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A construção do feminino em “thelma & louise” e em “grand isle”: dois finais, um efeito / The female construction in “thelma & louise” and “grand isle”: two finals, one effect

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761

A construção do feminino em “thelma & louise” e em “grand isle”: dois

finais, um efeito

The female construction in “thelma & louise” and “grand isle”: two finals,

one effect

DOI:10.34117/bjdv6n5-008

Recebimento dos originais: 01/05/2020 Aceitação para publicação: 01/05/2020

Ana Paula Vieira de Andrade Assumpção Doutoranda em Letras

Instituição: Universidade Federal de Pelotas (UFPel), RS

Endereço: Rua Rio de Janeiro, 138. ap. 307, Cassino, Rio Grande, RA - Brasil e-mail: professora_anapaula@yahoo.com.br

Luciane Botelho Martins Doutora em Letras

Instituição: Universidade Federal de Pelotas (UFPel), RS

Endereço: João Jacob-Bainy, 401- Bl. 3/409, Três Vendas, Pelotas, RS - Brasil e-mail: lucianebmk@Hotmail.com

Eliane T. A. Campello Doutora em Literatura Comparada

Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS Endereço: Rua Conde de Porto Alegre, 381/ 701

Centro- Rio Grande, RS - Brasil e-mail: elianecampello@gmail.com

RESUMO

Em contraponto ao ápice da sexualidade feminina que tomou as telas dos cinemas nos anos 50 (séc.XX), colocando a mulher no lugar de objeto do desejo, surgem duas produções: “Thelma e Louise” (1991), roteirizada por Callie Khouri, e “Grand Isle” (1991), filme dirigido por Mary Lambert, baseado na obra The awakening, 1899 (O despertar), de Kate Chopin. O que ambos têm em comum? É possível aproximá-los tematicamente devido ao desejo de liberdade das protagonistas femininas e a resistência dessas frente ao modelo tradicional instituído por uma sociedade patriarcal que subjuga as mulheres a exercerem papéis determinados pelo poder masculino. Nossa proposta é a de analisar o processo de construção da ruptura simbólica com convenções socialmente impostas, por meio da escolha das protagonistas - Thelma, Louise e Edna - no momento da morte.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 ABSTRACT

In contrast to the peak of female sexuality that took the screens of cinemas in the 50s (XX century), placing the woman in the place of object of desire, two productions appear: “Thelma and Louise” (1991), scripted by Callie Khouri, and “Grand Isle” (1991), film directed by Mary Lambert, based on Kate Chopin's The Awakening, 1899 (The Awakening). What do they both have in common? It is possible to bring them together thematically due to the female protagonists' desire for freedom and their resistance to the traditional model established by a patriarchal society that subjugates women to exercising roles determined by male power. Our proposal is to analyze the process of construction of the symbolic rupture with socially imposed conventions, through the choice of the protagonists - Thelma, Louise and Edna - at the moment of death.

Keywords: cinema; "Thelma & Louise"; "Grand Isle"; release; genre.

1 INTRODUÇÃO

A indústria cinematográfica hollywoodiana, segundo Acselrad (2015), desde seu início, na década de 20, do século XX, reduziu as diversas possibilidades de representação do feminino a poucas opções, geralmente relacionadas à hiperbolização da sexualidade. Nos anos 50, a sexualidade assume o seu apogeu, uma nova visão cultural, criando-se, dessa maneira, a imagem da mulher fatal e erótica, ligada à cultura de consumo (uma mercadoria): os filmes se esforçavam em padronizar a mulher desejável, e faziam da heroína, obrigatoriamente, um símbolo sexual. Strey (2004), em seu artigo “A ‘criação’ do corpo feminino ideal”, busca mostrar aspectos da cultura contemporânea ocidental que ajudam na interpelação dos sujeitos. Na criação de corpos femininos para o cinema, esse último, segundo a autora, tem essa “missão”: “refletir o contexto social e cultural de cada época e, ao mesmo tempo, ditar certos valores, ideias e conceitos que finalmente passam a fazer parte do contexto social e cultural” (p. 231). Nesse âmbito, o corpo feminino está sempre relacionado a noções de comportamento feminino e do desejo para o consumo de um público masculino e feminino, pois as mulheres também são consumidoras dos mitos patriarcais.

