• Nenhum resultado encontrado

Portugal no mundo e a soberania do seu açúcar

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Portugal no mundo e a soberania do seu açúcar"

Copied!
18
0
0

Texto

(1)

Portugal

e a Soberania

no Mundo

do seu Acúcar"1

pelo

PROF. JOSÉ CUNHA I)A SILVEIRA

Há precisamente 16 anos, fui como hoje, encarregado pela Di- recção da minha Escola, de fazer uma palestra integrada na Semana do Ultramar.

Discorri então, nesta mesma sala, acerca duma importante acti- vidade agrícola das províncias de Angola e Moçambique, procurando revelar as suas deficiências, os seus lisonjeiros cometimentos e o vasto campo que à técnica agronómica estava reservado em Ãfrica.

O tema marcado para este ano, «.Portugal no Mundo» permite-me algumas considerações sobre a expansão de uma planta maravilhosa, que esteve na base da colonização de muitos territórios que os por­ tugueses descobriram e ocuparam.

Vou falar-vos, à maneira de narrativa, acerca daquilo que a mi­ nha curiosidade pelo açúcar reteve, na época em que Portugal, sem seguir exemplos, dava o exemplo levando na rota dos seus navega­ dores, os marinheiros de outros países.

Trata-se, afinal, da iniciativa portuguesa para a difusão da cana

sacarina e do açúcar que se mostraram desde logo e depois, com o

decorrer do tempo, elementos dos mais valiosos da economia mundial.

(') Conferência proferida na Sala de Actas do Instituto Superior de Agro­ nomia, em 6 de Abril de 1967.

(2)

É uma página aliciante, arrancada à História de Portugal Econó­ mico. Percorrendo-a podemos recordar que no século xiii, depois de

se constituir dentro dos limites geográficos e de consolidar as fron­ teiras, a monarquia portuguesa tomou a forma caracterizadamente agrária, que viria a ser tradição da grei. Ressalva-se o período dos descobrimentos e conquistas, em que, por força de novos rumos, o País se transformou numa potência comercial e marítima. Mas ainda assim todo o tráfego com o estrangeiro tinha por base a agricultura, pois era dela que provinham os produtos de exportação.

As primeiras notícias sobre a cana de açúcar, foram trazidas para a Europa pelos generais de Alexandre Magno, os quais referiam que na índia existia uma planta produtora de mel sem o concurso das abelhas. O mel era então o único edulcorante conhecido, sem falar no Maná milagroso e dulcíssimo, com que os Israelitas se ali­ mentaram durante 40 anos, até chegarem a Canaã.

Admite-se que na época das campanhas de Alexandre da Mace- dónia, a cana de açúcar saiu das fronteiras da sua naturalidade e se difundiu pelos países vizinhos. Ã China chegou pouco depois e na Pérsia foi introduzida cerca do final do século v.

À medida que a cultura foi alastrando, progrediu simultanea­ mente a indústria do açúcar.

Deve-se aos árabes a propagação da planta e o florescimento da indústria em todos os países por eles conquistados. Em especial no Egipto, a manufactura do açúcar adquiriu grande desenvolvimento, mercê dos conhecimentos químicos do seu povo.

Com o avanço dos árabes para o Ocidente, espalhou-se a cultura desta gramínea pelas regiões do Mediterrâneo, Síria, Palestina e Si­ cília, toda a costa norte de Ãfrica, chegando por fim à Europa, onde se fixou em Espanha. Em Portugal parece ter-se cultivado a cana, pelo menos no Algarve, durante a ocupação árabe.

Ao findarem as Cruzadas, em 1291, uma parte da indústria do açúcar passou a Chipre, onde alcançou tal prosperidade que a ilha chegou a ser, ao fim de pouco tempo, o centro comercial mais impor­ tante entre o Oriente e Veneza.

Os venezianos haviam começado nessa altura o comércio com a Europa Central, servindo-se para tanto do açúcar da Síria.

Durante algum tempo a cultura da cana e o fabrico do açúcar alcançaram também na Sicília grande incremento, decaindo mais tarde em consequência de guerras interiores e exteriores, precisa­ mente na época do grande progresso alcançado pela indústria de

(3)

Chipre. Algum tempo depois voltou a ter um novo mas curto período de florescimento durante o reinado de Frederico II, que mandou vir da Síria peritos açucareiros.

