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Narrações e outras exposições de si

2. Transexualidade e transgénero na perspectiva das ciências sociais: (re)construção de um percurso de

2.2. Narrações e outras exposições de si

A dimensão relativa às identidades e expressões de género foi captada sobretudo através da realização de entrevistas aprofundadas, que na prática resultaram próximas da modalidade de entrevistas biográficas. Se a (auto)identidade, vista como um projecto organizado reflexivamente, implica que os indivíduos sejam capazes de se contar de um modo lógico, ou seja, de verbalizar e de explicitar aquilo que está subjacente aos seus actos e às suas escolhas (Giddens, 1997 [1991]; Dubar, 2000), então a dimensão da identidade de género deverá ser captada, preferencialmente, através de uma estratégica metodológica qualitativa, com recurso a uma técnica que privilegie precisamente a narração de si. Para Kaufmann, “A entrevista funciona efectivamente como um câmara de eco da situação ordinária de fabricação da identidade” e “Aquele que fala [no contexto da entrevista] não se limita a libertar-se das informações: envolvendo-se, ele entra num trabalho sobre si próprio, para construir a sua unidade identitária, em directo, face ao inquiridor, a um nível de dificuldade e de precisão que ultrapassa de longe o que faz ordinariamente.”122

(1996: 60-61). Optámos pela realização de entrevistas aprofundadas, com lógica semi-directiva, no sentido de conciliar uma abordagem mais exploratória ao fenómeno, decorrente do défice de estudos sobre o tema, mais ainda se nos remetermos à sociedade portuguesa, com a procura activa de respostas aos aspectos que delimitámos como centrais nesta investigação.

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Esta necessidade de complementar informação é ilustrativa tanto da necessidade e da vontade da pessoa se narrar nos termos certos e ser “legível” pelos outros, como das limitações para esse fim de um instrumento rígido e padronizado como é o inquérito por questionário.

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Esta questão terá sido porventura mais acentuada ou mais evidente no caso deste estudo do que noutros, uma vez que toca numa dimensão estrutural da identidade. Eis um exemplo que explicitamente o comprova, recebido na caixa de correio electrónico do projecto no dia seguinte ao da realização da entrevista “Depois da conversa consigo, desabafei com a minha mulher, dizendo-lhe essencialmente que nesta altura já coloco tudo em questão relativamente à minha identidade de género, e que o rótulo de "crossdresser" clássico pode não ser definitivo. Mas não sei ainda dizer quão importante é na realidade para mim confirmar ou rejeitar se sou ‘apenas crossdresser’ e se alguma vez darei seguimento a essas questões, procurando uma resposta satisfatória…” mail enviado dia 25-5-2011). A este tipo de angústias procuramos sempre dar retorno, mas sem qualquer envolvimento de tipo clínico ou diagnóstico, apenas disponibilizando-nos para ouvir e fornecendo as informações - de grupos, organizações, profissionais de saúde, etc. - que nos eram solicitadas.

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A estratégia de chegar às pessoas processou-se, tal como é comum quando os sujeitos empíricos não estão facilmente acessíveis, sobretudo fazendo uso da “amostragem em bola de neve” (Almeida e Pinto, 1990 [1979]: 113). Houve a tentativa de partir de vários “flocos de neve”, para minimizar os efeitos de uniformidade que este tipo de procedimento necessariamente pode acarretar. Se tal terá sido conseguido nuns casos (entrevistámos mesmo uma pessoa que nunca tinha contactado com outra pessoa trans123), noutros, sobretudo no caso de expressões de género onde a ocultação social está bastante presente, como no caso do cross-dressing, isso revelou-se bastante mais complicado, pese embora as tentativas empreendidas.

Esta amostragem em bola de neve foi complementada por um recrutamento via “amostragem no local” (Ghiglione e Matalon, 1997: 42-44), nomeadamente nas incursões à Rua do Conde Redondo e suas imediações, zona frequentada por trabalhadoras do sexo de expressões trans-género. Tal revelou-se decisivo para abranger pessoas trans sem contacto, quer com os serviços médicos envolvidos no processo de transição, quer com o movimento associativo e as suas iniciativas. Sobretudo para as categorias de trans-género, cuja expressão de um género distinto do que lhe foi atribuído não é permanente, a questão do espaço de recrutamento torna-se central. Diferentes espaços proporcionam o acesso a diferentes modos de ser e parecer em termos de género, mostrando a importância das geografias na formação e visibilização das identidades trans (cf. Browne, Nash e Hines, 2010). Também esta componente do estudo beneficiou do recrutamento via “amostragem no local virtual”, através da divulgação da pesquisa, e respectivo recrutamento para as entrevistas, em sítios ligados à temática na internet.

