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Trans géneros: uma abordagem sociológica da diversidade de género

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Academic year: 2021

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Departamento de Sociologia

Trans Géneros: Uma abordagem sociológica

da diversidade de género

Sandra Palma Saleiro

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de

Doutor em Sociologia

Orientador:

Doutor Miguel Vale de Almeida, Professor Associado com Agregação,

ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa

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Departamento de Sociologia

Trans Géneros: Uma abordagem sociológica

da diversidade de género

Sandra Palma Saleiro

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de

Doutor em Sociologia

Presidente:

Doutor Pedro Vasconcelos e Coito, Professor Auxiliar, ISCTE – Instituto Universitário de

Lisboa

Vogais:

Doutor João Miguel Trancoso Vaz Teixeira Lopes, Professor Catedrático, Faculdade de

Letras da Universidade do Porto

Doutora Anália Maria Cardoso Torres, Professora Catedrática, Instituto Superior de Ciências

Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa

Doutora Maria Gabriela Martins de Nóbrega Moita, Professora Auxiliar, Instituto Superior de

Serviço Social do Porto

Doutora Maria das Dores Horta Guerreiro, Professora Auxilar, ISCTE – Instituto

Universitário de Lisboa

Orientador:

Doutor

Miguel

Vale

de

Almeida,

Professor

Associado

com

Agregação,

ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa

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Agradecimentos

O trabalho que agora se apresenta é fruto de um longo caminho percorrido que, pese embora a natureza solitária de que sempre se reveste a realização de uma tese de doutoramento, foi sendo partilhado, havendo por isso contributos a reconhecer e agradecimentos a fazer.

Agradeço, em primeiro lugar, às pessoas que aceitaram partilhar comigo a sua vida, em aspectos tão íntimos e por vezes dolorosos. Sem elas este estudo não teria sido possível. Espero ter sido merecedora dessas confidências e da confiança em mim depositada. Para além de “sujeitos empíricos”, algumas destas pessoas constituíram verdadeiros informantes privilegiados, tanto a nível do “conhecimento vivido” da temática como mesmo a nível teórico. São também amigos que espero guardar muito para além deste trabalho. Agradeço a todos e especialmente à Eduarda, ao Filipe, à Gabriela, à Jó, à Júlia, à Lara, à Laetitia, à Rafaela, ao Ricardo.

Aos responsáveis das associações e aos clínicos que informaram sobre a existência do projecto e que aceitaram ser entrevistados para a pesquisa, deixo igualmente o meu agradecimento.

Agradeço ainda ao CIES o acolhimento institucional e o apoio sempre prestado. À Carla Salema agradeço a ajuda nas questões relacionadas com a gestão burocrática do projecto. Agradeço ao seu presidente, Fernando Luís Machado, as condições de acolhimento e o incentivo.

Esta tese foi sustentada pelo projecto “Transexualidade e Transgénero: Identidades e Expressões de Género” (2007-2010). Agradeço à FCT o financiamento da primeira investigação sobre esta temática no âmbito das Ciências Sociais em Portugal. Agradeço igualmente a bolsa de doutoramento que me foi atribuída. Agradeço ainda o inestimável contributo da equipa do projecto.

Ao coordenador, e meu orientador, Miguel Vale de Almeida, agradeço a confiança em mim depositada e o respeito pelas opções durante todo o processo, tanto o correspondente ao projecto como à tese. Agradeço ainda a leitura atenta e atempada de todo o material e os respectivos comentários. Foi um privilégio poder contar com o seu contributo neste projecto pioneiro sobre o T, dado o seu percurso e a sua importância – académica, política, cívica –, no que concerne ao LGBT.

Ao Dr. Francisco Allen Gomes, consultor do projecto, pioneiro da sexologia em Portugal, e um entusiasta da temática e do seu estudo por parte das Ciências Sociais, agradeço a generosidade na partilha do conhecimento adquirido pela experiência clínica e humana, dos conhecimentos teóricos, contactos, livros indicados e emprestados e o prazer das deslocações a Coimbra. É um exemplo, não apenas do interesse e do empenho profissionais, como da abertura a outras áreas disciplinares e do modo como podem combinar-se em benefício das próprias pessoas.

A Sally Hines, cuja admiração pelo trabalho realizado e a similitude de perspectivas justificou o convite para consultora, agradeço desde logo ter aceitado. Muito mais vezes do que imaginou cumpriu o seu papel de consultora, nem que fosse através do recurso à sua pesquisa, em fases de encruzilhada, numa altura em que não havia nenhuma similar no contexto nacional. Agradeço também

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o prazer que foi partilhar directamente experiências sobre um processo de pesquisa que não tinha tradição sociológica no nosso país.

À Joana Santos, bolseira do projecto, agradeço o trabalho inerente às funções, mas para além disso, a amizade e a partilha de descobertas e estupefacções. Agradeço também ter constituído um par de olhos adicionais nas madrugadas do “Conde”.

Essas descobertas, perplexidades, vivências foram também partilhadas com colegas e amigos sociólogos que muito respeito. Ao Vítor Sérgio Ferreira e à Elsa Pegado, colegas, e sobretudo amigos, dos caminhos da sociologia, e não só, agradeço as sempre avalizadas opiniões. À Elsa Pegado que, até pela proximidade devida à partilha de gabinete, mais vezes se constituiu como primeira interlocutora das descobertas ou de exposição de dúvidas, agradeço ainda a revisão e sugestões na leitura final do texto. Agradeço também à Rosário Mauritti o incentivo e o trabalho atento de leitura, sugestões e revisão do texto final. Agradeço ainda à Sandra Mateus, a companhia nos eventos. Às também colegas do CIES – Susana Martins, Cristina Palma Conceição, Patrícia Amaral – agradeço o companheirismo, o incentivo e a amizade.

Dedico este trabalho ao Fernando Baião e à Bárbara, que estão tão felizes como eu por esta etapa estar finalizada.

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Resumo

Trans Géneros: Uma abordagem sociológica da diversidade de género

Esta tese organiza-se em torno da resposta a dois grandes “vazios” identificados no contexto nacional: um “vazio social”, relativo à escassez de informação sobre transexualidade e transgénero; e um “vazio sociológico”, da desatenção da disciplina a estes fenómenos, cuja cobertura a pesquisa que sustenta este trabalho inaugurou. Os objectivos passaram por compreender e interpretar sociologicamente o sentimento de descoincidência entre sexo e género apresentado por alguns indivíduos, “resgatando-os” para a esfera do social; e colmatar a escassez de informação acerca do fenómeno e das pessoas com expressões de género fora da cissexualidade. Delineou-se uma estratégia metodológica múltipla, que envolveu análises documentais; entrevistas a representantes de estruturas LGBT; inquéritos por questionário e entrevistas em profundidade a pessoas trans; e incursões etnográficas em espaços por elas frequentados. Produziu-se uma análise contextual, reconstruindo o panorama da transexualidade e transgénero em Portugal nos planos político-jurídico, médico e associativo. A componente central passou por identificar a diversidade de modos de (trans)género fora do tradicional sistema dicotómico. Primeiro, mapeou-se o conjunto das auto-identificações de género dentro da população auscultada, que revelou as categorias de trans-género que vigoram nos espaços trans (emic). Partindo dessas auto-identificações e dos sentidos que lhes são investidos, definiu-se um conjunto de dimensões centrais para a caracterização dos diferentes modos de identificação e expressão de género, que resultou na constituição de uma tipologia de categorias de trans-género (etic). Finalmente, explorou-se cada um desses diferentes modos – transexualidade, cross-dressing, travesti, drag, androginia e outros – evidenciando tanto aquilo que os define, quanto a sua diversidade interna.

