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CAPITULO 3 A PESQUISA NO NORDESTE

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Academic year: 2019

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CAPITULO 3

A PESQUISA NO NORDESTE

“Eu não entendo nada disso tudo. Para mim a arte popular não existe. O povo faz por necessidade coisas que tem relação com a vida”.62

Lina Bo Bardi

Dezesseis anos após sua estada no Nordeste Lina escreve um pequeno livro, mas muito denso, intitulado Tempos de Grossura: O design no impasse, onde ela relata a sua experiência no Nordeste de 1958 a 1964, suas críticas e posturas. Nele se encontra a seguinte frase:

“É necessário recomeçar pelo princípio, partir de onde a arte funde-se com a antropologia e grita ou reprime sua indignação”.63

Demonstrando que ela encontrou no Nordeste uma arte mais pura, menos influenciada pelos interesses econômicos e por culturas externas, e olhou para ela com os mesmos olhos de um antropólogo para os índios.

Foi com intensa força buscar a base da arte brasileira, mesmo que sua amostragem se limitasse a uma entre tantas artes populares do Brasil. Era a expressão do verdadeiro ser humano, não influenciado pela urbanização nem pelo capitalismo gerado pelo consumo dos turistas.

Em um artigo na revista Habitat n. 5, “uma garrafa de barro e uma concha feita com casca de côco são analizados e definidos como objetos feios; que não há nada de bonito neles, mas são modernos porque se pode sentir, em sua simplificação repleta de emotividade aquela comunicação súbita e implícita das coisas que trazem ainda em si a marca da natureza, que possuem ainda uma ‘verdade’ ”.64

62

GUEDES, Joaquim. Frase dita por Lina em Simposio sobre Arte Popular no Rio de Janeiro, no livro/catálogo Lina Bo Bardi Architetto, p 15

(2)

No livro Tempos de Grossura: o design no impasse, ela deixa claro a importância da arte popular, dizendo: “Precisamos dismistificar imediatamente qualquer romantismo a respeito da arte popular, precisamos nos liberar de toda a mitologia paternalista, precisamos ver, com frieza crítica e objetividade histórica, dentro do quadro da cultura brasileira, qual o lugar que à arte popular compete, qual sua verdadeira significação, qual o seu aproveitamento fora dos esquemas “românticos” do perigoso folclore popular”.65

Ver o belo na simplicidade quase tosca destes objetos é também apontado, de forma clara, pelo crítico de arte Bruno Zevi quando afirma que “Lina abandonou o mundo do design, mergulhou em uma operação de resgate da Arte Povera, combatendo o american way of life colonialista e às ditaduras militares”66

A busca por uma arte popular teve seu início, provávelmente, na Itália quando aconteceu o seguinte, e frustrante, fato descrito por ela em uma entrevista ao Corriere della Sera em 1986:

“Depois da guerra (segunda Guerra Mundial), fizemos uma exposição anterior à Trienal de Milão e eu fiz uma viagem para procurar objetos de arte popular: não encontrei nada, além de uma xícara de cerâmica em Fano – ou não sei mais onde – e um pequeno copo de vidro em Empoli. Naquele momento percebi que o fascismo tinha destruído a alma popular”67

Lina foi a Bahia pela primeira vez convidada por Diógenes Rebouças para lecionar Filosofia e Teoria da Arquitetura na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia e acabou sendo convidada pelo então Governador, Juracy Magalhães, a implantar o Museu de Arte Moderna da Bahia, onde promovem muitas mostras e eventos. Neste período encontram-se com o Diretor da Escola de Teatro, Martim Gonçalves, e trocam experiências constantes.68 Ela se torna a única mulher no

grupo de estudiosos da Universidade da Bahia, com o apoio do Governador, uma posição firme para seus projetos, e defendendo idéias fortes e inovadoras.

Um segundo período Bahiano de Lina acontecerá de 1985 a 1988 quando a Fundação Gregório de Mattos a convida para o projeto de recuperação do centro histórico de Salvador.69

65

BARDI, Lina Bo. Tempos de Grossura: o design no impasse. p 25

66

ZEVI, Bruno. Arte sí, ma povera no L’ Espresso de 10 de Maio de 1992

“Trascuró il mondo del design, s’ immerse in un’ operazione di riscatto dell ‘Arte Povera”, combattendo “l’ american way of life” colonialista e le dittature militari.”

67

NICOLÓ, Tino e Proietti, Gianni. Un’ Adorabile Eccentricitá. Il Corriere della Sera. 01 Setembro 1986

(3)

Sua busca, em seu primeiro período na Bahia, fez parte de todo um movimento que foi sonhado e transformado em realidade pelo então reitor da Universidade da Bahia, Edgar dos Santos. Personagem “estratégicamente centrado na dimensão cultural da vida social”70. Ele consegue promover, como já foi citado anteriormente, uma revolução cultural com a ajuda de professores/colaboradores que constróem uma vanguarda com base na antropologia, nas nossas origens. Mostrando que a questão artística é somente uma das faces do problema social.

Este período e Lina foram citado pelo antropólogo e político Darcy Ribeiro em uma entrevista em 1995. Ele comenta que “viu o velho Edgar Santos, reitor luminoso que fez um reitorado na Bahia trazendo a cultura européia, a cultura erudita mais avançada para a Bahia. Teve coragem de levar para a Bahia também a mulher mais admirável que andou por São Paulo, Lina Bo Bardi. Lina que é gênio. Hoje o mundo está descobrindo Lina.”71

Na mesma entrevista diz: “ vi do ambiente criado por Edgar e Lina surgirem Glauber, Caetano, Gal.” Referindo-se ao cineasta Glauber Rocha e aos músicos Caetano Veloso e Gal Costa e deixando clara a importância do Avant-Garde na Bahia

Marcelo Ferraz, assistente de Lina em diversas obras, em depoimento para o livro Arte na Bahia comenta sobre o Avant-Garde dizendo: “O período da bahia, de 58 a 60 e poucos, praticamente não é a história da Bahia, da Escola de Teatro, do Museu de Arte Moderna, da Escola Superior de Música e de Dança. É de todo o esplandecer de um conjunto que praticamente representou uma esperança muito grande para o país todo, se extendendo do extremo norte, pelo menos até o Rio de Janeiro”72

70 RISÉRIO, Antonio. Avant-Garde na Bahia. p 78

71

RIBEIRO, Darcy. Entrevista para a TV Cultura, programa Roda Viva, em 17 de Abril de 1995.

72

(4)

3.1

O REITOR EDGAR SANTOS E O

AVANT-GARDE NA BAHIA

O reitor Edgar Santos era médico de formação, um visionário e o pivô de um renascimento cultural baiano e brasileiro. Convidou para

lecionar na Universidade da Bahia de 1946 a 1962,

professores/artistas inovadores, competentes e ousados para formarem o seu sonho. O filosofo português Agostinho da Silva coordenava o Centro de Estudos Afro Orientais, Koellreutter dirigia os seminários livres de música, Yanka Rudska dirigia a Escola de dança e Lina lecionava filosofia e coordenava o Museu de Arte Moderna da Bahia. Em especial Lina movia-se neste mundo com um projeto geral de cultura e conseguiu, com isso, somar seus projetos aos das peças de teatro, ao cinema, e as exposições, como um catalizador das diversas formas de arte.

Os “filhos” deste grupo de artistas produziram um legado cultural de inquestionável importância para a história da arte brasileira, geraram a Tropicália e o Cinema Novo.73

Edgar Santos reabre, neste momento, a busca por uma arte nacional, que já foi muito debatida e produzida pelos modernistas da década de 20, mais precisamente nos anos ao redor da Semana de Arte Moderna de 22.