Tratando-se de uma investigação pioneira no nosso país, e por isso sempre com uma forte componente exploratória, não se traçou previamente perfis de entrevistados, tendo convidado e aceitado todos aqueles que se identificavam como trans-género. A invisibilidade que rodeia a população que se pretendia abranger e as dúvidas sobre a sua acessibilidade não deixavam margem para grandes exigências ou planeamentos à partida. Não se mostrava também adequado partir de categorias de identidade previamente definidas, quando um dos objectivos centrais era precisamente aceder e mapear a sua diversidade. Havia, porém, a consciência, por se tratar de um estudo sociológico e pela especificidade da temática em causa, de um conjunto de variáveis “clássicas” e “estratégicas” (Digneffe, 1997: 203-245) em jogo. Assim, era importante garantir a diversidade, quanto às variáveis clássicas, em termos de sexo atribuído à nascença, de idade, de qualificações e de localização geográfica. Relativamente às estratégicas, directamente remetidas para as identidades de género, era importante garantir diversidade em termos de modos de expressar o género, da fase do “processo de transição” e/ou de assunção da identidade de género, da relação com os serviços de saúde (e dentro destes com o Serviço Nacional de Saúde), das modalidades das transformações corporais.

123 Nomeadamente um jovem transexual que nos foi indicado por uma das profissionais responsáveis pelo seu

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Os esforços empreendidos resultaram em entrevistas em profundidade a um total de 37 indivíduos124, dos quais doze mulheres transexuais, doze homens transexuais, oito cross-dresser e cinco com outras expressões de género125. Esta variação de representatividade das diferentes categorias de género não foi procurada, mas pode, no contexto desta pesquisa, ser lida como um resultado em si, em termos das respectivas disponibilidades e acessibilidades e será objecto de reflexão ao longo deste trabalho. Assim, se em alguns casos ter-se-á atingido a saturação da informação (Bertaux, 1997; Hiernaux, 1997: 173-174) – como nas pessoas transexuais mais novas –, noutros não se esteve nem lá perto – todas as categorias fora da transexualidade –, e outros ainda não teremos sequer conseguido abranger. Descrita a amostra, à semelhança do que fazem outros autores (por exemplo Hines, 2007a), em termos de homens e mulheres trans, contabilizam-se doze homens e vinte e cinco mulheres trans. Ou seja, há uma clara predominância de expressões da feminilidade. O leque de idades vai dos 18 aos 63 anos, com uma média de 35 anos. Quanto à localização geográfica há uma concentração na Região de Lisboa, onde residiam, à altura da entrevista, 28 pessoas, sendo que 14 moravam mesmo na cidade de Lisboa, apesar de muitas serem oriundas de outras partes do país. Quatro residiam na região Norte, outras quatro na região Centro e uma no Alentejo.

Esta concentração geográfica, para além de poder ser lida como resultado da localização física do projecto de investigação, terá também que ver com o facto de, por vezes, a “migração geográfica” acompanhar ou ser mesmo a possibilitadora ou facilitadora de processos de “migração de género” (Prosser, 1999)126. Nas cidades mais populosas há um potencial maior de anonimato e a percepção de maior abertura em termos de valores e atitudes, favorecedora de uma maior aceitação, nem que seja na modalidade de “indiferença”. A esta avaliação acrescem factores de ordem prática, como, para as pessoas integradas ou que pretendem vir a integrar os estabelecimentos de saúde de acompanhamento da transexualidade, a concentração destes serviços em Lisboa ao tempo da recolha de informação, sobretudo na parte cirúrgica. Esta é também, na opinião de alguns dos nossos entrevistados, a cidade que alberga a única zona do país que pode ser considerada “trans friendly” – a do Príncipe Real. Assim, para muitos dos entrevistados, apesar de as experiências actuais serem vivenciadas espacialmente na Área Metropolitana de Lisboa, as experiências relatadas, sobretudo relativas à infância e à adolescência, reportam-se a outras regiões do país.

