (sahīd). Segundo Carmona Ávila, estes possuíam uma ação política, pois entre os místicos andaluzes, em sua postura ascética e distinta ante a população, angariavam prestígio social, tomando sobre si a responsabilidade de executar a crítica às condições desiguais prescrita no Corão:

Mas estes primeiros ascetas eram também parte do mundo e em suas biografias aparecem como denunciantes das injustiças e da opressão exercida pelo poder, o que os converteu, na ocasião, em porta-vozes do descontentamento popular, aumentando, sem dúvida, seu prestígio entra a população. Por isto, os ascetas andaluzes mais renomados eram considerados pelo povo como perfeitos intermediários para obter respostas divinas a seus desejos. Os atos piedosos mais comuns a todos estes ascetas eram a constante recitação do Corão e os atos de devoção e jejum praticados fora dos tempos canônicos estabelecidos. Eram generosos na esmola e humildes, e em casos mais excepcionais, praticavam a castidade ou o celibato.25 (PACHECO, 2001, p. 93-95 apud

CARMONA ÁVILA, 2012, p. 239, tradução nossa).

Estes elementos, associados a outras tradições e a diversas práticas, como a crítica social, além do prestígio entre os grupos com os quais conviviam, levavam o santo a viver de formas muito diversas. Nas hagiografias akbaris escolhidas percebemos que a pobreza, a ocultação, o distanciamento social, o controle da alma e a busca da proximidade com Deus caracterizavam tanto as formas ideais de santidade quanto as práticas. Por serem santos, estes personagens adentravam uma hierarquia própria, que tem em Ibn ͑Arabī seu grande teorizador.

A santidade akbari como ordinariedade

Para Michel Chodkiewicz (1993), a questão da santidade possui aspectos distintos na obra de Ibn ʿArabī. Conforme o autor, para o místico murciano, a santidade comportava tanto um aspecto soteriológico, ou seja, uma topologia de auxiliares da divindade no governo do mundo, quanto uma marca especifica de um grupo: o Povo da

25 [No original] “Pero estos primeros ascetas eran también parte del mundo y en estas biografías aparecen

como denunciantes de las injusticias y la opresión ejercida por el poder, lo que los convirtió en ocasiones en vehículos del descontento popular, aumentando, sin duda, su prestigio entre la población. Por todo esto, los ascetas andalusíes más reputados eran considerados por el pueblo como perfectos intermediaros para obtener respuesta divina a sus plegarias. Los actos piadosos más comunes de todos estos ascetas eran la constante recitación del Corán y los actos de devoción y ayuno practicados fuera de los tiempos canónicos establecidos. Eran generosos en la limosna y humildes, y en casos más excepcionales, practicaban la castidad o el celibato.” (PACHECO, 2001, pp. 93-95 apud CARMONA ÁVILA, 2012, p. 239).

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Reprovação. O método do Povo da Reprovação, os malāmī – que no escrito akbari ganham uma conotação distinta – representam bem mais que os membros da tradição de Nishapur, tornam-se modelos e lugares de santidade amparados na vivência oculta do cotidiano, que Chodkiewicz chama de “homem ordinário” (1993, p. 110-111).

A ordinariedade, como tentaremos demonstrar nos excertos escolhidos, passava pelas ações comuns, pela vida simples. Os santos akbaris foram seres do dia a dia, preocupados com a sinceridade de seus atos. O discurso hagiográfico, assim, busca, a nosso ver, a promoção do método dos malāmī a reprovação, ocultação e simplicidade, bem como a legitimidade de uma forma simples da busca esotérica, em contraposição com as tūrūq que testemunhou em sua estada no Egito. A despeito disto, é na ordinariedade que se transformou seres de busca mística em discursos de santos.

Para Michel de Certeau, é na ordinariedade que se modifica a relação com a divindade e o próprio cotidiano, ou seja, o “quase nada” do cotidiano: “o discurso místico transforma o detalhe em mito; ele se agarra nisso, ele o exorbita, ele o multiplica, ele o diviniza. Ele faz disso sua historicidade própria” (2015, p. 13). O homem comum, o místico ou o discurso do místico sobre o místico, torna-se o centro da busca, pois no cotidiano, no simples meio de vida, nas anedotas, nas distrações do dia-a-dia, nas preocupações de um homem sobre seu sustento e sua família, ali que se manifesta, conscientemente – ou melhor, na consciência de quem elabora o discurso – a presença do Outro perdido. “Assim, pouco a pouco, a vida comum se torna a ebulição de uma inquietante familiaridade – uma frequentação do Outro” (DE CERTEAU, 2015, p. 13.). Uma hagiografia islâmica, deste modo, um discurso sobre o amigo de Deus, é um discurso sobre o homem comum que encontra o Outro no seu cotidiano. Modelo para os leitores, mistério para os buscadores, é na construção do discurso sobre sua vida sensível que os personagens se tornam santos.

Claude Addas afirma que “o ponto essencial para sustentar em mente é que para Ibn ʿArabī os santos são fundamentalmente herdeiros dos profetas (warāṯa al-anbiyā’), a predominância da herança deste ou daquele profeta é o que determina o tipo espiritual de qualquer santo”26 (1993, p. 51), assim o santo, herdeiro de um profeta corânico,27 que chegou ao estágio de servidão perfeita – Kun ʿabdan maḥḍan (Seja um servo perfeito),

26 [No original] “The essential point to bear in minds is that for Ibn ʿArabī the saints are fundamentally

heirs of the prophets (warāṯa al-anbiyā’): the predominance of the inheritance from this or that prophet is what determines the spiritual type of any given saint” (ADDAS, 1993, p. 51).