Esse olhar masculino (de produtores de filmes) criou uma série de mitos e representações em relação ao gênero que, conforme Adelman (2005), fez e ainda faz parte do cinema:

A mulher objetificada, que existe para o olhar e o “consumo masculino”. A construção e disseminação de uma imagem de “mulher sexualmente desejável”, que, além de ser identificada como “aquilo que todos os homens devem aspirar a possuir”, pode ser incorporada pelas mulheres como aquilo que elas devem ser ou se tornar [...]. A identificação das mulheres com a busca do amor romântico; a produção de mitos sobre um destino feminino domesticado (amor heterossexual, casamento, maternidade, etc.), com o enredo narrativo

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 resolvendo-se com o famoso “final feliz” ou com o final trágico que é muitas vezes reservado para as mulheres transgressoras. A produção de tipologias de mulheres e homens caracterizadas por um maniqueísmo baseado em noções – sejam óbvias ou sutis – de comportamentos certos ou adequados para cada gênero, frequentemente atrelados também a padrões corporais [...]. A aventura e a ação como gêneros e atividades reservados a homens. Relacionada a isso, há a visão da mulher que precisa da proteção masculina, ou que é a dádiva recebida como “prêmio para o heroísmo masculino” (p. 229-230).

Essa construção cristalizada e repetida sobre mulheres na produção cinematográfica como objeto de desejo masculino, frágeis, dependentes e submissas passou a ser considerada pela teoria feminista, na década de 70 (século XX), inaceitável. Houve, então, a necessidade de desconstruir esses discursos que, carregados por uma ideologia patriarcal, produzem subjetividades e marcas de identidades.

Nesse sentido, podemos observar que a inclusão das mulheres como produtoras de filmes vem alterando o olhar em relação à construção do feminino (ADELMAN, 2005). As mulheres, enquanto personagens, deixam de ser retratadas como objeto de espetáculo, de desejo e de sexualidade e passam a ter voz em novas experiências: elas desejam, “tomam” o lugar dos homens, lideram, rompem com convenções.

Considerando essa ruptura com os códigos sedimentados sobre o feminino há, entre outras produções cinematográficas, os filmes “Thelma & Louise” (1991), roteirizado por Callie Khouri, e “Grand Isle” (1991), baseado na obra de Kate Chopin (The awakening, 1899), dirigido por Mary Lambert.

Nossa proposta para este artigo é a de analisar a construção do processo de ruptura das personagens femininas (Thelma e Louise, do filme “Thelma & Louise” e Edna, de “Grand Isle”) com as convenções sociais impostas pela sociedade. Desse modo, nossa pesquisa está calcada na morte das personagens como marco simbólico dessa ruptura.