A escolaridade vai desde o 1º ciclo do ensino básico (duas pessoas, sendo que uma o completou já na idade adulta), até à bastante mais frequente passagem ou conclusão do ensino superior (15). Quatro situam-se ao nível do 6º ano, oito no 9º e as mesmas completaram o ensino secundário (12º ano). As ocupações profissionais são também bastante variadas, desde empresários, engenheiros,

124 Os perfis dos entrevistados podem ser consultados em anexo (cf. anexo E). 125

Classificação obtida através da combinação de uma abordagem emic e etic, que será objecto de análise no capítulo 4.

126 Em “Excepcional Locations: Transsexual Travelogues”, Prosser (1999) chama a atenção para que as

primeiras auto-biografias de pessoas transexuais serem “relatos de viagem”, como se a viagem física fosse uma sublimação da busca por uma “casa de género” (“gendered home”).

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psicólogos, professores, administrativos, operários em sectores variados, até trabalhadoras do sexo. No total, duas pessoas são (apenas) estudantes e cinco estão desempregadas. No caso das mulheres trans, as mais penalizadas por essa(s) condição(ões) – ser reconhecido como trans e expressar a feminilidade127 –, quatro estão em situação de desemprego de longa duração, para além das muitas situações de precariedade, com consequências ao nível não apenas dos rendimentos, mas da protecção social. Quatro recebiam o Rendimento Social de Inserção.

Quanto ao processo de planeamento e organização da informação obtida por esta via, seguiu- se uma lógica típica de um posicionamento epistemológico racionalista que passou por, após análise de um significativo conjunto de obras teóricas e contextuais sobre a temática, proceder à elaboração de um guião de entrevista128, com a elencagem organizada da informação que pretendíamos obter. Cumpriu-se pois, neste aspecto, os procedimentos correntes no método clássico das entrevistas semi- directivas (Ruquoy, 1997; Ghiglione e Matalon, 1997), mas que é igualmente defendido por alguns autores menos convencionais (como, por exemplo Kaufmann, 1996): elaborar um guião, organizado por temas, cada um deles contendo um conjunto de questões precisas e com um seguimento lógico. As primeiras questões têm uma importância particular porque dão o tom. No caso deste estudo, dada a centralidade da questão, iniciava-se sempre com a pergunta “Como se auto-identifica relativamente ao género?”. A partir daí tentava-se respeitar e retomar o raciocínio dos indivíduos e a grelha de questões constituiu, na prática, um guia muito flexível. Conseguiu-se assim manter uma dinâmica de conversação mais rica do que a simples resposta às questões. Aliás, sobretudo à medida que aumentava o número de entrevistas realizadas, o guião acabou por ficar esquecido e por vezes só era consultado rapidamente na recta final da entrevista para assegurar que nenhum aspecto importante tinha ficado de fora da conversa. A existência de um guião não impediu que algumas questões nele constantes fossem perdendo importância e outras que dele não constavam, ou que não estavam formuladas tão explicitamente ou em pormenor, fossem sendo introduzidas ou ganhando relevância, neste caso sobretudo especificidades relativas a algumas categorias de trans-género. O resultado final foi bastante próximo das entrevistas de carácter biográfico, que o guião concebido previamente acaba por não espelhar, pois foi essa a modalidade discursiva que as pessoas adoptaram para se narrar, para fazer sentido da sua vida num aspecto dela tão estrutural e estruturante e que, frequentemente, é experienciado assim que começam a ter um “sentimento de si”, ou seja, na infância.

No sentido de conseguir uma maior proximidade às pessoas em causa e uma maior familiaridade e conhecimento das questões especificamente referentes a cada uma das diferentes categorias de trans-género, todas as entrevistas foram realizadas pela investigadora, o que permitiu ir acumulando conhecimento nas diversas dimensões que, de outro modo, teria sido mais complicado ou, pelo menos, mais demorado. Partilha-se com outros autores (nomeadamente Bourdieu, 1993; Pinto,

127 Como o demonstram estudos sobre discriminação de pessoas trans (por exemplo, o de Whittle, 2006; Whittle,

Turner e Al-Alami, 2007; e Rundall e Vecchietti, 2010) e encontrámos também para a sociedade portuguesa (cf. Saleiro, 2010).