Entre os dois movimentos existem alguns pontos de contato importantes. Um deles é essencial para o design, e refere-se à industrialização do país. Aracy do Amaral, em seu livro sobre a Semana de 22 coloca que uma das molas da arte é:”O nacionalismo emergente da Primeira guerra Mundial e da subsequente e gradativa industrialização do País e de São Paulo em particular”74.

Esta industrialização, para os anos 60 será mais evidente no retorno de Lina a São Paulo e o seu contato com a produção do design local.

73 Nota prévia do livro de António Risério, Avant-garde na Bahia, escrita por Marcelo Carvalho Ferraz

74

(5)

Uma segunda semelhança significativa para todas as artes, é a busca estética dos dois períodos. Aracy escreve sobre este tema: “Mario de Andrade diria, o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional.”75 E continua:”Assistimos (…) a

atualização da linguagem brasileira com a do mundo

contemporâneo”76. Na década de 60 a Universidade da Bahia, com

seus professores e sua viva cidade desenvolve experiências artísticas em busca de uma linguagem própria no campo do teatro, do cinema, da música, da arquitetura, do design. Uma busca coletiva.

Com uma diferença de 36 anos entre um movimento e o outro, nota-se a meta comum de ambos: buscar uma lógica criativa própria. Infelizmente não foram suficientemente fortes para contaminar toda uma nação; tornando-se apenas significativas tentativas que serão referência e inspiração para muitos, mas não o suficiente para gerar uma revolução de comportamento.

Um dos importantes diferenciais entre os dois movimentos está no fato de que o movimento baiano tem como seu catalizador e incentivador a Universidade, enquanto o movimento modernista, se formou com o “surgimento de uma nova geração de escritores, artistas e intelectuais em São Paulo, estimulados, municiados e financiados pelos sofisticados mecenas locais.”77

Ao notar que o Avant-garde carregava em seus ombros a mesma, ou quase, importância artística da Semana de 22, António Risério descreve o nome do reitor como algo a ser gravado em cores vivas e frisa que era mais do que um reitor, pois tinha um projeto grandioso não somente para a Bahia, com dimensão cultural e social, plantando tudo isso no solo da Universidade com disposição de “tocador de obra”, gerando uma plataforma de lançamento de signos.78

A vanguarda, em linhas gerais, significa um grupo de artistas que se empenha na renovação da estética utilizando-se de uma mesma filosofia e meta. A que estamos tratando surgiu de olhares atentos as manifestações antropológicas locais. Na música, no cinema, no teatro, na arquitetura… E foram coordenadas por um reitor humanista, para o qual a cultura estava acima da finalidade econômica.

Muitos sustentam, com razão, que seria impossível imaginar a atual cultura brasileira sem o movimento baiano. O cantor e compositor

75

Idem

76

AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. p 13

77

SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento Modernista em São Paulo na década de 20. In Os Nascimentos de São Paulo. Coord. Eduardo Bueno, p 195

(6)

Caetano Veloso, que viveu a Universidade de Edgar Santos, descreve aquele período de sua vida como o de um deslumbramento pelo fato de a cidade estar tão presente na vida da Universidade. Frisando também que o ocorrido na Bahia naqueles anos é ainda pouco estudado, mas determinante para a história recente da cultura brasileira.79

É necessário para esta pesquisa colocar que, contemporâneamente com o movimento baiano, outras cidades brasileiras perceberam a importância crescente do design. No ano de 1962 foi fundada a ESDI, Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro, ligada à Escola Superior de Belas Artes. No mesmo ano, em São Paulo, ocorre a reforma do ensino da FAU, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, coordenada pelo arquiteto Vilanova Artigas, que projetava sua nova sede no Campus da USP utilizando-se do novo programa de ensino que incluía a disciplina de design.80

79 idem. Apresentação p 9

80

(7)

3.2

O PRÉ - ARTESANATO

“Nem todas as culturas são ricas, nem todas são herdeiras diretas de grandes sedimentações.

Cavocar profundamente numa civilização, a mais simples, a mais pobre, chegar até suas raízes populares, é compreender a história de um país. E um país cuja base está a cultura do povo é um país de enormes possibilidades” 81

Lina Bo Bardi

Lina, com sua sensibilidade apurada olhava para o artesanato não como é vista a cultura popular pelos brasileiros, que lhe atribuem um tom inferior, mas como uma verdadeira cultura, sem menosprezá-la. Olha para o artesanato como alternativa para um design, que use como base nossa riqueza antropológica para criar modelos próprios e não europeus.

A partir de sua estada no Nordeste começa uma titânica busca, pesquisa e coleção de objetos artesanais para montar diversas mostras sobre o povo brasileiro e sua civilização. Lina deixa clara a amplitude de sua busca quando escreve que:”(…) Não era só na Bahia, pelo menos nós do Museu de Arte Moderna. Eu me ocupei de todo o polígono da seca”82.

O resultado desta vasta pesquisa se transformou em diversas mostras em São Paulo, no Nordeste, em Roma, entre muitas outras que aos poucos receberam também outros objetos que não pertenceram ao grupo do artesanato, mas ao grupo do design. Nos catálogos das exposições, em jornais e nas edições da revista Habitat Lina tem a oportunidade de defender seu olhar e justificar seu esforço para “salvar” esta arte. Nestes textos encontram-se descrições dos valores dos usos destes objetos tão diversos que serão apresentados a seguir, por serem de relevante importância.

81

BARDI, Lina Bo. Pequenos cacos, fiapos e restos de civilizações. A Tarde Cultural. Salvador Bahia 23 de Outubro 1993 (texto original de 1980)

82

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No Nordeste, por exemplo, o couro é, provávelmente, o material mais utilizado no cotidiano. A tradicional roupa de couro do vaqueiro nordestino, se observada com cuidado, mostra que surgiu dos recursos naturais do meio e se torna uma das mais belas manifestações da arte popular, pelo seu feitio e significado.

O traje surgiu apenas como uma proteção contra o clima e as plantas da caatinga, que para sobreviverem a seca, desenvolveram uma grande resistência contra o calor e os espinhos. Eram feitas de couro de vaqueta, bode ou outros animais locais e constituíam a principal matéria prima de suas regiões.

As vestimentas em couro iam desde o chapéu, que era símbolo de status, até as botinas, incluíndo perneiras, coletes, e luvas. O chapéu merece uma atenção por ter nele, o status do vaqueiro que o usa. Seu formato e seus detalhes diziam se o vaqueiro tinha posses ou quanto valente era.83

Dentre a pesquisa de Lina os ex-votos tiveram uma grande presença. Ela colecionou alguns e fotografou vários. São cabeças feitas em madeira e, em casos raros, corpos inteiros. “ São ‘milagres’ do Sertão nordestino, modelados secularmente em barro ou esculpidos em madeira, expressão da fé pela graça recebida de um santo. Faz-se a promessa, o voto. Atendido o pedido, cumpre-se a obrigação de dar testemunho do ‘milagre’, o ex-voto, que pode assumir infinitas modalidades.”84 Eram encomendados ou feitos pelos homens que

acreditavam ter recebido uma graça divina e desejavam demonstrar publicamente sua gratidão. Os indivíduos religiosos, além de genuflaxão e da prece, penduravam no altar seu ex-voto.

O objeto em si é a materialização do acontecimento e é quase sempre esculpido pelo beneficiado. Quando feitos por escultores, somente os executam quando sentem uma íntima necessidade.

São peças simples, feitas de troncos de árvores, sem acabamento, mas muito expressivas.85

A cerâmica, como o couro e a madeira, é outro material muito comum no Nordeste. É fruto de sua terra que se transforma em objetos, cumbucas, santos e muito mais. É a manifestação do engenho e da ingenuidade em sentimentos de forma primitiva. Reproduz seus animais e cenas da vida cotidiana, com um certo bom humor e leve ironia.