2 DESENVOLVIMENTO E DISCUSSÃO

Em “Thelma & Louise”, há duas protagonistas: Thelma, uma dona de casa casada com um homem controlador, e Louise, uma garçonete solteira e com um passado de decepções amorosas. As duas amigas decidem viajar durante um fim de semana para uma casa de campo e aproveitar alguns dias sem obrigações. Durante a viagem, a dupla resolve parar num bar à beira da estrada para descanso e diversão.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 A partir disso, a trama toma outro rumo, uma vez que Thelma, inocentemente, dança com um homem, que a leva, em seguida, para o estacionamento do bar e tenta estuprá-la. Louise, vendo sua amiga nessa situação, mata com um tiro o estuprador e as duas fogem assustadas, pois sabem que ninguém acreditará na versão delas. Afinal, foi o corpo (de Thelma) que atraiu e seduziu, forjando, assim, a culpabilidade masculina para a feminina, uma vez que, na nossa cultura, “o estupro decorre de atitudes provocativas e/ou facilitadoras da mulher, que a violência sexual resulta de condutas tidas como naturais nas relações de gênero e que os agressores [...] não contêm seus impulsos sexuais frente à atratividade feminina” (ZUWICK, 2004, p. 79). Depois de refletir sobre o acontecido, as duas decidem ir para o México. Na fuga, Thelma e Louise são roubadas, assediadas e também perseguidas pelas autoridades. Nessa perseguição, apenas um policial quer dar uma chance a elas. Esses acontecimentos transformam a mulher submissa e a mulher insatisfeita amorosamente em mulheres infratoras, fortes, com capacidade de tomar decisões, subvertendo, assim, o padrão vigente da época (década de 90, século XX). Após uma perseguição policial, as duas, de mãos dadas, decidem jogar o carro, com elas dentro, num abismo: o Grand Canyon.

Em “Grand Isle”, a protagonista reflete acerca dos costumes do início do século XX. As primeiras cenas mostram Edna Pontellier com a família durante o verão, em Grand Isle, uma ilha na costa da Louisiana, Estados Unidos. Podemos observar logo nas primeiras imagens que Edna sente-se insatisfeita por não se identificar com os costumes da sociedade em que está inserida. Além disso, não se enquadra no estereótipo de mulher maternal como as demais mulheres de seu círculo de amizades; sua relação com os filhos oscila entre o cuidado e a desatenção, sendo portanto, criticada por Leonce, seu marido. Ao ocupar o lugar de marido, ele tenta mostrar a ela a posição de mulher-esposa estabelecida pela sociedade patriarcal. De acordo com Perrot (2015), as mulheres “são invisíveis. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas” (p. 17). Trata-se de um silêncio naturalizado e é assim, reduzidas ao contexto do lar, que a maternidade configura-se no duplo: momento e estado. A autora destaca ainda que, “a função materna é um pilar da sociedade e da força dos Estados” (p. 69), o que explica a responsabilidade e a cobrança que recai sobre a mulher-mãe ao longo do tempo, pois é ela quem educa, quem forma os cidadãos, reproduzindo valores sedimentados de uma sociedade predominantemente patriarcal.

Note-se que as crises de angústia que acometem Edna e a paixão por Robert Lebrun, provavelmente o maior responsável pela mudança de seu comportamento, revelam o desejo de ter o domínio do próprio corpo e a possibilidade de realização pessoal, por meio da arte.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 De volta a New Orleans, insatisfeita com a casa (mansão) e sufocada com as tarefas do lar, Edna muda-se para uma casa menor, que transforma em ateliê de pintura. Ademais, Edna passa a ter um romance com Alcee, um jovem com fama de libertino. Nesse caso, Leonce, Robert e Alcee são os três personagens masculinos na vida da protagonista, que configuram a instituição casamento, o amor romântico e o desejo. Pouco antes do final do filme, Edna encontra casualmente Robert, que acabara de voltar do México, e leva-o para sua casa. Os dois declaram-se apaixonados um pelo outro, mas não conseguem ter uma noite juntos, já que a amiga de Edna, Adele, pede para a criada chamá-la, pois está em trabalho de parto. Quando volta à casa, Edna só encontra um bilhete de Robert dizendo que, por amá-la, dava-lhe adeus. Depois disso, Edna mergulha no mar e nada até a morte (e/ou nada em direção ao infinito).

A partir do resumo das narrativas “Thelma & Louise” e “Grand Isle”, podemos identificar uma estreita relação entre os dois finais: três protagonistas decidem (ou parecem decidir) que a morte é a melhor solução. Mas o que simbolicamente significa essa solução?