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2001) o reconhecimento da importância de ser o investigador a proceder à recolha de informação, não aderindo a uma divisão do trabalho no trabalho científico, que a concebe como uma tarefa menor e permite delegá-la. No caso deste estudo, esta presença assumia tanto mais importância quanto o contacto com a forma como os sujeitos se apresentavam e se expressavam em termos de género de modos não-verbais era uma componente também em análise, tendo sido mesmo, não raras vezes, objecto de inquirição complementar.

Em acrescento à contemplação das expressões não-verbais em tempo real, aconteceu frequentemente, no decurso das entrevistas, que, para além de se “contar”, as pessoas sentissem necessidade ou vontade de se “mostrar”, quer no passado129

, quer num presente de acesso restrito e controlado130, pelo que juntavam à conversa fotografias, que tinham em casa, quando a entrevista aí se realizava ou que traziam propositadamente para a entrevista ou, quando mais recentes, estavam gravadas no telemóvel. Apesar de não ter sido planeado, beneficiou-se assim da técnica da “foto- elicitação”, que “se baseia na simples ideia de inserir a fotografia nas entrevistas” (Harper, 2002: 13) e de uma das suas potencialidades, que é a de gerar respostas que permaneceriam dormentes nas entrevistas convencionais (Collier, 1957 em Davy, 2011: 6). Esta técnica revela-se especialmente frutífera e adequada para o estudo do trans-género na medida em que “as fotografias são um modo de elicitar a metamorfose da transição, e o sentimento de como as estéticas corporais são relembradas e experienciadas contemporaneamente” (Davy, 2011: 6). No contexto deste estudo, porém, para além daquilo que pôde ser revelado através desta técnica, como aqui ela não foi planeada, é também a própria emergência espontânea recorrente das fotografias que pode ser objecto de reflexão, nomeadamente realçando a importância do corpo e da imagem no (trans)género.

Anteciparam-se alguns potenciais factores de constrangimento ao sucesso da concentração das entrevistas numa única pessoa – uma mulher cisgénero –, nomeadamente a adequação a alguns perfis de género, como sobretudo os de expressão da masculinidade. Tratava-se, no fundo, de ter em conta aquilo que já há muito foi percebido nos estudos de género (veja-se, por exemplo, Torres, 1992, 1996) ou seja, sobre o “à vontade” que os sujeitos terão (ou não) para expor matérias directamente relacionadas com o seu género a pessoas de género distinto. Embora neste caso a questão comportasse uma complexidade acrescida, o que faria com que não fosse de aplicação directa a recomendação

129 Por exemplo, no caso das pessoas transexuais, para mostrar como sempre pareceram do género com que se

identificam ou as alterações em diferentes períodos do processo de transição.

130 Por exemplo, nas pessoas cross-dresser, para “revelar” a sua “versão” feminina à qual, em alguns casos,

ainda não tínhamos tido acesso ou, mesmo quando já acontecera, como um modo de estar presente na entrevista na modalidade possível. Contrariamente ao que aconteceu com as pessoas travestis, que conhecemos primeiro nas visitas à zona do Conde Redondo, na expressão (hiper)feminina, com parte das pessoas cross dresser a primeira interacção presencial ocorreu no momento de realização da entrevista, na expressão masculina. A preferência pela presença na entrevista “en femme” foi explicitamente referida pela maioria destas pessoas que, contudo, consideraram não ter condições para a concretização (quase todas optaram por se deslocar ao espaço do projecto para a realização da entrevista). A realização da entrevista foi, aliás, frequentemente dada como exemplo de uma situação em que faria sentido a apresentação “en femme”, mas em nenhum caso, embora ponderado, acabou por acontecer, quer por falta de condições logísticas, quer pela consideração dos riscos implicados. A nossa postura aqui foi de abertura mas não pressão, deixando inteiramente a decisão do lado das pessoas entrevistadas.