Deve-se à vontade de bem fazer do Infante Navegador, a criação de novos territórios de cana sacarina no Ocidente e mercê dela e do seu talento colonizador, a relevante contribuição lusitana para a expansão da cultura, do fabrico, do comércio e até do consumo de açúcar no mundo.

Constituiu essa poderosa contribuição uma série admirável de feitos e acções, que sem exagero bem poderíamos apelidar de epopeia

do açúcar português.

A um espírito arguto e verdadeiramente dotado de génio mer­ cantil, como aconteceu com o Infante D. Henrique, não escaparam, no dizer de Lúcio de Azevedo, as notícias dos carregamentos dos navios do Adriático a navegar pelo Atlântico e do que eles represen­ tavam como valor comercial; nem deixou de considerar as possibili­ dades que havia, para os seus domínios recentemente adquiridos, de uma agricultura com base na cana sacarina.

Com uma intuição surpreendente do futuro, que aguardava uma tal indústria, mandou vir da Sicília as canas e mestres hábeis na pre­ paração do açúcar com destino à Madeira e Açores «.para fazer as

novas terras mais famosas» como canta o poema da Insulana.

A ilha da Madeira foi o ponto de irradiação da cana de açúcar para o Mundo Português; Açores, Cabo Verde, S. Tomé, Costa de Angola, Brasil, onde encontrou condições mais ou menos favoráveis de exploração económica.

Lopes de Lima, no seu «Ensaio sobre a Estatística das Possessões

Portuguesas» afirma que a cultura da cana na ilha de S. Tomé foi

introduzida pelos primeiros colonos, que trouxeram a planta da Ma­ deira.

Segundo a relação de um piloto português, publicada pelo inves­ tigador e historiógrafo João Baptista Ramúsio, em 1554, a ilha tinha 60 engenhos e produzia mais de 150 mil arrobas de açúcar, período que certamente caracterizou o apogeu da indústria. Mas segundo Lippmann muito antes, em 1495, chegou açúcar de S. Tomé às refi­ narias de Antuérpia.

A cultura estendeu-se também à ilha vizinha, então de S. Antão, que mudou o nome para ilha do Príncipe, por dos seus engenhos se tirar um tributo para o filho mais velho do Rei.

(4)

Em Cabo Verde a cana deve ter sido introduzida por um capitão donatária, natural da Ilha da Madeira. No princípio do século xvi produzia-se açúcar e parece que a cultura sacarina chegou a ter certo desenvolvimento no interior da ilha de S. Tiago, aproveitando os muitos ribeiros de água que por lá existem.

Na interpretação de Amorim Parreira, as vicissitudes porque passou o arquipélago, especialmente as incursões de piratas franceses, ingleses e mais tarde holandeses, não permitiam o desenvolvimento da colonização. Os colonos do arquipélago ou fugiam para o Brasil, como sucedeu em S. Tomé, ou procuravam instalar-se em locais mais seguros e de melhor rendimento económico.

Nos Açores, a cultura desenvolveu-se principalmente em S. Mi­ guel, e em menor escala na ilha do Faial, e em poucos anos monta­ ram-se engenhos e exportava-se açúcar em larga escala. Entre 1502 e 1505, as ilhas estavam arrendadas por 5 000 arrobas de açúcar ao ano, mas um pouco depois, de 1508 a 1510, a renda já havia subido para 20 200 arrobas, o que demonstra a expansão considerável que a indústria teve no arquipélago.

O declínio foi porém rápido e tem sido atribuído pelos historia­ dores às seguintes causas: falta de lenhas para o fabrico, ao apare­ cimento de um parasita que destruía as culturas e à concorrência do Brasil.

Pensamos, todavia, que a causa principal do desaparecimento desta cultura de tão curta duração se deve ao clima, factor que nunca vimos mencionar em nenhuma das obras que temos tido ocasião de compulsar, pois todos os autores se repetem invariàvelmente neste ponto.

Por isso, fazemos neste momento, um pequeno parêntese.

Admite-se hoje em dia que todos os movimentos de migração da cana de açúcar, tanto na Europa, como na América tropical e ilhas do Pacífico, se realizou até ao fim do século xvii, apenas com uma única variedade: a crioula, cana do país ou cana da terra, nomes que lhe deram para a distinguir de outras variedades que mais tarde a vieram substituir.

