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CELSO TAVEIRA, DA MEMÓRIA À HISTÓRIA: HÁ 18 ANOS ERA DEFENDIDA A PRIMEIRA TESE SOBRE BIZÂNCIO NO BRASIL

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CELSO TAVEIRA, DA MEMÓRIA À HISTÓRIA: HÁ 18 ANOS

ERA DEFENDIDA A PRIMEIRA TESE SOBRE BIZÂNCIO NO

BRASIL

CELSO TAVEIRA,

FROM MEMORY TO HISTORY: EIGHTEEN YEARS

AGO, THE FIRST THESIS ABOUT BYZANTIUM WAS DEFENDED IN

BRAZIL

Ana Maria de Oliveira

Universidade Federal do Paraná anamaria.0893@gmail.com

Guilherme Welte Bernardo

Universidade Federal de São Paulo g.welte@outlook.com

Eu daria ainda um conselho final relativo a algo que muito me incentivou para enfrentar o desafio de investir tudo numa área então inexistente no país [...]: que nossos atuais e futuros bizantinistas procurem sempre conviver com o seguinte questionamento: “até onde posso chegar em meus estudos?”. Que eles tenham certeza de que as respostas a este precioso “até onde posso chegar?” serão muitas, e então muitos universos se abrirão na Via Láctea da História e do Conhecimento.

Graduado em História na década de 70, no auge da Ditadura Militar, o professor não tardou a ingressar no mestrado, estudando Aleijadinho em terras estrangeiras e, ao regressar para o Brasil, a pesquisar Bizâncio em terras tupiniquins. Há 18 anos, em 2002, Celso Taveira defendeu a primeira tese do Brasil na área, intitulada “O modelo político da autocracia bizantina: Fundamentos ideológicos e significado histórico”, em um trabalho pioneiro para o campo. Em meio a rememorações sobre as experiências vivenciadas ao longo de seus 32 anos de magistério, o historiador falou-nos sobre sua trajetória em uma entrevista inspiradora.

Entrevistadores: Professor, primeiramente, muito obrigado pela oportunidade.

Gostaríamos de começar a entrevista com a seguinte pergunta: Como surgiu seu interesse pela História?

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precisas para o que nos tornamos depois, mas posso dizer com segurança que o cinema e a música foram poderosos incentivadores na minha adolescência, através das reconstituições de épocas e das respectivas trilhas sonoras. Neste sentido destaco o filme “O Egípcio”, dirigido por Michael Curtiz, a partir do romance histórico do finlandês Mika Waltari e contando com uma magnífica trilha sonora composta por Bernard Herrmann e Alfred Newman, hoje reeditada completa em CD digital. Outra inspiração poderosa foi a música clássica, através da trilha que o russo Prokofiev compôs para o filme “Alexander Nevsky” de Sergey Eisenstein, de 1937-1938, e que foi depois transformada numa cantata para as salas de concerto, o mesmo acontecendo com a música que esse mesmo compositor compôs para o filme “Ivan o Terrível”, posteriormente transformada em oratório. Paralelamente passei a tomar emprestados livros de arqueologia na biblioteca pública de Belo Horizonte que abordassem o Egito e a fascinante história dos Assírios e Babilônios. Pude ler também outro romance deste mesmo autor, este com temática bizantina, cujo título creio que era “O anjo negro”,1 ambientado nos últimos dias da Queda de

Constantinopla em 1453. Me lembro que na época me impressionou nesta leitura a ideia da Queda de uma cidade. Há nomes de cidades que, como também a da capital assíria Nínive, carregam em si um halo de tragédia. Creio que ao longo do tempo foi o hábito constante da leitura que me proporcionou o interesse pela História Medieval, sobretudo quando fiquei muito impressionado com uma enciclopédia na qual o tema da Morte Negra era tratado com muita eloquência. Depois veio um apelo muito forte quando tomei conhecimento da arquitetura gótica e, a partir daí, me interessei por tudo que dizia respeito à Idade Média.

E: O senhor estudou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) durante a

década de 70. Como era o ensino de História Medieval no contexto mineiro desse período? O senhor guarda alguma lembrança específica sobre a abordagem dada ao Oriente Medieval?

1 Mika Waltari (1908-1979) escreveu romances que se tornaram best-sellers internacionais. Além de

O egípcio e O anjo negro, este último ambientado em Constantinopla, escreveu também O segredo do reino, que se passa na Judéia, O etrusco e O romano, dentre outros.