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Abstract

Trans Gender: A sociological approach to gender diversity

This thesis aims to provide a response to two major "voids" identified in the national context: a "social void", related to the lack of information about transsexualism and transgender; and a "sociological void", corresponding to the inattention of the discipline to these phenomena, whose coverage this work inaugurated. The objectives were to understand and interpret, in a sociological perspective, the feeling of incongruence between sex and gender presented by some individuals, “rescuing” them to the social sphere; and to fill the lack of information about the phenomenon and about people with gender expressions outside the cissexuality. We used a mixed methods approach, involving document analysis; interviews with members of LGBT structures; a survey and in-depth interviews with trans people; and ethnographic incursions in trans places. We produced a contextual analysis about transsexuality and transgender in Portugal, in the legal-political, medical and associative movement domains. The core component consisted on the identification of the diversity of modes of (trans)gender outside the traditional dichotomous gender system. First, we mapped all of the gender self-identifications within the population approached, which revealed the trans-gender categories inhabiting trans spaces (emic). Then, based on those self-identifications and the meanings attached to them, we outlined a set of dimensions aimed to characterize the different modes of identification and gender expressions, which resulted in a typology of trans-gender categories (etic). Finally, we explored each one of these different modes – transsexuality, cross-dressing, travesti, drag, androgyny and others – highlighting both what defines them and their internal diversity.

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Índice

Introdução ... 1

1. A teorização da transexualidade e do transgénero: de categorias médicas a identidades sociais ... 19

1.1. A perspectiva médico-psicológica da diversidade de género: a construção da “narrativa clássica da transexualidade” ... 22

1.2 A abordagem etnometodológica do (trans)género: a produção e apresentação social do género 37 1.3. As primeiras abordagens feministas da transexualidade e do transgénero: hostilidade e aliança ... 45

1.4. As abordagens pós-estruturalistas e pós-modernistas do (trans)género e a teoria queer: o género como construção discursiva e performativa ... 57

1.5. Os estudos transgénero “vindos de dentro”: a constituição de uma teoria em discurso directo 67 1.6. As propostas contemporâneas da sociologia acerca da diversidade de género: a combinação das análises “pós” e estrutural ... 79

2. Transexualidade e transgénero na perspectiva das ciências sociais: (re)construção de um percurso de pesquisa ... 105

2.1. Desafios colocados na inquirição por questionário da população trans ... 107

2.2. Narrações e outras exposições de si ... 114

2.3. Incursões, (in)decisões, implicações no terreno ... 124

3. Transexualidade e transgénero em Portugal: Uma abordagem contextual ... 131

3.1. Quadro jurídico e político ... 132

3.1.1. Orientações internacionais e europeias ... 132

3.1.2. “Lei de identidade de género”: A mudança legal de nome e de menção ao sexo ... 137

3.1.3. A identidade de género na legislação anti-discriminação ... 150

3.2. Cuidados de saúde ... 154

3.2.1. Documentos de referência internacional... 154

3.2.2. Panorama da prestação de cuidados de saúde ... 156

3.2.3. A despatologização das identidades trans ... 162

3.3. Movimento associativo ... 169

3.3.1. O movimento associativo T internacional e europeu ... 170

3.3.2. O movimento T em Portugal: da primeira associação à primeira conquista ... 172

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4. Géneros Trans: mapeando a diversidade de género na sociedade portuguesa ... 187

4.1. Mapeando auto-identificações de género ... 189

4.2. Das auto-identificações de género às categorias de (trans)género ... 202

5. A diversidade (dentro) da diversidade de género ... 219

5.1. Transexualidades: Narrativa clássica e outras histórias de género ... 219

5.2. Cross-dressing: Entre “sapos” e “princesas” ... 261

5.3. Travestilidades: “Um outro feminino” ... 288

5.4. Outros modos de (trans)género ... 302

Considerações finais: (Re)pensar o (trans)género ... 319

Bibliografia ... 335

Anexo A. Cronologia da transexualidade e do transgénero em Portugal (1984-2012) ... III Anexo B. Guião de Entrevista a responsáveis de associações LGBT ... XV Anexo C. Inquérito por questionário a pessoas transexuais e transgénero ... XVII Anexo D. Grelhas de Observação e Guião de Entrevista a pessoas transexuais e transgénero ... XXXVII Anexo E. Caracterização dos entrevistados ...XLVII Anexo F. Reivindicações T nas Marchas do Orgulho LGBT de Lisboa e Porto, 2006-2012 ... XLIX

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Introdução

Percurso da investigação

A tese que agora se apresenta é fruto de um já longo trabalho. Começa a germinar como possibilidade para o doutoramento em meados da primeira década do presente século quando, uma vez tendo a investigação como profissão, se tinha afortunadamente como uma das actividades ir seguindo e produzindo conhecimento sobre a área em que se trabalhava (nomeadamente, avaliação de programas e projectos de desenvolvimento social e políticas públicas; bem como na área da pobreza e exclusão social)1. Apetecia-nos assim um novo desafio, ao invés de optar pela comum, sensata e económica decisão de extensão da linha de pesquisa em que vínhamos trabalhando. Começamos então a explorar, ainda mais ou menos timidamente, uma temática que, a nível pessoal, sempre nos tinha colocado perplexidades e que o ingresso pela sociologia vinha aguçando – a da descoincidência entre sexo (biológico) e género (social), que o estudo pioneiro de Garfinkel (1967), com o famoso caso de Agnes, tinha demonstrado repleto de potencialidades para a teoria sociológica e para o entendimento da vida social.

Fora do âmbito da ciência, a impressão que nos deixava o tratamento do tema das raras vezes em que era merecedor de atenção, e em que tínhamos algum contacto com as próprias pessoas, nomeadamente através da comunicação social2, era que algo faltava, os enquadramentos e as questões colocadas não pareciam os certos. Aquilo que era “dito” não parecia ser “ouvido”. Mais tarde, Plummer (1995) ajudar-nos-ia a compreender este desencontro entre o que se dizia ou o que se tentava dizer e aquilo que (não) era percebido, ou seja, mesmo já entrados no século XXI não era ainda o “tempo” destas “histórias de género” em Portugal. O “desencontro” que era relatado ao nível daquilo que mais estrutura a personalidade de uma pessoa – o modo de experienciar e de expressar o que se é em termos de género e o que supostamente se deveria ser, tendo em conta o sexo biológico e legal, era de tal modo “estranhado”, que provocava um outro “desencontro” entre o que era dito e o que era ouvido ou entendido, prejudicando a inteligibilidade do fenómeno e das próprias pessoas, inviabilizando um lugar possível de habitar em termos de género. O único lugar viável para essa estranheza, ou para parte dela, seria então o da “doença”, tendo acolhimento formal na medicina nacional desde 1995, quando a Ordem dos Médicos retira do seu código deontológico a proibição de realização de cirurgias de reatribuição de sexo e se estruturam as consultas de acompanhamento da transexualidade no Serviço Nacional de Saúde.

1 Agradeço ao Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), que viabilizou este “desvio” à linha

de investigação. Durante esse tempo tive o prazer de trabalhar com uma equipa, a maioria das vezes coordenada por Luís Capucha, com quem muito aprendi.

2 Vem-nos à memória um programa de televisão supostamente dedicado à transexualidade que terminou, para a

ilustrar, com um show erótico lésbico. Noutros (raros), programas mais “sérios” e menos sensacionalistas, confinava-se o fenómeno à abordagem psico-médica, recorrendo mais ao discurso dos clínicos do que às próprias pessoas.