A crioula e todas as outras que lhe seguiram, até a produção de canas híbridas, como a Otaheite ou Bourbon, as Cheribons ou Bambus, as Tannas ou Caledónias e algumas mais pertencem ao grupo das

canas nobres ou canas tropicais, assim designadas por serem ricas

(5)

A crioula, como todas as variedades deste grupo, era sensível aos tratamentos culturais e susceptível às doenças. Estas duas cir­ cunstâncias: clima quente, que os Açores não podiam oferecer e a

sensibilidade às doenças, que a humanidade do ambiente exaltava,

foram quanto a nós as verdadeiras causas do estranho desapareci­ mento da cultura. Ao tempo, a cana de açúcar era a planta da moda, que irradiava cada vez mais, por ser das poucas plantas industriais daquela época.

O cronista Gama Barros considerava o negócio do açúcar da Ma­ deira e Açores «o mais importante entre o de todos os produtos dos

dois arquipélagos».

Ora o açoreano deu mostras, através de todas as épocas, de um raro espírito de iniciativa e tenacidade, e não é natural que tivesse deixado escapar uma planta que sabia ser muito valiosa.

Tenha-se presente a sucessão de preciosas culturas e indústrias agrícolas de exportação introduzidas pelos açoreanos nos Açores, algumas como a cana sacarina, vindas do tempo dos donatários; ce­ reais, linho, vinho, lacticínios, pomares de laranjeiras para expor­ tação, cultura industrial da batata doce e linho da Nova Zelândia

(espadana). A urzela e o pastel foram também produzidos no período que se seguiu à ocupação do arquipélago e tiveram grande expansão, perdurando até que os progressos da tinturaria industrial se impu­ seram e alcançaram a preferência dos consumidores estrangeiros.

E lembra-se ainda a importação mais recente de outras culturas ricas, chá, tabaco e ananás, numa altura em que não havia agricul­ tura dirigida, mas sim direcção na agricultura. São essas culturas, com a beterraba sacarina, ainda hoje a base da riqueza da rica ilha de S. Miguel.

E tanto deve ter sido o clima o factor principal, que a cana de açúcar voltou a ser introduzida em 1857, também com variedades tropicais possivelmente a Otaheite ou Bourbon, mas sem êxito, e por fim substituída pela beterraba, esta sim, afeiçoada aos climas tem­ perados.

Das ilhas do Atlântico, foi em S. Tomé e na Madeira, onde a indústria sacarina tomou maior incremento, em especial na última, por ter a cana encontrado, na zona baixa subtropical do sul, condi­ ções de certo modo favoráveis à vegetação, ao ponto de ainda hoje perdurar.

(6)

Em 1433 parece ter havido na ilha da Madeira produção de açúcar com intenções de exportação. Segundo Hartmann, citado por Virgina

Rau «em lJf93 produz-se com tamanho rendimento, que a Europa in­

teira tem mais açúcar do que era habitual».

Em 1480, contavam-se de 70 a 80 embarcações que iam buscar carregamentos a portos madeirenses. Diz Gaspar Frutuoso, nas suas

«Saudades da Terra», que em 1493 havia na ilha 80 mestres de fabrico,

o que devia corresponder a outros tantos engenhos.

O relevo do porto do Funchal, transformado num dos mais im­ portantes do mundo, levou os italianos a chamar picola Lisbona à capital da Madeira. E o produto, de tão boa qualidade, foi conhecido no estrangeiro com o nome de açúcar portugallo, chegando a com­ petir vantajosamente na Europa com o dos países do Mediterrâneo, então os mais avançados na tecnologia açucareira.

Em 1846, Bartolomeu Dias, dobra o Cabo da Boa Esperança, ficando desbravado o caminho marítimo para a índia.

Vasco da Gama, partindo com a sua frota da Praia do Restelo, no meado de 1497, realiza a primeira viagem por mar, com aquele ambicionado destino, onde chega a Calicute quase um ano depois. E refere que nesse reino se fazia grande comércio de açúcar e con­ servas, notícia perfeitamente aceitável, uma vez que a Índia foi a pátria da cana sacarina e onde primeiro se começou a fabricar o açúcar.

Diz Azevedo Coutinho nas Memórias Económicas da Academia Real das Ciências, de 1791, que «os portugueses e os espanhóis, que

primeiro descobriram a índia, foram também os primeiros que apren­ deram dos índios o modo de cultivar e fabricar o açúcar e os vieram ensinar à Europa».