27 A herança profética pode classificar uma tipologia para a santidade islâmica. Cada um dos 122 mil

profetas corânico, conhecidos e desconhecidos, comporiam typos, tipos para um exemplo de santo (FRYE, 2004, p. 108-110). Os santos seriam, pois, antítipos, exercendo suas funções com base no seu presente. Ao atualizarem a herança profética, comporiam o que Michel Chodkiewicz denominou de “topologia”: cada santo ocupando um “lugar” no governo da criação (1993, p. 89).

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fora no texto akbari associado ao Povo da Reprovação: “Emergirá mais tarde [na obra akbari] o único povo que chegou ao estado de ʿubūdiyya (servidão perfeita), que são os malāmiyya, o ‘Povo da Reprovação’”28 (1993, p. 62.). Foram estes malāmī os que atingiram a proximidade e amizade com Deus,29 foram estes os homens comuns.

O santo, em sua caminhada mística e por graça divina, era considerado como alguém que alcançava as verdades divinas. Estes homens, para Ibn ʿArabī, foram sempre mestres que, por modelo e por sinceridade, permitiam a distribuição das bênçãos no mundo, bem como a intercessão deste mesmo mundo junto a Deus.

Estes eram homens simples, pobres, ordinários, chamando sobre si a reprovação, e, segundo Michel Chodkiewicz, “assim o malāmī, como o homem ordinário – e ele é ordinário no mais puro sentido, por meio da conformidade consciente e voluntária com a ordem divina das coisas – submete-se a cadeia das coisas secundárias”30 (1993, p. 110-111,), reiteramos aqui que, conforme a análise feita mais à frente, os principais santos (ṣāliḥūn) apresentados por Ibn ‘Arabī foram tidos como malāmī, e é sobre os relatos das vidas destes que nos dedicaremos.

Os santos e suas vidas ordinárias

Discorremos sobre o papel dos santos da fé islâmica, e sobre como estão atrelados a uma base de autoridade corânica, tradicional ou diretamente a Deus. Procuramos aprofundar também a distinção que a obra akbari tem neste tema. Mesmo que haja uma tradição de escritos sobre os santos, que remontaria a al-Tirmiḏī (ca.932)31 ou al-Sulamī, foi em Ibn ʿArabī que a questão da santidade se aprofunda e ganha uma função soteriológica.

Neste momento do texto, buscamos apresentar, como já dito, os relatos destes homens e mulheres do ordinário e, assim esperamos, demonstrar como é no comum, no simples, no ordinário da vida que estes seres passaram ao extraordinário. Os santos

28 [No original] “It will emerge later that the only people who realise the state of ʿubūdiyya fully are the

malāmiyya, the ‘People of Blame’”. (ADDAS, 1993, p. 62).

29 Também importante é a associação do Povo da Reprovação com a servidão perfeita e o papel feminino

entre os escritos akbaris (CHODKIEWICZ, 2004, p. 4-13).

30 [No original] “So the malāmī, like the ordinary man – and he is ordinary in the fullest sense, through his

conscious and voluntary conformity to the divine order of things – submitts to the chain of secondary causes” (CHODKIEWICZ, 1993, p. 110-111).

31 Mu

ḥammad ibn ʿAlī al-Ḥakīm al-Tirmiḏī foi um escritor místico, autor de texto sobre a santidade denominado Ḫatm al-awliyā’ (Selo dos Santos), um conjunto de perguntas sobre a santidade que influenciou Ibn ʿArabī.

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específicos relacionados abaixo foram também mestres de Ibn ʿArabī na sua introdução nos métodos humanos desta via.32

Ṣāliḥ al-‘Adawī, ou o Santo Sapateiro, segundo Asín Palacios, foi o terceiro mestre apresentado na Epístola como aquele que em todos os momentos estava em Deus e com Deus. Vivia na pobreza e na confiança divina, exercendo seu ofício apenas para os estrangeiros, pois conta-nos o hagiógrafo, sua condição de santidade era conhecida entre os buscadores de Sevilha. Ignorava qualquer tipo de propriedade e praticava exercícios ascéticos, como afirmou: “em todas as horas da noite e do dia via-se ele de pé, lendo o Corão. Nunca teve casa própria em que habitar, nem tão pouco tomava remédio algum. Sua regra de vida espiritual era própria do grupo dos 70 mil33 que entrarão no paraíso sem que se submeta ao juízo”34 (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 72, tradução nossa). Sua condição era a da perfeita submissão e servidão, colocado entre os “Solitários”, um dos mais altos graus da hierarquia da santidade.35

A ausência de propriedade, assinalada pelo destaque do fato de nunca ter tido uma casa própria, em nossa compreensão, aponta como este simples sapateiro, que vivia de seu ofício, estava imerso em sua vida, apegado apenas a Deus, sem se preocupar com um teto.

A postura de desapego extremo de Ṣāliḥ al-‘Adawī, a nosso ver, colocava-o entre os zaḥīd, ou seja, aqueles que praticam o zuhd, a ascese islâmica,36 pois afirmou Ibn ͑Arabī:

32 Esta via (haḏa ṭarīq) ou a melhor via (al-ṭarīq al-ašrāf) são os termos utilizados para designar uma das

vias esotéricas, especificamente a via andaluz a que Ibn ʿArabī estava associado. A utilização acadêmica ocidental da terminologia “sufismo” e o termo árabe taṣawwuf são muito restritivos para designar estes mestres. Para uma crítica do termo sufismo como uso ocidental, vide: SAID, 2007.