Esta arte é uma manifestação espontânea porque não precisa de esclarecimento ou reflexão para entendê-la. “O artesão age inconscientemente traduzindo em formas e cores puras algo que sempre possuiu, porque herdou de seus antigos. Entre a cerâmica popular do Marajó e a do Nordeste não se pode distinguir o estado de

83 Habitat 12. Roupas do vaqueiro Nordestino. Jul/ Set 1953

84

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espírito: é sempre a mesma coisa. O ceramista longe de sua choupana e em contato com outros ambientes, perderá qualquer capacidade, pois são os humus da terra que ele respira”.86

Como se o nordestino não pudesse se intoxicar com outras informações que possam interferir em sua ingenuidade e inocência.

Com a intensidade e paixão com que Lina lidava com este objetos podemos quase julgar que eram verdadeiras obras de arte, mas, segundo ela, temos que ser atentos pois estão em uma fronteira muito próxima do mau-gosto. É o mau-gosto da peça feita não por necessidade, mas por continuidade. Na peça deve existir a simplicidade da criança, ingênua, que nós chamamos de poesia.87

Em suma, Lina expressa com clareza seus ideais em seus textos e a importância que vê em sua busca. Em um texto escrito em 1980 ela encerra afirmando que: “Com certeza a apresentação de alguns objetos de ‘sobrevivência desesperada’ pode fazer sorrir o economista e o planejador que se especializa. Mas é da observação atenta de pequenos cacos, fiapos, pequenas lascas, pequenos restos que é possível reconstituir, nos milênios, a história das civilizações”.88

86 Habitat 2. Cerâmica do Nordeste, p72. Texto sem autor.

87 Habitat 5, p 55.Texto de Lina que mostra de forma brilhante, como olhar para estes objetos.

88

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O DESIGN E A VANGUARDA BAIANA

O Design tem a tendência de aproximar a produção artística da industrial buscando o funcional, o esquema racional e a lógica. Industrializando a arte e, frequentemente, negando os adornos. Isto inicia a partir dos séculos XIX e XX quando o mundo começa a buscar uma linguagem comum, uma internacionalização do conhecimento e da forma. O advento do Modernismo e do Construtivismo, entre outros.

A vanguarda baiana, coordenada por Edgar Santos, acontece justamente para fugir desses novos e internacionais valores e olhar para as produções locais, antropológicas.

Lina, que compartilhava intensamente os princípios com o reitor, cultiva, em sua produção e pesquisa, modelos não europeus; em um local que oferecia condições para este avanço cultural.

Para poder absorver sem filtros, ou minimizando-os, Lina vive sua experiência e cotidiano com o mesmo olhar e da mesma forma que viveram os portugueses apresentados por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Os lusos, quando não tinham batatas comiam mandioca, quando não tinham camas dormíam nas redes, conforme aprenderam com os índios89. Da mesma forma, Lina absorveu os costumes locais e aprendeu com eles, ao invés de impor os seus.

Curiosamente, é a Bahia a promover estas mudanças, pela sua proximidade a massa da população que promove uma arte indigesta, seca, dura de digerir.90 Não é a cidade de São Paulo, que aos olhos

da grande maioria, tem a responsabilidade titânica de modificar o Brasil. A capital sempre destruiu o seu passado, como contam Benedito Lima de Toledo em Três Cidades em um Século e Carlos Lemos em Alvenaria Burguesa. Ambos mostrando as construções e reconstruções da capital que acabou por enterrar seu passado em toneladas de entulhos e demolições de edifícios.

O artesanato do Nordeste é muito mais rudimentar do que Lina imaginava, por isso o classifica como pré-artesanato e explica que é a forma raivosamente positiva que os homens que não querem ser “demitidos” reclamam seu direito de vida.

A matéria prima para a produção do pré-artesanato é o lixo. É o transformar o detrito em canecas, em jarras, etc.

Para Lina o artesanato popular era uma forma de agremiação, de encontro social por um motivo comum a todos, que era o trabalho gerando uma defesa mutua.91

89 Conceito retirado de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, p 47 90 BARDI, Lina Bo. Tempos de Grossura: o design no impasse p 12

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O COURO

O couro é um material muito presente na produção do nordeste. Para proteger do sol e dos galhos da caatinga, roupas, sapatos, calças, luvas. Muito é feito a partir deste material. Nas fotos ao lado e a cima alguns belos exemplos do uso do couro.

Dependendo do tipo de acabamento o vaqueiro tinha ou não posses.

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OS EX-VOTOS

Três exemplos de ex-votos, que são construído com a finalidade de pedir uma benção por algum mal ou doença. A tradicional cabeça, um corpo com, em evidência, os rins, demonstrando qual o pedido feito pela pessoa e um de corpo inteiro, que é muito difícil de se encontrar.

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AS CERÂMICAS

As cerâmicas que vão desde de utensílios para o cotidiano a santos a reproduções de momentos da vida. São produzidas com o que se tem de mais abundante; a terra.

(14)

OS RESÍDUOS

Alguns dos objetos coletados por Lina para demonstrar como o produto do Nordeste é fruto de uma necessidade extrema e não da intenção de fazer arte. São objetos que nascem do lixo para serem realmente usados pelas pessoas que os críam.

Acima à esquerda, uma caneca feita a partir de uma lata de queijo cheddar. Acima à direita uma lamparina feita com uma lâmpada queimada.

A esquerda outra lamparina feita com uma lata de manteiga e um funil.

São objetos nascidos do desespero da ausência de alternativas.

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UM PARÊNTESE PARA A ARTE POVERA

Muitos textos escritos por Lina e algumas entrevistas dadas a revistas e jornais com a temática do Nordeste trazem à luz posturas da arquiteta que remetem, quase que automaticamente, à Arte Povera italiana, “movimento” que aconteceu nas décadas de 1960 e 1970. Foi, portanto, o mesmo período em que Lina esteve no Nordeste (1958-1964).

A Arte Povera foi atípica se comparada aos movimentos tradicionais das artes. Não foi nem considerada movimento pelos críticos da época, mas de aventura coletiva ou de sensibilidade difusa. Se esta segunda expressão estiver certa, podemos pensar que esta sensibilidade atravessou o Atlântico e chegou no Nordeste.

Segundo a pesquisadora Renata da Silva Moura, em sua dissertação de mestrado intitulada Uma experiência da Arte Povera, o movimento discute a instabilidade e a precariedade, “a arte não mais como um compromisso formal, mas um acontecimento que toma lugar na vida”92

Alguns dos artistas mais significativos foram Mario Merz, Marisa Merz, Giulio Paolini, Michelangelo Pistoletto e Gilberto Zorio. Eles, entre outros, optaram por criar espaços e instalações com o emprego de formas e materiais não duráveis. Rolos de papel, jornal, plásticos, ferro, pedras, papelão, algodão, tecido, carvão,… gerando, desta forma, uma redefinição de escultura e do fazer arte.

O material coletado nas ruas, no cotidiano, nos locais mais óbvios, indo a fundo na essência dos seus usos é “quase a descoberta da tautologia estética, o mar é a água, um quarto é um perímetro de ar, o algodão é algodão, o mundo é um conjunto imperceptível de nações, o ângulo é a convergência de três coordenadas, o piso é uma porção de azulejos e a vida é uma série de ações.”93

A importância deste material utilizado e da contextualização do momento social são também enfatizados pelo crítico (atual) Paul Wood no seguinte trecho: “Impulsionada por um ceticismo em relação ao meio tradicional das ‘Belas Artes’, a vanguarda italiana abraçou uma ampla e heterogênea gama de materiais com os quais se pudesse produzir arte: Tijolos, pedras, madeiras, papelão, papel, animais, vegetais e minerais fazem parte do mundo da arte.” E

92

MOURA, Renata da Silva. Uma experiência da Arte Povera. Dissertação de Mestrado PUC-RJ , Departamento de História. Setembro 2002.