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A investigação sociológica desenvolvida centra-se na relação socialmente incomum entre sexo (biológico) e género (social) expressada por alguns indivíduos, fenómeno que nas ciências psico-médicas é conhecido como “disforia de género” ou “perturbação de identidade de género”. Referimo-nos à transexualidade e ao transgénero que até bem recentemente têm sido perspectivados como categorias médicas e não como “outros” modos ou modos diversos de experienciar e expressar o género, ou seja, identidades e expressões de género minoritárias em termos sociais.

Começando a investir no estudo do fenómeno deparámo-nos com o que descreveríamos como um “duplo vazio” acerca da transexualidade e do transgénero em Portugal (Saleiro, 2009a). Um “vazio social”, acerca da temática em meados da primeira década deste século, parecendo invisível na sociedade portuguesa, à parte da medicina e da excepção que representou a constituição de uma associação especificamente dirigida à identidade de género3. Podemos consubstanciar este vazio social na inexistência de dados oficiais, seja sobre estas pessoas4 ou sobre o próprio fenómeno; na ausência da legislação ou de qualquer de regulamentação fora da contida no Código Deontológico da Ordem dos Médicos; na ausência do T no movimento associativo LGBT – Lésbicas, Gay, Bissexual e Transgénero; na presença rara ou incompreendida na comunicação social. E um “vazio sociológico”, que poderia mesmo ser estendido à produção académica nacional5 fora, uma vez mais, das áreas psico-médicas. Aí foi possível colectar, através da análise da Revista da Faculdade de Medicina de Lisboa, oito autores das ciências médicas com produção sobre o tema, para além do pioneiro Júlio Silveira Nunes (1987, 2003), indiciando estarem a transexualidade e o transgénero no nosso país numa fase em que ainda não eram legitimamente reconhecidos como fenómenos sociais. Esta situação contrastava com o boom na literatura acerca da temática fora das ciências médicas, que, descobriríamos então, ocorreu a partir da década de 1990, sobretudo nos EUA, no Reino Unido e também no Brasil, embora não tendo tido imediato reflexo na sociologia, que assume plenamente este “objecto” já no início deste século. Claro que esta ausência prolongada da transexualidade e transgénero na produção científica

3 A ªt – Associação para o Estudo e Defesa do Direito à Identidade de Género (2002-2007) que, juntamente com

a sua presidente e, durante parte deste período, a sua livraria dedicada à temática LGBT, que servia de ponto de encontro e de convívio de pessoas trans, marcaram a excepção no panorama trans do início deste século em Portugal. Retomaremos esta questão no capítulo 3.

4 Relativamente às características sociais destas pessoas, houve uma primeira meritória tentativa de

caracterização desta população em 1998, através do lançamento de um inquérito da responsabilidade da ILGA Portugal e da Associação Abraço, financiado pela então Comissão Nacional de Luta contra a Sida, com uma amostra de 50 indivíduos, que continha um conjunto limitado de indicadores e mais centrados na área da saúde.

Os seus resultados podem ainda ser consultados em

http://a-trans.planetaclix.pt/documentacao/documentacao.htm. Alguns dados conseguidos através das parcas caracterizações sociais realizados nos artigos das ciências médicas estariam também longe da representatividade (nomeadamente em Pechorro e Vieira, 2004).

5 A única abordagem existente, no âmbito das ciências sociais, especificamente sobre transexualidade e

transgénero em Portugal, quando iniciámos a pesquisa era a da antropóloga brasileira Juliana Jayme (2001) que, na sua tese de doutoramento, toma Lisboa como referência comparativa em relação a Belo Horizonte. Em 2006, na apresentação de um número temático sobre “estudos queer”, escrevia a sociológa Ana Cristina Santos, “assinale-se a grande ausência de estudos sobre identidades bissexuais e transgéneros em Portugal (…) Estes constituem espaços que urge colmatar com investigação adequada às especificidades em causa, à semelhança do que tem sido feito noutros lugares.” (Santos, 2006a: 11).

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das ciências sociais, e especificamente da sociologia, não é independente da própria invisibilidade social do fenómeno na sociedade portuguesa, remetendo para a velha questão das ligações entre “problema social” e “problema sociológico”.

Uma das razões para a (e simultaneamente consequência da) invisibilidade destes fenómenos na nossa sociedade (como noutras) é a sistemática confusão em termos de senso comum entre a transexualidade e/ou o transgénero e a homossexualidade. Trata-se efectivamente de realidades diferentes e, como tal, de problemáticas diferentes: enquanto a primeira se refere à orientação sexual, relacionando-se com a sexualidade, e respeitando ao sentido da atracção sexual; os fenómenos que aqui nos ocupam remetem conceptualmente para as identidades de género, ou seja, ao modo como as pessoas se sentem e se expressam em termos de género. A homossexualidade designa a atracção sexual por indivíduos do mesmo sexo/género, não implicando a experienciação de descoincidência entre sexo biológico e género social. Já as pessoas transexuais e transgénero podem ser, tal como as pessoas cissexuais ou cisgénero – ou seja, aquelas em que há coincidência entre sexo e género (Stryker, 2008: 22; Sanger, 2010)6 –, hetero, homo, bi ou pansexuais. O acrescento deste último valor às possibilidade de orientação sexual a somar aos seus três posicionamentos “clássicos”, está directamente relacionado com a consideração da existência de pessoas cuja identidade de género recai fora do binarismo do sistema tradicional de sexo/género, ao qual as primeiras se referenciam. Pansexual refere-se assim à atracção sexual por indivíduos de diferentes (trans)géneros (Nataf, 1996; Rice, 2010).

Um dos resultados (e simultaneamente indicador) desta invisibilidade é o desconhecimento generalizado acerca da definição e dos significados de que se revestem os termos centrais da pesquisa, o que levou à necessidade de iniciar esta tese com um ponto prévio acerca das definições, que constitui a última parte desta introdução. Esta foi uma constatação que se foi evidenciando em cada ocasião em que apresentámos comunicações no âmbito deste projecto, fosse o público constituído por pessoas das ciências sociais, das ciências médicas (aqui nem que fosse pelas diferentes perspectivas) ou fora do universo das ciências. Assim, parte considerável do tempo (por vezes escasso) que nos era concedido teve sempre que ser dedicado à descodificação dos próprios termos e uma ou outra vez aconteceu que não conseguíamos mesmo ir mais além7.

Foram estas ausências e estas necessidades de preenchimento dos “vazios” a nível social e a nível sociológico as principais motivações para a realização desta pesquisa. O investimento necessário para preencher os “vazios” de que se partia no estudo do fenómeno em Portugal justificou a

6 Tal como aconteceu relativamente aos valores da orientação sexual, em que a familiaridade com o termo

“homossexualidade”, necessário para assinalar a “diferença” ou mesmo o “problema”, antecedeu a de “heterossexualidade” (quase que desnecessária, uma vez que como que inscrita na própria definição de ser humano), também a “transexualidade” e/ou o “transgénero”, mesmo quando os seus significados possam não ser muito precisos, se anteciparam no léxico comum à entrada dos termos “cissexualidade” ou “cisgénero”, ainda mais “estranhados”.

7 Como dissemos, esta foi uma das razões que nos levou a dar prioridade à visibilização e compreensão do

fenómeno, através, num primeiro momento, da identificação dos traços que o definem e num segundo, no aprofundamento dos mesmos, dando a “voz” aos próprios actores.

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candidatura a um projecto de investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), que nos permitisse adquirir bibliografia (inexistente nas bibliotecas nacionais); participar em congressos internacionais sobre o tema; alargar geograficamente a possibilidade de auscultação de pessoas; e, não menos importante, constituir uma equipa8 multidisciplinar para a abordagem do fenómeno. Desta candidatura resultaria o primeiro projecto de investigação sobre a temática da “identidade de género” no âmbito das ciências sociais em Portugal. O projecto de investigação “Transexualidade e Transgénero: Identidades e Expressões de Género” (PTDC/SDE/68912/2006), desenvolvido entre 2007 e 2010, no CIES-IUL e que sustenta a tese que agora se apresenta.