As grandes esperanças eram, todavia, os géneros de especiaria, principalmente pimenta, malagueta e canela, para reforço dos pro­ dutos vindos ao tempo da Costa Africana, como o marfim, a mala­ gueta e o oiro da Guiné.

Mas a empresa de comércio e de domínio das especiarias da índia estava longe de corresponder à espectativa, que veio a ter efémera duração. Um empreendimento, que no parecer do terribil Albuquerque,

havia de fazer do Rei de Portugal o Soberano mais rico da cristan­ dade.

Estes acontecimentos históricos consecutivos às viagens marí­ timas dos portugueses tiveram considerável repercussão no comércio com a Ásia, pois passou a haver a possibilidade de transportar por

(7)

baixo preço as mercadorias da índia, sem passar pelas alfândegas que encareciam extraordinàriamente os produtos. E foi ao mesmo tempo sucesso de enormes consequências para as nações da Europa; o eixo do comércio mundial deslocou-se do Mediterrâneo para o Atlân­ tico.

Helena Sanceau, na sua obra «A Europa perante a Expansão Portuguesa no século de 400 a 500» dá-nos uma expressiva imagem do alcance económico dos descobrimentos: «O golpe de relâmpago que

no fim do século sacudiu a cristandade foi a viagem de Vasco da Gama à índia. Então olhares de inveja se dirigiram para Portugal, onde D. Manuel, o Venturoso, radiante no seu trono, arrecadava as jóias e pedras preciosas oferecidas pelos reis do Oriente, enquanto a pimenta se amontoava nos cais de Lisboa. Os embaixadores de Ve­ neza, apresentando felicitações, rangiam os dentes; isto era a pior coisa que podia acontecer a Veneza, diziam uns aos outros, vendo o mercado da pimenta mergulhar em crise.»

O principal centro comercial destas e outras mercadorias passou a ser daí em diante Lisboa, que começou a fornecer uma grande parte da Europa e em cujo porto Veneza se viu obrigada a comprar o açúcar indispensável para cobrir as suas necessidades, conseguindo desta forma evitar durante certo tempo o desaparecimento completo do seu comércio e logrando até um passageiro florescimento.

Conta o economista Lúcio de Azevedo, que já na época da via­ gem de Vasco da Gama corria risco o predomínio dos venezianos no tráfego dos artigos do Oriente. Em 1504, para acudir à situação, o governo da república instituiu anexa ao Conselho dos Dez, a Junta

das Especiarias e, debalde, por meios diplomáticos estimulou o Sultão

do Egipto a expulsar da índia os Portugueses!

Começaram depois a aparecer na América regiões produtoras de açúcar de cana.

Cristóvão Colombo, talvez inspirado e contagiado pela cultura náutica dos portugueses e seguindo os seus métodos, levou na segunda viagem, em 1493, a cana de açúcar da Madeira ou das Canárias para a Ilha Hispaniola, hoje Haiti e S. Domingos, e dali passou, graças aos colonizadores portugueses e espanhóis para muitas regiões das índias Ocidentais e da América Continental.

A indústria não alcançou nesses países importância imediata, mas já no começo do século xvn a produção de açúcar da América Tro­ pical, era a maior indústria do mundo daquele tempo.

(8)

Cabral ter aportado às terras de Santa Cruz, levada da Madeira pelos portugueses, para o norte do país.

Em 1516 houve um pedido urgente à Casa da índia, em Lisboa, para arranjar pessoa versada no fabrico do açúcar, a fim de no Brasil se estabelecer a indústria.

Dava-se-lhe ajuda de custo, o cobre e o ferro necessários, bem como as ferramentas, sinal de que já havia cana plantada ou a inten­ ção de a plantar.

Sabe-se que dez anos mais tarde o açúcar das capitanias de Per­ nambuco e Itamaracá pagou imposto à Casa da índia.

Em nenhuma parte se ofereciam, de modo tão perfeito, as condi­ ções necessárias para o desenvolvimento de tal indústria: solo virgem a perder de vista, clima propício, água abundante, cana pujante eter­ namente verde!

«Na ausência de metais preciosos e de outras riquezas, o princi­ pal objectivo das doações e das capitanias do Brasil, seguindo o sis­ tema por que se tinham povoado as ilhas do Atlântico sem encargos para a nação, era promover a agricultura e prender à terra o lavrador.