93

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complementa: “A verdadeira força da Arte Povera reside no radicalismo técnico dos seus materiais e métodos de elaboração”.94

Para exemplificar, o artista Alberto Burri utiliza madeira e ferro encontrados na rua, Lucio Fontana revoluciona o conceito de matéria com seus buracos e cortes, Pietro Manzoni (em 1961) vende uma série de latas assinadas e intituladas Merda d’ Autore com 30g de fezes vendidas a preço de ouro. Estes são alguns dos exemplos práticos de atuação da Arte Povera.

Sua grande luta contra os sistemas tradicionais de divulgação da arte, condenando o domínio dos museus e das escolas de ‘Belas Artes’, por julgarem que não se pode definir o que é arte e o que não o é, como era de praxe até então, faz com que se apóiem nas galerias de Arte, que se tornam os grandes locais de divulgação da Arte Povera.

Os galeristas organizavam exposições e faziam, em torno delas, verdadeiros eventos culturais, como aconteceu em Amalfi, em Outubro de 1986.

”Acontece a manifestação Arte Povera + Ação Pobres, com a curadoria de Celant, bem no momento culminante da fase emergente desta tendência.

Os artistas expõem os trabalhos, realizam instalações e intervenções no contexto social e natural, enquanto os críticos dão vida a um debate sobre o próprio papel e sobre o de uma nova concepção artística que age diretamente no real e na sua dimensão social e política”.95

Os artistas lutam também contra o sistema capitalista e do consumismo desnecessário, como descreve Regina Moura:”A postura dos artistas contestava radicalmente a transformação da arte em mercadoria”.96

A proximidade desta vanguarda com o pré-artesanato do Nordeste se dá por alguns pontos de contato bastante significativos.

É necessário, antes de continuar, deixar claro que a situação social e econômica dos dois países é distinta, e que Lina não faz parte deste grupo, mas aparentemente foi “contaminada”, direta ou indiretamente, pelas mesmas finalidades.

Em 1980 Lina escreve um pequeno livro sobre sua experiência no Nordeste intitulado Tempos de Grossura, o design no impasse. Nele,

94 WOOD, Paul. Arte Conceitual. P 59. Ed Cosac e Naify. São Paulo. Brasil.

95

POLI, Francesco. Minimalismo, Arte Povera, Arte Concettuale, p 83.

96

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ela dá o seu parecer sobre os seis anos vividos com uma das vertentes mais pobres do artesanato brasileiro.

Ela regressa do Nordeste em 1964 e escreve o livro em 1980, deixando um leque de 16 anos entre o fato e a teoria. Provavelmente este espaço lhe deu tempo para digerir melhor o que viu para escrever de forma mais madura suas conclusões, aproximando o resultado final aos conceitos da Arte Povera, que em 80 já estava mais definida.

O Nordestino artesão, por uma questão de pobreza e de falta de possibilidade e perspectiva, utiliza-se de matéria prima encontrada em seu cotidiano para produzir objetos que usará em seu dia-a-dia. Madeiras, latas, retalhos, lonas, pedras, barro, …

A transformação da matéria prima é simples e imediata, sem acabamentos e refinamentos. “Os ex-votos são apresentados como objetos necessários e não como ‘esculturas’, as colchas são colchas, os panos com aplicações são ‘panos com aplicações’.97

O resultado final é definido de forma direta, como os produtos finais dos italianos, mas a Arte Povera apresentava o conceito e depois os desmontava, enquanto o artesão do Nordeste faz uma caneca a partir de uma lata de óleo para poder ter uma caneca, ou ele passará sua vida sem este utensílio. Existe, de imediato, uma questão utilitária que se distancia da Arte Povera italiana, embora seus conceitos iniciais sejam semelhantes.

Para mostrar estes trabalhos toscos, que são um “soco no estômago”, como ela define, Lina utiliza uma série de espaços, inclusive museus, o que era considerado inviável pelos defensores da Arte Povera. Isto se deu, provavelmente, pelo fato dos museus brasileiros serem muito novos e não terem vicios ou pré-conceitos incrustados em sua história, abraçando todos os tipos de manifestações artísticas. Ao contrario, o museu serviria para legitimar os seus objetivos. Mais ainda, esta crítica a este sistema, que reside na arte povera, não constitui o foco de Lina, mas sim uma vontade de indicar o caminho do design no Brasil, o qual acreditava estar vinculado à arte nordestina. No entanto, por outro lado, e ao mesmo tempo, os materiais e uma outra crítica, esta sim, ao sistema artístico no âmbito do design, como o kitsch ou os produtos americanizados, era um ponto de união entre ela e seus conterrâneos.

Lina apresenta o pré-artesanato na Primeira Bienal de Arte de São Paulo (1951), no Museu do Solar do Unhão na Bahia (1959), na Embaixada Brasileira em Roma (1964), que acabou não sendo inaugurado e no Museu de Arte de São Paulo (1969).

Com estas mostras, Lina consegue substituir o papel do crítico de arte, pelo jornalista de diversos periódicos para quem ela cede

97

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entrevistas e planta a semente da discussão sobre o pré-artesanato e a dureza de sua realidade.

Mesmo tendo utilizado estruturas tradicionais para apresentar a arte do Nordeste ao público, deixa claro, como os artistas da Arte Povera, seu similar conceito de arte em uma entrevista para a revista Interview de 1983.

Para ela, “a arquitetura é arte. O arquiteto é sobretudo um artista. É arte, só não no sentido mofado das escolas de ‘Belas Artes’”98. E mesmo tendo sido casada com um renomado galerista, ter a residência com as paredes forradas de quadros e ter sido uma reconhecida ilustradora e aquarelista na juventude, afirma que: “Nunca entendi a pintura. Para mim a pintura é inútil. Tenho dificuldade para entender a pintura”99.

Sobre escultura diz que: “Acho a escultura uma arquitetura falha (risos). Não tenho muita sensibilidade pelas chamadas artes plásticas.”100

No capítulo Um balanço dezesseis anos depois, em seu livro Tempos de Grossura, Lina mostra seu horror para com o kitsch e os gadgets, condenando, como foi frisado anteriormente, o capitalismo. Ela deixa claro em suas palavras que divide também esta questão com a Arte Povera, dizendo:”A proliferação especulativa do desenho industrial – gadgets, objetos – na maioria supérfluos – pesam na situação cultural do país, criando gravíssimos entraves, impossibilitando o desenvolvimento de uma verdadeira cultura autóctone. Uma tomada de consciência coletiva é necessária, qualquer divagação é um delírio na hora atual. A desculturação está em curso.”101

Nota-se, desta forma, que muito em comum existe entre a busca de Lina no Nordeste e a Arte Povera italiana. A questão do uso de materiais extremamente banais para produzir uma arte, o não conformismo de que a arte deveria ser somente a das pinturas e esculturas e o pavor do monstro do capitalismo visto como um banalizador da produção artística.

Poderíamos ainda arriscar que uma das grandes diferenças está no fato da Itália fazer uma Arte Povera por utilizar matéria prima simples e um processo construtivo simples; enquanto o Nordeste também usa a mesma matéria prima simples, também a transforma de forma simples, mas não optou por ser povera, nasceu povera.

98

Entrevista para a revista Interview de Agosto 1983, No 63. Entrevistada por Carlos Roque. P 24 a 26

99

Idem 100 Idem

101

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3.3 BAHIA NO IBIRAPUERA

“Apresentamos a Bahia. Poderíamos ter escolhido a América Central, Espanha, Italia meridional, ou qualquer outro lugar, onde o que chamamos de ‘cultura’ não tivesse chegado”102

Lina Bo Bardi e Martins Gonçalves

De 21 de Setembro a 31 de Dezembro de 1959 aconteceu, no Parque do Ibirapuera103, a V Bienal Internacional de Artes de São Paulo. Com

a curadoria de Arturo Profili104, a mostra era composta por mais de

quatro mil obras de 46 países. A grande maioria abstratos, mas com Van Gogh e Portinari como figurativos, segundo os críticos da época.105

Juntamente com a Bienal, mas instalada em um espaço externo, a exposição de Lina Bo Bardi sobre a Bahia era considerada, junto com os figurativos, os espaços de visitação obrigatória, conforme se pode ler em diversos jornais da época que escreveram exaustivamente sobre o acontecimento da Bienal. Jornais de São Paulo, do Rio de Janeiro e do interior paulista dedicaram artigos e notas.

