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Filosofia para crianças : uma abordagem crítica dentro da filosofia da educação

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Academic year: 2020

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Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças

1. Matthew Lipman e os seus colaboradores

Matthew Lipman é um professor americano, nascido em 1923, e que ainda goza de saúde. Ensinou, durante dezoito anos, Lógica, na Universidade de Columbia, e vinte e dois na Universidade City, ambas em Nova Iorque – Estados Unidos. Desde 1972, é professor na Universidade Estadual de Montclair (Nova Jersey – Estados Unidos) onde é

Distinguished University Scholar.

Lipman é conhecido por ser o criador do projecto educativo – Filosofia para Crianças – programa conhecido e aplicado em mais de 30 países dos cinco Continentes. É autor de numerosos artigos e alguns livros, entre eles, Philosophy Goes to School, Philadelphia: Temple University, 1988; Thinking in Education, Cambridge: University Press, 1991; Natasha – Vygotskian dialogues, New York: Teacher’s College Press, 1996 e Thinking Children and Education, org. Dubuque: Kendall, 1993. As três primeiras obras estão traduzidas em português.

Matthew Lipman foi o fundador e Director do Institute for the

Advancement of Philosophy for Children da Montclair State College, em

Nova Jersey. É, ainda, autor de vários livros para crianças (Novelas Filosóficas2) cujo intuito é introduzir as crianças na atitude filosófica. Dada a pertinência do seu projecto, em Outono de 1991, Lipman foi tema do

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programa de televisão da BBC Transformers, sendo considerado um dos três educadores pioneiros. Já que a sua tentativa comporta uma ideia e uma prática. Ideia e prática que interagem e se influenciam mutuamente, mas que não devem confundir-se, pois uma coisa é a ideia de introduzir a filosofia nas crianças, ou seja, pôr as crianças a vivenciarem a sua história, os seus métodos e seus problemas, e, outra bem diferente é dispor de tudo que é necessário para concretizar essa ideia. Isto é, instituições, materiais e cursos.

Mas tudo foi possível com a ajuda, persistência e trabalho dos seus colaboradores, exemplo disso é Ann Margaret Sharp (norte-americana) que junto com Matthew Lipman criou o Institute for the Advencement of

Philosopy for Children – Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia

para Crianças. É co-autora, com Lipman, de seis Manuais para o professor do currículo de Filosofia para Crianças3 e autora de Hospital de

Bonecos, programa de filosofia para as crianças de três a cinco anos.

Dirige o programa de doutoramento em FpC que teve início em Janeiro de 1999 na Montclair State University. Realizou numerosos cursos e conferências em mais de trinta países sobre o projecto de FpC, inclusive no nosso país em 1989 na Sociedade Portuguesa de Filosofia.

Ronald Reed, norte-americano, fundador e director do programa

Philosophy for Childre na Texas Wesleyan Universiy (Texas, EUA), onde

foi nomeado, pelo seu trabalho e dedicação, Bebensee Distinguished

Scholar. Foi autor e co-autor de dez livros, sendo o mais conhecido Talking With Childre e Rebeca, estando esta traduzida para português

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pelo centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. Trabalhou desde 1979, em FpC, até a sua morte em 1998. Ainda nos E.U.A, Tom Jacson, director do Centro Havaiano de Filosofia para Crianças desde a sua fundação, em 1984, doutor em Filosofia comparada e professor do Departamento de Filosofia. Coordena o projecto Filosofia nas Escolas na Universidade de Havai tendo como colega de trabalho Linda Oho.

A FpC tem muitos outros colaboradores em vários países, tais como Walter Omar Kohan argentino. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e mestrado na Universidade Ibero-americana onde também se doutorou com a dissertação “A Filosofia na Educação das Crianças”. A sua participação em congressos e cursos sobre FpC tem percorrido vários países: Argentina, Chile, Estados Unidos, México, Uruguai e Brasil onde actualmente é professor de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, onde também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros professores e crianças de escolas públicas. Apresenta várias publicações4 em castelhano sobre a temática em questão. Ainda na Argentina em conta-se Gustavo Santiago. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires, é membro activo do Centro Argentino de Filosofia para Crianças tendo experiência com crianças e professores de Argentina e Chile.

Vera Waksman (Argentina) trabalha com crianças e na formação de professores nas Universidades de Buenos Aires e La Plata Argentina. 3

Como serão enumeras às vezes que se fará referência à “Filosofia para Crianças” será utilizada a sigla “FpC”.

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Licenciada em Filosofia na Universidade de Buenos Aires, tem participado em diversos Congressos e cursos de formação em Filosofia para Crianças, sendo ainda, co-organizadora de Qué es filosofia para niños?

Ideias y propuestas para pensar la educación (Buenos Aires: Ofic. De

Publicaciones del CBC, 1997)

Ana Míriam Wuensch, colaboradora de Filosofia para Crianças no Brasil, é licenciada em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é especialista em Fenomenologia pela Universidade de Brasília e mestranda em Filosofia Política na Universidade Federal de Goiás. Levou a cabo a formação de professores e implantação de Filosofia para Crianças em diversas escolas particulares de Brasília. Supervisiona a Prática de Ensino da Filosofia no Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília e coordena, juntamente com Walter Kohan, o projecto de “Filosofia na Escola”.

Angélica Sátiro, grande colaboradora no Brasil, licenciada em Pedagogia pelo IEMG (Belo Horizonte, Minas Gerais) e especialista em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É directora de projectos e responsável pela área de Filosofia para Crianças nas escolas do Grupo Pitágoras. A sua participação em Congressos sobre Filosofia para Crianças em países como Argentina, Brasil, Espanha, Estados Unidos, e em Portugal tem demonstrado o quanto colabora na divulgação deste projecto educativo. Tem publicado diversos artigos, livros sobre filosofia, educação e literatura infantil, entre eles, o livro didáctico para o

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As mais conhecidas são: (co-autor com Mário Berríos) Una outra mirada: niñas y niños pensando en América Latina; La Filosofia en la escuela;? Qué es filosofia para nños? Ideias y propostas para pensar la educación.

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ensino de filosofia, Pensando Melhor. Iniciação ao filosofar (co-autora com Ana Míriam Wuensch).

No Canadá Marie-France Daniel, doutora em Filosofia da Educação e professora da Universidade de Montreal (Quebec). É investigadora do Centro Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Aprendizagem e o Desenvolvimento em educação que promove pesquisas sobre as relações entre educação física, a matemática e a filosofia para crianças. A pesquisadora tem publicado numerosos artigos e livros sobre o tema, ente eles La phisophie et les enfants (Montreal: Logiques, 1992).

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A Filosofia para Crianças5 tem ainda muitos mais colaboradores6 que investigam, reflectem e trabalham com este projecto educativo nos trinta países onde é conhecido. Mas em que consiste a Filosofia para Crianças? Que projecto é este que envolve filosofia e crianças? Qual a

5

Ao longo do trabalho serão muitas as vezes que se fará alusão à Filosofia para Crianças o que significa que será utilizada, a partir deste ponto, a sigla FpC.

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Aqui fica, mais, um apontamento sobre alguns colaboradores que estão envolvidos com a FpC, ou porque reflectem sobre o tema e participam em Congressos, editam artigos, ou porque trabalham em Centros de Filosofia para Crianças. Nos Estados Unidos nomes como Ronald M. Green, (Professor em Dartmouth College, Hanover, New Hampsire), Philip Guin, (Professora de Filosofia, trabalha na investigação de Filosofia para Crianças), David Kennedy (Professor Associado de Educação e Filosofia para Crianças na Montclair State University) Gareth Matthews (professor de Filosofia na University of Massachusetts Amhert.), Maura J. Geisser (professor do departamento de Filosofia da Universidade de Browa). Um dos investigadores no Canadá é Michel Sausseville (professor da Universidade da Faculdade de Filosofia da Universidade Laval, Quebec.) entre outros.