33 Estes 70 mil que foram aceitos no Paraíso sem julgamento advêm de um ḥadīṯ: “Narrado por Ibn ‘Abbas

(que Deus tenha misericórdia dele) que o Mensageiro de Deus (que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele) disse: “70 mil de minha Umma entrarão no Paraíso sem serem levados ao acerto de contas; eles são os que não pedem pela ruqyah ou acreditam em presságios ou usam de sortilégios e eles colocam sua confiança em seu Senhor”. Para acesso aos principais aḥadīṯ: Muḥammad AL-BUḪĀRĪ. Ṣaḥīḥ. Vol. 7, l. 71, nº 606. Disponível em: http://www.sahih-bukhari.com. Acesso em: 10 out. 2017.

34 [No original] “A todas las horas de la noches y del dia veíasele de pie, leyendo el Alcorán. Jamás tuvo

domicilio proprio en que habitar, ni tampoco toma nunca medicina alguna. Su regla de vida espiritual era propia del grado de los setenta mil que entrarán en el paraíso sin que se les someta a juicio” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 72).

35 Os ʿafrād, “os solitários”, era o lugar reservado na hierarquia dos santos akbari para aqueles que

alcançaram a perfeita união com Deus, por meio da servidão e dependência. Tinham a alcunha de

al-rukban (aqueles que cavalgam o camelo), divididos em 2 categorias: os da energia e os da ação. Estes

solitários foram identificados pelo místico murciano entre os malāmī, buscando a ocultação, não angariando para si as glórias do mundo. Estes tinham o poder de interpretar os sonhos, como o profeta

Yūsuf (José), do qual eram herdeiros. Eles buscaram e alcançaram, por seu perfeito tawḥīd, a confiança

total em Deus (CHODKIEWICZ, 1993, p. 105-107).

36 A prática do zuḥd em Al-Andalus foi redimensionada com a chegada de Ibn Masarra e com a

conformação de sua escola. Segundo Fierro Bello (1987), havia em Al-Andalus, durante o início do período omíada, uma prática de zuḥd vista como ortodoxa, ou seja, de acordo com a perspectiva da escola jurídica predominante, o maliquísmo. Todavia, com as viagens ao Oriente, alguns personagens, como Ibn Masarra,

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Não falava com ninguém nem assistia nenhuma reunião [...] Quando se punha a orar em dias de frio intenso, tirava toda a roupa que levava por cima, até que ficava de camisa e ceroulas, a despeito do qual suava demais, como se estivesse dentro de uma sauna. [...] Nunca guardava coisa alguma para o amanhã, nem aceitava coisa que não o fosse indispensável, e isto para si nem para o próximo37 (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 72-73, tradução nossa).

Entre seus milagres,38 um aspecto de sua identidade, contou-nos o autor que:

Alguns anos desaparecia de Sevilha ao aproximar-se da Páscoa dos Sacrifícios39. E me contou um alfaquí, testemunha fidedigna e da terra, que

Ṣāliḥ, em tais anos, aparecia nas datas da peregrinação em Meca, e que alguém o vira na montanha santa de ‘Arafat [...] Anunciou-me, com efeito, algumas coisas que sucederiam no futuro, e as vi todas cumpridas [...]40 (ASÍN

PALACIOS, 2005, p. 73, tradução nossa).

A ascese, entendida pelo islamismo como o desapego das coisas materiais, somada à possibilidade de percorrer longas distâncias de forma misteriosa, como apontou os relatos, compunham as kāramāt de Ṣāliḥ al-‘Adawī. Segundo a tradição, ambas – desapego e viagem mística – estavam atreladas à figura de Muḥammad, assentando o mestre e sua santidade na herança profética, como asseverou Claude Addas (1993).

Em sua escrita hagiográfica, Ibn ʿArabī busca legitimar seu relato associando-se aos santos e à sua benção. Como fora pupilo dos mestres cuja vida escreveu, ele aponta os ensinamentos e relações com os quais sua própria pessoa foi agraciada, bem como a constituição de seu próprio local entre os santos. Assim disse: “Eu fui discípulo seu por

Maslama b. Qasim e os tradicionalistas, trouxeram à Península novas proposições de ascetismo, baseados em aḥadīṯ e em métodos vistos entres os grupos de Bagdá e Cairo. Uma disputa entre as práticas tradicionais e as novas formas, em meados do século X, levaria a acusações, condenações, execuções e perseguições de grupos como os masarrī, que tiveram que se exilar de Córdoba, capital do Califado omíada, e constituir uma escola em Almeria, onde o ascetismo era um dos pilares. Muito além do simples exercício ascético, composto pelo jejum e pela esmola, prescritos na tradição legislativa corânica, estes ascetas andaluzes, associados à escola de Ibn Massara e à tradição dos magrebinos, praticavam ainda o celibato e a castidade, que não eram bem vistos pelos legisladores.

37 [No original] “No hablaba con nadie ni asistía ninguna reunión. [...] Cuando se ponía a orar en días de

intenso frío, se quitaba toda la ropa que llevaba encima, hasta quedarse en camisa y zaragüelles, a pesar de lo cual sudaba a raudales, como si estuviera metido en unas termas. [...] Jamás guardaba cosa alguna para el día de mañana, ni aceptaba cosa que no le fuese indispensable, y esto para sí ni para el prójimo” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 72-73).

38 Kāramāt, carismas, este é o termo utilizado pelos escritos esotéricos para designar os milagres dos

santos.

39 O termo utilizado no texto árabe é ʿid al-aḏhī (AL-GHURAB, 1985, p. 80).

40 [No original] “Algunos años desaparecía de Sevilla al aproximarse la pascua de los sacrificios (ʿid

al-aḏhī). Y me contó un alfaquí, testigo fidedigno y de la tierra, que Ṣāliḥ, en tales año, aparecía presenciando

las fiestas de la peregrinación en la Meca, y que alguien, que lo vio estando en la montaña santa de ‘Arafat [...] Anuncióme, en efecto, algunas cosas que me habían de suceder en lo futuro, y las vi todas ellas cumplidas [...]” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 73).