Menotti del Picchia, da Academia Brasileira de Letras, escreveu para o jornal A Gazeta que: “Van Gogh e Portinari com a exposição interessantissima da Bahia são os focos de atração máxima da mostra nacional”106

A Bahia no Ibirapuera foi organizada por Lina Bo Bardi juntamente com o diretor da escola de teatro da Universidade da Bahia, Martim Gonçalves, com o apoio do reitor da mesma instituição Edgar dos

102

Frase do catálogo da mostra Bahia no Ibirapuera. 1959. p 2

103

O Parque do Ibirapuera, projetado por Oscar Niemeyer, foi inaugurado em 1953 em homenagem ao IV Centenário da Cidade de São Paulo. Juntamente com a inauguração aconteceu a II Bienal de Artes. Informações no livro IV Centenário da Cidade de São Paulo de Silvio Luiz Lofego.

104

Arturo Profili era italiano, galerista e imigrou para o Brasil, em São Paulo, onde abriu a Galeria Sistina

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Santos e o então presidente do MASP, Cicillo Matarazzo. Foi promovido pelo Loide Aéreo, pelo Departamento de Turismo da Prefeitura de Salvador e pelos Diários Associados de Chateaubriand.107

A exposição trouxe uma grande amostragem do artesanato do Nordeste. Ex-votos, colchas, roupas, utensílios de cozinha, cataventos. O espaço expositivo era uma enorme sala com cenografia de Lina. O espaço era dividido por paredes onde eram penduradas as colchas e os ex-votos, nos espaços livres tótens com roupas de couro ou cubos de vidro apresentando objetos mais delicados. Compondo o espaço, ouvia-se música regional, que era tocada o tempo todo e também a arte da capoeira, que foi apresentada constantemente. Para completar o ambiente o piso foi coberto com folhas secas para que os visitantes sentissem nos pés a sensação de estarem em um espaço livre, aberto, seco; como as peças que estavam vendo. As folhas eram tão importantes que eram trocadas cotidianamente.108

Lina deixou claro em sua escolha de peças e cenografia que não era uma mostra de folclore, mas de arte viva, em movimento, “cheia de realidade humana”.109

As colchas de retalhos que ela havia visto nas feiras do Nordeste, por exemplo, com o olhar de quem conhecia Mondrian, mas não tinha a intenção de tirar o objeto de seu contexto. “Ela não vê os objetos como ingênuos ou espontâneos, mas pela sua integridade e como solução criativa diante de um problema”.110

A competência da mostra pode ser percebida através das palavras do escritor Jorge Amado, cujas diversas obras ambientadas no Nordeste mostram o seu profundo conhecimento desta região. Ele escreveu para o reporter do jornal Ultima Hora o seguinte texto sobre a exposição que apresentava ao mundo o Nordeste que ele conhecia tão bem:

“Documentário de uma cidade, tomada de consciência de uma escola ante a vida de sua cidade, esta exposição vai muito além do folclore, do simples pitoresco, penetra fundo na realidade e nos mistério da Bahia. Cidade única do Brasil, onde mais densa e nobre se faz a mistura das raças, característica maior de nossa cultura. Salvador da Bahia é feita de poesia e de drama, de beleza antiga e de duro trabalho, de ritos de gentileza ultra civilizada e de negras pedras onde se entranhou o sangue dos homens escravos. Seu mistério é superficial e turístico, sua realidade não é simples e fácil.”111

107 Informações dadas pelo Jornal Folha da Manhã de 8 de Novembro de 1959 108 Conforme descreve o catálogo da mostra

109 Idem

110 GALLO, Antonella. Lina Bo Bardi architetto p 68

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O que movia o arquiteto para lutar pelo artesanato, transportá-lo e apresentá-lo de forma tão brilhante e cuidadosa não era a intenção de conservação e estagnação das obras, mas encontrar nelas uma revolução. Buscava uma alternativa brasileira para o campo do design.

Buscava mostrar à artistas e críticos uma belissíma arte brasileira sem interferências externas. Uma arte repleta de força e significado, ao invés de olharem para a Europa em busca de inspirações e referências.

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CENOGRAFIA

Duas vistas do espaço da exposição com os objetos e as folhas secas no chão que eram trocadas cotidianamente para que o visitante sentisse o constante barulho, ao caminhar, de quem está em um local aberto.

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EXPOSITORES

Uma divisória suspensa em madeira serviu de base para expor as colchas de retalho que foram frequentemente utilizadas nas exposições coordenadas por Lina e também frequentemente citadas nos seus textos.

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DETALHES

Cataventos apresentados como o fazem os vendedores quando os oferecem ao cleintes nas ruas.

Transformar o singelo brinquedo em uma bela arquitetura de textura e sombras.

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OBJETOS

Lamparinas e castiçais feitos a partir de vidros e latas metálicas de manteiga, óleo e queijos.

Carranca esculpida em tronco maciço de

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3.4

EXPOSIÇÃO NORDESTE.

O SOLAR DO UNHÃO

O MUSEU DE ARTE NO TEATRO CASTRO ALVES

O MAMB (Museu de Arte Moderna da Bahia) funcionou provisoriamente no foyer do Teatro Castro Alves, antes de mudar-se definitivamente para o Solar do Unhão.

Este breve período de transição merece uma certa atenção pois Lina desenvolveu, para o teatro, as poltronas. Objetos de estrutura extremamente fácil de ser executada e assento e encosto em sola com amarrações em baixo e nas costas. Um sistema barato, eficiente e belo, como era de praxe nos projetos da arquiteta. Neste período Lina não chamava o MAMB de Museu, mas de escola, centro, movimento, por não ter acervo formado.112

Poltronas com estrutura em madeira maciça e couro com sistema de encaixe na madeira e amarração por baixo, desenvolvidas para o auditório do Castro Alves

Estudos desenhados por Lina do sistema de montagem das poltronas do Castro Alves

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O MUSEU DE ARTE NO

SOLAR DO UNHÃO

O Museu de Arte Popular da Bahia, em Salvador, é uma obra de restauro de Lina de 1959.

O que está documentado é que o complexo de edificações, no século XVII era residência do então Desembargador Pedro Unhão Castelo Branco, de onde veio o atual nome. O espaço se tornou, com o passar dos anos, engenho de açucar, curtume, fábrica de rapé, depósito de inflamáveis da “Standard Oil” e quartel dos Fuzileiros Navais.

Após a Segunda Guerra Mundial, com o decreto de desapropriação pelo Governo da Bahia, o edifício do Solar foi doado para sede do Museu de Arte Moderna da Bahia que, após o restauro de Lina, se tornou o Museu de Arte Popular da Bahia.