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CT: Contexto mineiro ou contexto da ditadura desse período? Na minha cabeça as

duas coisas estavam presentes e cheguei a namorar a ideia de ir para a USP, mas não tive coragem de sair da mineirice, apesar de ter um irmão morando em São Paulo. Quanto à ditadura, nós estudantes nos ressentíamos da ausência de concursos públicos para o quadro de professores. Apeguei-me especialmente às disciplinas de Antiga e Medieval, tendo desfrutado de muito bom relacionamento com os quatro professores responsáveis por elas e junto aos quais fui monitor por um ano.

Quanto a abordagens sobre o Oriente, tínhamos em Medieval apenas um professor que abordava os Árabes em uma aula e o Império Bizantino em uma aula. Mas cursei medieval com outro professor que nem isso apresentou. Ficávamos fazendo fichamento de capítulos da História Social e Econômica de Pirenne.2 Por

outro lado, saliento que ao longo de toda a minha graduação jamais manifestei qualquer interesse pela História Bizantina. Tal interesse somente veio, e poderosamente, quando me tornei professor de História Medieval na UFOP e percebi imediatamente que era impossível compreender a Idade Média apenas na sua vertente ocidental.

Quero registrar também que fui monitor por um ano dos dois professores de História da Arte, mas aqui muito me orgulho de um detalhe que não é pequeno. Quando ingressei no Departamento de História, em 1972, percebi que não existia História da Arte no curso. Solicitei então ao mesmo, juntamente com outro colega, autorização para desenvolver uma atividade paralela junto aos estudantes, com um encontro semanal tratando de temas relativos a esta área de conhecimento. Fomos atendidos, o interesse por parte dos colegas foi geral e o que aconteceu posteriormente foi que tivemos a disciplina finalmente criada e dois ótimos professores foram contratados. Esta circunstância muito me influenciou e resultou

2 Neste ponto, o historiador refere-se ao famoso livro Histoire économique et sociale du moyen âge

(1933) de Henry Pirenne (1862-1935) (edição brasileira: PIRENNE, Henri. História Econômica e Social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1963.). Pirenne foi um historiador belga que ficou conhecido pelas suas teses sobre o período medieval ainda na década de 20 do século passado. Sobre essas temáticas é possível consultar BARROS, José D’Assunção. Revisitando uma polêmica: as teses de Henry Pirenne sobre a economia medieval. Revista economia e desenvolvimento. Santa Maria, v. 26, n. 2, p. 43-55, jul.–dez. 2014.

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no mestrado feito na Bélgica. Fui para lá também com Medieval na cabeça, uma vez que lá lecionava o grande Léopold Génicot,3 mas na época a arquitetura gótica e a

arte medieval em geral falaram mais alto em minha consciência.

Uma forte vinculação se formou então em mim entre História Medieval e História da Arte, indelevelmente consolidada pelo seguinte fato: quando cursava Medieval, em 1973, encontrei numa livraria o que me pareceu ser apenas um livro sobre história e cultura medievais, mas à medida em que fui lendo (eu lia muito mais o que não mandavam do que o que mandavam), percebi que estava diante de um pote de ouro. Tratava-se do sublime “O Declínio da Idade Média”, do holandês Johan Huizinga,4 numa tradução portuguesa da Pelicano (com “Declínio” e não “Outono”

no título). Esta obra-prima absoluta tornou-se meu guia espiritual para o resto da vida e me tornou definitivamente um apaixonado pelo Gótico, termo que, para mim, designa uma concepção de mundo muito particular, extremamente abrangente e existencial, muito mais do que apenas a designação de um estilo de época.

E: No mestrado cursado na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, o senhor

estudou o escultor e arquiteto Aleijadinho (1738-1814). O que o inspirou a pesquisar seu conterrâneo em terras estrangeiras? Como foi essa experiência intelectual?

CT: Muito a propósito esta pergunta vinda logo a seguir à anterior, uma vez que aqui

entrou em cena a questão prática de conseguir um emprego assim que voltasse para o Brasil. Pareceu-me então muito mais sensato desenvolver um estudo vinculado à minha realidade em Belo Horizonte. E assim uma carreira vinculada à História da Arte no Brasil foi o que me pareceu ser a perspectiva mais concreta e viável. Além disso, para fazer o mestrado em História teria que ter alguma formação em latim,

3 Léopold Génicot (1914-1995) foi um historiador belga conhecido por sua atuação no fomento do

campo da história rural e por ser também ativista do movimento identitário valão. Participou da importante série Typologie des sources du Moyen Âge occidental (1972-1985), contribuindo em cinco volumes.