No Brasil encontram-se nomes como: José Ani Cunha (Director do Centro de Filosofia para Crianças de Campinas), Marcos António Loieri (Professor da Universidade Católica de São Paulo), Margarida Patriota (professora do Departamento de Letras da Universidade de Brasília), Maria Cristina Theobaldo (professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso), Moacir Gadotti (professor titular da Universidade de São Paulo e Director do Instituto PauloFreire), Peter Buttner (professor da Universidade de Mato Grosso), Olga Matos (professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo), Sílvio Gallo (Director da Faculdade de Filosofia, História e Letras e Coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia da UNIMEP), Sílvio Wonsoviez (Presidente do Centro de Filosofia – Educação para o Pensar, Florianópolis).

Na Argentina nomes como Alejandro A. Cerletti (professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires), e Ricardo Sassone (Director do Teatro Universitário d Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires. Investigador do Instituto de Artes del Espectáculo da mesma Universidade) são assíduos em Colóquios e Congressos.

Maria Teresa de la Garza (professora do Departamento de Filosofia da Universidade Ibérico - Americana do México) e Mónica Velasco (Directora do Centro de Filosofia para Crianças em Guadalajara) são alguns dos nomes ligados à Filosofia para Crianças no México.

Ana Maria Vienña (professora de Pontifícia Universidade Católica do Chile) e Celso López (Professor da Universidade Nacional Andrés Bello do Chile) são os colaboradores do Chile. Maurício Longón (Membro da Associação de Filosofia do Urugai) é um dos representantes do Uruguai na Filosofia para Crianças.

Passando para o Continente Australiano, Laurance Spliter (Membro do Departamento Australiano de Pesquisa Educacional – ACER) é também simpatizante deste projecto educacional.

Do Continente Australiano passa-se para a Europa onde são vários os países que dedicam dentro da educação e da filosofia o seu estudo à Filosofia para Crianças. Como são muitos, os nomes, salientam-se só os que participam activamente no projecto, isto é os que publicam artigos, colaborando em Revistas sobre a matéria, assim como em Centros ou formação de professores de Filosofia para Crianças. Em Espanha nomes como Fernando Martínez e Félix Garcia – Moriyón (Professores da universidade Autónoma de Madrid), Irene de Puig (Professora do Instituto de Pesquisa sobre Ensino e Filosofia de Barcelona), entre outros trabalham na Revista Internacional de Filosofia para Crianças, assim como no programa educacional e na sua avaliação. Em Portugal são

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metodologia usada? Que vantagens trás para a educação? E para a Filosofia? Poderá pensar-se nesta proposta como uma Filosofia da Educação? Perguntas que de certa forma se vão respondendo ao longo deste trabalho.

2. O que é Filosofia para Crianças?

O que é FpC? Para se entender a resposta à questão é necessário primeiro passar pelo que motivou o pioneiro, o que o levou, a criar este projecto. Assim a FpC surge em consequência do comportamento dos estudantes da Universidade de Columbia, New York - EUA, onde Matthew Lipman leccionava Introdução à Lógica. Observando as revoltas estudantis de 1968, o filósofo preocupou-se com o que se estava a passar. Percepcionou os esforços desajeitados da Universidade para se reavaliar e não pôde deixar de concluir que os problemas de Columbia não podiam ser resolvidos no quadro dessa instituição. Estudantes e professores, todos tinham saído da mesma matriz da escola primária e secundária. Concluiu: “Se não tínhamos recebido uma Educação boa, muito provavelmente tínhamos chegado a compartilhar as mesmas ideias erróneas que nos levariam a estropiar nossa educação posterior em feliz conluio mútuo”. (1999a, 21-22)

Contribuiu, também, para o florir deste projecto a oportunidade que Lipman teve de observar os esforços de um professor de crianças com

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deficiência neurológica para ensiná-las a ler. Perante os esforços inúteis do professor, o pioneiro sugeriu que lhes fossem dados exercícios para tirar inferências lógicas. Mais tarde, o professor comunicou-lhe que essa prática tinha funcionado. Lipman confirmou o seu palpite de que as crianças podiam aproveitar a instrução no raciocínio, contando que recebessem contribuições da Filosofia, especialmente das suas áreas de lógica, ética, estética e epistemologia. Era claro que se podia ajudar as crianças a pensar com mais clareza, já que lhe parecia que elas pensavam tão naturalmente como falavam e respiravam. Porém, a questão radicava em: como conseguir que pensassem bem?

As falhas nos raciocínios dos seus alunos, os comportamentos e o trabalho de professores com crianças incapacitadas neurologicamente foram as causas, entre outras, que levaram o pioneiro a pensar que os jovens não só precisavam de estudos sobre a Lógica e Filosofia, como o contacto com ambas teria que ser muito antes da universidade7. As crianças e a filosofia são aliadas naturais, pois em ambas o assombro é o princípio do questionamento. Lipman, diz mesmo: “só os filósofos e os artistas se comprometem sistemática e profissionalmente em perpetuar o assombro, tão característico da experiência cotidiana (sic) da criança” (Lipman, 1999a, 24).

Um dos primeiros desafios de Lipman era criar um espaço até então inexistente e o material didáctico a ele adequado. Em 1969, surge o primeiro material. Lipman escreve uma novela filosófica para

empenhadas no projecto.

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O contacto com a filosofia e a lógica nos EUA, só era possível na Universidade, “a filosofia tem, historicamente, uma fraca presença nas instituições educativas - ainda actualmente não faz parte dos currículos escolares em nenhum dos seus níveis”. (Kohan. e Wuensch, 1999a, 85).

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adolescentes, na forma de diálogo construtivo entre crianças intelectualmente inquietas, preocupadas em saber cada vez mais. Harry

Stottlemeier’s Discovery8, título da obra que relembra Aristóteles e a sua Lógica.

Lipman experimentou o Harry, porém descobriu o quanto era necessário criar um manual adicional que permitisse uma melhor aplicação filosófica na sala de aula, para evitar que os professores levassem as crianças a um Doutrinamento9, pois, se acontecesse isso, o projecto educativo não atingiria os objectivos. O manual foi criado, contendo vários exercícios e orientações de discussão sobre os temas abordados no romance. Deste modo, o filósofo avaliou que a FpC tanto era necessária na escola como em casa, tendo em conta que deveria existir uma continuidade do trabalho aplicado na sala de aula.

O projecto foi-se desenvolvendo, com a ajuda de alguns colaboradores, criando o Institute for Advancement of Philosophy for

Children10 no Montclair State college, tornando-se, anos mais tarde, em

Montclair Satate University. Já lá vão mais de trinta anos. Após o seu

desenvolvimento realizaram-se seminários regulares intensivos e internacionais de formação em FpC. Pode dizer-se que “pessoas do mundo inteiro têm assistido a esses cursos e divulgado a proposta nos seus lugares de origem ao longo dos últimos trinta anos. É de salientar que já existe um número, ainda muito pequeno, de portuguesas que têm

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Harry Stottlemeier’s Discovery, traduzido para português por “A descoberta de Ari dos Teles”.

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Conceito que traduz o inglês “indoctrination” e o francês “endoctrinement” e que em português surge como “endoutrinamento” e/ou “endoutrinação”. (Cfr. Veiga, M. A. Da, 1998a, 241), a preferência vai para o conceito doutrinamento, na medida emque ver o outro como alguém que não é capaz de tirar as suas elações.

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frequentado cursos e mestrado em Philosophy for Children, na Montclair State University, junto de Lipman, onde, segundo Mª José Rego11, o “ritmo de trabalho é impressionante”. Aí, adquiriu hábitos de profissionalismo que a marcaram, para o resto da vida.

Criou depois outras histórias; “(...) alguns romances para aplicar essas ferramentas da lógica em questões éticas, literárias, artísticas, políticas sociais e depois, “em ordem cronológica decrescente, escreveu mais uns tantos romances para preparar os mais pequeninos para esse contacto com lógica e as outras áreas de filosofia” (1999a, 87). Assim sendo, a filosofia é a base e o método para levar as crianças e os jovens a pensar por si mesmas; de forma adequada já que “poderá fazer coisas de uma forma melhor que outras disciplinas, assim como investigar as maneiras pelas quais a filosofia poderá fazer coisas - coisas vantajosas - que nenhuma outra disciplina poderia fazer.” (1990, 55).