O privilégio outorgado ao donatário de só ele fabricar e possuir engenhos denota o que se tinha especialmente em mira introduzir.

Iniciava-se agora o regresso à tradição agrária, pensando-se que a agricultura, embora menos cómoda, seria mais segura que a activi- dade mercantil».

Martim Afonso de Sousa, um dos Capitães de Mar e Terra do Brasil, distribuiu terrenos sob a forma de sesmarias, como se fizera nas ilhas oceânicas um século antes e na Costa do Ouro havia cin­ quenta anos. E organizou, como ensina Lúcio de Azevedo, um Muni­ cípio no modelo dos concelhos de Portugal, com os seus vereadores, os seus magistrados, os seus notários, as suas assembleias de homens

bons, convocadas ao toque do sino para resolver os negócios do burgo.

Em quase todas as capitanias se principiou a cultivar cana e a instalar engenhos e o açúcar começou a ser fabricado no Brasil com mestres da Madeira.

Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, a Nova

Lusitania, como carinhosamente lhe chamava, e uma das melhores

do Brasil, foi segundo Helena Sanceau, o grande impulsionador da

indústria do açúcar.

Já tinha gasto grande parte do seu capital na empresa brasileira, mas entusiasta, com os olhos postos no futuro, jamais se queixava das despesas com a instalação dos engenhos.

(9)

Numa carta para el-Rei D. João III, datada de Olinda, a 27 de Abril de 1542, diz que aos seus mestres de açúcar dera «tudo o que

me pedyram sem olhar a proveito nem ynteresse algum meu, mas a hobra yr avante como desejo. Temos grande soma de canas prantadas todo o povo com todo o trabalho que foy possível e dando a todos ajuda que a mim foy possível e cedo acabaremos um engenho mui grande e perfeito e ando ordenando de começar outros praza ao Senhor Deos que segundo sua graça mysericordia e minha boa intençam sua ajuda».

Conta Gilberto Freire, que no dia da botada — primeiro de moa­ gem das canas — nunca faltava o Padre para benzer o engenho; e só depois é que se colocavam as primeiras canas maduras atadas com laços de fita verde, encarnada ou azul, para começar então o trabalho nos engenhos patriarcais.

A partir de 1540 o açúcar veio a constituir um dos mais valiosos elementos da colonização portuguesa no Brasil, tornando possível ao colono a sua permanência e fixação.

Para impulsionar o comércio Martim Afonso, donatário das terras de S. Vicente, fundou a Companhia dos Armadores do Trato, que man­ dava vir mercadorias da Europa para os portugueses venderem aos índios e exportava para Portugal os produtos da terra, principalmente pau brasil (Caesálpina ecchinata Lamb) e açúcar. Este último chegou a substituir o uso da moeda no Brasil colonial.

Relata o Padre Cardim que «a fertilidade dos canaviais não se podia contar e se lavravam, em alguns anos, duzentas mil arrobas de açúcar que os engenhos não podiam esgotar e por essa causa se moía cana de três e quatro anos. E com virem, cada ano, quarenta navios a Pernambuco, não podiam levar todo o açúcar...»

Em 1610, numa frota que regressava ao reino, vieram 21 mil caixas de açúcar ou sejam, pelo menos 735 mil arrobas.

Havia nesse tempo no Brasil mais de 120 engenhos a produzir 600 mil quintais de açúcar por ano, cifra excepcional para aquela época.

Olinda de Pernambuco era então a cidade dos milionários e dos reis do açúcar.

Só a presença de baixelas de prata entre os senhores do engenho de Olinda, no século xvi, refere Gilberto Freire em Casa Grande e

Senzala, basta, não há dúvida, para nos causar pasmo. É luxo que

surpreende entre homens que tinham acabado de abrir os primeiros claros na mata virgem e fundado os primeiros engenhos de cana.

(10)

Meus Senhores:

Quando se inicia o desenvolvimento económico duma região imensa e fecunda, o fluxo de riquezas nunca pára onde começa. O Brasil que principiara modestamente como terra de papagaios e do pau bra­

sil, transforma-se, por obra da visão, da iniciativa e da vontade de

um povo, no país do açúcar, realidade bem mais palpável do que os

fumos da índia, das terras longínquas do regime deficitário, que nem

a pimenta do Malabar, nem o oiro do lendário Prestes-João seriam capazes de extinguir. Da índia, que havia sido para a ambição por­ tuguesa: deslumbramento, esperança e desilusão!