4 Johan Huizinga (1872-194) foi um historiador holandês considerado um dos fundadores da História

Cultural, autor da obra magistral Herfsttij der Middeleeuwen (última edição brasileira: HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010).

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coisa que eu nem sonhava. Mesmo tendo consciência de que o Aleijadinho já era alvo de inúmeros e bons estudos no Brasil, segui a sugestão da professora da UFMG, Myriam Ribeiro de Oliveira,5 grande especialista nesse artista mineiro, para

pesquisar uma área não estudada na época, que era a questão dos modelos europeus que o Aleijadinho poderia ter utilizado aqui em Minas, sobretudo no importante conjunto dos profetas de Congonhas. Neste aspecto creio que pude oferecer uma contribuição original.

No que diz respeito à experiência intelectual, pude adquirir duas coisas em Louvain: por um lado um conhecimento aprofundado em iconografia e iconologia, por outro um convívio e conhecimento muito intensos com a arte gótica em geral e particularmente a obra pictórica dos irmãos Van Eyck, do século XV, os quais se encontram no cerne do livro que mencionei acima.6 Aqui faço menção honrosa “in

memoriam” ao meu orientador, professor Ignace Vandevivere, que foi também um mestre espiritual de primeira grandeza e que me foi sugerido pela referida professora Myriam com muito acerto.7

E: Este ano se completam 18 anos que o senhor defendeu a primeira tese sobre

Bizâncio no Brasil pela Universidade de São Paulo (USP). Em um trabalho pioneiro para o campo, seu estudo abordou os fundamentos ideológicos da autocracia bizantina, cesaropapismo, individualismo sem liberdade e Ortodoxia política. De onde surgiu essa ideia?

CT: O título escolhido foi “O modelo político da autocracia bizantina: Fundamentos

ideológicos e significado histórico”. Como afirmei acima, fui atraído pela história

5 Myriam Ribeiro de Oliveira é atualmente professora titular da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ) e uma das mais importantes pesquisadoras sobre Barroco e Rococó brasileiros. Entre sua produção, destaca-se OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus Antecedentes Europeus. São Paulo: Cosac Naify, 2003. É graduada, mestra e doutora pela mesma Université Catholique de Louvain.

6 Taveira faz referência a análise pormenorizada da obra dos irmãos Van Eyck no livro O Outono da

Idade Média de Johan Huizinga. Hubert (1366-1426) e Jan Van Eyck (c.1390-1441) eram pintores flamengos, sendo o segundo mais conhecido devido ao seu quadro mais famoso O casal Arnolfini, de 1434.

7 Ignace Vandevivere (1938-2004) foi um historiador da Arte, professor da Université Catholique de

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bizantina quando me tornei professor de Medieval no Departamento de História da UFOP. Foi tudo muito surpreendente. Na Bélgica estudei Minas e em Minas estudei Bizâncio! Explicando melhor: fui aprovado em concurso público na UFOP para Medieval e Civilização Ibérica. Já havia um professor de História da Arte no Departamento, poderia ter sido solicitada uma segunda vaga de concurso para História da Arte, mas o referido professor não a solicitou. Logo nos primeiros semestres lecionando essas duas disciplinas pude perceber que esse olhar totalmente direcionado para o Ocidente me revelou a existência de uma grave lacuna, uma vez que o Mediterrâneo não banha apenas a Europa Ocidental e esta, por sua vez, nunca existiu por si só. Portanto, a resposta para o “de onde” é geográfica. Surgiu do Mediterrâneo. Sem influência de Braudel, diga-se, que eu nem conhecia.8

Mas além disso achava muito curiosa a opinião corrente nos manuais escolares de que a Idade Média teve início com as invasões germânicas e “terminou” com a queda de Constantinopla, sem que esta cidade lendária tivesse sido devidamente estudada e apreendida no que ela tenha significado para a História. Ela só aparecia para fechar um ciclo do qual ela não participava. Civilização Ibérica foi absorvida por outra disciplina e passei a adquirir livros de História Bizantina, particularmente através da Livraria Francesa,9 o que me possibilitou dar início ao

oferecimento regular de Idade Média no Oriente, com duração de 60 horas, tocando tangencialmente nos Árabes, Turcos e na Rússia e percebendo aos poucos a importância que eram os estudos sobre os Turcos e o mundo ortodoxo. E sucedeu que ao longo do doutorado essa importância explodiu na cabeça.