Sobretudo, “a filosofia implica aprender a pensar sobre uma disciplina e, ao mesmo tempo, aprender a pensar autocorretivamente (Sic) sobre o nosso próprio pensar” (1990, 59). Neste sentido, o currículo de FpC foi crescendo tornando-se importante na educação.

Filosofia para Criança é um projecto educativo “cujo objectivo é o de desenvolver o pensamento e o raciocínio de alunos desde o primeiro grau e segundo graus12 através de discussões filosóficas nas salas de aulas.” (1990, 9). Sendo que a filosofia é a disciplina por excelência a mais 10

Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia para Crianças.

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Directora do Centro Ménon – Centro de Filosofia com Crianças - e professora na Universidade Católica Portuguesa em Lisboa.

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Desde o Jardim-de-infância até ao secundário, já que o currículo engloba crianças e jovens, dos 3 até aos 16/17 anos. Daí salientar-se filosofia para crianças e jovens.

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adequada para concretizar o objectivo. Lipman encontra a ideia em Dewey, nas suas reflexões sobre filosofia da educação, reconhecendo que “foi Dewey quem previu, nos tempos modernos, que a filosofia tinha que ser redefinida como o cultivo do pensamento ao invés de transmissão de conhecimento” (1990, 20) Porquê a filosofia?

Porque o projecto educacional que Lipman procura é aquele que alcance tudo o que existe de desejável nos outros, e mais o que não existe nos outros projectos. A filosofia porque, salienta o pioneiro, “é investigação conceitual, que é a investigação na sua forma mais pura e essencial.” Reforçando a ideia com o facto das “outras disciplinas não envolverem tanto conhecimento quanto a prender a pensar uma disciplina.” (1990, 59). Este pensar envolve um pensar histórico, antropológico, físico, matemático e linguístico.

Conforme a obra A Filosofia vai à Escola, Lipman, aponta três razões para responder a pergunta Porquê a Filosofia?, sendo que a primeira realça para o facto da disciplina ser representativa de uma herança do pensamento humano. “A filosofia não desmantela o seu passado, mas toma o pensamento de qualquer filósofo para reinspiração e reinterpretação,” refere Lipman. O espírito de racionalidade e juízo crítico, que nenhuma disciplina pode proporcionar, só a filosofia é que consegue dar à educação, segundo motivo. Como terceira razão aponta-se a circunstância da filosofia preparar para o pensar, nas várias disciplinas, o que deduz a importância da sua incorporação no currículo de todos os grau de ensino tendo uma abordagem cultural. (Cfr. 1990, 59)

Lipman pretende “Oferecer às crianças um modelo de vida mais racional como membros de uma boa comunidade de participação e colaboração.” (1990, 61).

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Todas são razões para pensar-se no papel da filosofia na educação escolar. Para Lipman esta é uma questão resolvida. E por que está resolvida, não lhe foi difícil encaminhar-se para o projecto educativo de FpC.

Dada a importância do tema filosofia e criança, não pode deixar de se pensar em três expressões ou matérias diferentes É o caso de Filosofia

com Crianças, Filosofia para Crianças e Filosofia da Infância. O que são?

O que as diferenciam?

Segundo Lipman a expressão Filosofia com Crianças consiste em fazer investigação com crianças, que “abrange tanto o papel informal de conversações filosóficas com crianças que ocorrem nos lares e outros espaços externos à escola.” (1999d, 362). A maior associação de investigação com crianças denomina-se “Conselho Internacional para a Investigação Filosófica com Crianças” (ICPIC).

Quando se pensa, ou se utiliza, a filosofia “como um elemento nuclear da educação formal institucionalizado, das crianças” (Cfr, Lipman), estamos perante a Filosofia para Crianças, já que não podemos deixar de desenvolver matérias curriculares e pedagógicas apropriadas. FpC é o nome de uma abordagem educacional específica, como já se referiu, empregando um currículo próprio e uma pedagogia particular.

No entanto Kohan chega a mencionar esta abordagem educacional como “filosofia com crianças, na medida em que o caminho aberto por Lipman vai mais longe do que a sua proposta de praticar a filosofia para crianças, sendo um campo fértil de pesquisa sobre a fundamentação, os métodos e as finalidades dessa prática.

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A Filosofia da Infância consiste numa investigação filosófica em uma área particular da experiência humana, a fase infantil da vida do ser humano. Segundo Lipman a Filosofia da Infância contrasta fortemente com FpC, sendo esta, sempre e em qualquer lugar educacional. A “Filosofia da Infância é primeiramente um ramo da filosofia tradicional, uma subdisciplina (sic) do tipo «filosofia de», ainda que lidando com um assunto relativamente novo: infância”. (Cfr. 1999d, 362).

Fazer filosofia sobre o conceito, tema ou ideia historicamente localizado, deve-se à época moderna onde a infância é vista como um estado prolongado da vida humana que deve ser separado da maturidade adulta. Mas como se dá esse crescer? Esse estado prolongado da vida?

3. A Criança e a Educação

3.1. A evolução do conceito de criança

A Filosofia da Educação do nosso tempo apresenta algumas características que reflectem, nos seus aspectos mais essenciais, as modificações sofridas pela evolução durante as mudanças históricas e sociais. A realidade educativa, esboço de uma história e de uma filosofia da educação, apresenta uma visão variável do conceito de criança, o que não se verifica na psicologia.

Os estereótipos que se mantinham, até ao despertar do século XX, acerca do conceito de criança e da pouca importância que lhe era concedida, impediram durante muitos anos o aparecimento de uma área

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de investigação e uma visão sobre a sua educação mais adequada à essência da criança.

Havia psicólogos e educadores que tinham uma visão negativa da infância, encarando a criança como uma espécie de selvagem quase sem humanidade, incluindo-a na mesma categoria em que mantinham os primitivos e os deficientes mentais. Outros, ainda, viam na infância uma idade em que a mente da criança funcionava como a do adulto. A diferença entre criança e adulto era apenas encarada em termos de crescimento13 e não de desenvolvimento14. A criança era vista como um homem em miniatura. O mesmo já não acontece nos dias de hoje, pois a grande luta da psicologia actual é, como nos diz Planchard: “não esquecer que a criança é um ser qualitativo e quantitativamente diferente de nós mesmos.” (1952, 12).

Não reconhecer o estatuto próprio da criança tinha reflexos negativos na educação familiar e escolar que lhe exigiam condutas muito próximas das do adulto, sem que ela pudesse comportar-se da forma pretendida. Por isso é que, no que diz respeito à matéria de psicologia educativa, deve-se evitar cair em qualquer destes excessos: só ver as

semelhanças entre a criança e o adulto é o erro que, noutros tempos, se

cometia com grande frequência; só ver as diferenças, é o defeito em que certos pedagogos contemporâneos e psicólogos da educação se arriscam

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Refere-se ao tamanho da criança, apresentando como diferença entre uma criança e o adulto, exclusivamente o seu tamanho e a sua força corporal.

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Refere-se ao conjunto de transformações do ser humano ao longo da sua vida. É um processo que se inicia no momento da concepção e termina com a morte, e em que estão envolvidos múltiplos factores: biológicos, cognitivos, motores, morais, emocionais, linguísticos, afectivos e sociais.

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a cair, tendo em conta que, como diz Pestalozzi15, “a criança é um ser dotado de todas as faculdades da natureza humana, sem que nenhuma tenha, ainda, alcançado o seu desenvolvimento: é com se todavia fosse um cartucho por abrir.” (1996, 9), e o levantar de cada ponta do cartucho é cheio de surpresas. O que leva os filósofos da educação a questionarem-se sobre o desenvolvimento da criança e se esse, desenvolvimento é acompanhado por uma educação adequada.

Com agudeza e elegância, num tempo em que, por razões diversas já que cada época tem as suas verdades, se menosprezava a linguagem e as ideias da criança, Rousseau defendia a dignidade da mesma, mostrando o quanto era importante que a criança vivesse a sua infância para desenvolver pouco a pouco as tendências naturais que nela existem e, em cada idade, ao nível da sua maturação. Para deixarmos a criança ser ela mesma, ou viver a sua infância, é necessário conhecê-la nas diferentes etapas do seu desenvolvimento.