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vários anos, durante os quais apenas se pôde contar as palavras que me dirigiu; tão poucas foram. [...] Sentia por mim afetuoso carinho e deu-me mostras de interesse e atenção de que muito me aproveitei”41 (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 73, tradução nossa). O discurso hagiográfico demonstra como o processo de ensino deste mestre partia da afetuosidade sincera e como isto possibilitou conquistas mais profundas que as verborragias e músicas, atingindo, conforme a pessoa, o verdadeiro sentido bāṭin, interior, e o perfeito tawḥīd com Deus.

Uma enfermidade atingiu e matou Ṣāliḥ al-‘Adawī. Ele foi, então, purificado e carregado ao cemitério por seus discípulos, entre eles, Ibn ͑Arabī. Para memória deste santo, deixa a seguinte descrição: “Depois dele, não vi ainda ninguém que se assemelhasse em perfeição; seu estado espiritual se parecia com o de Uways al-Qaranī. Exaustivo seria o relato de muitas outras notícias que dele se conservam”42 (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 74, tradução nossa). Aqui, podemos perceber como o processo de construção da imagem do santo e mestre Ṣāliḥ al-‘Adawī se associava ao exemplo discursivo e tradicional de místico muçulmano, Uways.43

Outros dois santos hagiografados foram os irmãos Abū ʿAbd Allāh Muḥammad al-Ḫayyāt, o alfaiate, e Abū al-‘Abās Aḥmad al-Išbīliyān, sapateiro (AL-GHURAB, 1985, p. 92-94). Ambos se tornaram ḥājjīn,44 sendo que durante o Ḥājj adotaram a via da reprovação: “[...] o método de vida religiosa dos malāmī” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 95-96, tradução nossa).45

O primeiro a buscar o aprofundamento esotérico teria sido Muhammad, o alfaiate. Seu método, segundo o texto, fora a filial afeição e a sinceridade:

No que toca a Abū ʿAbd Allāh, abandonou o mundo, para ingressar na vida espiritual, muito tempo antes que seu irmão. A piedade filial que tinha por sua

41 [No original] “Yo fui discípulo suyo varios años, durante los cuales apenas se pude contar las palabras

que me dirigió; tan pocas fueron. [...] Sentía hacia mí afectuoso cariño y me dio muestras de interés y atención que mucho me aprovecharon” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 73).

42 [No original] “Después de él, no he visto ya nadie que se le asemejase en la perfección; su estado

espiritual se parecía al de Uways al-Qarani. Prolijo sería el relato de muchas otras noticias que de él se conservan” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 74).

43 Uways al- Qaranī, segundo as tradições islâmicas, tornara-se um dos conversos à revelação corânica

sem nunca ter saído de sua terra, o Iêmen, e nem ter conhecido pessoalmente a Muḥammad. Foi morto durante a primeira fitnah, quando defendia o grupo de Ali. Um ḥadīṯ afirma: “O alento do Misericordioso (nafas al-Raḥmān) vem a mim desde o Iêmen”. [No original] “El aliento del Misericordioso (nafas

al-Raḥmān) viene hasta mí desde el Yemen”. (SCHIMMEL, 2002, p. 44, tradução nossa). Segundo Corbin

(1993, p. 46), este mesmo Uways, em uma experiência mística do al-Šayḫ al-akbar, outorgou a ḫirqa, o manto espiritual e confirmação da bênção divina a Ibn ͑Arabī, no Oriente.

44 O termo ḥājjīn ou ḥājjī designa aqueles que realizaram a obrigação do ḥājj, a peregrinação a Meca,

tornando-se também parte da alcunha do peregrino.

45 [No original] “[...] adoptó el método de vida religiosa de los malamaties” (ASÍN PALACIOS, 2005, p.

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mãe foi tal que se consagrou a seu serviço como seu criado até sua morte. O temor de Deus era o estado de ânimo que o dominava; tanto que, quando fazia a oração, ouvia-se de longe a batida do coração a bramir em seu peito, e logo seus olhos derramavam abundantes lágrimas. Quase sempre silencioso, sempre triste e muito meditativo, lançava alguns ais e gemidos. Nunca vi outro mais contrito e compungido que ele. Nunca se lhe via em outra atitude que com a cabeça baixa e os olhos fixos no solo. Não só não tratava com ninguém, como ainda não se relacionava com pessoa alguma (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 96-97, tradução nossa). 46

Sua busca era solitária e oculta aos olhos do mundo, característica de membro dos malāmī. Sua vida foi dedicada ao outro, como o cuidado por sua mãe. A dedicação aos enfermos, auxiliando-os em suas doenças, colocavam-no ante as preocupações básicas da vida simples e cotidiana. A atitude deste santo era manter a simplicidade da meditação.

A tristeza era vivida como no ḥadīṯ que pedia o choro ao invés do sorriso e que caracterizava o grupo dos “dementes” (maḥzūn). O olhar cabisbaixo de quem buscava algo no seu próprio interior. Ainda sobre seu método, seguiu o autor murciano:

Inimigo de toda dissimulação e fingimento, era enérgico na correção fraterna, sem sentir vergonha de dizer a verdade a quem quer que fosse, nem o importava tão pouco os vitupérios do próximo, quando por Deus o insultava. A ninguém procurava adular; tampouco disputava com ninguém. Deus o pôs a prova com a pobreza e com úlceras purulentas, e passou paciente por estas provas. Foi um místico de admirável vida interior e altos ideais (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 97, tradução nossa).47

A paciência e, ao mesmo tempo, a forte inclinação à crítica aos seus conterrâneos, bem como a pobreza e doença advindas pela vontade divina, possibilitaram a Abū ʿAbd Allāh um aprofundamento interior e a proximidade com a divindade. Outro grande sinal exterior de seu aprofundamento bāṭin, segundo o hagiógrafo seria sua dedicação aos pobres:

46 [No original] “Por lo que toca a Abū ʿAbd Allāh, abandono el mundo, para ingresar en la vida espiritual,

mucho tempo antes que su hermano. La piedad filial que tenía hacia su madre fue tal, que se consagró a su servicio como criado, hasta que ella murió. El temor de Dios era el estado de ánimo que le dominaba; tanto que, cuando hacía oración, oíase desde lejos el zumbido de su corazón al latir en su pecho, y pronto sus ojos derramaban abundantes lágrimas. Casi siempre silencioso, siempre triste y muy meditabundo, lanzaba a menudo ayes y gemidos. Jamás he visto otro más contrito y compungido que él. Nunca se le veía en otra actitud que con la cabeza baja y los ojos fijos en el suelo. No sólo no gastaba con nadie bromas, sino que ni aun frecuentaba el trato de persona alguna” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 96-97).

47 [No original] “Enemigo de todo disimulo y fingimiento, era enérgico en la corrección fraterna, sin sentir

vergüenza de decir la verdad a quienquiera que fuses, ni importarle tampoco los vituperios del prójimo, cuando por Dios se le zahería. A nadie procuraba halagar; pero tampoco disputaba con nadie. Probóle Dios con la pobreza y con úlceras purulentas, y sobrellevó paciente estas pruebas. Fue un místico de admirable vida interior y de altos ideales” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 97).

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Servia como criado, pessoalmente, aos pobres, dando-lhes de comer e de vestir. Era de coração compassivo, terno, bondoso, afetuoso, doce e muito sensível. Misericordioso para com os pequenos, não deixava, contudo, de reconhecer o merecido prestígio dos grandes. A cada qual lhe dava o que lhe era devido. Por isso todos os homens estavam obrigados com ele, enquanto ele não devia coisa alguma a ninguém, excetuando Deus (2005, p. 99, tradução nossa).48

Como aquele que alcançava a proximidade e a unidade com Deus, apenas para com Deus este santo poderia ter alguma obrigação. Sua ação de misericórdia, de justiça corânica, levava-o a agir para com as pessoas com a bondade e o merecimento de cada ator social, conforme sua ação. Aos pobres dava a misericórdia, o cuidado prescrito pela legislação, como al-zakat (a esmola obrigatória) e o auxílio. Aos ricos, a desconfiança e o respeito, como membros da comunidade dos fiéis.

Seu poder de realizar milagres expressava-se por visões em sonhos. Mas tais visões, que designavam sua qurba (a proximidade com Deus), eram resultados de uma ascese restritiva:

Sofria com paciência o dano que lhe faziam e abstinha-se de responder às injúrias. Suas visões em sonho eram verídicas. Suportava a fome longo tempo. Passava a noite em vigília e o dia em jejuns. Jamais o encontrava ocioso. Amava as ciências religiosas e aos que as cultivam (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 97-98, tradução nossa). 49

A relação deste santo com o autor, seu hagiógrafo, seguia na mesma corrente apresentada nos demais hagiografados. Ibn ʿArabī tinha por este homem uma grande admiração e uma proximidade, levando-o a se acercar e se associar à sua condição:

Quando eu era pequeno, já o queria apaixonadamente, porque o conhecia por ser vizinho da casa do mestre que me ensinava a ler o Corão. [...] de quantas pessoas vi, nunca ansiei assemelhar-me a nenhuma, como a ele e seu irmão, quando abandonei o mundo para entrar no caminho da perfeição. [...] uma das provas que vi da eficácia sobrenatural de sua intenção foi que entre minha casa e a sua havia uma grande distância. [...] certo dia, quando senti em meu interior um desejo imperioso de ir vê-lo e, ao mesmo tempo, um impulso profundo de voltar para minha casa; como estes dois movimentos da alma eram simultâneos, eu vacilava, sem saber como harmonizá-los; por fim, resolvi-me a fazer conforme o primeiro impulso e me pus a correr até que entrei em sua casa [...] saudei-o e ele, sorrindo, disse-me: “O que é que te fez vir tão lentamente? Meu coração estava ansioso por ti. Deves possuir algo!”. Levava em meu bolso cinco moedas de prata de cunhagem corrente e as entreguei em seguida. Ele me disse,

48 [No original] “Servía como fámulo y personalmente a los pobres, dándolos de comer y de vestir. Era de

corazón compasivo, tierno, bondadoso, afectuoso, dulce y muy sensible. Misericordioso para con los pequeños, no dejaba, sin embargo, de reconocer el merecido prestigio de los grandes. A cada cual le daba lo que le era debido. Por eso todos los hombres le estaban obligados, mientras que él a nadie le era deudor de cosa alguna, exceptuado Dios” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 99).

49 [No original] “Sufría con paciencia el daño que le hacían y se abstenía de responder a las injurias. Sus

visiones en sueños eran verídicas. Soportaba el hambre largo tempo. Pasaba la noche en vigilia y el día en ayunas. Jamás lo encontrabas ocioso. Amaba las ciencias religiosas y a los que las cultivan” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 97-98).

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então: “Veio a mim um pobre que se chama ‘Ali, o de Salé, e não tinha eu nada [para lhe dar]” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 98-99, tradução nossa).50

Percebemos que a comunicação espiritual, decorrência da associação dos dois personagens no mesmo caminho, possibilitava a implementação da justiça por meio do auxílio ao pobre. Como ponto auto hagiográfico, Ibn ʿArabī utilizou o artifício da semelhança para que, ao construir a imagem do santo, pudesse legitimar também seu discurso e sua posição discursiva e social, ao se associar com alguém que possuía uma bênção e um carisma tão fortes, podendo estes serem transmitidos a ele e a suas obras, bem como a seus próprios discípulos, que ouviram a leitura da obra em Damasco.