3 “THELMA & LOUISE” E “GRAND ISLE”: DOIS FINAIS, UM EFEITO

Ao propormos uma reflexão sobre os dois finais (“Thelma & Louise” e “Grand Isle”), destacamos que nosso gesto de leitura reconhece no primeiro filme, a partir da quebra de expectativa construída pela cena em que as amigas decidem dirigir em direção ao Grand Canyon, uma quebra no status de fim, o que acaba por instaurar um recomeço simbólico.

Quanto ao filme “Grand Isle”, observamos que ao longo de toda a trama, Edna tem flashes de uma infância livre. Por meio da imagem fílmica em que aparece uma menina correndo livremente no campo, é possível intuir a metáfora, traduzida por nós em palavras por “menina correndo de braços abertos, cabelos soltos em meio à campina verde, cujo limite é invisível aos olhos”. Tal simbologia leva-nos a identificar o desejo da personagem em viver, no presente, a liberdade que lhe fora tirada, por força das convenções da sociedade. No decorrer de grande parte da narrativa, Edna resigna-se ao que lhe é estabelecido pelo papel de esposa e mãe: jantares, férias na Grand Isle, cuidado com os filhos, incluindo aqui a culpa, que revela ao comparar-se com outras mães. Embora resignada, Edna deixa escapar, através de réplicas dadas ao esposo, seu desejo por liberdade, seu anseio por uma vida que não era aquela vivida sob as ordens do marido. Percebemos, nas atitudes de Edna, o que Beauvoir (1967) nos diz sobre subjetividade feminina. Segundo a autora,

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 No terreno da abstração e da lógica, a mulher resigna-se amiúde a aceitar a autoridade masculina; mas quando se trata de ideias, de hábitos que a interessam realmente, ela lhe opõe uma tenacidade matreira. A influência da infância e da juventude é muito mais profunda nela do que no homem, pelo fato de que ela permanece mais encerrada em sua história individual. Do que adquiriu nesses períodos, não se desfaz nunca (p. 224).

É, pois, por não se desfazer de seu desejo por liberdade, que Edna despe-se das convenções sociais, metaforizadas nas roupas que usa, solta seus cabelos, como forma de protesto a tudo que a aprisiona e mergulha no mar. Para Perrot (2015),

Os cabelos, antes de mais nada, são uma questão de pilosidade. O pelo está duplamente colado ao íntimo: por sua penetração interna, por sua proximidade com o sexo. Suas raízes penetram no corpo, no “Eu-pele”, retomando a expressão de Didier Anzieu, essa fina película que limita interior e exterior (p. 51).

Os cabelos como natureza que constitui o corpo, ao fundir-se com o elemento água, marca um recomeço. O mar, nesse sentido, funciona como metáfora, isto é, como espaço de encontro entre passado e presente, entre vida e morte. Edna ao refletir sobre a infância faz rememorar seu desejo por liberdade. De acordo com Sroczynski (2004), o mar para Edna é

Símbolo de vida, de ousadia, de dinamismo, mas também de negação, de medo e de morte, o mar serve de metáfora organizadora da trajetória de Edna, paradoxalmente singular. O despertar de Grand Isle, mexendo com suas emoções, permite que Edna seja carregada para o passado, para o mundo de sua infância: ela tem uma sensação de renascimento, associando as imagens do mar às pradarias de relva do Kentuchy, onde nasceu e se criou [...] Essas fantasias infantis, povoando seu passado – canalizando uma sensualidade latente – renascem ao contato com o mar (p. 30).

Podemos observar ainda que, à medida que as memórias de Edna renascem, são deixadas para trás, através de seu movimento rumo a lugar nenhum, na imensidão do mar. Do ponto de vista psicanalítico, trata-se da pulsão de morte. Jorge (2010) afirma que para Lacan, ao retomar Freud, na pulsão de morte,

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 ... além da dimensão de vontade de destruição que lhe é inerente e que põe em causa tudo o que existe, há também outra dimensão, a vontade de recomeço: “vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar.” O raciocínio de Lacan implica que, para haver criação, é preciso ser atingido o ponto de nada a partir do qual toda criação é possível: ex-nihilo1 (p. 131).