O conjunto é composto por cinco unidades interligadas, com exceção da igreja. O Solar é o edifício principal que fica à beira-mar e conta com três pavimentos.113

O programa para o restauro desta construção incluía o Museu de Arte Popular, oficinas, um centro de documentação de arte popular e um centro de estudos técnicos que propunha a passagem do pré-artesanato primitivo à indústria, incentivando o quadro do desenvolvimento do país.114

Este Museu, que não foi um museu no sentido tradicional por não ter um acervo criou atividades direcionadas a criação de um movimento cultural, como um centralizador da força do humanismo local.115

O Solar do Unhão, como é atualmente conhecido, se tornou um museu que não foi pensado como um espaço para o folclore que, segundo Lina, é uma definição criada para uma documentação estética da cultura definida pela elite. O espaço deveria ser para as artes vistas como acontecimentos do cotidiano. Por isso a ênfase em chamá-lo de Arte Popular.116

A exposição que inaugura o Unhão em 1963 foi coordenada por Lina com o titulo de Nordeste, mas segundo ela o correto teria sido chamá-la de Civilização do Nordeste, com a intenção de enfatizar o aspecto prático da cultura. É a vida dos homens em todos os momentos, das colheres, às armas, às roupas, às redes,…

113

Informações encontradas em uma edição de 10 de Junho de 1961 do Jornal da Bahia. Sem autor.

114 Descrição no Livro Lina Bo Bardi coordenado por Marcelo ferraz, p 161 115 Idem

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Objetos de uma beleza e rigor que somente a presença constante da realidade pode oferecer.117

Em uma entrevista dada em 1963 sobre o Solar ela afirmou:”Nos anos 60 fizemos – digo fizemos porque nessa época Glauber (Glauber Rocha, cineasta) estava comigo além de uma turma muito importante – na Bahia, o conjunto do Unhão, em Salvador, já tombado diante de sua importância histórica.

Era o trapiche, uma fábrica construída no início da industrialização. Foi um trabalho importantíssimo inaugurado em 1963, com exposições não menos importantes.”118

A infinidade de objetos nesta mostra apresenta caminhos dados ao lixo quando é trabalhado com design, com rigor técnico, sem abstrações, mas ligados diretamente aos materiais com que são criados. Lâmpadas queimadas se tornam lamparinas, retalhos viram colchas, latas de manteiga e óleo viram canecas ou castiçais, …

Todos os objetos foram apresentados de forma muito simples, em estantes feitas com tábuas de madeira sem acabamentos primorosos ou refinados, utilizando encaixes simples, que lembram as caixas utilizadas para o transporte de laranjas. Em todas as mostras de Lina sobre o Nordeste, até este momento, os suportes para as obras são simples tábuas de madeira encaixada ou com poucos pregos e parafusos.

Esta mostra se encerrou prematuramente em razão a invasão dos militares em Abril de 1964, que fizeram com que Lina abandonasse o Nordeste e retornasse a São Paulo. Foram os mesmos motivos políticos que tiraram Edgar Santos da Reitoria, e Martim Gonçalves da Universidade.119

O crítico de arquitetura Hugo Segawa lembra que neste período “o Brasil conheceu uma década de presidentes indicados pelos militares. O período foi trágico para a democracia latino-americana, tomada por ditaduras tecnocráticas e intolerantes. Intolarância que, no Brasil, perseguiu sobretudo os intelectuais e simpatizantes da esquerda – presos, mortos ou exilados. Niemeyer passou este período em Paris.”120

O período Militar funcionou como uma fissura dentro do processo evolutivo da arte brasileira. Muitas sementes que tinham sido plantadas com muito trabalho por Lina e por muitos outros não encontraram solo para crescerem e sumiram.

117 Conceito no livro Lina Bo Bardi coordenado por Marcelo Ferraz, p159

118

INTERVIEW No 63 Agosto 1983. P 24 a 26. Entrevista com Carlos Roque. 119 Conceito no livro Lina Bo Bardi de Marcelo Ferraz. P 162

120

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Estante feita com algumas tábuas e baguetes internas para apoio das prateleiras, mostrando lamparinas feitas com latas de metal. Manteiga, óleo, …

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Uma simples e elegante forma de

apresentar pilões. Parte colocada sobre uma base e parte suspensa.

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Um tear manual para mostrar a importância de como trabalham as mãos para se ter um tecido.

Uma singela e eficiente forma de apresentar as cerâmicas, sobre uma base de madeira levemente elevada do piso.

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Canhões da Revolução Militar diante do Teatro Castro Alves em Abril de 1964. Foto de Lina Bo Bardi. Acervo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

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CAPITULO 4

SÃO PAULO, O SALDO

“O Design é a necessidade do mundo de se sentir global. Inteiro. Humanos vivendo em um sistema internacional.”121

António Risério

Ao retornar a São Paulo, por causa da invasão dos militares em sua mostra no Museu do Unhão sobre o Nordeste, Lina continua sua luta em defesa do artesanato brasileiro como caminho para a descoberta de uma arte própria, mas neste momento ela permite, aos poucos, a entrada do design. Nas diversas mostras que organizou no Sesc esta mudança é nítida, pois conforme mudam as exposições ela insere objetos industrializados, como se mostrasse uma evolução.

Neste caminho ela trava uma luta inglória contra a invasão do kitsch, ela abomina o carpete e o ar condicionado, os coelhos da páscoa e os Papais Noéis, entre outras coisas.

Nesta luta a arquiteta não está sozinha, mas diversos artistas demonstram o mesmo desejo. O recifense Gilberto Freyre escreve:”Precisamos nos desembaraçar da excessiva imitação do europeu e do americano, para criarmos beleza, arte, vida, com nossos próprios valores”.122

Nas mostras ela compara os objetos simples e de extrema expressividade e simbologia que pesquisou no Nordeste com o que se produzia em São Paulo. O choque foi significativo. A cidade tinha sido invadida por projetos gratuitos e inúteis, enquanto no artesanato os objetos são de uso cotidiano, sem serem descartáveis. Os ex-votos são necessários e não são esculturas. Colchas são colchas e aplicações são aplicações.123

121 RISÉRIO, António. Avant garde na Bahia, p 73

122

FREYRE, Gilberto. Antecipações, p 29

123

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Para Lina, entender a diferença entre estes dois mundos e entender a arte popular pelo seu valor instrínseco significa ver um Brasil independente, desvencilhado dos “importados”, sem complexo de inferioridade ou medo do seu próprio produto.

Consciente do obstáculo que significava mostrar o potencial do artesanato brasileiro Lina afirmou: “ A grande dificuldade está em olhar para estes objetos como sobrevivências naturais de uma manualidade e não por uma exigência turística de que o que é feito a mão é melhor do que o feito a máquina”.124

Paralelamente Lina dizia em relação ao futuro da arte brasileira que: “ A proliferação especulativa do desenho industrial, -gadgets, objetos superfluos- pesam na situação cultural do país, criando um gravíssimo entrave, impossibilitando o desenvolvimento de uma verdadeira cultura. Uma tomada de consciência coletiva é necessária. A desculturação está em curso”125

Abraçada a esta visão dramática está a opinião de Lina sobre a cidade de São Paulo, criando, desta forma, um conjunto muito negativo de fatores que a fizeram escrever muito nos anos que seguiram (de 1964 à 1992) e criticar o que era feito.

Em uma entrevista para o jornal italiano Il Corriere della Sera, quando questionada sobre a cidade de São Paulo, ela disse: “ Vejo São Paulo como a maior porcaria existente. É uma cidade que pode ser comparada ao Principato de Mônaco, é totalmente distinta do resto do Brasil. Cresceu espontaneamente, mas não tem nada a ver com o Brasil”.126

Como a resposta à esta visão negativa e, extremamente frustrada pela ação dos militares Lina segue estes anos apresentando projetos arquitetônicos repletos de simbologias, como o Sesc Pompéia, e projetos de mobiliários muito mais simples e essencias do que que ele criou até 1958, como a cadeira Frei Egidio e a Girafinha.

124 BARDI, Lina. Tempos de Grossura, O design no Impasse, p 26 125 Idem, no texto: Um balanço 16 anos depois. p 11

126

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4.1 EXPOSIÇÃO NORDESTE EM ROMA

A mesma mostra apresentada no Solar do Unhão em 1963 foi para Roma em 1965 sob convite do Itamarati, mas quando tudo estava pronto, na Galeria de Arte Moderna de Roma veio uma “ordem superior” por telegrama mandando cancelar a inauguração e a mostra.