A investigação delineou-se no sentido de conciliar dois objectivos: compreender e interpretar sociologicamente os sentimentos de descoincidência entre sexo e género apresentados por alguns indivíduos e “resgatá-los” para a esfera do social; e colmatar a escassez de informação acerca das pessoas com expressão de género fora da cissexualidade. Se as identidades de género não são formadas independentemente dos contextos históricos, espaciais e sócio-culturais determinados, qual o enquadramento a nível macro, ou seja, qual a situação nos planos político-jurídico, médico e associativo? Qual a diversidade existente dentro do universo das identidades e expressões de género trans? Quais as proximidades e distâncias entre essas identidades e expressões de género? Como podem ser definidas em termos e com as referências das ciências sociais? Em que espaços e tempos se vivenciam? Em que contextos e com que referências se constroem identidades de género minoritárias? Quais os sentidos atribuídos a esse sentimento de descoincidência (em graus variados) entre sexo e género e como se expressa? De que modo esses sentidos e práticas, a eles associados, poderão contribuir para a transformação da realidade social? De que forma e em que medida a transexualidade e/ou o transgénero poderão ser vistos como uma tentativa de transgressão do sistema dos dois sexos/géneros únicos e dicotómicos ou, pelo contrário, um reforço desse mesmo sistema? Em que medida contribuem para problematizar, tanto em termos teóricos, como políticos e de cidadania o sistema dominante e regulador do género?

Para dar resposta às questões enunciadas delineou-se uma estratégia metodológica múltipla, que envolveu análise de documentos na área jurídica, da saúde e do movimento associativo, nacionais e internacionais; consulta e análise de sites institucionais e blogues pessoais; observação participante e não participante num conjunto diversificado de iniciativas públicas dirigidas a e/ou frequentadas por pessoas trans (debates, colóquios, manifestações associativas, eventos culturais); encontros privados com pessoas trans (saídas organizados por grupos de determinada expressão de género, encontros individuais); incursões etnográficas em locais frequentados por trabalhadoras do sexo de expressão trans, nomeadamente a Rua do Conde de Redondo e suas imediações; entrevistas semi-directivas a representantes de estruturas LGBT; inquéritos por questionário; bem como entrevistas em profundidade a pessoas transexuais e transgénero. As últimas constituíram o procedimento

8 A equipa do projecto de investigação foi constituída, para além da autora, por Miguel Vale de Almeida

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metodológico central. Foram realizados 49 inquéritos por questionário e 37 entrevistas a pessoas transexuais e transgénero. Tendo sido 53 as pessoas formalmente auscultadas (inquérito e/ou entrevista), as que contribuíram para este estudo extravasaram largamente esse número, e são impossíveis de contabilizar com precisão, pois contam-se aquelas com quem se trocaram telefonemas, sms’s e e-mails, os autores dos blogues que foram consultados, aquelas com quem conversámos informalmente ou que simplesmente observámos em ocasiões públicas.

Um dos pontos críticos, neste momento, na discussão dos “estudos transgénero” é a necessidade de finalmente “dar voz aos próprios sujeitos”. Esta é uma reivindicação, por parte dos próprios insiders, que, frequentemente, não se revêm nas teorizações acerca das suas identidade e do seu “sentido de género” (Lim e Browne, 2009) que tem tido acolhimento na sociologia, constituindo o recurso à “experiência vivida contextualizada” (Monro, 2010: 248) um dos pilares consensuais das novas formas de abordagem destes fenómenos propostas pela sociologia (Ekins e King, 1999; Hird, 2002a; Hines, 2007a; Monro, 2010; Davy 2011), e que se têm sucedido nos anos mais recentes. Esta estará especialmente bem posicionada para, com as ferramentas de que dispõe – leia-se os seus patrimónios teóricos, metodológicos e técnicos –, contribuir para a compreensão da transexualidade e do transgénero como fenómenos sociais, o que implicará, necessariamente, uma deslocação do modo como têm vindo a ser tradicionalmente perspectivados, ou seja, como categorias médicas. Mas essa deslocação é dupla, pois aplicar-se-á igualmente às abordagens pós-estruturalistas e pós-modernistas que, pese embora os inestimáveis contributos, desde logo o de colocar as expressões trans no centro do debate sobre o género (sobretudo Butler, 1990), tomam as pessoas que “transgridem” o modelo binário dos dois sexos/géneros como ícones ou símbolos das identidades contemporâneas, des-subjectivizando-os e desencarnando-os, como acontece na teoria queer. Esta discussão será central no primeiro capítulo deste trabalho, bastando por agora esclarecer que é aqui que esta investigação se posiciona.

Havia naturalmente alguma expectativa acerca das dificuldades que poderíamos vir a enfrentar no acesso e adesão das pessoas trans a contar as suas histórias, nem que fosse pela ausência de precedentes. Aliás, nos diversos momentos em que fomos apresentando o projecto, ainda na sua fase inicial, essa era uma questão que nos era invariavelmente colocada. Apesar de nunca termos partilhado as posições mais pessimistas, nomeadamente aquelas que chegavam a questionar a viabilidade da componente empírica da pesquisa (talvez porque nunca tivéssemos tomado aqueles que constituíam os sujeitos empíricos deste estudo como “gentes remotas e estranhas”9

), era porém realista antecipar algumas dificuldades, no sentido em que a “proposta” que tínhamos para lhes fazer passaria por falar daquilo que de mais íntimo e pessoal existe na vida, e quando sabíamos que a “ocultação” de uma identidade trans estaria bem presente, pelo menos em parte das pessoas que pretendíamos abarcar.

9 Para utilizarmos a expressão do primeiro-ministro espanhol no simbólico discurso proferido no plenário do

Congresso, no dia da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a 30 de Junho de 2005, e retomada por Miguel Vale de Almeida, 2006.

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Pese embora algumas dificuldades encontradas, nomeadamente em chegar a certas expressões de género, sobretudo aquelas que menos existência têm na esfera pública e se remetem quase exclusivamente à privada (como, por exemplo, o cross-dressing) ou as que “passando” socialmente por cissexuais estarão menos predispostas a contar a sua experiência de género (como algumas pessoas transexuais), atingimos, pelo menos na parte qualitativa, um número equivalente àquele a que nos tínhamos proposto (desenvolveremos esta questão no cap. 2). Na realidade houve mesmo pessoas que, sem qualquer iniciativa directa da nossa parte, tendo tomado conhecimento do projecto, se disponibilizaram a participar. Esta adesão, talvez superior à que se poderia esperar, leva-nos a reflectir sobre o que as terá levado a disporem-se a colaborar.