Discute-se e se discutirá sempre acerca de qual tenha sido a natureza da – ou

8 Líder da segunda geração da Escola dos Annales, o francês Fernand Braudel (1902-1985) ficou

conhecido por discutir estas temáticas em La Méditerranée et le Monde Méditerranéen a l'époque de Philippe II, publicado em 1949, na França (edição brasileira: BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II. São Paulo: EdUSP, 2016. 2 v.). É possível saber mais acessando: SALLES, Silvana; SAID, Tabita. Livros que fazem a nossa cabeça: O mediterrâneo de Braudel. Jornal da USP, 2017. Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/livros-que-fazem-nossa-cabeca-o-mediterraneo-de-braudel/> Acesso em: 15 de jun. 2020.

9 Famosa livraria paulistana localizada na região da República, no centro de São Paulo. Fundada pelo

então engenheiro francês Paul Monteil em 1947, a livraria tornava acessível as novidades vindas da França.

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o como definir a – monarquia bizantina, e logo pude perceber o quanto nesta área de conhecimento as palavras podem suscitar polêmicas e até mesmo animosidades; quando empreguei “cesaropapismo” num congresso da ABREM na UERJ fui duramente atacado por um (arrogante) pesquisador chileno. E acontece que, efetivamente, o termo foi se mostrando muito inadequado à medida em que avancei em meus estudos. Ao final optei já no título por “autocracia”, pela simples razão de que este era o título principal que os imperadores adotavam, ao lado de “basileus”. “Individualismo sem liberdade” e “Ortodoxia política” são dois conceitos criados por dois bizantinistas que me foram fundamentais, o primeiro do russo Alexander P. Kazhdan,10 que eu venero, e o segundo pelo alemão Hans-Georg Beck.11 “Ortodoxia

Política”, segundo Beck, diz respeito principalmente aos escritos de Eusébio de Cesareia sobre Constantino, que inauguraram uma tradição de politização da religião cristã, vinculando-a ao Estado romano pela necessidade de superação das inúmeras dissidências que grassavam entre os cristãos (vide as cartas de Paulo) e adotando o dogma da Trindade como princípio condutor da “fé correta”, de “ortho” e “doxa”. Já “individualismo sem liberdade” me fez quebrar a cabeça, quando Kazhdan, mesmo envolvido pelo mar de bizantinistas russos que queriam ver feudalismo em tudo, conseguiu se libertar ao adotar uma postura sociológica para tentar lançar luz acerca da espinhosa questão quanto ao que era a essência do povo bizantino, tão eclipsado pela insistência da Bizantinística no estudo dos imperadores, dos patriarcas e das relações entre Estado e Igreja. Daí para que eu começasse a sonhar com a aplicação desse conceito de Kazhdan ao próprio povo russo foi um pulo.

E: Com isso, o senhor se tornou o primeiro bizantinista brasileiro. O senhor se

considera responsável por abrir um caminho que hoje tem sido trilhado por novos

10 Alexander P. Kazhdan (1922-1997) foi um importante bizantinista russo-americano mais

conhecido por editar um dicionário colaborativo sobre Bizâncio publicado em três volumes. Cf. KAZHDAN, Alexander. The Oxford Dicitonary of Byzantium. Oxford: Oxford University Press, 1991. 3 v.

11 Hans-Georg Beck (1910-1999) foi um dos mais importantes bizantinistas alemães, autor de

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pesquisadores?