A psicologia da criança tem vindo a desenvolver os seus estudos; mas até que ponto tem contribuído, para um melhor conhecimento da criança? E da sua educação? É sabido que, o movimento sofístico “é a origem de educação no sentido escrito da palavra: a paideia” (Paideia, 335) e que a educação não pode ser senão um processo de desenvolvimento interno, mas, para isso é necessário conhecer e compreender esse mesmo desenvolvimento, o que operará uma transformação completa da perspectiva pedagógica. A transformação,

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Pestalozzi (1746-1827) nasceu em Zurich, suíço alemão, é um clássico da pedagogia, sendo esta fruto da observação e da experiência, intuindo a natureza da criança e do processo educativo. Pedagogo que se entrega totalmente à escola e à educação das crianças entende a educação como a formação do homem enquanto ser individual.

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não completa, mas, como alerta para a descoberta da criança, enquanto criança, deve-se a Rousseau, pois via a educação como um processo de desenvolvimento.

No tratado sobre a educação Émile, Rousseau descreve a educação de um jovem para a sua sociedade ideal. A criança é tirada dos pais e das escolas, isolada da sociedade e entregue às mãos de um preceptor ideal que o criar em contacto com a natureza que é indicada como inanimada sub-humana, mas bela e maravilhosa, onde a criança deve estar em contacto directo com as plantas, fenómenos físicos e forças de todas as espécies. Uma vez que a criança é intrinsecamente boa, a sociedade é que a deforma. A educação deve ter em conta o desenvolvimento natural da criança, para que possa agir, actuando por si própria; porque as lições fornecem as experiências de outros e destroem o germe da experiência própria da essência do ser humano. A concepção educacional da natureza do ser humano, defendida por Rousseau, não podia deixar de estar relacionada com o pensamento filosófico da época.

Um dos precursores da pedagogia contemporânea, Pestalozzi “extrai as suas ideias, como Rousseau, da simples especulação ou reflexão sobre a natureza humana” (1996, IX); porém, este opta pelo caminho da experiência para conhecer e compreender o desenvolvimento da natureza humana, que o coloca “de entre todos os educadores e filósofos da educação (...) o único conhecido nos cinco continentes, o único que alcançou a grandeza mística de um Beethovem: o génio pedagógico” (Chateau, 232 - 233).

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Toda a criança deve ter como primeira e principal educadora a sua mãe, diz Pestalozzi .

“Toda a mãe é chamada a consagra a atenção sobre essa tarefa. Nisto consiste o principal dos seus deveres; (...) a ideia de se ter um dever vai sempre acompanhada da capacidade de o cumprir.” (1996,

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Nesta perspectiva a mãe é a única que consegue pôr a criança a fazer as coisas por si própria, formar as ideias mediante os actos que executa todos os dias. Tudo o que ela pode vir a ser, o ser do futuro, encontra-se na espontaneidade das suas iniciativas. A criança é vista como um ser que exercita o cérebro, o coração e as mãos, isto significa que trabalha harmonicamente as várias faculdades humanas.

Assim, a criança deve, desde o berço, ser encarada de acordo com a sua natureza, ideia também defendida por Froebel:16

“a criança não é boa nem má, é um ser em formação e em desenvolvimento espontâneo (...) a criança é chamada a realizar-se na vida que lhe é actual e o ensino deve assentar na observação contínua da criança.” (1977, 36)

Sendo pois da crença na natureza divina da criança que nasce a característica reverência de Froebel pela infância, que considera detentora de um valor absoluto. Foi sem dúvida através deste pedagogo que se deu uma mudança na percepção da infância, criando um interesse

16

Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852) nasceu na Turíngia (Alemanha). A vida foi-lhe muito agitada, mas sempre inspirada, essencialmente, no amor à criança e à natureza, suas duas grandes paixões. Para Froebel, a educação consiste em suscitar as energias do homem, como ser progressivamente consciente, pensante e inteligente. A educação é antes de tudo desenvolvimento completo das energias latentes, com finalidade humana.

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pela criança e pelo próprio método de ensino, já a escola passa a centrar-se no decentrar-senvolvimento da criança.

Froebel teve o prenúncio de antecipar a descoberta feita pelos psicólogos que os primeiros anos de vida são os decisivos no desenvolvimento mental do ser humano; apesar de apresentar uma psicologia pobre foi feliz nas suas intuições, já que previram muito do posterior descoberto pela Psicologia de hoje, pois em seu tempo não se conhecia, como hoje, a vida anímica da criança. (Cfr, 1960, 201-265).

A base do conceito de criança, ou do que é a criança assenta “na crença de que a alma da criança, no primeiro período de desenvolvimento, não pode reconhecer-se senão na percepção das formas mais simples do mundo exterior” (1967, 265-266). A pedagogia de Froebel é uma pedagogia da acção, onde “a criança para desenvolver-se, não deve apenas olhar e escutar, mas agir e produzir”(Ibid). Não obstante, tem a escola uma função social, através da função individual: o desenvolvimento das energias da criança e da consciência do grupo e da colectividade; nomeadamente, a escola deve parecer-se o mais possível com a vida; onde conste a actividade e a liberdade.

Froebel criou o Kindergarten17, escolas infantis, com aspecto simpático, salas arejadas, espaçosas, perfeitamente limpas e cercadas de jardins. As crianças sentadas em pequenos grupos ocupam as mãos e o cérebro que desperta com cubos de madeira, réguas, pauzinhos. Jardim onde, “o essencial é a actividade infantil, que se manifesta como jogo”

(Cfr, 1969, 202) sendo este, o mais puro produto da fase de crescimento

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da criança, pois é do jogo que brota tudo, ou quase tudo, que há de bom na criança em si mesma.

A caracterização da criança na época contemporânea não apresenta grandes diferenças nas linhas gerais apontadas pelos filósofos da educação da época moderna. Porém não se pode dizer que não houve perspectiva novas em relação à educação, exemplo disso e John Dewey. A educação, segundo o filósofo, tem a função de descobrir e desenvolver capacidades, até aqui nada de novo. A novidade está no facto da filosofia ser a teoria da educação, educação esta que assente numa sociedade democrática.18

O que é que existe de semelhante entre as linhas gerais apontadas sobre alguns pedagogos e a Filosofia para Crianças? Rousseau fala da educação como processo de desenvolvimento. Lipman nem pensa a educação se não como um processo de desenvolvimento da criança. No entanto esse desenvolvimento é feito de outra forma bem diferente da apresentada por Rousseau, é um desenvolvimento cognitivo para o pensar por si. Em certo aspecto é uma classificação de contextos: aprender a não confundir o especial com o temporal, o auditivo com o visual, o físico com o pessoal. A criança em desenvolvimento cognitivo, muito cedo adquire aprendizagem desses contextos, não defrontando dificuldades em transcendê-los. (Cfr, 1990, 126). É a fase do Jogo Simbólico da criança que será analisado, ainda, neste ponto.

No caso de Pestalozzi é a espontaneidade da criança, assim como o desenvolvimento do cérebro através da criatividade, que apresenta de

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certa forma uma semelhança com o desenvolvimento das habilidades do pensamento que pretende a FpC, sendo que as habilidades cognitivas em Lipman são de quatro tipos19: Raciocínio, Questionamento e investigação, Formação de conceitos e Tradução.

Quando Froebel salienta que é importante para a criança desenvolva a consciência de grupo e de colectividade, onde conste a actividade e liberdade, Lipman também de certa forma partilha dessa ideia pois, assim estará a contribuir para uma sociedade democrática que leva a uma crescente sociabilização20 da criança. Froebel ao descrever as salas do Jardim-de-infância apresenta requisitos que Lipman aponta para a sala de aula onde se pratica a Comunidade de Investigação. Lipman, também acredita que o jogo é uma actividade importante na educação da criança.

Para se entende, exactamente, onde se pode encontrar algumas semelhanças é fundamental que se conheça em que tipo de educação assenta a FpC. Assim como: quais as habilidades cognitivas a desenvolver? Para que tipo de sociedade prepara as crianças a FpC?

3.2 A criança e o desenvolvimento das habilidades

O patamar das grandes mudanças, na psicologia do desenvolvimento (estamos a falar de um processo básico relativo ao

19

Ver anexo. Quadro com as principais habilidades cognitivas.