Ken Plummer (1995) discute o “story telling” como um processo político, e ilustra como o “contar histórias” pode ser usado por comunidades desprivilegiadas para afirmar a sua crescente força, ou seja, perspectivando o conhecimento como um veículo para a mudança social10. Mas isso terá que acontecer no contexto de dinâmicas sociais e políticas que o tornem minimamente viável. E é, de facto, significativo que o tempo de recolha de dados para a pesquisa tenha sido próximo de um “momento crítico” para a questão trans em Portugal, que foi o assassinato da transexual Gisberta Salce Júnior11, em Fevereiro de 2006. Este, como teremos oportunidade de explorar mais detalhadamente no capítulo contextual (cap. 3), marcou um antes e um depois no panorama da transexualidade e transgénero no nosso país, pela visibilidade que deu aos sujeitos trans, muito devido à brutalidade do incidente e à consequente cobertura por parte dos meios de comunicação social12, colocando na agenda pública a temática da identidade de género e interpelando o próprio movimento associativo a tomar uma posição13. A este incidente marcante na história da transexualidade e do transgénero em Portugal,

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Algumas mensagens que nos foram enviadas para a caixa de e-mail do projecto em resposta à solicitação de participação na entrevista são reveladoras deste sentido de “dever” e de reconhecimento da utilidade da participação. Reproduzimos aqui algumas: “Estou disponível para ajudar neste estudo, quero que as pessoas tenham boas informações, e que a tenham quando precisam, foi o que eu não tive!”; “Faço questão de participar e ajudar em tudo o que seja sobre transexualidade uma vez que esta problemática fez parte da minha vida até há um ano atrás de uma forma directa. Neste momento é passado mas quero contribuir para que quem está a passar tudo no presente seja mais ajudado e compreendido pelos profissionais de saúde e pela sociedade em geral (…)”; “Desde já estou disponível para qualquer questão que possa melhorar, informar, e ajudar no seu projecto (…) Será sempre uma mais-valia para informação à sociedade e abertura de mentes e para tal tenho total disponibilidade para que isso aconteça, não só por mim mas em prol daqueles que estão na mesma situação e para que haja conhecimento a nível legal para que não passemos pela discordância de identidade com o nosso género.”; “Queria começar por agradecer o seu trabalho pois só dessa forma podemos começar a mudar mentalidades.”.

11 Este episódio de contornos macabros teve ingredientes susceptíveis de incrementar a visibilidade do caso e o

impacto da discussão: além de ter sido cometido lenta e premeditadamente sobre uma mulher transexual, imigrante e à altura passando por fortes restrições que a levariam mesmo à situação de sem-abrigo, foi protagonizado por jovens que estavam sobre a tutela do Estado e à responsabilidade de uma instituição religiosa.

12 O próprio tratamento mediático do caso foi bem revelador do nível de desconhecimento da sociedade

portuguesa em relação à “identidade de género”, desde logo na dificuldade em classificarem a pessoa em causa: para além da identificação como transexual, surgiram outras como a de homossexual e travesti ou, quando não era referido o traço identificativo do género, e se referiam outras características como a de sem-abrigo ou de toxicodependente, o género gramatical utilizado era o masculino.

13 As posições públicas iniciais das associações LGBT, expostas nos comunicados de imprensa surgidos

imediatamente após o conhecimento do sucedido, são bem ilustrativas do desconhecimento ou, pelo menos, da pouca importância e atenção conferidas no seu seio ao “T”, existindo comunicados onde Gisberta é classificada

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podem juntar-se outros desenvolvimentos como a mobilização, que culminaria no sucesso, de medidas legislativas para a comunidade LGBT, nomeadamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo (aprovado na Assembleia da República em Janeiro de 2010) que, não sendo dirigido ao T da sigla, acaba por ter consequências na visibilidade e na força do movimento; e ainda o sucesso das reivindicações de direitos para esta população específica numa sociedade considerada em termos de valores próxima da nossa, como é a espanhola (referimo-nos à Ley de Identidad de Género, aprovada em 2007). Estes acontecimentos terão aberto o campo de possibilidades para o interesse e a mobilização em torno de uma lei de reconhecimento legal de género em Portugal, o que viria a ser conseguido, representando a primeira conquista do movimento em matéria de direitos humanos das pessoas trans e a introdução da temática na legislação nacional, em Março de 2011, já após a auscultação das pessoas para a pesquisa.

O modelo concebido por Plummer para a compreensão da construção social do “story telling” incorpora e chama a atenção para o momento histórico específico no qual a história é contada e ouvida. Plummer nota que “muitas histórias permanecem em silêncio – dormentes, esperando o seu momento histórico” (1995: 35). Será que podemos questionar, tal como Hines (2007b: 2.3), se a adesão a esta pesquisa pode ser vista, então, como uma indicação de que o “momento histórico” chegou, pelo menos para parte das expressões de género trans? Acrescentamos esta última ressalva de delimitação, já que no nosso caso não nos parece que a positividade da resposta possa ser generalizável ao conjunto das expressões incluídas no trans-género, mas que se aplicará muito mais a umas (nomeadamente a transexualidade) do que a outras.

Na verdade, embora consideremos não ser (infelizmente) um exagero continuar a referir a invisibilidade deste fenómeno e destas pessoas na sociedade portuguesa, facto que seria incontestável quando iniciámos esta pesquisa, pudemos assistir durante o período do seu desenvolvimento (desde a fase de concepção do projecto até ao presente, ou seja, 2005-2013) a alterações bastante significativas14, o que faz com que esteja já (felizmente) desactualizada em alguns aspectos (nomeadamente o que terá que ver com o reconhecimento legal de género). No entanto, consideramos que o tempo de realização deste projecto foi de certo modo “feliz”. Apesar de tardio no contexto das ciências sociais, e especificamente da sociologia, e da própria “responsabilidade social” dessa ciência e dos seus protagonistas, permitiu captar e deixar documentado o “antes”, nomeadamente, do marco que constituiu a introdução da especificidade destes cidadãos na lei, que acontece já em momento posterior ao da recolha de dados. Aconteceu num período de mudanças, onde assistimos, a nível internacional, à subida de patamar no reconhecimento dos direitos das pessoas transexuais e transgénero (embora ainda sobretudo transexuais), com a aprovação e a entrada em vigor do Gender

como “homossexual”, “travesti”, “homem travesti” e o género gramatical utilizado é o masculino (todos os comunicados podem ser consultados em http://portugalgay.pt/politica/portugalgay71a.asp).

14 No capítulo contextual (cap. 3) estas alterações serão objecto de análise. Os acontecimentos relativos a esta

temática, e que considerámos com algum significado, foram sistematizados cronologicamente e constam em anexo (cf. anexo A).

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Recognition Act (2004), no Reino Unido, e a Ley de Identidad de Género (2007), em Espanha, a um cada vez maior empenho do Parlamento Europeu na sensibilização aos estados membros da necessidade de reconhecimento dos direitos destas pessoas e da luta contra a discriminação de que são alvo, e ainda à constituição de um organismo de representação de estruturas trans a nível europeu, o Transgender Europe (TGEU), bem como de um internacional pelos direitos das pessoas trans, o Global Action for Trans* Equality (GATE), ao cada vez maior consenso acerca da despatologização das identidades trans. A nível nacional assistimos, por exemplo, à vigência e à extinção da primeira associação especificamente dedicada às questões da identidade de género – a ªt, à crescente assunção do T pelo movimento associativo LGBT, à produção de várias propostas de leis de identidade de género por parte de associações e de activistas independentes, ao aumento do interesse dos media acerca desta questão e a um tratamento cada vez mais sério (embora muitas vezes traído pela falta de informação) e mais afastado do sensacionalismo, a uma maior consciência político-partidária para as questões de identidade de género, traduzida nas propostas de lei apresentadas no sentido da regulamentação do nome e da menção ao sexo no assento de nascimento e, finalmente, na sua aprovação através da Lei 7/2011, de 15 de Março. Mas assistimos, igualmente, como já referido, ao brutal assassínio da transexual Gisberta Salce Júnior, acontecimento que terá sido a “pedra de toque” para o despertar destas questões, um ano depois ao de Luna, ao mesmo tempo que tomamos conhecimento, quase quotidianamente, de mais uma notícia de algum outro assassinato de uma pessoa de expressão de género trans nalguma parte do mundo15, que não pode (ou não deve) deixar ninguém indiferente. Apesar dos progressos, um recente estudo nacional sobre a discriminação de pessoas LGBT demonstrou que as pessoas transexuais são percebidas como as mais discriminadas em Portugal de entre uma listagem de mais de vinte grupos sociais vulneráveis à discriminação (Costa e outros, 2010: 109-110). Ainda mais recentemente, no âmbito do Eurobarómetro 2012, os portugueses consideravam que a situação geradora de maior desconforto, também de entre um conjunto de categorias discriminadas, era ter como presidente da república uma pessoa transexual (http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_393_fact_pt_pt.pdf).