CT: Esta pergunta é essencial, pois toca diretamente na ferida que é nosso modelo

educacional em todos os seus níveis, desprezando lamentavelmente o estudo de línguas e, no caso do ensino superior, pouca atenção dando aos estudos do Oriente. Neste sentido, quero salientar a enorme satisfação que tive em poder trabalhar com alguns números da preciosa “Revista de Estudos Orientais” editada pela USP.12

Nunca me considerei um bizantinista, uma vez que para isto eu teria, antes, que ser filólogo. Trata-se de uma área de conhecimento extremamente erudita, coisa que talvez tenha sido responsável, pelo menos em parte, pela ausência de estudos no Brasil até quando iniciei formalmente meus estudos na USP, tendo para isto contado com o apoio precioso e incondicional do meu orientador, professor Jônatas Batista Neto.13

Quanto à segunda parte da pergunta, posso dizer de início que ela me enche de orgulho. Tive a satisfação indescritível por ter orientado as primeiras monografias que surgiram em História Bizantina, dos árabes e da formação da Rússia, as quais evoluíram posteriormente para os níveis de mestrado e doutorado. E minha satisfação só tende a crescer, ao constatar que os estudos em Idade Média Oriental se tornam hoje cada vez mais frequentes. Cabe a eles, aos mais jovens, a possibilidade de termos na universidade brasileira uma frente consolidada de bizantinistas, conduzindo à constituição de um ramo da Bizantinística no Brasil, o que felizmente já está sendo feito.

E: O seu doutorado foi realizado entre fins da década de 90 e início dos anos 2000.

Como era o acesso às fontes nesse período?

CT: “Ça c’est le truc”, como diziam meus colegas de curso em Louvain-la-Neuve,

querendo dizer que “essa é a questão”. Os textos de autores gregos e latinos como

12 A Revista de Estudos Orientais foi editada entre os anos de 1996 e 2012.

13 Professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e tradutor de obras de George Duby,

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Eusébio (“História Eclesiástica” e “Vita Constantini”), tachado por Jacob Burckhardt como “o primeiro historiador inteiramente desonesto entre os antigos”, e Lactâncio (“Da Morte dos Perseguidores”) trabalhei com edições bilíngues em traduções francesas da preciosa coleção “Sources Chrétiennes”,14 bem como com edições em

inglês ou francês dos autores bizantinos do século XII, Niketas Choniates (“O City of Byzantium, Annals of Niketas Choniates”) e João Kinnamos (“Chronique”).15 Tanto a

nível das fontes quanto da bibliografia, tive que importar tudo, graças à bolsa de estudos do governo brasileiro. Nos primeiros manuais universitários que obtive pela Livraria Francesa, e depois pela Italiana, pude me informar acerca dessa questão tão espinhosa para nós brasileiros. A partir daí fui atrás de importações pessoais e de aquisições em São Paulo. Na USP tive acesso a importantes periódicos bizantinos, como o belga “Byzantion”, o francês “Revue des Études Byzantines” e o alemão “Byzantinische Zeitschrift”.16 Foi ao mesmo tempo uma peregrinação e uma

caça ao ouro.

Trabalhei também com fontes do Código de Justiniano (“Institutas” e “Digesto”) e bibliografia de Direito Romano, com a legislação de Constantino acerca dos cristãos, uma Constituição do imperador Manuel I Comneno, do século XII, constante da Patrologia Grega CXXXIII (para a qual contei com o precioso auxílio de um professor do Departamento de Letras do meu instituto). Houve outras leituras não ou pouco utilizadas, a exemplo da “Alexíada” de Anna Comnena e as “Divinas Instituições” de Lactâncio. De grande valia para outras fontes foi o “Oxford Dictionary of Byzantium”, editado pela Oxford em 3 volumes em 1991.

E: A sua área de interesse a partir do doutorado também parece estar muito atrelada

à Rus’ medieval. Esse foi um efeito colateral do interesse por Bizâncio?

14 Série bilíngue de textos patrísticos publicada desde 1943.

15 Cf. CHONIATES, Niketas. O City of Byzantium: Annals of Niketas Choniatēs. Detroit: Wayne State

University Press, 1984. Tradução de: Harry J. Magoulias; CINNAMOS, Johannes. Chronique. Paris: Belles Lettres, 1972. Tradução de: Jacqueline Rosenblum.

16 Os três são importantes periódicos no campo dos Estudos Bizantinos. Byzantinische Zeitschrift foi

o primeiro periódico acadêmico do campo, fundado por um daqueles considerados os fundadores da Bizantinística, o filólogo alemão Karl Krumbacher (1856-1909), em 1892; Revue des Études Byzantines remonta a Échos d'Orient, fundado em 1897; e Byzantion: Revue Internationale des Études Byzantines foi fundado em 1924.