No mesmo conjunto, segue-se o relato da vida de Aḥmad, o sapateiro, que tinha a mesma proximidade com o divino que seu irmão: “Não é possível imaginar quão bom era. Reunia todas as virtudes e estava isento de toda imperfeição. Chegou à intuição da verdade divina, e neste estado místico de contemplação vivia constantemente. Os mistérios que Deus lhe revelava, guardava-os em segredo”51 (ASÍN PALACIOS, 2005, p.

99, tradução nossa).

A grande força espiritual deste personagem, que entrou na via por influência de seu irmão, encontrava-se na servidão (ʿubūda), pois cuidava de todos os doentes, desde Abū ʿAbd Allāh Muḥammad, o alfaiate e irmão, até outros mestres descritos na Epístola, como Al-‘Uryabī e Junayd,52 o que pode apontar uma relação próxima entre os diversos

mestres andaluzes. Por fim, este amigo de Deus “consagrou-se a servir a seu irmão como criado, sem servir a ninguém mais, e todas as virtudes e dons místicos que possuía são frutos da bênção de seu irmão”53 (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 100, tradução nossa). Muito

destacado, ainda, era seu combate ascético: “Forte para o combate ascético [...] sua alma

50 [No original] “Cuando yo era pequeño, ya lo quería apasionadamente, porque lo conocía por ser vecino

de la casa del maestro que me enseñaba a leer el Alcorán. [...] de cuantas personas he visto, jamás anhelé tanto asemejarme a ninguna, como a él y a su hermano, cuando abandoné el siglo para entrar por el camino de la perfección. [...] una de las pruebas que vi de la eficacia prenatural de su intención fue que entre mi casa y la suya había una gran distancia. [...] cierto día, cuando sentí yo en mi interior un deseo imperioso de ir a verle, y a la vez otro impulso vehemente de volverme a mi casa; como estos dos movimientos del ánimo eran simultáneos, yo vacilaba, no sabiendo como armonizarlo; al fin me resolví a obrar conforme al primer impulso y me puse a correr hasta que penetre en su casa [...] le saludé y él, sonriéndose, me dijo: “¿Cual es lo que te hecho venir tan despacio? Mi corazón estaba pendiente de ti.¡ tú debes poseer algo!” yo llevaba en mi bolsillo cinco monedas de plata de acuñación corriente y se las entregue en seguida. Él me dijo entonces: “ha venido a mí un pobre que se llama ‘Ali el de Salé, y no tenía yo nada” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 98-99).

51 [No original] “No es posible imaginar cuán bueno era. Reunía todas las virtudes y estaba exento de toda

imperfección. Llegó a la intuición de la verdad divina, y en este estado místico de contemplación vivía constantemente. Los misterios que Dios le revelaba guardábalos secreto” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 99).

52 Este personagem era Abū ʿAbd Allāh Muḥammad bin Junayd; segundo Asín Palacios, tratava-se de um

muʿtazilita de Cabrafigo.

53 [No original] “Se consagró a servir a su hermano como fámulo, sin servir a nadie más, y todas las

virtudes y dotes místicas que posee son fruto de la bendición de su hermano.” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 100).

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se inclinava submissa sob o jugo da inspiração dos mistérios que Deus o comunicava”54

(2005, p. 100, tradução nossa).

Estes dois irmãos, grandes mestres e santos, deixando todo o mundo para dedicarem-se à contemplação interior, desapegados e voltados apenas a Deus, tinham por missão o serviço aos homens:

A generosa liberalidade e a caridade com que ambos os irmãos atendiam às necessidades do próximo e a estreiteza com que se tratavam eram tais que não encontrei quem, a este respeito, fosse-lhes maior. Queira Deus voltar a me reunir com eles em saúde e paz espiritual, e que não nos separemos nunca! (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 101-102, tradução nossa)55.

Assim, o hagiógrafo demonstrou como o carisma destes dois irmãos, devido às suas asceses, possibilitava uma nostalgia da santidade que o autor viveu, em contato profundo e estreito, no Andalus de sua juventude. Aqui, tanto o hagiógrafo como seu discurso apontam para a presença dessa santidade em mais alto grau, conhecida pessoalmente e atestada por Deus, entre aqueles que eram buscadores das verdades interiores no Ocidente islâmico.

Abū ʿAbd Allāh Muḥammad bin Ašraf al-Rundī (AL-GHURAB, 1985, p.109), natural de Ronda, “para consagrar-se a Deus, abandonou a sua alta posição social e folgada situação econômica, pois era dos mais notáveis de sua vila”56 (ASÍN PALACIOS, 2005, p.

139, tradução nossa). Além da renúncia do mundo, este santo buscava a solidão, tornando-se um dos ʿabdāl (min al-‘abdāl), membro importante da hierarquia dos santos: “[...] que andava sempre vagando pelos montes e lugares ermos, separado do mundo e sem parar nunca em lugar habitado, durante trinta anos” (2005, p. 139, tradução nossa).57

O método deste mestre visava ao abandono completo do mundo, à renúncia e à solidão. Estas formas de vida eram seguidas de certa tristeza, não a tristeza pelo abandono, mas a tristeza de não estar tão logo perto de Deus, ou cumprindo fielmente suas determinações. Provavelmente, ele fazia parte do grupo da tristeza ou demência (maḥzūn).

54 [No original] “Fuerte para el combate ascético [...] su alma se inclinaba sumisa bajo el yugo de la

inspiración de los misterios que Dios le comunicaba [...]” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 100).