20

Por sociabilização, Lipman entende: “a internalização de atitudes e modos de fazer e dizer institucionais é uma substituição progressiva de inocência pessoal por experiência

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organismo e à própria conduta), quanto ao modo de encarar a criança, radica no conceito de evolução apresentado por Charles Darwin. A teoria evolucionista de Darwin, estilhaçadora da fronteira intransponível entre animal e ser humano, abre caminho a uma nova perspectiva em psicologia genericamente apelidada de organicismo por oposição ao maturacionismo e mecanicicmo. É objecto de mais atenção e desenvolvimento, neste ponto, a perspectiva organicista, dada a sua pertinente para a temática a desenvolver.

Os psicólogos que defendem o modelo organicista assumem uma perspectiva interaccionista, considerando que o desenvolvimento cognitivo “é uma competência geral e estrutural do sujeito para pensar e raciocinar sobre o mundo físico e lógico - matemático considerados de um ponto de vista científico” (1997, p.61), isto é, a dinâmica em que factores maturacionais, genéticos e da experiência externa se combinam no decorrer dos diferentes estádios21 por que o indivíduo passa ao longo da vida.

O modelo organicista realça o carácter adaptativo do processo de desenvolvimento dado considerar que, ao progredir na sequência dos estádios22, o organismo dispõe de mecanismos psicológicos diferentes e qualitativamente superiores de intervenção no meio. Essas intervenções, por sua vez, contribuem para reorganizar os mecanismos psicológicos, fazendo com que a criança fique melhor apetrechada para ajustar

mundana, de ignorância por conhecimento, de subjectividade por objectividade.” (1999c, 43).

21

Estádios consistem, segundo Piaget, em fases ou etapas qualitativamente diferentes por que passa o desenvolvimento intelectual.

22

Ver em anexo quadro com os estádios e características principais de cada um, sobre o desenvolvimento cognitivo segundo Piaget.

(22)

adequadamente os comportamentos às exigências do meio. “A criança é um ser dinâmico que tem a possibilidade de moldar o seu desenvolvimento graças às numerosas competências que lhe permitem orientar, reorientar e conduzir as suas interacções com o ambiente.” (1996, p.9).

Jean Piaget23 elaborou uma teoria de desenvolvimento a partir do estudo da inteligência da criança e do adolescente. Ultrapassou a velha concepção de que a inteligência da criança era semelhante à do adulto, existindo entre elas mera diferença quantitativa. A proposta de Lipman encontra apoio no construtivismo de Piaget. A concepção (construtivista/interaccionista) parte da tese de que o conhecimento não depende nem só da criança (sujeito) nem só do conteúdo de estudo (objecto). As estruturas da inteligência não são apenas inatas, mas produto de uma construção contínua da criança. As estruturas intelectuais constroem-se de modo progressivo num processo de troca entre o aluno e o meio (sujeito/meio). Destaca a importância do trabalho em equipa e cooperação para o desenvolvimento da inteligência24. O apelo às actividades espontâneas da própria criança, objectivando uma organização cognitiva preparatória das operações da inteligência é conseguida através do processo de adaptação ao meio.

23

Jean Piaget (1896 - 1980) nasceu em Neuchâtel e morreu em Genebra, Suíça. Foi biólogo, zoólogo, filósofo, epistemólogo e psicólogo. Este conhecimento interdisciplinar dá-lhe uma vasta cultura científica impregnaram a sua obra com muitas contribuições para vários campos do saber. Piaget revolucionou as concepções de inteligência e de desenvolvimento cognitivo de pesquisas centradas na observação e em diálogos que estabelecia com as crianças.

24

Na perspectiva de Piaget inteligência define-se por: capacidade para resolver problemas; poder de adaptação a situações novas; faculdade de compreender, de discernir; fazer uso de símbolos abstractos; eficiência global das capacidades cognitivas.

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Sendo que a inteligência precede o pensamento25, o desenvolvimento pressupõe, por um lado, a influência do meio físico, social e ainda, a hereditariedade.

O desenvolvimento mental faz-se, pois, por etapas sucessivas em que as estruturas intelectuais se constroem progressivamente:

“A cada instante, a acção é desequilibrada pelas transformações que aparecem no mundo, exterior ou interior, e cada nova conduta vai funcionar não só para estabelecer o equilíbrio, mas também para tender a um equilíbrio mais estável que o do estádio anterior a essa perturbação” (1990a, 16),

Cada novo estádio representa uma forma de equilíbrio cada vez maior, que permite uma adaptação mais adequada às circunstâncias. Sendo assim, o desenvolvimento psíquico tem início com o nascimento e termina na idade adulta, podendo comparar-se ao crescimento orgânico, consistindo essencialmente numa marcha que tende para o equilíbrio, portanto, em certo sentido, uma equilibração progressiva, uma passagem perpétua de um estado de menor equilíbrio a um estado de equilíbrio superior.

Em todos os estádios, a permuta entre o sujeito e o meio opera-se por dois mecanismos constantes, que são a assimilação e a acomodação, que segundo Piaget consiste em:

“Incorporar as pessoas e as coisas na actividade própria do sujeito, portanto em «assimilar» o mundo exterior às estruturas já construídas, (...) a reajustar estas últimas em função das transformações sofridas,

25

Por pensamento Piaget entende: pensamento representacional, ou seja, pensamento que é internalizado e inclui representações mentais de experiências anteriores com objectos e acontecimentos.

(24)

portanto em «acomodadas» aos objectos externos.”

(1990a,17).

Por isso, face a uma nova situação, a criança começa por incorporar os objectos aos esquemas já construídos (se possui, por exemplo, esquemas de agarrar, sacudir ou puxar, aplica-os aos objectos) e, simultaneamente, transforma esses esquemas para uma melhor adaptação. O desenvolvimento mental surge assim, na sua organização progressiva, “como uma adaptação sempre mais precisa à realidade.” (Cfr 1990a, 18). São estes dois mecanismos funcionais que possibilitam a construção das novas estruturas. Estes são, primeiramente, esquemas de acção que, quando interiorizados, se transformam em esquemas operatórios. Sendo que, qualquer regulação acrescenta novas transformações que têm as suas próprias estruturas, designadamente quanto às negociações, o que permite enriquecer na forma o sistema que se queria equilibrar. (Cfr, 1977, 47).

Até aqui tudo bem, pois Lipman também faz um apelo às actividades espontâneas da criança, para que se proporcione o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Porém é neste ponto que se afasta de Piaget, pois, o conceito cognitivo em Lipman é muito mais que o

acto de conhecer. É desenvolver habilidades que exigem classificação de

contextos e não a forma piagetiena, que “visa traçar os limites do alcance intelectual da criança propondo uma série de problemas (…) e determinando em que idade a criança pode enfrentá-los com sucesso.” (1990, 166). Mas em que assenta esse desenvolvimento? Tal como em Piaget é num construtivismo, numa relação interactiva entre criança e

(25)

escola. Não obstante Lipman rejeita a dicotomia entre o cognitivo e o afectivo, pois no caso de se defender que não existe evolução com talento artístico, então também não se pode atingir as habilidades na sua plenitude. O pensamento é um componente de todo estado ou processo psicológico, “sob alguns aspectos, uma actuação artística, e, sob outros, é uma arte criativa”, diz Lipman. (2001,149). Pode-se reflectir sobre um texto, tentando descobrir o seu significado intrínseco, na possibilidade de existir uma semelhança aos artistas, ou pode-se criar uma nova hipótese, ou escrever um texto original.

Lipman afasta-se de Piaget na correspondência entre as idades dos estágios e as habilidades desenvolvidas em cada um deles. Os esquemas de desenvolvimento conseguidos em cada estágio, propostos por Piaget não são advogados por Lipman, pois as áreas de habilidade mais relevantes para os objectivos educacionais são aquelas relacionadas com os processos de investigação, processos de raciocínio, organização de informação e tradução, que na perspectiva do pioneiro é provável que as crianças, mesmo muito pequenas, as possuam de forma primária. E não a abordagem neopiagetiana que “deixam a criança perplexa (…) como consequência da ambiguidade ou da indiferença deliberada do investigador.” (1990, 166)

Sendo assim, à que saber em que assenta o desenvolvimento das habilidades cognitivas e não as suas limitações cognitivas da crianças, mas de aumentar as suas capacidades cognitivas. O que imperiosamente leva a uma sucinta análise da função simbólica da criança.