O implacável e inteligente crítico de arte e arquitetura Bruno Zevi escreveu um belíssimo artigo no cotidiano L’Espresso sobre o ocorrido. Ele denuncia mais uma violência da ditadura militar que ocupava o poder no Brasil: a proibição da realização, em Roma, da mostra.

Zevi detinha um razoável conhecimento do Brasil. Em 1959 tinha participado como convidado ao “Congresso Internacional Extraordinário da Associação Internacional de Críticos de Arte em Brasilia e teve um embate com os estudantes sobre a dicotomia Brasília/ pobreza.127 Esta sua postura permaneceu por muito tempo. No mesmo texto sobre a mostra de Lina escreve: “A mostra é a coragem de apresentar-se ao mundo com os valores culturais da pobreza, em resumo, um ato irreversível de ruptura e liberação. (…) De um lado, aquilo que o povo produziu, testemunho de infinito sofrimento; do outro, a cidade Kafquiniana, autoritária e exibicionista (tratando de Brasília)”.128

A consequência deste ato foi uma carta de Lina para Zevi, de 12 de Agosto de 1964, pedindo que ele se retratasse, com as seguintes palavras:

“A fragilidade dialética de Brasilia, da arquitetura de Brasilia é somente uma fragilidade de hoje. A grave alternativa de toda a cultura de hoje: uma cultura pobre. Milhões de homens em sofrimento. Toda uma herança desmistificada. Tudo de forma nua, sêca, feito de milhões de homens sem exaltações, sem fugas.

O problema de todos, hoje, é de construir, com este material pobre, uma cultura.”129

Novamente Lina defende o Brasil com o argomento de que a arte é a simplicidade, do material pobre, que se usa para construir a vida. Não somente Brasilia, as arquiteturas, os objetos, as colchas de retalhos…

127

Texto escrito a máquina nos arquivos do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, mas sem autor.

128

ZEVI, Bruno. L’ Arte dei Poveri fá Paura ai Generali. L’ Espresso, Roma, 14 de Março 1965

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Quatro imagens da montagem da mostra do Nordeste em Roma que não foi inaugurada por motivos políticos.

Fotos de Oscar Savio

Imagens do arquivo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

Objetos de uso cotidiano faziam parte da exposição em Roma que queria levar ao europeu a genialidade da necessidade do brasileiro mais humilde

Foto: Oscar Savio

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Objetos espirituais, ou de crenças locais, como a carranca que “espanta” o mau tempo dos pescadores, e o ex-voto que agradece a graça recebida faziam parte desta mostra que nunca foi vista pelo público.

Fotos: Oscar Savio

Imagens do arquivo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

Em toda a pesquisa sobre os objetos de Lina, este projetor de filmes é visto somente nesta mostra. Não se sabe sua origem exata, mas por estar entre os selecionados por Lina deve ter um valor simbólico ou histórico. Foto: Oscar Savio

Imagens do arquivo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

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O MASP E A MÃO DO POVO BRASILEIRO

Ao retornar do Nordeste em 1964 Lina dedica-se ao projeto do Masp na Av Paulista, que tinha sido iniciado em 1957 e foi inaugurado somente em 1968. Hugo Segawa em seu livro Arquiteturas no Brasil 1900-1990, explica que:”O Brasil, na segunda metade dos anos 1960 e o início dos anos 1970, passava por uma época de pujança econômica. Parte do legado da arquitetura dos anos 1950-1960 encontrou caminho de viabilização nos anos do ‘milagre’”.130

Confirmando esta frase Lina conta, em uma entrevista, que: ”O projeto do MASP é de 1950, mas começou em 1960 e parou pois não se tinham os meios, tinha confusão política. Depois, com a prefeitura de Prestes Maia e Faria Lima o Museu foi concluído rapidamente. Em 1968 e foi inaugurado pela Rainha Elisabeth da Inglaterra”.131

Mesmo tendo sido projetado em 1957, anteriormente ao período em que viveu no Nordeste, o Masp absorveu influências do olhar que a arquiteta desenvolveu no período de ausência. Ela mesma coloca que: “Aproveitei ao máximo a experiência de cinco anos passados no Nordeste, a lição de experiência popular, não como romantismo folclórico mas como experiência de simplificação” e mais adiante ela continua:”Eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e os arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas. O concreto como sai das formas, o não acabamento, podem chocar toda uma categoria de pessoas.”132

Em 1969 a mostra A Mão do Povo Brasileiro se deu no recém inaugurado Masp na Av Paulista, apresentando artesanato e arte popular, como nas duas mostras precedentes, a do Solar do Unhão e a de Roma.

A Veja, de 25 de Junho de 1969, descreveu a mostra com as seguintes palavras: “Dois mil objetos. Instrumentos de trabalho, rendas, colchas de retalhos, brinquedos, ex-votos e peças decorativas. Metade dos trabalhos veio da colação particular de Pietro e Lina. Lina percorrendo à mais de vinte anos o Brasil num Jipe, não buscando o folclore ou artesanato que se repete, mas momentos de inspiração em que estes artistas anônimos criam obras dignas dos maiores mestres.

Ferro velho, medeira, papel, borracha, vidro, palha. Tudo serve de matéria prima para o espírito inventivo do brasileiro.

130

SEGAWA. Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. p191

131 NICOLÓ, Tino e PROIETTIS Gianni. Un’ Adorabile Eccentricitá. Il Corriere della Sera. 1o Setembro 1986.

132

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As colchas da Bahia tem, segundo Bardi, o mesmo rigor da abstração geométrica encontrado no holandês Pier Mondrian, um dos homens que revolucionaram a pintura deste século.

Palavras de Pietro e Lina ‘uma lição de arte dada por gente humilde que nunca ouviu falar em Bienais nem em salões de Arte Moderna.”133

Lina insiste nesta mostra de artesanatos (ou pré-artesanatos, como preferia ela) para mostrar, na grande metrópole do país, São Paulo, a força deste trabalho que ela coletou com paciência e dedicação.

As obras, segundo ela, não estavam lá para gerar consolação nos visitantes, ou para enobrecer os trabalhos acima de suas possibilidades, nem mostrar uma produção que lembrasse a miséria. Para ela tudo o que lembra a miséria devería ser destruído.

As peças mostram trabalhos belíssimos de primorosa qualidade e que nasceram de uma necessidade e esta é a meta da mostra.

A POLTRONA DO AUDITÓRIO DO MASP. 1968

Quando o projeto do novo Masp na Avenida Paulista chega ao fim, em 1968, Lina projeta uma poltrona para seu auditório que é recusada pela administração do Museu por ser mais onerosa que um produto convencional. Esta poltrona se amarra, visualmente, aos móveis do SESC, de linhas simples, com forte geometria e madeira maciça. O desenho recorda as cadeiras do auditório do Sesc, com seu corte central e os apoios de braço em tábua de madeira maciça. Sendo o Sesc posterior ao Masp pode-se deduzir que o teatro do Sesc tenha se inspirado nestas poltronas, mas mais simplificado como sistema construtivo. Existem somente poucas peças executadas.

Poltrona em madeira maciça projetada para o Masp da Av. Paulista que, no final, não foi utilizada. Os protótipos estão no Instituto Lina Bo e P M Bardi

Foto: Roberta Cosulich

133

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4.3 O SESC E CINCO EXPOSIÇÕES

4.3.1 O SESC

O logotipo do SESC Fábrica da Pompéia com sua chaminé de flores.