55 [No original] “La generosa liberalidad y caridad con que ambos hermanos atendían a las necesidades del

prójimo y la estrechez con que se trataban a sí mismos eran tales, que no he encontrado quien en este respecto les aventajase. ¡Quiera Dios volverme a reunir con ellos en salud y paz espiritual, y que ya no nos separemos después jamás!” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 101-102).

56 [No original] “Para consagrarse a Dios, abandonó la alta posición social y la holgada situación económica

en que vivía, pues era de los más notables personajes de su pueblo” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 139).

57 [No original] “que anduvo siempre vagando por los montes y lugares desiertos, apartado del mundo y sin

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Dotado de penetração sobrenatural para conhecer os mistérios do mundo invisível. Homem de muitas lágrimas, de longas vigílias, de perpétuo silêncio. Com frequência se lhe via escrever com o dedo sobre o chão, a cabeça baixa, em atitude de meditação. Logo, levantava a cabeça e exalava um profundo suspiro. Seu peito agitava-se e seu coração batia com veemente emoção. Seus olhos derramavam lágrimas em abundância (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 139, tradução nossa)58.

No relato seguiu-se o encontro de Al-Rundī com Ibn ʿArabī, na rábida de Ruta,59

lugar sagrado entre os sufis andaluzes. Deste encontro resultou uma amizade que possibilitava a comunicação mental entre ambos, bem como a visita espiritual e carnal.

Os aspectos da santidade deste mestre foram classificados pelo hagiógrafo com base em seu ascetismo, de onde foi possível perscrutar seus milagre e benção:

A causa que originou seu renome de santo foi que, com muita frequência, ia se recluir a um alto monte nas proximidades de Morón. Uma noite, passou pelo monte um homem, que ia resolver seus problemas, e viu uma coluna de luz que reta brilhava longe com tal intensidade que não era possível fixar a vista nela. Foi até ela e viu que aquela luz era nosso mestre ʿAbd Allāh, que estava de pé em oração. O homem espalhou o ocorrido... (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 142-143, tradução nossa)60.

Seu método era a ascese solitária, andando pelos montes. Fazia-o como giróvago, sem destino fixo e, como aquele que subira os montes, numa associação legitimadora com a ‘Isrā de Muḥammad que, durante sua viagem noturna, ascendeu aos céus e pôde ver parte da essência divina no espaço de “duas flechas” de distância. A ascese praticada por este mestre foi confirmada no próprio relato. Ao ter presenciado a luz que emanava de sua ṣālah, uma luz que possuía a força capaz de não ser contemplada, o caminhante que deu a informação, confirmou a profundidade da barakah de Al-Rundī. Isso pode aproximá-lo da herança de Muḥammad, sendo a nūr muḥammadiyya, a Luz de

58 [No original] “Estaba dotado de sobrenatural penetración para conocer los misterios del mundo invisible.

Era hombre de muchas lágrimas, de largas vigilias, de perpetuo silencio. Con frecuencia se le veía escribir con el dedo sobre el suelo, la cabeza baja y en actitud meditabunda. De pronto, levantaba la cabeza y exhalaba un profundo suspiro. Su pecho hervía y su corazón latía con emoción vehemente. Sus ojos deramaban lágrimas en abundancía” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 139).

59 A Rabita Ruta era uma construção militar que também permitia o contato entre diversos caminhos entre

Al-Andalus e o norte da África. Segundo Delgado Pérez (GONZÁLEZ COSTA et al., 2009, p. 193-206), o

ribāt seria “[…] ao mesmo tempo instituição militar e religiosa”. Já a Rabita Ruta, situada na baía de Cádiz,

próximo à desembocadura do Guadalquivir, fora construída para a defesa contra o ataque dos normandos. Já na segunda metade do século X, ocupava uma posição de centro de peregrinação e vida mística, como citou o geógrafo al-Zuhri: “[Em Rota] existe uma grande rábita, sobre esta que falou o alfaquí Abu Muhammad ‘Abd al-Malik Ibn Habib: ‘para quem se faz ermitão nela e pratica o jejum, são perdoadas deste as faltas por sessenta anos’ e foi autor de um livro em honra deste lugar”.

60 [No original] “La causa ocasional que originó su renombre de santo fue que con mucha frecuencia se iba

a hacer vida eremítica en un monte altísimo en las cercanías de Morón. Una noche, acertó a pasar por aquel monte un hombre, que iba a sus quehaceres, y vio una columna de luz que erecta brillaba a lo lejos con tal intensidad, que no le era posible fijar en ella su mirada. Dirigióse hacia ella y se encontró con que aquella lumbre era nuestro maestro ʿAbd Allāh, que estaba de pie en oración. Aquel hombre divulgo hecho...” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 142-143).

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Muḥammad, assim como a constatação de sua santidade. Tal luz é um dos qualificativos da ḥaqīqa muḥammadiyya, da essência pré-criada do Profeta, que já existia, segundo um ḥadīṯ, quando Adão ainda não tinha sido criado: “Fui profeta quando Adão estava ainda entre a água e o barro” (SCHIMMEL, 2001, p. 233).

Sua fonte de renda era baseada na simplicidade das coisas vindas da natureza, o que se aproximava à perspectiva de vida justa amparado no exemplo do Profeta, pois “ganhava a vida recolhendo camomila pelos montes e levando para vender na cidade. Feito isto, voltava à montanha” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 143, tradução nossa).61

Sua bênção e carismas eram de grande força e profundidade, mantinha brasas em mãos sem que se queimasse e possuía a misericórdia para com o próximo, além de ser um ‘ummī, analfabeto:

Para qualquer necessidade, tirava do forno as brasas com sua mão e as segurava todo tempo que Deus quisesse, sem que o queimassem. Era dos místicos iletrados. Eu o perguntei um dia qual fora a causa de seu choro, e respondeu-me: ‘Que não jogaria nunca pragas contra ninguém. Mas um homem me irritou uma vez e lancei sobre ele uma praga e ele morreu. Desde então, até hoje, não cessei de me arrepender daquilo.’ Era todo misericórdia para com o próximo. Os feitos que dele se narram são muitos, mas me falta tempo para explicar todos (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 145, tradução nossa)62.