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CT: Foi um efeito direto. Uma verdadeira bomba atômica na composição da qual

entraram pelo menos três ingredientes essenciais: música, um determinado e determinante livro e um professor, a quem vou aqui render uma homenagem.

Em música, trata-se da minha admiração, desde a adolescência e dos tempos adultos pré-universitários, pela ópera “Bóris Godunov”, do compositor romântico russo Modest Mussorgsky, na minha modesta opinião a melhor ópera de toda a história desse gênero musical. Esse tsar é um ícone na História Russa, tendo precedido a ascensão da dinastia Romanov em 1613, a qual só foi destronada em 1917. Mas na ópera o verdadeiro e autêntico personagem é o povo russo, colocado às voltas com a eterna crença num novo governante revolucionário capaz de elevar a Rússia a um grande e iluminado futuro (há até mesmo e infelizmente algo de brasileiro nisso). Aqui se fez presente com força a brilhante concepção de Kazhdan de “individualismo sem liberdade”, que vocês apontam e a que já fiz menção no início. Há um momento nas Cartas do Cárcere de Gramsci em que ele chama o povo russo de “gelatina”, em função das graves distorções que ocorriam na União Soviética após a maciça participação popular em 1917, coisa que já não mais ocorria. Nesse sentido, a ópera “Bóris Godunov” me pareceu ainda mais preciosa, uma vez que eu percebia um vínculo entre esse Povo russo e aquele Povo bizantino no pioneirismo de Kazhdan.

O livro foi “Empereur et Prêtre: Études sur le ‘césaropapisme’ byzantin”, do grande bizantinista francês Gilbert Dagron,17 sem dúvida o livro mais difícil que

encontrei na vida. Nele o autor me causou alvoroço ao classificar o romance “Os irmãos Karamazov” como “o mais bizantino dos romances de Dostoiévsky”. Resumindo e muito, para este escritor o mal da humanidade só poderia ser superado pelo desenvolvimento de uma consciência humana verdadeiramente cristã. Eu já tinha pensado o seguinte: no século XV o Império Bizantino desapareceu, mas o mesmo não aconteceu com a religião bizantina, da mesma forma como no século V o Império Romano do Ocidente caiu, mas a religião cristã não. O elemento novo foi

17 Cf. DAGRON, Gilbert. Empereur et prêtre: Étude sur le «césaropapisme» byzantin. Paris: Éditions

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que nos séculos XV e XVI a ortodoxia bizantina encontrou um porto seguro em Moscou através da criação, pelo clero moscovita, do mito da Terceira Roma, e lá permanecendo até hoje.

O professor, a quem rendo homenagem aqui, é o João Antônio de Paula, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Trata-se de alguém portador de uma vasta formação humanística, da qual procurei tirar o melhor proveito possível, através de conversações memoráveis que tive com ele em sua fascinante biblioteca pessoal. Nesses encontros a conexão Bizâncio-Rússia teve um importante papel e ele muito me incentivou para ampliar meus estudos para a Rússia, tanto a medieval quanto a moderna.

Estes três fatores foram determinantes durante meus estudos de doutorado. Mas a eles posso acrescentar minha antiga e profunda admiração pelo cinema soviético dos diretores Sergei Eisenstein (“Alexander Nevsky”, “Ivan o Terrível”) e Andrei Tarkovsky (“Andrei Rublev” [um pintor moscovita de ícones do século XV] e “Solaris”).

E: Eurípides Simões de Paula (1910-1977) é considerado o primeiro a defender uma

tese de História Medieval no Brasil, na USP, em 1942. Curiosamente, o tema dessa tese girou em torno da Rus de Kiev. Ele teve algum impacto entre o senhor e seus orientandos?

CT: Não. O que sem dúvida foi uma negligência minha. Mas eu era e ainda sou um

feliz possuidor de um exemplar da tese do professor Niko Zuzek, “Razões da Recusa do Grão Principado de Moscou à União Florentina”, editada pelo Departamento de História da USP em 1976 (Boletim No. 12, Nova Série), que por sinal traz uma “apresentação” do professor Eurípides Simões de Paula, então diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daquela universidade. Foi sem dúvida um ponto de referência para que a Rússia acabasse por entrar no rol de minhas preocupações ao longo dos estudos de doutorado.