(26)

No campo dos estudos sobre o desenvolvimento da criança, um dos itens que ocupa o estudo dos psicólogos e filósofos é o funcionamento da linguagem e a configuração das primeiras palavras. A Questão da linguagem surge associada ao âmbito da lógica já desde os primórdios da filosofia grega.

Historicamente, verifica-se que o momento de ruptura no equacionamento da relação entre pensamento e linguagem surge com o movimento designado por positivismo ou logicismo. Porém, com o desenvolvimento da psicologia e a reflexão filosófica, ao nível da lógica, há autores que afirmam que a linguagem é simultaneamente o único

modo de ser do pensamento, a sua realidade e a sua realização.

Organiza o pensamento e realiza-o numa forma específica, torna a experiência interior de um sujeito acessível a outro numa expressão articulada e representativa.

Toda a criança quando nasce produz um grito reflexo automático que “desempenha um papel fisiológico importante e incontestável: a criança aprende a coordenar a respiração em função da sua intensidade e duração.” (1975, 119) Assim, o grito está ligado a uma situação de necessidade ou de sofrimento e que é em certa medida como que uma necessidade neurofisiológica sem significação própria, acontece rapidamente, diferenciando-se do primeiro, o grito emotivo que serve incontestavelmente para traduzir, de uma maneira intencional, um estado psíquico, que poderá ser de cólera ou decepção do bebé.

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A mãe é geralmente o ser humano com quem o bebé estabelece a primeira relação afectiva de maior proximidade, pois é quem começa por lhe proporcionar alimentação, conforto, protecção e carinho: “o coração de uma mãe influência certamente de um modo preponderante na maneira como ela põe em jogo a sua atenção.” (1996, 14). Existem no bebé, para além de reflexos inatos dirigidos para a satisfação de necessidades fisiológicas, como chupar ou mamar, outro tipo de características inatas, com objectivo de sobrevivência, que visam promover a interacção com os outros, como a necessidade corporal e de aproximação física. Deve ser a mãe, tal como salienta Pestalozzi, a “sentir-se capaz de ensinar ao filho os diversos nomes; pois, ao mesmo tempo que mostra os objectos, de forma simples, pronuncia os seus correspondentes nomes e faz com que a criança os repita.” (1975, 105).

Não podia deixar de ser um marco o momento em que a criança começa a falar, tanto para os psicólogos que se dedicam ao estudo do desenvolvimento da criança, como para os filósofos. A indiscutível importância da linguagem, relacionada às diversas tentativas de descrever e explicar a emergência das primeiras palavras na ontogenese, levanta ainda questões concernentes aos processos de significação e ao

locus da linguagem na psicologia do desenvolvimento e na educação.

Só pelo simples facto de ter de viver em sociedade e porque esta, de certo modo, actua sobre ela logo a partir dos primeiros dias de vida, a criança deve dispor de sinais para traduzir os seus sentimentos e os seus pensamentos, e deve ser capaz de reconhecer os sinais provenientes do meio em que está inserida. Existem para o ser humano vários meios de

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comunicação, no entanto, a linguagem verbal “é sem contestação um meio muito mais eficaz e muito mais prático de comunicar o pensamento a outrem” (1975, 17). A linguagem proporciona a comunicação intersubjectiva na sociedade. Sem esta possibilidade de comunicação com os outros, ver-nos-íamos privados de uma série de experiências, conhecimentos, valores, de outros sujeitos, o que nos tornaria ainda mais incompletos e fechados. A nossa abertura ao mundo e aos outros e a todo o universo de sentimentos e pensamentos passa fundamentalmente por uma ponte: a linguagem. Com efeito, o uso da linguagem faz parte essencial da vida e da acção humana, e é pela linguagem que o ser humano se apropria da realidade.

Diferentemente das plantas e dos animais, os seres humanos pensam, falam e argumentam, isto é, usam sistemas de linguagem mais complexos para pensar e comunicar, sendo, por isso que pensamento e linguagem estão necessariamente interligados como as duas faces de uma moeda, que nos leva a perceber, que “entre a linguagem e o pensamento existe assim um círculo genético, de tal modo que um dos dois termos se apoia necessariamente no outro, numa forma solidária e numa perpétua acção recíproca.” (1977,133).

Pensar é um acto lógico que implica o estabelecimento de relações entre conceitos traduzidos na linguagem por signo ou palavras, e a imagem acústica do conceito (signo) é o significante e a ideia é o seu significado. Por outras palavras, segundo Saussure o signo é a totalidade que resulta da associação de um significante com um significado (cfr. Saussure, 1964, 123). Não podemos pensar que um signo é

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simplesmente a união de uma coisa e um nome, mas e continuando a citar Saussure, é “um conceito e uma imagem acústica. Esta última não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse som, a representação que nos é dada pelo testemunho dos nossos sentidos.” (1964, 122) É por isso que não podemos pensar sem palavras, sem uma imagem acústica. Por outro lado, não podemos deixar de constatar que esta está materializada numa Língua, num código comum, numa determinada sociedade, e isto remete-nos para outro aspecto fundamental da linguagem: a comunicação com os outros seres humanos. Daí a necessidade da criança se sentir enquadrada no meio em que vive, para descobrir o uso particular desta actividade espontânea e de natureza puramente fisiológica.

A criança tem necessidade de expressar o que sente, e o que quer, “o comportamento da criança que atira os brinquedos e que grita zangando-se para que lhos apanhem, mostra que a utilização de valor altamente simbólico pode adquirir finalmente o grito.” (1975, 120) A inteligência prática ou sensório-motora da criança, sem outros instrumentos que as percepções e os movimentos, são a base da inteligência verbal ou reflexiva.

Segundo Piaget, no final do estádio sensório-motor e princípio do pré-operatório, surge a existência de representações simbólicas que vai permitir à criança usar uma inteligência diferente. “Voz e ouvido se interligam: a criança controla a sua emissão segundo os efeitos acústicos que ela lhe proporciona e a própria voz alheia parece actuar sobre a sua.” (1976, 19) Mas afinal em que consiste a função simbólica? A função

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simbólica também designada por função semiótica designa os

funcionamentos fundados no conjunto dos significantes diferenciados, ou seja, refere-se à capacidade de criar símbolos para substituir ou representar os objectos e de lidar mentalmente com eles. É “um conjunto de condutas que supõe a evocação representativa de um objecto ou de um acontecimento ausente e que envolve, por conseguinte, a construção ou o emprego de significantes diferentes.” (1997, 51).

Com a aquisição da linguagem abre-se um mundo novo para a criança, em que as palavras substituem os objectos e as situações, a linguagem nascente permite-lhe a evolução verbal de acontecimentos já passados, nomeadamente, a criança não necessita de ver o cão para dizer “ão, ão”, existe representação verbal, além de imitação. A aquisição da linguagem, “cobre finalmente o conjunto do processo, assegurando um contacto com os outros muito mais vigoroso do que a simples imitação e permitindo, portanto, à representação nascente aumentar os seus poderes, apoiada na comunicação.” (1997, 53). O uso da linguagem permite-lhe comunicar com os outros, pois começa a adquirir a lógica e a sintaxe, como refere Lipman é altura de: descrever, narrar, explicar, fazendo julgamentos quanto à verdade ou falsidade. (Cfr. 2001, 47)

A emissão de palavras significa que a criança já possui imagens mentais. Elas não são ainda conceitos, mas representações dotadas das características particulares dos objectos que representam, por isso levantam muitas questões sobre o que as rodeiam. Piaget fala, a este respeito, de pré-conceitos, na medida em que a criança, não dispondo

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ainda de esquemas de generalização, é incapaz de distinguir com nitidez “todos” de “alguns”.