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sensata e comprovada pela opção por entrevistadores do mesmo sexo/género do entrevistado (idem), pois aqui é a própria fusão de sexo e género ou a lógica “dois em um”, que está em causa. Anne Bolin (1988) considera que ser mulher foi um factor significativo na sua aceitação entre um grupo de mulheres transexuais, sendo que “Como mulher tive indubitavelmente acesso a relacionamentos que não teriam sido possíveis se eu fosse um homem.” (1988: 37). No caso específico desta pesquisa, passaria também pela recolha de narrações de indivíduos que expectavelmente rejeitavam ou, no mínimo, prescindiam da sua feminilidade e/ou da sua condição de “mulher”. Mas a pertinência de ser sempre a mesma pessoa e a importância conferida à realização das entrevistas e ao contacto directo que estas proporcionavam, fez arriscar a primeira entrevista com um homem trans para daí tirar ilações acerca da potencial interferência na informação obtida. Como não foi evidente esse eventual constrangimento na narração de si, prosseguiu-se nessa estratégia. É de admitir que o estereótipo de mulher, como tolerante e compreensiva, terá eventualmente jogado a favor131. Aliás, a partir da experiência obtida pelo contacto com um conjunto ainda relativamente vasto de pessoas de variadas expressões trans, a impressão que fica é que seria mais problemática a realização de entrevistas por homens cisgénero a pessoas trans que expressam a feminilidade, tanto na modalidade de “migração” como na de “oscilação” (para usarmos os termos de Ekins e King, 2006). A experiência etnográfica de David Valentine (2007) na comunidade transgénero de Nova Iorque vem de certo modo confirmar a maior dificuldade de aceitação em certas categorias de pessoas trans-género (nomeadamente, neste caso, as MtF) de um homem (cf. Valentine, 2007: 5). No entanto, embora não pareça ter constituído um constrangimento durante o tempo de entrevista, é de admitir que possa tê-lo sido a montante, ou seja, na cedência à participação. Mesmo que nunca explicitado, foi, como já referido, nos homens transexuais que se notou uma superior adesão ao preenchimento do inquérito por questionário (que não implicava um contacto directo com um inquiridor) por relação à aceitação da entrevista.

Outra cautela que poderá também ter promovido a participação, foi a explicitação da distância da investigação às disciplinas envolvidas nos “diagnósticos” e catalogações médicas (nomeadamente a medicina e a psicologia) do trans-género. Foi sempre reforçada a ideia de que se tratava de uma pesquisa no âmbito das ciências sociais. Dava-se assim às pessoas a possibilidade de narrarem a sua vida e as experiências de género “libertas” dos parâmetros médico-psicológicos de medição e catalogação de identidades (ou, na linguagem médica, “perturbações”) de género. Pretendia-se criar um ambiente o mais possível propício à narração de si, sem ter em mente “narrações-tipo” de identidade de género (que afecta sobretudo a mais “estabelecida”, por via da sua medicalização, a

131 Neste caso podemos mesmo considerar que, para além do estereótipo, há razões inscritas na biografia dos

indivíduos para prever esta maior compreensão e aceitação por parte de uma mulher. Embora ainda não o soubéssemos à altura da tomada de decisão, os dados haveriam de revelar que os elementos femininos da família – nomeadamente a mãe, extensível às avós – são percebidos, e sobretudo no caso dos homens transexuais, aqueles que mais nos preocupavam, generalizadamente como “compreensivas relativamente à situação de género”. Recorrendo aos dados do inquérito, mais directamente legíveis, dos 16 homens transexuais que responderam à questão, para 14 a mãe apresenta “muita ou alguma compreensão” e apenas para dois “pouca ou nenhuma compreensão”. Os valores encontrados para o pai são bastante menos favoráveis: para oito mostram “muita ou alguma compreensão” e para sete “pouca ou nenhuma”.

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“transexualidade”), sem constrangimentos por exemplo nalguma dissonância ou incoerência com “histórias” contadas noutros contextos (nomeadamente nas narrações para constituição de diagnóstico).

Uma outra distância foi marcada em relação às entrevistas de tipo jornalístico e à consequente utilização do material recolhido. Houve sempre o cuidado de explicitar que se tratava de um projecto no contexto de produção de conhecimento científico. Também é verdade que este esclarecimento, se motivou muitas pessoas a aderir à entrevista, desencorajou ou desmotivou outras (embora em muito menor número em relação às primeiras) que convivem bem com a divulgação mais alargada da sua