Quando acabei por incluir no meu título a expressão “significado histórico”, o que fiz foi desenvolver o importante problema histórico do legado de uma

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civilização para a História, quando do seu “desaparecimento”. E sucede que o que desapareceu foi a instituição imperial bizantina, mas não o cristianismo ortodoxo bizantino, que encontrou refúgio no conquistador otomano e que sobretudo encontrou enorme rejuvenescimento no emergente principado de Moscou dos séculos XV e XVI. Neste sentido não há frase mais eloquente do que aquela proferida por um prelado moscovita na época desse traslado: “Duas Romas caíram, mas a terceira jamais cairá”! E assim foi criado o mito da Terceira Roma em Moscou.

Mas, conforme já destaquei aqui, acredito que o fator mais diretamente determinante foi o próprio estudo do Império Bizantino, através do qual a importância de se estudar os Eslavos veio se tornando cada vez mais premente, devido ao papel histórico de primeira grandeza desempenhado pelos bizantinos na formação do mundo ortodoxo eslavo. O Império Bizantino caiu diante dos Turcos Otomanos, mas seu enorme legado histórico e cultural permanece nas nações eslavas de rito ortodoxo até os dias de hoje.

E: Quais dificuldades o senhor encontrou ao estudar e ensinar sobre Bizâncio e Rus’

no Brasil? Quais das atividades exercidas na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) o senhor acredita que mais contribuíram para o campo no Brasil?

CT: Minha primeira dificuldade já está respondida na sexta pergunta, quanto à

disponibilidade de fontes. A segunda era de natureza bibliográfica, devido à pouca disponibilidade de manuais em língua portuguesa. Aqui destaco o grande auxílio inicial prestado pelo livro de Ruy de Oliveira Andrade Filho e Hilário Franco Jr, publicado pela Brasiliense,18 ao permitir uma introdução geral ao assunto para, a

partir daí, aprofundar alguns pontos. De grande auxílio também foram os manuais de Steven Runciman, “A civilização bizantina” e “A teocracia bizantina”.19

Quanto à segunda parte da pergunta, sem nenhuma dúvida foram as atividades de orientação das primeiras monografias de bacharelado, preparando

18 Cf. FRANCO JÚNIOR, Hilário; ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. O Império Bizantino. São Paulo:

Brasiliense, 1985.

19 Cf. RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977; RUNCIMAN,

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meus orientandos para o ingresso no mestrado. Mas é claro que minhas atividades cotidianas em sala de aula foram igualmente fundamentais, uma vez que foi a partir delas que foram surgindo os estudantes sensibilizados com a importância da disciplina e com a então rara oportunidade em tê-la em nosso Departamento. Acredito que um fator muito poderoso foi poder oferecer para eles o contato com uma bibliografia e uma historiografia inteiramente desconhecidas e, através deste recurso didático, evidenciar a existência de civilizações tão brilhantes quanto inteiramente desprezadas pela atitude acadêmica tradicional de uma visão europeia da história, a qual tantas distorções nos trazem quanto à nossa concepção do que seja a História. Afinal, tudo muda completamente quando entramos em contato com o estudo da civilização das estepes asiáticas e percebemos que a presença dos Turcos na história remonta ao Império Romano Tardio através dos Hunos liderados por Átila. E tudo muda também quando abrimos as portas para o reconhecimento de que a Pérsia nunca foi apenas um apêndice da História da Grécia e de Roma.

Outra atividade fundamental foi a participação em eventos, quando tinha a oportunidade, preciosa para mim, por poder apresentar trabalhos sobre temas não ou pouco pesquisados no país. E também não posso deixar de destacar que ao iniciar, mesmo que timidamente, o oferecimento da disciplina de Bizâncio no Departamento de História da UFOP, já na década de 1980, pude de alguma forma antecipar o que viria a ser posteriormente essa globalização cultural hoje tão atuante, na qual as mais diferentes culturas passam a fazer parte de nosso cotidiano e nos obriga a refletir sobre elas.

E: O senhor tem se dedicado a alguma atividade após sua aposentadoria?

CT: Tenho mantido alguma atividade universitária com música clássica, em algum

evento promovido localmente no Departamento de História da UFOP. Ao longo da minha carreira de trinta e dois anos e meio neste Departamento, ofereci também para os alunos uma disciplina de 60 horas de Apreciação Musical e História da Música, na qual era possível aliar a atividade pedagógica à experiência estética do envolvimento com o universo dos sons. Tal iniciativa visava quebrar um pouco o

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ritmo vivido nas disciplinas típicas de um curso acadêmico de História, através de atividades lúdicas, muito mais do que intelectuais, sem aquelas obrigações tradicionalmente impostas na sala de aula e com as quais os estudantes têm que lidar com uma série de obrigações.