Passemos à inteligência representativa, onde a utilização dos pré-conceitos permite à criança produzir inferências. Mas estas não são do tipo indutivo nem do tipo dedutivo: o raciocínio da criança procede por analogia. O pensamento da criança, preso ainda ao sensível, vai apenas do particular ao particular, pois a generalização, ainda incipiente, apresenta-se imprecisa e sem controlo. Ao passarmos para o período das operações concretas, as estruturas intuitivas transformam-se, agora, num sistema de relações de tipo operatório que “consiste apenas em operações aditivas e multiplicativas de classes e de relações e seriações (...). A linguagem será a única fonte das classificações e das seriações, que caracterizam a forma de pensamento ligada a estas operações.” (1990, 125).

Efectivamente, a linguagem acompanha a acção da criança e a sua percepção imediata das situações e das coisas; há uma correlação surpreendente entre a linguagem empregada e o modo de raciocinar. Em suma, os estudos da linguagem e os das operações intelectuais pretendem uma colaboração entre os linguistas e os psicólogos.

O mundo da criança corresponde a uma acção interiorizada, assente na capacidade de simbolizar. A criança necessita de algo que a coloque em assimilação do mundo, sem obrigações ou castigos: só assim encontrará o equilíbrio afectivo e intelectual. Deste modo, o jogo simbólico assinala, sem dúvida, o apogeu do jogo infantil, tendo função essencial, na prática da vida da criança, proporcionando uma

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equilibração entre a assimilação e a acomodação. O jogo diferencia-se das condutas de adaptação propriamente ditas. A criança não procura uma adaptação ao real, mas uma assimilação do mesmo ao Eu. A criança não consegue satisfazer as suas necessidades através das adaptações, “as quais, para os adultos, são mais ou menos completas, mas que para ela permanecem tanto mais inacabadas quanto mais jovem for” (1990b, 56). O interesse pelo mundo que a rodeia aumenta significativamente depois de 1 ano de idade. O bebé faz tentativas na descoberta de novos meios experimentando a existência da atitude criadora, a energia potencial para construir um mundo psíquico à custa do ambiente, ideia defendida, também por Montessori. (Cfr. Montessori, 62).

Ao longo do primeiro ano, os esquemas de acção vão-se coordenando entre si: por exemplo, o esquema de acção de agarrar e o de puxar permite ao bebé fazer funcionar o guizo suspenso por cima do berço. Por meio de tentativas e erros, são seleccionados os comportamentos que dão os resultados desejados. Nomeadamente, os jogos das primeiras lalações (voz), os movimentos da cabeça e das mãos acompanhados de sorrisos de divertimento são lúdicos ou adaptativos, já que tudo é um jogo durante os primeiros meses de existência, tendo em conta que “não têm mais finalidade exterior do que, mais tarde, os exercícios motores atirar pedras numa poça de água, fazer esguichar a água de uma torneira, saltar, etc. - que todo o mundo considera jogos ou brincadeiras.” (1975119).

(33)

Quando uma criança descobre por acaso a possibilidade de destapar uma esferográfica, primeiro reproduz o gesto para se adaptar a ele e para o compreender, o que não é jogo; porém, depois, utiliza essa conduta por simples prazer. Para ilustrar o exemplo, ressalte-se um registo observado por John Holt26:

“Estou sentado no terraço de um amigo. Ao meu lado encontra-se Lisa, de 16 meses, uma criança esperta e ousada.(...)

Um dos jogos preferidos de Lisa é tirar-me a esferográfica do bolso, destapá-la e voltar a tapá-la. Para isto é necessária destreza; Lisa nunca se cansa do jogo. Quando vê que tenho a caneta no bolso, dá-me logo a entender que a quer e não há forma de a contrariar. É teimosa e se eu fingir que não percebo o que ela quer - o que é mentira - faz uma cena. Quando sei que preciso da caneta, o truque é ter uma outra escondida noutro bolso.(...)” (2001,.30)

Posto isto, o jogo deixa de ser “jogo de exercício” aos dois para dar lugar às representações simbólicas, podendo assim a criança usar uma habilidade diferente, dominada por um pensamento mágico, onde os desejos se tornam realidade, sem preocupações lógicas. Uma imaginação prodigiosa permite tudo explicar ao invés do jogo de exercício, que não supõe o pensamento nem qualquer estrutura representativa especificamente lúdica. O símbolo implica a representação de um objecto ausente, visto ser comparação entre um elemento dado e um elemento imaginado. É natural, neste período, a criança bater à mesa

26

John Holt (1927 – 1985), escritor e figura de proa da reforma educacional americana. A sua profunda compreensão da mente das crianças tem vindo a ser cada vez mais apreciada, à medida que tentamos transformar a escola e a família em locais onde as

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onde se magoou, dizer à boneca que tem que comer a sopa toda. Assim como é neste estádio que procura, sobretudo, saber “para quê”, apesar de se argumentar que está na “idade dos porquê”.

O pensamento infantil neste estádio é sincrético, isto é, tem uma forma global e confusa, não diferencia o essencial do superficial, a parte do todo, o particular do geral.

Em terceiro lugar, surgem os jogos de regras. Ao invés do símbolo, a regra supõe, necessariamente, relações sociais. Assim, se vários jogos regulares são comuns às crianças e aos adultos, um grande número deles, porém, é especificamente infantil, transmitindo-se de geração em geração, ou seja, de criança em criança sem a intenção de uma pressão adulta. (Cfr., Holt, 30). Os jogos27 são, pois, transmitidos tendo uma importância na vida da criança, conforme o progresso da vida social da mesma.

Do jogo simbólico desenvolvem-se os jogos de construção que, graças aos esquemas mentais operatórios, a criança consegue agora compreender: a relação parte - todo, fazer operações de classificação e de seriação, obter a conservação do número, adquirir a noção de tempo e de espaço globais. A criança pode compreender e explicar as situações problemáticas graças à reversibilidade e às suas preocupações lógicas de reflexão sobre o real. Essa reversibilidade não é mais que a própria expressão do equilíbrio permanente, assim alcançado, entre uma acomodação generalizada e uma assimilação que se tornou, por isso

crianças aprendem melhor. O seu trabalho está a ter continuação através da Holt Associates em Cambridge.

27

Os jogos a que nos referimos são: do exterior a macaca, os berlindes, as caricas, às escondidas, a cabra-cega. Do interior, o anel vai na mão, a mímica, a batalha naval.

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mesmo, não deformante. O pensamento descentrado vai agora permitir que ela entenda que, quando um espanhol vem a Portugal, é estrangeiro, e que, quando um português vai a Espanha, também o é.

Não podemos deixar de apontar que, das múltiplas funções do simbolismo extraíram-se várias teorias que tentam explicar o jogo em geral, isto é, a sua importância no desenvolvimento da criança. Lipman também salienta o quanto é importante nas crianças a actividade lúdica. A criança brinca para se conhecer e também para compreender o mundo que a cerca. Para Lipman é importante ter em conta a noção de brincar na medida em que “pode ser muito útil quando procuramos compreender a relação entre criatividade e imaginação28. É na brincadeira que a criança é desafiada a questionar, transformar e desvendar a realidade. A criança precisa de tempo, de espaço e de elementos incentivadores para trabalhar a construção do real, através do seu já familiar exercício da fantasia.

Na perspectiva de Lipman a brincadeira, o jogo, o brinquedo, são poderosos instrumentos de auto-conhecimento e de descoberta do mundo. Proporcionam o desenvolvimento, da memória, da criatividade, da expressão e da concentração.

3.2.2. As habilidades cognitivas a desenvolver

28

Por imaginar Lipman entende um pensamento divertido. Que é uma acção desincorporada, ao passo que a criatividade é uma espécie de imaginação incorporada.

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Salientou-se no ponto 3.2. que Lipman a ponta quatro principais

variedades de habilidades cognitivas29, sendo que as crianças estão naturalmente inclinadas a adquirir habilidades cognitivas como adquirem naturalmente a linguagem, como foi analisado, e a educação é necessária para fortalecer o processo.

Assim, quando Lipman aborda as habilidades de investigação refere-se à prática de autocorrecção. O que não pode corresponder a um comportamento de investigação habitual, convencional, mas sim se à prática subsequente da autocorrecção for acrescentada aquela prática, acontecendo a investigação.

É basicamente através das habilidades de investigação que as crianças aprendem a associar suas actuais experiências com aquilo que já acontece em suas vidas e com aquilo que esperam que aconteça.”