Para Edna o “nada criador” vem representado pela “voz do mar [que] é sedutora, nunca para, sussurrando, clamando, murmurando, convidando a alma para perambular em abismos de solidão” (XXXIX)2. Edna é atraída pelo mar, o que caracteriza um turning point na

narrativa, provocado pelo elemento surpresa, pois agora torna-se evidente o domínio recíproco de um fator natural sobre a protagonista e vice-versa. Tudo muda repentinamente neste final da narrativa. O medo inicial da personagem em relação à grandeza do mar dá lugar à supremacia dela sobre ele, ou seja, a relação de dominação do masculino sobre o feminino inverte-se pela superação.

Este mesmo turning point vai ocorrer em “Thelma & Louise”. O imenso Grand Canyon, como o nome explicita, de formação geológica natural tem uma imagem arrebatadora com suas paredes em camadas de rochas avermelhadas que revelam seus milhões de anos. O impacto das protagonistas frente a tal grandeza é representado pelo congelamento da imagem – o carro no ar e elas de mãos dadas, em posição de vitoriosas – que assegura a multiplicidade de sentidos da cena final.

Em “Thelma & Louise”, como foi mencionado anteriormente, há duas personagens retratadas a partir de estilos de vida diferentes: uma é solteira, trabalha e sustenta-se sozinha; a outra é casada, segundo os moldes tradicionais. Amigas, as duas partem juntas para uma aventura que mudaria o rumo de suas vidas para sempre. O desejo que as unia era a liberdade. Thelma e Louise subvertem as leis e as convenções sociais impostas e não desistem de alcançar seu bem maior: a liberdade, a possibilidade de uma vida nova. O final, que se revela como o desejo por liberdade, marcado pela decisão de jogarem-se no precipício metaforiza o movimento de resistência das personagens. Novamente, ocorre o encontro de corpos e

1 A expressão latina - ex-nihilo - faz referência ao nada.

2 Tradução livre de: “The voice of the sea is seductive, never ceasing, whispering, clamoring, murmuring, inviting

the soul to wander in abysses of solitude” (chapter XXXIX), retirado do site https://www.katechopin.org/the-awakening-text/.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 natureza, aqui representada pelo ar, um dos quatro elementos astrológicos, como cenário para morte: morte que marca uma ruptura com o passado. De mãos dadas e braços abertos, as duas jogam-se em busca da liberdade tão desejada. A partir do entendimento do conceito de pulsão de morte, desenvolvido por Freud, podemos concluir que um mesmo efeito acontece nos finais dos dois filmes, isto é, a morte vem a ser compreendida, na perspectiva lacaniana, como o ponto de nada que indica um recomeço.

Um dos mais relevantes aspectos comparatistas entre as duas obras diz respeito ao período histórico em que as personagens são criadas. Edna, ao nascer na obra-prima de Kate Chopin, em 1899, é considerada um marco na literatura feminista, uma vez que revela uma personagem que busca o despertar de si mesma. Quanto ao filme “Thelma & Louise”, convém lembrar que as personagens são construídas exclusivamente para o cinema, 92 anos depois de Edna. Elas também revelam a mesma necessidade da protagonista do final do século XIX, necessidade essa que pode ser sumarizada pelo termo: descobrir-se. É, pois, essa busca pelo perceber-se enquanto mulher, que requer o rompimento com o modelo patriarcal repressor, que aproxima Edna, Thelma e Louise.