Não havia obrigação de nada e ao final do semestre os alunos apenas relatavam suas próprias experiências no contato com a música. A vivência com a música é muito provocativa ao nos propiciar o exercício da percepção acústica e sonora, aguçando sobremaneira nossa sensibilidade. Isso é particularmente importante em nosso mundo atual, abrumadoramente calcado no racional e em imagens, ou seja, na realidade objetiva e no visual passivo. Ao abordar a música lidamos com um tipo distinto que racionalidade, uma vez que ela funciona como um meio e não um fim, pois este fim está na valorização de nossa percepção auditiva, a qual nos permite vislumbrar e ativar nossa imaginação sem a poderosa interferência do visual. Neste processo, aliamos espontaneamente e de maneira insuspeitada nossa própria imaginação com a imaginação criadora do compositor, tornando-nos, assim, portadores de nossa própria imaginação criativa.

Um outro contraponto oferecido pela música e pela arte em geral é o fato de estarem lidando com mitos e lendas, ou seja, com este outro tipo de realidade que faz parte da história da humanidade. Sabemos que a criação do mito precedeu a criação da ciência da história e também gerou lendas, duas manifestações do espírito humano que estão além do tempo e da razão da História. E se a música nos propicia a vivência da estereofonia e do multicanal, por que não associar essa vivência simbolicamente à percepção estereofônica do Conhecimento, observando e analisando simultaneamente as experiências que nos atingem vindas da direita, do centro e da esquerda quando contemplamos num mapa este fabuloso mundo mediterrânico?

E: Por fim, algum conselho para os futuros bizantinistas?

CT: Ou estes bizantinistas já não estão presentes? Aconselho sempre estudar línguas

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dependendo da área de conhecimento que se quer obter, rompendo assim com essa barreira tão nociva existente em nossos mecanismos de ensino e em nossa mídia, os quais incentivam eternamente três línguas: inglês, inglês e inglês. É uma grande dificuldade trabalhar na universidade pública com disciplinas como História Antiga e História Medieval, devido à necessidade de conhecimento de línguas estrangeiras. Mesmo a língua inglesa, tão difundida no cotidiano brasileiro, encontra pouca ressonância na universidade, pelo menos, na minha experiência, na área de História, sendo, portanto, um grande alívio quando temos um orientando capaz de se sair bem com elas.

Para quem queira adquirir uma formação humanística no Brasil torna-se necessário um grande esforço para suprir essa grave lacuna. Mas que alegria quando se chega lá, quando línguas estrangeiras deixam de ser barreiras que amedrontam. Não tenho a menor dúvida de que línguas estrangeiras sempre foram as fantasmagorias que fizeram com que a Idade Média do Oriente tivesse sido tão negligenciada na universidade brasileira. Se pude dar alguma contribuição para que esse autêntico preconceito, aliado ao eterno medo do desconhecido, esteja hoje sendo superado, já me dou por satisfeito e com a consciência em paz por ter realizado algo na vida profissional. Aos estudantes digo que não se deve pensar em termos de “se eu POSSO ler esse texto”, mas sim em termos de “eu TENHO que ler esse texto”.

Eu daria ainda um conselho final relativo a algo que muito me incentivou para enfrentar o desafio de investir tudo numa área então inexistente no país (a não ser o manual a que já me referi, “O Império Bizantino”, de Hilário Franco Jr e do meu nobre colega e amigo Ruy de Oliveira Andrade Filho): que nossos atuais e futuros bizantinistas procurem sempre conviver com o seguinte questionamento: “até onde posso chegar em meus estudos?”. Que eles tenham certeza de que as respostas a este precioso “até onde posso chegar?” serão muitas, e então muitos universos se abrirão na Via Láctea da História e do Conhecimento.

E: Nós agradecemos imensamente a sua disponibilidade para esta entrevista,

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CT: Deixo aqui o meu muito obrigado por me permitirem fazer pela primeira vez

estas reflexões.

Entrevista recebida em 09.07.2020 Entrevista aceita em 29.08.2020

Referências

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