No momento presente podemos também já afirmar que a investigação que sustentou esta tese foi a primeira de muitas (ou, pelo menos de algumas) na área das ciências sociais em Portugal, numa temática em que, para além do interesse em si, e do reconhecimento de que merece ser estudada, é tão

15 Veja-se o website “Remembering Our Dead” em http://www.gender.org/remember/about/core.html. Segundo

dados do “Observatório das Pessoas Trans Assassinadas”, desenvolvido no âmbito do projecto “Trans Respect versus Transphobia Worlwide”, da responsabilidade da TGEU – Transgender Europe, só entre Novembro de 2012 e Novembro de 2013 foram assassinadas 238 pessoas trans (www.transrespeto-transfobia.org). Como bem lembrava Gordene Olga MacKenzie (1994) é no mínimo irónico que as pessoas trans sejam com alguma frequência retratadas, nomeadamente no cinema - lembremos Psico (1960) de Alfred Hitchcock e Vestida para

Matar (1980) de Brian de Palma -, como pessoas desequilibradas, perigosas e até assassinas, quando são, na

realidade, um dos grupos mais sujeitos à discriminação, a qual chega como mostram os números anteriores, a assumir a sua forma mais extremada. Ainda assim, também no cinema é notória uma mudança de abordagem destes fenómenos, por exemplo, para mencionar apenas os de maior sucesso comercial, Boys Don’t Cry (1999), de Kimberly Peirce, baseado na história verídica de Brandon Teena ou, já no campo da ficção, Transamerica (2005) de Duncan Tucker.

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frutífera nas ilações a retirar, não apenas acerca da transexualidade e do transgénero, das vivências e experiências destas pessoas, mas também, e mais genericamente, para o “género”, o “sexo”, a “sexualidade”, o “corpo”, e até para as políticas públicas e os direitos de cidadania. O acréscimo de interesse por parte das ciências sociais, e especificamente da sociologia, acerca destes fenómenos, permitirá a breve prazo constituir, também para a realidade portuguesa, um património acumulado de conhecimento acerca destes fenómenos e ir preenchendo, ainda que sempre provisoriamente, as alastradíssimas “zonas de disponibilidade heurística” (Almeida e Pinto, 1986) de que partimos nesta pesquisa.

Percurso da tese

Esta tese não constitui um produto isolado, antes se insere num conjunto de produtos originados pelo desenvolvimento do projecto de investigação “Transexualidade e Transgénero: Identidades e Expressões de Género”, não esgotando a totalidade de resultados que gerou e foram sendo parcialmente apresentados em diferentes sedes e formatos ao longo deste período16. Tendo sido elaborada em simultâneo, ou já posteriormente, ao de apresentação de parte dos seus resultados – em comunicações em eventos científicos, nacionais e internacionais, na área das ciências sociais ou outras (nomeadamente as psico-médicas) ou em determinadas temáticas específicas (saúde, educação, discriminação); através da publicação de artigos; participação em encontros e debates do movimento associativo, etc. – beneficia já, para além dos contributos acumulados pela partilha, das impressões sobre o que seria porventura mais útil e fundamental abordar, quais os principais aspectos a focar e “vazios” a preencher. Decidimo-nos assim, para esta tese, pelo investimento mais genérico de contribuir para a “literacia trans”: para a inteligibilidade teórica e a legibilidade social das identidades e corpos trans e, nesse sentido, para a sua “humanidade”.

Começamos, já na última parte desta introdução, por incidir nos próprios significados dos termos e conceitos fundamentais desta pesquisa – transexualidade, transgénero, trans. Ao nível teórico, privilegiaremos as abordagens específicas sobre o trans nas diversas correntes da teoria social – embora iniciando pela teoria médica, a primeira a interessar-se sobre o fenómeno e a partir da qual se constituiu a “epistemologia dominante do transgénero”, e em relação à qual todas as outras se posicionam –, passando pelos próprios “estudos transgénero vindos de dentro”, culminando nas “proposta contemporâneas da sociologia”, que não terão ainda porventura grande divulgação na academia nacional (cap. 1). Metodologicamente, aprofundaremos os objectivos e as estratégias metodológicas da abordagem da transexualidade e do transgénero enquanto fenómenos sociais, e, dado o também pioneirismo no contexto nacional da pesquisa empírica a partir deste tipo de população, reflectiremos, igualmente, sobre os desafios específicos colocados à sua “observação” (em sentido

16 No capítulo 2 daremos conta mais detalhadamente dos resultados alcançados e do modo como foram divididos

pelos diferentes produtos do projecto de investigação, sobretudo entre os dois mais extensos – o seu Relatório Final (Saleiro, 2010) e a presente tese. Ao longo do texto remeteremos também, sempre que se justifique, para as referências onde as matérias afloradas foram desenvolvidas.

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amplo) (cap. 2). No plano contextual, retomaremos o exercício iniciado no relatório final do projecto de investigação de reconstituição do panorama da transexualidade e do transgénero em Portugal, nos seus três eixos estruturantes – o jurídico, o dos cuidados de saúde e o associativo, enquadrando a análise no contexto internacional e sobretudo europeu, o que permite traçar as condições macro onde se constituem as identidades de género e, simultaneamente, contribuir para preencher as lacunas detectadas ao nível da informação disponível sobre a temática (cap. 3). Finalmente, traduzindo aquilo que foi uma evidência da imersão no terreno, do contacto com os espaços e os protagonistas trans e os seus discursos – a diversidade de identidades e expressões de género que povoam o universo do trans-género, que o alargado desconhecimento reduz a um “todo” ou a um “outro” uniforme (ainda que disforme) – pretende-se dar visibilidade e contribuir para a legibilidade do trans-género através do mapeamento dos diferentes modos de experienciar e expressar o (trans)género encontrados na sociedade portuguesa, organizando-os em torno de categorias de (trans)género por referência a um conjunto de dimensões centrais para a sua caracterização (cap. 4) e, depois, explorar mais aprofundadamente, com recurso intensivo ao discurso dos sujeitos, esses diferentes modos ou essa “diversidade” existente dentro da “diversidade de género” (cap. 5).

Transexualidade, Transgénero, Trans: À volta dos termos

Como sabemos, as designações não são neutras e nos fenómenos de que nos ocupamos isso é bem visível, desde logo nas diferenças que podem ser encontradas entre as utilizadas nas ciências sociais e as mais tradicionalmente utilizadas nas ciências médicas (por exemplo, uma “mulher transexual” ser denominada como um “transexual masculino”). No campo onde nos movemos, dada a recente visibilidade dos fenómenos, tais designações estão ainda em acesa disputa, colocando em jogo definições conceptuais, não só com origem nas ciências, mas também no próprio movimento associativo e político. Esta tese centra-se na transexualidade e no transgénero e convém determo-nos no(s) seu(s) significado(s), tendo em conta o reconhecimento comum à maioria dos autores que se dedicam a esta matéria, de que as definições que avançam são provisórias e sujeitas a revisão, precisamente porque os conteúdos dos termos permanecem ainda em negociação (Valentine, 2007: 38; Monro, 2005: 5). Além disso, como nota Valentine, no seu exercício etnográfico sobre a (própria) categoria de “transgénero”, há que ter devidamente em consideração as assumpções e os significados que o termo (bem como outros, acrescentaríamos) transporta, o que nem sempre tem acontecido quando se introduz na literatura antropológica, médica, sociológica e outras (2007: 150).