A introdução, pelos portugueses, nas Terras de Vera Cruz, da planta que se revelaria uma das mais extraordinárias entre as suas congéneres cultivadas, foi não só o factor decisivo da coloni­ zação, mas também a semente que viria a dar ao Brasil actual um dos seus maiores mananciais agrícolas, uma vez que, pràticamente, atingiu 4 milhões de toneladas e caminha velozmente para o primeiro lugar como produtor mundial de açúcar de cana!

Penso não ser preciso dar, uma vez mais, merecido relevo à visão genial desse Alto Infante da ínclita geração.

Lisboa, que como vimos, tinha relegado para segundo plano a importância comercial de Veneza, adquiriu um relevo ainda maior com a importação de açúcar americano, vindo a ela grandes comer­ ciantes holandeses e alemães, para comprar directamente os produtos do ultramar.

O açúcar, uma vez conhecido no Ocidente, demorou bastante em constituir um artigo de uso geral, como há muito ocorria no Oriente. Empregava-se quase exclusivamente em medicina e na elaboração de produtos que durante muito tempo foram previlégio dos farma­ cêuticos.

Os portugueses, que por suas empresas marítimas facilitaram à Europa o abastecimento das especiarias do Oriente, assevera Lúcio

de Azevedo, foram igualmente os que, por efeito das navegações e por sua indústria, popularizaram o consumo de dois géneros, um deles desconhecido, o outro raro e àvidamente buscado, cujo uso cons­ titui feição característica da civilização actual: o açúcar e o tabaco,

(11)

que os portugueses deram ao tabaco, porque se supunha que curava muitos males.

No começo do século xvn o consumo já era apreciável na Europa devido à grande produção de açúcar americano e à correspondente baixa de preço. Mas a partir do meado dessa mesma centúria, recebe ainda mais forte impulso graças à introdução do café, do chá e do cacau, cujas bebidas se generalizaram com surpreendente rapidez.

E então o açúcar, de medicina mais ou menos virtuosa, galgou a alimento excelente e a condimento indispensável. Usava-se o açúcar com comidas e bebidas, na carne, no peixe, na água e no vinho!

Refere Gliberto Freire, que doutores e moralistas da época che­ garam a associar o ócio que se desenvolveu nas zonas dominadas pelos engenhos de cana, ao muito consumo de açúcar, sem se lembra­ rem, todavia, que a abastança traz lazer.

Mas se a realidade era o consumo indiscriminado do açúcar, não nos admiremos de ter surgido uma voz sonora e discordante. É que ainda no século xviri, na Prússia, onde por curiosa ironia, pouco depois se havia de gerar o açúcar de beterraba, Frederico Guilherme I, decerto preso aos seus hábitos simples e quase avarentos que a His­ tória lhe atribui, olhava o açúcar, como um luxo dispendioso e desne­

cessário!

A indústria de refinação de açúcar nasceu, ao que parece, na Europa no século xv, ou mais precisamente em Veneza, onde adquiriu grande desenvolvimento e prosperidade, situação que se manteve mesmo depois de depender de Lisboa para a compra de açúcar bruto, por ter atrás de si a Alemanha, que no século xvi era um dos países da Europa Central com maior capacidade de compra. Mas em 1612, considerava-se já desesperada a posição do centro refinador vene- ziano.

Com o declínio de Veneza o principal mercado foi transferido para Antuérpia.

O açúcar vinha de Lisboa em bruto, por intermédio da feitoria portuguesa ali instalada e daquela cidade passava ao Reno, tornan­ do-se Antuérpia o núcleo mercantil mais importante do Norte da Europa e da Europa Central.

A feitoria portuguesa, conta Lúcio de Azevedo, era o lugar de mais considerável negócio na Flandres e quando sem outra designa­ ção, se falava em feitor, entendia-se logo ser o do rei de Portugal.

(12)

A refinação do açúcar começa então a espalhar-se e a radicar-se nos principais países europeus.

Eram de tal modo preponderantes os fornecimentos de Portugal — e de certo a qualidade do produto — que o açúcar bruto exportado da capital do reino para o abastecimento da Europa, era conhecido com o nome de açúcar Lisboa.

O progresso de Antuérpia foi, porém, de curta duração, começando

a decair durante a guerra da independência dos Países-Baixos (1566- -1609), acabando a indústria de refinação por desaparecer.