Sua misericórdia para com o próximo não o afastou da possibilidade da falta, talvez a mais grave, de utilizar seu poder sem precaução, matando uma pessoa com uma corriqueira imprecação, de raiva talvez. Como santo, detentor do poder, a utilização correta da bênção devia ser levada em consideração com extrema atenção, já que a morte seria o pior crime, segundo o Corão63 e que o poder de um santo não deve ser

utilizado para um ato vil.

Outro dos santos foi ʿAbd Allāh al-Ḫayyāṭ (AL-GHURAB, 1985, p. 117), ou o alfaiate, “Um miserável mendigo (kaṯīr al-fakr) de quem ninguém fazia caso. A palidez extrema de sua pele denunciava sua miséria. Era dado à meditação, sensível às emoções

61 [No original] “Se ganaba la vida recogiendo camomila por los montes y llevándola luego a vender a la

ciudad. Hecho esto, se volvía a la montaña. (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 143).

62 [No original] “Para cualquier necesidad, sacaba del horno las brasas con su mano y las tenía todo el

tempo que Dios quería, sin que le quemasen. Era de los místicos iletrados. Yo le pregunté un día cuál fuese la causa de sus lloros, y me contestó: “que no lanzaría jamás imprecación alguna contra nadie; pero un hombre me irritó una vez y lancé contra él una imprecación y murió. Desde entonces hasta ahora, no he cesado de arrepentirme de aquello.» Era todo misericordia para con sus prójimos. Los hechos que de él se narran son muchos más; pero me falta tempo para explicarlo todos” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 145).

63 Corão, s. 5; v. 32: “Por causa disso, prescrevemos aos filhos de Israel que quem mata uma pessoa, sem

que esta tenha matado outra ou semeado corrupção na terra, será como se matasse todos os homens. E quem lhe dá a vida será como se desse a vida a todos os homens”.

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extáticas e dominado pela intensa tristeza”64 (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 156, tradução

nossa). A despeito de sua condição de mendigo, sua força era tamanha que lhe tornou o mestre que indicou o caminho para Ibn ʿArabī, como segue:

Quando Deus me revelou a primeira vez este caminho de perfeição mística65 e

nenhum dos que professavam a vida devota me conhecia ainda, quis me comparar com ele, e o olhei fixamente. Ele sorriu, e me olhou também. Fiz um sinal com o dedo, e ele apontou para mim. Por Deus, juro que minha alma não se parecia então, ao vê-lo diante de mim, senão com uma moeda de prata falsa! Ele me disse: Fervor, fervor! Bem aventurado o que conheço a finalidade para que foi criado!’ [...] sem a sua companhia, não encontrava mais tranquilidade de espírito, mas, apesar de tudo, nunca mais o vi, nem sequer consegui saber, até a data, notícias dele (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 156, tradução nossa)66.

O fervor demonstrado por um mendigo, um pária social, apontava ao murciano o caminho a seguir. Ibn ʿArabī concebia a via (ṭarīq) como um caminho de dificuldades e de reconforto, pois só os santos conseguiam viver em perfeição este desapego completo; eles, por sua bondade e sua proximidade (walāyah) tinham da divindade o auxílio e suporte necessários.

Entre as mulheres, Ibn ʿArabī teve duas mestras: Fāṭima bint Ibn al-Muṯanā e Šams Umm al-Fuqarā. Neste texto trataremos apenas de Šams. O relato sobre Fāṭima também é de grande valia, mas já foi tratado por Beatriz Machado (2001). A presença feminina na via esotérica é forte e constitui um dos focos de teorização de Ibn ʿArabī. Chodkiewicz, em seu artigo, aponta como o papel das mulheres foi de extrema importância na construção da hagiologia akbari. A associação das mulheres com os malāmī, segundo o autor, estava posta na perfeita servidão das principais personagens do Corão e da tradição discursiva islâmica, principalmente em relação à figura de Maria, mãe de Jesus, que para o autor murciano seria o exemplo de perfeita serva ao aceitar receber um filho sem pai em uma sociedade como a que vivia (CHODKIEWICZ, 2004, p. 12).

Assim, uma das mestras fora “Šams Umm al-Fuqarā’”, o significado de seu nome é “Sol Mãe dos Pobres”, (mais um título que um nome). Ela era natural de Marchena de los

64 [No original] “Era un miserable mendigo de quien nadie hacía caso. La palidez extremada de su tez

denunciaba su miseria. Era muy dado a la meditación, muy sensible a las emociones extáticas y dominado siempre por intensa tristeza” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 156).

65 [No original] “ḥaḏa al-ṭarīq” (AL-GHURAB, 1985, p. 117).

66 [No original] “Cuando Dios se me reveló por vez primera en este camino de la perfección mística y

ninguno de los que profesan la vida devota me conocía aún, quise compárame con él, y lo miré fijamente. Él se sonrió, y me miró también. Le señale con el dedo, y él me señalo a mí. ¡Por Alá juro que mi alma no me pareció entonces, al verme delante de él, sino como una moneda de plata falsa! Él me dijo: «¡Fervor, fervor! ¡Bienaventurado el que conoce el fin para que há sido creado!» [...] sin su compañía, no encontraba ya tranquilidad de espíritu; pero, a pesar de todo, nunca y lo volví a ver, ni siquiera conseguí hasta la fecha oír hablar de él.” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 156).

Referências

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