Tradicionalmente, o termo “transexual”, com origem nas ciências médicas, é utilizado para se referir às pessoas que realizam intervenções médicas, incluindo as cirúrgicas, para se tornarem “biologicamente” do sexo “oposto”17

àquele que lhes foi previamente atribuído (Kessler e McKenna,

17 Colocamos entre aspas “oposto” quando referido ao sexo, pois essa qualificação pressupõe a concepção do

sexo como dicotómico, o que tem vindo cada vez mais a ser problematizado ou mesmo contestado, quer pelas ciências sociais, quer pelas naturais, como daremos conta no primeiro capítulo deste trabalho. Por outro lado,

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2000; Stryker, 2006a). Por sua vez, o termo “transgénero” é utilizado para se referir às pessoas que assumem papéis de género convencionalmente associados aos desempenhados pelas pessoas do sexo “oposto” ao que lhes foi atribuído, mas que não tencionam submeter-se a intervenções cirúrgicas ou passar por uma transição física (Kessler e McKenna, 2000; Stryker, 2006a). Esta distinção (tendo até um certo paralelismo com a distinção que na língua portuguesa se faz entre “transexual” e “travesti”18

) é ainda de algum modo devedora do significado original do termo “transgender” que, embora haja indícios de que possa ter surgido noutros contextos (Valentine, 2007: 32), ficou associado a Virginia Prince, no decurso dos anos 1970, que assim se terá intitulado para distinguir a sua situação de não desejo de realização de cirurgia de reatribuição de sexo, da situação dos já cunhados na medicina como “transexuais”, cuja realização da cirurgia genital era considerada como constitutiva da sua identidade de género19.

A distinção entre transexual e transgénero baseada na extensão e “encarnação” (no sentido de inscritas no corpo) das intervenções corporais ou, mais precisamente, na cirurgia genital, realizadas (ou desejadas) parece-nos contudo simplista e redutora, sobretudo se medida pela perspectiva das auto-identidades, como pudemos comprovar pelo acesso ao discurso dos sujeitos ao longo da presente pesquisa. Se as transformações corporais são um eixo estrutural e estruturante das identidades transexuais, as modalidades e a extensão em que são desejadas e/ou realizadas é de geometria variável, sendo o factor comum que as trespassa o perceber-se e o desejo de se ser percebido permanentemente pelos outros (em público e em privado) como membro legítimo do sexo/género20 “oposto” ao que lhe foi atribuído à nascença. Trata-se pois de processos de “migração” de género (Ekins e King 2001b, 2006). A transexualidade contém duas categorias: “homem transexual” e “mulher transexual”. Em sintonia com a definição reivindicada pelos próprios sujeitos e pelos seus representantes, e no sentido contrário àquilo que é mais usual nas ciências médicas, as ciências sociais tomam como ponto de referência o modo como os indivíduos se apresentam em termos de género,

podemos questionar a própria qualificação de “oposto” quando aplicada ao sexo biológico ou cromossomático, como bem notou Sedgwick (2008 [1990]: 29), pois em que sentido pode o xx ser o “oposto” de xy, ou, se quisermos acrescentar aquele que é tomado correntemente como “o” marcador do “sexo” – a genitália –, em que sentido a vagina é o oposto do pénis? Estamos pois a referir-nos ao modo como o sexo é correntemente perspectivado.

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Esta distinção é claríssima no contexto brasileiro, onde o próprio movimento associativo T tem estas duas “ramificações”. E parece-nos estar também presente, em Portugal, ao nível do discurso e das práticas psico-médicas, onde o acompanhamento psicológico realizado no início do processo clínico tendo em vista a produção do diagnóstico, de que dependerá o tipo de cuidados a que a pessoa em causa terá direito a aceder, tem como um dos objectivos fundamentais proceder a essa distinção. Encontrámos igualmente a distinção colocada nesses termos no discurso de alguns dos nossos sujeitos empíricos (cf. cap. 5).

19 Esta matéria será retomada já de seguida (cap. 1.1).

20 Atendendo a que no sistema de género prevalecente o “género” é uma decorrência natural e fixa do “sexo”,

optamos pela sua referência conjunta nestes casos. Embora seja o “sexo” que está a ser escrutinado à nascença (ou ainda antes), uma vez que é aferido pela inspecção dos genitais e é essa a categoria legal presente no assento de nascimento (é logo na relação da categoria com os seus valores que vamos encontrar a (con)fusão, sendo a categoria “sexo” e os valores possíveis “feminino” ou “masculino”), é uma apresentação e um papel de género que estão a ser atribuídos nesse exercício; sendo o “género” a categoria mais relevante em termos sociais.

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correspondendo os homens transexuais às transições FtM21, ou seja, de feminino para masculino (as ciências médicas designam-nos de “transexuais femininos”, partindo da matriz biológica) e as mulheres transexuais às transições MtF, ou seja, de masculino para feminino (designados nas ciências médicas como “transexuais masculinos”).

Estamos aqui próximos dos termos em que é colocada a definição de transexual contida no recente glossário da ILGA Europe (Julho de 2011), que parte primordialmente da auto-identificação de género, posicionando as transformações corporais como uma decorrência dessa auto-identificação:

“Transexual: refere-se às pessoas que se identificam inteiramente com o papel de género oposto ao sexo que lhes foi atribuído à nascença e procuram viver permanentemente no papel de género preferido. É frequentemente acompanhado de uma forte rejeição das suas características físicas sexuais primárias e secundárias e do desejo de ajustar o seu corpo ao seu género preferido. As pessoas transexuais podem tencionar passar, ter passado ou estar a passar por um tratamento de reatribuição de género (que pode ou não envolver terapia hormonal e cirurgia).” (http://www.ilga-europe.org/home/publications/

reports_and_other_materials/ilga_Europe_ glossary).

As estéticas e arranjos corporais das pessoas transexuais podem ser variadas, desde uma conformidade o mais aproximada possível à tradicionalmente associada ao género desejado, até à assunção de alguns “desvios”, por exemplo uma intervenção genital com resultado não totalmente convergente com o padrão biológico do género ou ainda a ausência de alteração genital. É preciso não esquecer que o alcance das alterações corporais não decorre apenas do desejo, mas está obviamente dependente das condições objectivas para a sua realização. Neste processo podem entrar em jogo factores como o estado de saúde dos indivíduos, as possibilidades técnicas e tecnológicas oferecidas pela medicina22, a sua disponibilização num dado contexto sócio-temporal23 ou ainda a capacidade de cada indivíduo a elas aceder (onde entram em acção os vários capitais, desde os culturais aos económicos).

Acresce que algumas identidades de género trans não enquadradas na transexual e cobertas pelo transgénero, podem recorrer a transformações corporais encarnadas, que chegam mesmo a incluir as cirúrgicas, ainda que não geralmente as genitais, por exemplo as de feminização facial. Em sentido oposto, apesar de ainda sem visibilidade em Portugal, tivemos oportunidade de contactar com mulheres biológicas que tinham realizado mastectomias e que não se auto-identificavam como homem transexual. Encontramos no contexto nacional, com alguma frequência, fora da transexualidade, pessoas com transformações corporais encarnadas, nomeadamente de origem endocrinológica, mediante a toma autogerida de hormonas.

Um outro aspecto problemático é o de que a distinção colocada nesses termos parece reproduzir a distinção entre “sexo” e “género” nos moldes tradicionais, no sentido em que o cerne da transexualidade seria o sexo biológico e o do transgénero o modo como se expressa, ou dito de outro

21 Optámos pela utilização das abreviaturas de língua inglesa FtM para Female to Male e de MtF para Male to Female, por serem universalmente utilizadas para descrever o sentido das transição de género.