Outro elemento de contato entre as duas obras é a simbologia contida na (re)significação da narrativa de aventura. As três protagonistas partem da experimentação de atos novos em suas vidas. Edna, em sua relação com o mar; Thelma e Louise, no crosscountry ao volante de um carro. No início do romance, Edna teme o mar. Não sabe nadar e é ensinada por Robert, quem, paradoxalmente, recusa seu amor ao final e, em certa medida, lhe dá o motivo para impulsioná-la para a morte. A liberdade que a morte pode trazer à protagonista ocorre justamente no momento em que ela domina o mar e supera o poder do masculino. Entretanto, ela escolhe deixar-se sugar pelas águas (e/ou subjugar as águas).

Com Thelma e Louise ocorrem fatos assemelhados. O domínio do carro – símbolo da cultura masculina estadunidense -, na sequência de atos criminosos que as empolgam, de certa forma, as impelem a cada vez mais conquistarem o poder sobre esse signo.

Em ambas as obras, há uma ênfase na criatividade e no espírito de aventura das mulheres. Edna é uma artista. Pintora, isola-se para poder criar, enquanto aventura-se na conquista amorosa fora do casamento tradicional. Na medida em que o novo amor não se realiza, ousa desafiar o mar. Deixa-se afogar poética e suavemente.

Para Rossi, em “A desarticulação do universo patriarcal em The Awakening, de Kate Chopin” (2006), o texto literário de autoria feminina, “em termos desconstrucionistas, é um espaço aporético, um espaço do indecidível” (p. 65). Dessa forma, somos levadas a explorar

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n.5, p.22906-22915 may. 2020. ISSN 2525-8761 sentidos vários no momento da morte de Edna. Certamente, o posicionamento de Norma Telles (1992) acerca do texto feminino, quando afirma que “o desenho de superfície esconde ou obscurece um nível de significado mais profundo, menos acessível ou menos aceitável socialmente” (p. 46), nos leva a aproximá-lo de um processo semelhante ao do palimpsesto. Mais ainda, a teórica reforça que “a arte das mulheres contém um traço oculto e persistente de incontrolável loucura, fruto da ansiedade da autoria, da desobediência às regras e da dúvida quanto à possibilidade de se tornar criadora” (p. 56).

Nessa perspectiva, tanto O despertar, de Kate Chopin, a sua adaptação fílmica, “Grand Isle”, na direção de Mary Lambert, quanto “Thelma & Louise”, no roteiro de Callie Khouri, podem ser consideradas criações que rompem com as barreiras do patriarcado.

Para Thelma e Louise, o desafio maior consiste na aventura de percorrer uma longa estrada na fuga da polícia e consequente prisão pelos crimes cometidos, ou melhor, por suas reações de defesa. Quando essa torna-se eminente, estão diante do Grand Canyon, signo natural também do âmbito do masculino, elas o desafiam. Deixam-se tragar por ele, alegremente.

Pela constituição das três personagens – da passividade, da submissão à transformação –, talvez possamos afirmar que a morte representa a possibilidade de negação aos discursos relativos ao lugar estabelecido às mulheres nas imagens finais congeladas. Neste sentido, Thelma, Louise e Edna, seguras do que desejam, recusam os discursos sócio-históricos definidos e optam pela morte, na forma de um possível suicídio (com sentido de ressurreição?), como um meio de libertação do poder e da opressão que recaem sobre elas.

REFERÊNCIAS

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THELMA & LOUISE. Direção: Ridley Scott. Roteiro: Callie Khouri. Intérpretes: Geena Davis, Susan Sarandon, Brad Pitt e outros. [S.l.]: Metro-Goldwyn-Mayer films, 1991. (129 min), 1 CD-ROM.

GRAND ISLE. Direção: Mary Lambert. Roteiro adaptado: Hesper Anderson. Intérpretes: Adrian Pasdar, Julian Sands, Glenne Headly, Ellen Burstyn e outros. [S.l.]: Turner Pictures, 1991. (94 min), 1 CD-ROM [adaptação de The awakening (1899), de Kate Chopin).

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