A maior parte do comércio e da indústria deslocou-se primeiro para a Holanda e depois para a Alemanha.

Em Amesterdão criou-se um poderoso centro de refinação, que atingiu o auge de 1640 a 1650.

O açúcar vinha do Brasil, mas agora não por via da capital do reino. A ocupação holandesa das cinco principais capitanias, entre 1630 e 1650, provocou grandes prejuízos à cultura da cana sacarina e à produção de açúcar do Brasil. O que os holandeses cobiçavam era a riqueza que provinha da indústria açucareira e para dela se apo­ derarem associaram-se, criando em 1621 a Companhia Holandesa das índias Ocidentais, que segundo Oliveira Martins «era um estado cons­

tituído em companhia de piratas, cujo fim era a conquista e o saque do Brasil».

E assim, a Holanda conseguiu abastecer de açúcar as suas refi­ narias de Amesterdão durante alguns anos!

O Brasil, por intermédio dos mestres portugueses, foi ainda o ponto de irradiação da arte de fabricar açúcar nas ilhas do arquipé­ lago das Antilhas, Guadalupe, Martinica, Barbada, etc. E parece terem sido também os portugueses que mais tarde levaram da índia para o Brasil a variedade mais notável do grupo das canas chinesas, a Uba ou Yuba, devido aos fortes ataques de gomose que atingiram os canaviais brasileiros, por ser imune à maior parte das doenças que atacam esta gramínea.

Com o açúcar do Brasil e das ilhas do Atlântico, Portugal chegou a ser o primeiro produtor mundial e durante muito tempo fornecedor das principais refinarias da Europa: França, Inglaterra, Itália, Flan- dres, Alemanha e Turquia.

Tal como os portugueses tinham suplantado Veneza no comércio da especiaria, assim também lhe arrebatava o privilégio de um negó­

(13)

cio, que na frase do autor da Época de Portugal Económico adquiriu, no século XVI, extensão quase inconcebível!

Estava assim criada pela gente forte de Portugal, a soberania do

açúcar português no mundo!

Meus senhores:

A ocupação, defesa e colonização do Brasil é um dos capítulos mais apaixonantes da história da expansão portuguesa.

Payne salienta na sua History of European Colonies, que os portugueses colonizadores do Brasil foram os primeiros europeus a verdadeiramente se estabelecerem em colónias, vendendo para esse fim, quanto possuiam em seu país de origem e transportando-se com a família e cabedais para os trópicos.

Com eles, foram também obreiros desta gigantesca tarefa de organização e ocupação agrária, de um lado D. João 113, por suas

«sábias, oportunas e sistemáticas medidas» e do outro os capitais

donatários. Quase todos educados na tradição dos primeiros desco­ bridores, empregavam com os povos primitivos o sistema que consistia na tolerância e na amizade. Era a velha nobreza e lealdade portuguesas a presidir à obra que se ia a iniciar.

A escritora inglesa Helena Sanceau, que consagrou boa parte da sua vida a estudar a História de Portugal, com fama de probidade e conhecimento exacto e profundo dos quadros históricos que descreve, dá-nos na sua obra: Capitães do Brasil, um quadro sugestivo da nossa epopeia naquelas remotas paragens, que nunca é demais reviver.

«De um lado do Atlântico vemos um pequeno reino agrícola, cuja população inferior a 2 milhões, mal chegava para lavrar os seus cam­ pos. Este pequeno reino, que não possuia riquezas nenhumas, toma a seu cargo a guarnição de seis ou sete praças fortes em Marrocos, mantém uma cadeia de fortalezas e eyitrepostos comerciais desde África até ao Extremo Oriente, domina o Oceano índico com os seus navios, funda um estado junto da costa indiana e impõe o tributo a uma dúzia de reis hindus. E por uma forma ou por outra consegue fazer isto tudo».

Uma nação completamente ocupada com uma tarefa, acrescenta

a escritora, que poderíamos mesmo dizer, demasiado pesada para o

poder do Homem! E pergunta: Como pôde este povo ocupar-se ainda do Brasil? Ê que os portugueses nunca tiveram quaisquer dúvidas de poder fazer uma coisa que quisessem. Os portugueses do século XVI tinham deixado de compreender o significado do impossível!