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Por exemplo, dada a complexidade da (re)construção cirúrgica do pénis, alguns homens transexuais optam pela metoidioplastia, intervenção cirúrgica que consiste em “soltar” o clitóris que, já ampliado pela toma de substâncias hormonais, adquire o aspecto de um “micro-pénis”.

23 Recordamos, por exemplo, que em Portugal, até 1995, as cirurgias de reatribuição de sexo não eram realizadas

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modo, a performatividade. Isso remete para uma outra dicotomia, também algo simplista, entre “essencialismo” e “construtivismo” na construção das identidades. Esta era uma das nossas hipóteses de partida, mas o decorrer da investigação - quer o aprofundamento da literatura, quer sobretudo o contacto com os sujeitos -, haveria de nos mostrar uma realidade bem mais complexa e nuanceada, apesar de, em nosso entender, se manter a pertinência de distinguir transexualidade e transgénero.

Mais afastada desta visão mais tradicional, a versão anos 199024 utiliza o termo “transgénero” num sentido aglutinador que, diferentemente de “transexual”, pode englobar uma diversidade de identidades, expressões de género e estéticas corporais (Ekins e King, 2006; Stryker, 2006a; Hines, 2007a, 2007b; Whittle, Turner e Al-Alami, 2007). Neste seu segundo sentido, mais político e politizado, de união e de criação de uma “comunidade”, o termo “transgénero”25

reúne todas as expressões de género fora do sistema dicotómico dos dois sexos/géneros em prol de uma luta em comum, como está bem patente no manifesto de Leslie Feinberg (1992), a primeira utilizadora do “transgénero” neste sentido. Whittle avança com uma definição de “transgénero”, que ilustra os seus múltiplos significados:

“[Transgénero é] um termo chapéu-de-chuva usado para definir uma comunidade política e social, o qual é inclusivo para as pessoas transexuais, as pessoas transgénero, cross-dressers (transvestites), e outros grupos de pessoas ‘variantes de género’, tal como drag queens e kings, lésbicas sapatonas (butch lesbians, no original), e mulheres ‘masculinizadas’ ou ‘passing’. ‘Transgénero’ tem também sido usado para referir todas as pessoas que expressam o género de modos tradicionalmente não associados ao seu sexo. Similarmente, também tem sido usado para referir pessoas que expressam o género de formas não tradicionais, mas que continuam a identificar-se com o sexo atribuído à nascença.” (Whittle, 2000: 65)

No entanto, este sentido foi contestado por alguns autores (sobretudo insiders) que consideram que uma visão “compacta” e “indiferenciada”, contendo uma multiplicidade de expressões de género, é susceptível de retirar visibilidade e particularidade a cada uma delas, quer ao nível identitário, quer ao nível político (Namaste, 1996a; Prosser, 1998; More, 1999; Rubin, 1999). Os autores que mais se têm manifestado neste sentido são os que se identificam como transexuais, que chegam a defender a exclusão da categoria de “transexual” da alçada do “transgénero” (O’Hartigan, 1993)26

. Esta contestação é justificada, ao nível das (auto) identidades, porque algumas pessoas transexuais não se posicionam em termos de género fora do sistema dos dois sexos/géneros, mas desejam precisamente incluí-lo e habitar um dos seus constituintes (estando pois aqui mais próximos do cisgénero). Ao nível político, das identidades colectivas, porque as reivindicações podem, não só não ser comuns, como ser mesmo contraditórias (de que é exemplo o movimento a favor da “desmedicalização das identidades trans”, de que se demarcam algumas pessoas transexuais, sendo uma das suas principais batalhas algo que pode ser tomado como o seu contrário, que é a disponibilização e o acesso aos cuidados

24 Analisaremos mais detalhadamente o contexto de surgimento do “transgénero” neste sentido, no capítulo 1.5. 25 Para um maior desenvolvimento da evolução e crítica do “transgénero” veja-se Valentine (2007) que procede

à “etnografia da (própria) categoria”.

26 Nas palavras peremptórias e sentidas da autora, “Nomear é poder… O princípio e o fim da liberdade reside no

poder de nos nomearmos a nós próprios – ou a outros. (…) Cada aplicação, a mim, do termo transgénero é uma tentativa de mascarar o que fiz e deste modo coopta a minha vida, nega a minha experiência, viola a minha alma. Eu mudei o meu sexo. (…) Eu não sou transgénero.” (O’Hartigan, 1993: 20).

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clínicos27). Há como que o receio de que a identidade transexual se dilua nas teorizações fluidas do transgénero, frequentemente associado ao queer aos níveis teórico e político (Prosser, 1998; Rubin, 1999; Namaste, 2005). E efectivamente, as pesquisas com recurso ao discurso dos sujeitos (por exemplo a de Hines, 2007a), mostram que podem existir diferenças substanciais e significativas entre as experiências daqueles que se auto-denominam de transexuais e as dos que se auto-denominam de transgénero. Na presente pesquisa, remetida ao contexto nacional, embora o “transgénero” não fizesse (ainda?) parte do vocabulário da maioria das pessoas auscultadas28 e por isso não houvesse propriamente uma auto-identificação com o termo (com excepção das pessoas mais politizadas), foram notórias as distinções entre uma identidade transexual – aquela que parece ser a mais estabelecida e que se constitui como uma referência à qual se cola ou descola em termos identitários – e as “outras”. Houve também casos de pessoas transexuais que não avaliavam como adequada a utilização do “transgénero” para designar a sua condição de género, nomeadamente por considerarem que o género não muda, o que muda é o corpo (ou o sexo) para, precisamente, se adequar ao género.

Patricia Elliot (2009), reflectindo sobre a tensão transexual/transgénero nos estudos trans actuais29, a partir de uma tripla condição – a de mulher, cisgénero e feminista –, propõe que as feministas “não-trans” adoptem uma orientação que reconheça as necessidades e os objectivos de ambos (transexuais e transgénero), bem como identifique onde e porquê eles entram em conflito (2009: 7). Esta posição é contrária à de autores como Bernice Hausman, que proclama que o posicionamento feminista deve ser não apoiar nenhum dos lados (2001: 486).

Na presente pesquisa, situamo-nos na primeira proposta: não privilegiamos nem uns nem outros, reconhecendo a pertinência de uma análise da discussão. E é também por isso que decidimos manter a distinção entre transexualidade e transgénero, quando ela é necessária, porque só aplicável a uns ou a outros, sem subsumirmos uns nos outros. Tal posição não deriva apenas de um princípio teórico, mas, como dissemos, é uma decorrência do trabalho empírico, do acesso às narrativas e experiências de vida das pessoas. A utilização da distinção afigurou-se-nos mais heurística do que a versão compacta. Sendo este um trabalho académico, não sobrepusemos também a questão política – a necessidade de união de uma “comunidade” e de não fomentar “cisões” – àquela que consideramos primordial: contribuir para a compreensão destes fenómenos. Isto, pese embora as articulações e as semelhanças e proximidades entre a transexualidade e o transgénero, dado partilharem o cerne de se afastarem, de algum modo, em maior ou menor grau, assumidamente ou não, do modelo estruturante de sexo/género em vigor: o modelo dicotómico, essencialista e rígido que nos divide a todos desde o nascimento (ou ainda antes, com as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias) entre meninos e meninas, homens e mulheres, e não prevê “transferências” entre as partes. Quer isto dizer que

27

Esta questão da aparente contradição entre a desmedicalização ou despatologização das identidades trans e o acesso aos cuidados de saúde trans-específicos tem vindo contudo a ser ultrapassada no sentido da compatibilização, se não mesmo complementaridade de ambas, como se abordará sobretudo no capítulo 3.2.

28 Voltaremos a este assunto no capítulo 4.1. 29

Referências

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