(2001, 66).

As crianças que aplicam a sua educação a investigação aprendem a formular problemas, estimar, medir e distinguir, porque:

“Investigar é uma prática auto-correctiva onde um tema é investigado com o objectivo de descobrir ou inventar maneiras de lidar com aquilo que é problemático.” (2001,

72)

A partir de um argumento sólido formulado, onde se inicia com premissas verdadeiras, infere-se uma conclusão verdadeira. Pois o conhecimento diz Lipman “baseia-se na experiência do mundo” o que significa que é pelo raciocínio (habilidade de raciocínio) que se desenvolve esse conhecimento, assim como o preserva, sem recorrer a

29

Por habilidades cognitivas Lipman entende: “a capacidade para bem realizar movimentos e desempenhos cognitivos. (2001, 117)

(37)

uma experiência adicional. A lógica é apontada como algo educativo, já que demonstra “aos alunos incrédulos que a racionalidade é possível, (…) e que alguns argumentos são melhores que outros”. (2001, 66) Quando uma criança pensa por si mesma em diálogo, o processo de raciocínio, através de silogismos, adquire mais entusiasmo, e a conclusão pode surgir de modo inesperado. Já que raciocínio, segundo Lipman:

“é o processo de ordenar e coordenar aquilo que foi descoberto através da investigação. Implica em descobrir maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi descoberto ou inventado enquanto era mantido como verdade.” (2001, 72)

A criança tende para uma eficiência cognitiva, o que implica organizar as informações que recebe em unidades ou grupo conceptuais. Estes, representação universal de alguma coisa ou realidade, entendendo os termos coisa e realidade num sentido lato que não se reduza aos objectos físicos. Cada grupo ou rede de conceitos representa uma teia de significados que “envolve esclarecer e remover ambiguidades” diz Lipman (2001,68). Desta forma:

“o pensamento conceptual envolve relacionar conceitos entre si a fim de formar princípios, critérios, argumentos, explicações, etc.”(2001, 72)

O raciocínio é aquela forma de pensamento que preserva a verdade através da mudança, a habilidade de tradução é aquela forma que preserva o significado através da mudança:

O que implica na transmissão de significados de uma língua ou esquema simbólico, ou modalidade de sentido, para outra, mantendo-os intactos.” (Ibid)

(38)

O que nem sempre é respeitado pelos que traduzem. O que é significativo é que as habilidades de tradução possibilitam transitar entre línguas ou quando se traduz um poema para a música, como um compositor sinfónico, ou ainda, da linguagem corporal para a linguagem comum; está-se a trocar e a preservar significados. Neste caso o pensamento é compreendido como forma de produtividade e a tradução como forma de troca.

Para atingir adequadamente estas quatro áreas de habilidades cognitivas é necessário saber pensar e principalmente saber pensar por si, para que seja possível seguir o caminho do pensamento de ordem

superior. O pensamento de ordem superior “inclui o pensamento flexível e

rico em recursos” (2001, 38). Rico em recursos no sentido que sabe procurar os recursos de que precisa e flexível porque se mobiliza livremente.

O pensamento de ordem superior ocorre sob o escudo de duas ideias reguladoras: a verdadeira e o significado, envolvendo o pensamento crítico e o criativo. O pensamento crítico envolve o raciocínio e o julgamento crítico, enquanto que o pensamento criativo compreender habilidade, talento e julgamento criativo. Os julgamentos são as consequências do pensar crítico. E como consequências implicam, portanto, uma determinação: do pensamento, da fala, da acção ou da criação.

O pensar crítico apresenta quatro características fundamentais: (1) facilita o julgamento pois (2) fundamenta-se em critérios, (3) é auto-correctivo, e (4) é sensível ao contexto. (Cfr. 2001, 172). Facilita o

(39)

julgamento porque utiliza critérios, isto é, regras ou normas para fazer julgamentos. É auto-correctivo, portanto corrige-se por si no discurso e na reflexão. O penar crítico é pensar hábil, e as habilidades em si não podem ser definidas sem critérios através dos quais desempenhos supostamente hábeis possam ser avaliados, o que o torna sensível ao contexto, na medida em que sabe aplicar critérios ao contexto. “Pensar crítico significa responsabilidade cognitiva” (2001, 175), pois o raciocínio como componente do pensar crítico é estimulado em diálogo e investigação atingindo a inferência, movimento cognitivo através do qual um aluno tira uma conclusão a partir de premissas. Implica pensar por si mesmo sem deixar que outro pense por si. Pensamento responsável que fornece, também, responsabilidade intelectual.

Retomando a ideia de que: o pensamento de ordem superior ocorre sob o escudo de duas ideias reguladoras: a verdadeira e o

significado e sendo que a verdade refere-se ao pensar crítico, não será

difícil inferir que o significado destina-se ao pensar criativo.

O pensar crítico tem uma preocupação essencial pela verdade, apresenta um interesse genuíno em desviar o erro e a falsidade, daí o seu controle auto-correctivo. No caso do pensar criativo, a sua preocupação é mais com a invenção e a totalidade. Controla-se através do objectivo de ir além de si mesmo, transcendendo-se com o objectivo de alcançar a integridade. Lipman define o pensar criativo como “o pensar que conduz o julgamento, que é orientado pelo contexto, é auto-transcendente, e sensível aos critérios.” (2001, 279). Reconhecendo que é sensível aos critérios, significa que não é um pensar irracional, já que:

(40)

“não há nenhum pensar criativo que não seja permeado de julgamentos críticos, assim como não há nenhum julgamento crítico que não seja permeado de julgamentos criativos.” (2001, 280)

Daí o pensar criativo não ser orientado por considerações analíticas, mas não significa que não seja sensível as mesmas. Por outro lado, o pensar criativo é sensível à forma como a qualidade universal incorpora valores e significados.

Quando Lipman aborda o pensar criativo, está aborda-lo em termos de processo, não de produtos. Se existe singularidade, não é consequência do método prorrogar de ocasião para ocasião, mas porque o método, quando empregue em contextos diferentes, engendrar resultados diferentes. Não se pode pensar que a criatividade como processo vem do nada. É pelo contrário, uma transformação daquilo que é estabelecido em algo radicalmente diferente.

Aprender a pensar de forma a atingir o pensamento de ordem superior é uma linha educacional de pensamento que, segundo Lipman, sustenta o fortalecimento do pensar na criança como tarefa principal da actividade das escolas e não somente como uma consequência casual. (Cfr. 2001, 11)

John Locke foi um dos vários filósofos que fez uma associação entre pensar crítico e a democracia, na medida em que o pensar crítico melhora a capacidade de raciocinar e a democracia requer uma sociedade com cidadãos que saibam pensar de forma racionalizante. Se o objectivo da proposta de desenvolvimento das habilidades é uma sociedade onde a internalização de atitudes e modos de fazer é uma

(41)

substituição progressiva de inocência pessoal por experiência mundana, de ignorância por conhecimento, de subjectividade por objectividade então a educação propõe um olhar democrático.

4. A Educação: o olhar democrático

Na perspectiva de Lipman é ponto convencionado que é fundamental que as crianças tenham uma educação para o desenvolvimento das habilidades do pensar. As habilidades “são o ingrediente que falta na educação.” (1990, 47) As crianças devem ser ensinadas a pensar por si mesmas, dando-lhes a oportunidade de desenvolverem critérios relativos ao que constitui o comportamento racional e moral, para viverem em sociedade. Se isto se proporcionar estão a produzir-se agentes morais, inteligentes sinceros e autónomos. Sendo que esses dois papeis, socialização e autonomia, têm como sustentáculo a Democracia:

“Uma sociedade que providencia a participação nos seus benefícios de todos os seus membros em iguais condições, e que garante o reajuste flexível de suas instituições mediante a interacção das diferentes formas de vida associativa, é, quanto a isso, democrática.”

(1999a, 162)

Perante este objectivo a sociedade tem que promover uma educação que estimule nos alunos o interesse pessoal nas relações e controle social. As escolas devem proporcionar metodologias e currículos que facilitem o pensar crítico e o pensar criativo aos alunos, para que sejam interventivos

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