(14)

Recordei então aquele poeta que nos canta o que parece não se poder admitir:

Quem pôde, quem, parar a Primavera? Quem pôde, quem, encacerar o vento?

Foi a África, diz ainda aquela lusóloga, para ganhar renome a combater infiéis ou para enriquecer a negociar; a índia atraiu pelas riquezas e especiarias, mas o Brasil, amado desde o princípio, fora amado por si só.

Meus senhores e minhas senhoras:

Os trabalhos de ocupação e pacificação destas úberes terras, situadas entre o mar e a floresta, foram penosos para a bravura e a fé dos lusitanos. Prégando, ensinando e cristianizando, expostos às incursões dos nativos, aos ataques dos piratas, aos saques dos cor­ sários e até às traições dos homens maus de algumas capitanias, os portugueses ora aliados, ora protectores, ora chefes, ora mártires dos índios, souberam formar um país opulento, poderoso e indiviso, a um tempo lusitano e brasileiro.

Portugal deu ao Brasil além de tudo isso, uma língua, uma cul­ tura, uma religião, uma estrutura de nação — e a consciência dos seus direitos de soberania.

Senhores alunos:

Se uma das funções da História, na frase lapidar do historiador João Ameal, é apontar os factos memoráveis e os exemplos que possam servir de norma útil para a conduta contemporânea, se nesta semana dedicada ao Ultramar, somos convidados a meditar na gran­ deza e eternidade da Pátria, se temos ainda outros Brasis para erigir, engrandecer e portugalizar, contemplemos a obra magna que sozinhos criamos com sangue, dedicação e sacrifício nas Terras de Santa Cruz.

(15)

BIBLIOGRAFIA

Ameal, João — História de Portugal. Porto, 1940.

AZEVEDO, LÚCIO DE — Épocas de Portugal Económico. 2.* ed. Lisboa, 1947. Britoo, R. S. de—A Uha de S. Miguel. Estudo Geográfico. Lisboa, 1955. CUTINHO, J. J. da C. Azeredo — Memória sobre o preço do Assucar in «Memórias

Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa». Lisboa, 1791.

Deerr, Noel — The History of Sugar. Vol. I e II. Londres, 1949.

Freire, Gilberto — Casa Grande e Senzala. Ed. Livros do Brasil. Lisboa, 1958. Gonçalves, J. J. — Portugal no Mundo. Soc. de Geografia de Lisboa, 1967. Parreira, H. G. de A. — História do Açúcar em Portugal. Anais da Junta de In­

vestigação do Ultramar. Vol. II. Tomo I. Lisboa, 1952. Pereira, E. C. N. — Ilhas de Zargo. Vol. II. 2." ed. Funchal, 1957.

Rau, V., e Macedo, J. de — O açúcar na Madeira nos fins do século XV. Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1962.

RÚMPLER, A., e Stolle, F. — Azúcar. In Gran Enciclopédia Química Industrial. Tomo V. Cap. XI. Barcelona.

Sanceau, E. — Capitães do Brasil. Porto, 1956. SlDERSKY, D. — La fabrication du sucre. Paris, 1913.

(16)
(17)

Pág. Linha Onde se lê Deve ler-se 239 4 humanidade humidade 240 15 1846 1486 247 15 capitais capitães 248 4 encacerar encarcerar 249 3 Britoo Brito 249 4 Cutinho Coutinho 249 10 Investigação Investigações

(18)

Referências

Documentos relacionados

Sendo assim, o presente estudo visa quantificar a atividade das proteases alcalinas totais do trato digestório do neon gobi Elacatinus figaro em diferentes idades e dietas que compõem

2 - OBJETIVOS O objetivo geral deste trabalho é avaliar o tratamento biológico anaeróbio de substrato sintético contendo feno!, sob condições mesofilicas, em um Reator

Considerando esses pressupostos, este artigo intenta analisar o modo de circulação e apropriação do Movimento da Matemática Moderna (MMM) no âmbito do ensino

O Conselho Deliberativo da CELOS decidiu pela aplicação dos novos valores das Contribuições Extraordinárias para o déficit 2016 do Plano Misto e deliberou também sobre o reajuste

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Para tanto, no Laboratório de Análise Experimental de Estruturas (LAEES), da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (EE/UFMG), foram realizados ensaios

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Using a damage scenario of a local crack in a reinforced concrete element, simulated as a stiffness reduction in a beam-element, time-series of moving-load data are useful inputs