“Uma galeria subterrânea de ‘águas pluviais’ (na realidade o famoso corrego das Águas Pretas) que ocupa o fundo da área da Fábrica da Pompéia, transformou a quase totalidade do terreno destinado à zona esportiva em área non edificandi. Restaram dois ‘pedaços’ de terreno livre, um à esquerda e outro à direita, perto da ‘torre-chaminé-caixa-d’água’ –Tudo meio complicado. Mas como disse o grande arquiteto norte-americano Frank Lloid Wright: ‘As dificuldades são nossos melhores amigos’.

Reduzida a dois pedacinhos de terra pensei na maravilhosa arquitetura dos fortes militares brasileiros, perdidos perto do mar, ou escondidos em todo o país, nas cidades, nas florestas, no desterro dos desertos e sertões. Surgiram assim os dois ‘blocos’, o das quadras e piscina e o dos vestiários. No meio a área non edificandi. E… como juntar os dois ‘blocos’? Só havia uma solução: a solução ‘aérea’, onde os dois blocos se abraçam através de passarelas de concreto protendido.

Tenho pelo ar-condicionado o mesmo horror que tenho pelos carpetes. Assim, surgiram os ‘buracos’ pré-históricos das cavernas, sem vidros, sem nada. Os ‘buracos’ permitem uma ventilação cruzada permanente.

Chamei o todo de ‘Cidadela’, tradução da palavra inglesa goal, perfeita para um conjunto esportivo.

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Meu grande amigo Eduardo Subirats, filósofo e poeta, diz que o conjunto da Pompéia tem um poderoso teor expressionista. É verdade e isso vem de minha formação européia. Mas eu nunca esqueço o surrealismo do povo brasileiro, suas invenções, seu prazer em ficar todos juntos, de dançar, cantar. Assim dediquei o meu trabanho da pompéia aos jovens, às crianças, à terceira-idade: todos juntos.”134

Com este texto Lina descreve o belo SESC-Fábrica da Pompéia, que é um dos seus trabalhos mais primorosos. Competente funcionalmente e repleto de simbologias e cuidados com os materiais e acabamentos que usariam. Lina afirma, modestamente, ter encontrado uma fábrica linda e que eles ( o grupo que trabalhou no projeto) não fizeram nada. Simplesmente colocaram um pouco de água e uma lareira. O restante do projeto foi feito pelas lindas almas que o utilizam.135

Ao falar do Sesc a arquiteta sempre deixou claras suas preocupações com o uso do espaço, projetando-o para o público. Uma verdadeira construção de caráter socialista como ela sempre buscou. Em todas as suas arquiteturas públicas ela pensou no usuário como ponto de partida e é no Sesc onde ela consegue, finalmente, alcançar esta meta. Ela esclarece em uma entrevista à Folha de São Paulo sua decepção com a cidade. “Lina disse também que a cidade ficou horrorosa e não há mais o convivio humano. Os prédios são fechados, as praças acabaram e já não há locais de encontro de pessoas para o simples bate-papo. Até os botequins foram engolidos pelos supermercados”.136 É esta carência que ela tenta, e consegue,

suprir. Ela mesma diz: “Para mim é uma pequena experiência socialista, de convivência em comunidade, com um calor humano que faz com que as pessoas não se sintam sozinhas no mundo”.137

Pietro Maria Bardi, no catálogo da primeira exposição do Sesc, O Design no Brasil: história e realidade, nota que “A decisão de transformar o conjunto industrial num centro de lazer inaugura no Brasil o ciclo, que espera promissor, da assim chamada arqueologia industrial, iniciativa que contribui para manter a memória”138.

A preservação de edifícios na “Grande Cidade” nunca foi muito aplicada pelo poder público, limitando-se, até então à obras coloniais, ou clássicas. Próximo ao Sesc estão as caldeiras da fábrica Matarazzo

134

BARDI, Lina Bo. O Bloco Esportivo. Casa Vogue No 6, Nov-Dez 1986. p 134 à 141 135 No livro Lina Bo Bardi, de M.Ferraz, p 220

136

SOARES, Dirceu. Um Centro de lazer na Cidade Morta. Folha de São Paulo. 19 de Janeiro de 1978

137

NICOLO, Tino e PROIETTIS, Gianni.Una Adorabile eccentricitá. Corriere della Sera. 01 Setembro1986

138

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que foram tombadas à poucos anos, em relação à obra do SESC, mas que são, provávelmente, frutos deste primeiro “estopim”.

Duas citações ilustram com propriedade a importância do projeto do ponto de vista da cidade e do usuário. A primeira, que coloca o Sesc na escala urbana diz:”Lina transformou uma velha fábrica de latões metálicos em um estraordinário pedaço de cidade que vive como deveria viver toda a cidade”139

A segunda, que fala da experiência individual dentro do espaço é a dedicatória deixada por Darcy Ribeiro no livro de visitas do Sesc: “Vivo minha vida aprendendo sem parar, às vezes dói, às vezes encanta. Nunca me lembro de, num pedaço de tarde, ter aprendido tanto. O Brasil precisa ver este centro de lazer, que é uma árvore, para fazer dele semente.”140

Lina não projetou somente o espaço e seus acabamentos, mas toda a mobília utilizada. As poltronas, sofás e mesas do espaço de convívio, as mesas e cadeiras da biblioteca, os “caixotinhos” para as crianças brincarem e estudarem, o teatro e a mobília do refeitório.

São objetos que “conversam” com o espaço pela sua simplicidade, sobriedade e simbologia. São duros e secos, como o artesanato que viu no Nordeste, mas sem cor, com detalhes que os tornam geniais e distintos. São exatamente como descreveu Ruth Verde Zein:”Na Fábrica da Pompéia, com sua aparente secura formal, não falta nunca elaboração e recriação”.141

As cinco exposições que serão apresentadas neste capítulo mostram um caminho diferente das exposições feitas até então por Lina, que eram densamente dedicadas ao artesanato. Nestas ela se abre para novos objetos, permitindo a entrada de produtos industrializados complementando o artesanatos que ela vinha mostrando até então; como se fosse uma evolução do outro ou um contraponto.

Isto se deu, provávelmente, pelo fato do Sesc não ser um museu tradicional, permitindo ousadias de curadoria e possibilitando a visita de um público mais amplo que ela quer alcançar. Outro motivo para esta “permissão” de entrada de novos objetos pode ter se dado por ela ter se aproximado da indústria, apresentando outros sintomas interessantes. É o design entrando no mundo do pré-artesanato.

139

LAMPUGNANI, Vittorio Magnano. Centro Sociale Sportivo “Fabbrica Pompéia”. Revista Domus No 717 Junho 1990. p 50 à 57

140

Frase escrita por Darcy Ribeiro no livro de visitas do SESC Pompéia em 17 de Abril de 1983.

141

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A rua central do SESC com os galpões preservados da antiga fábrica de tambores com as novas e enormes portas em madeiras que são de acesso aos espaços

Foto: Paquito

Os dois blocos esportivos que se abraçam por enormes passarelas, suas aberturas que lembram buracos grotescos de cavernas e a torre-chaminé-caixa d’agua

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O Salão principal do SESC com a presença da água pelo “rio São Francisco” e a presença do fogo pela grande lareira em ferro preto ao fundo à esquerda.

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4.3.2 MOBILIÁRIO DO SESC

O SESC, a Fábrica da Pompéia é um dos projetos mais emocionais de Lina. Utiliza toda a sua geometria, mas é repleto de simbologias. Não seria exagero dizer que ele soma toda a experiência da arquiteta formado, que veio ao Brasil, que viveu no Nordeste e que voltou à São Paulo e acumulou seus sentimentos neste projeto.

Respeitando a arquitetura, o mobiliário é simples e responde perfeitamente as necessidades do usuário. Feito em madeira maciça tem um impacto visual muito forte e com linhas sóbrias que lembram a dureza que ela lia nos objetos do Nordeste. Pesados e maciços, não são muito “móveis”, se parecem mais com arquiteturas.

As mesas quadradas tem pés centrais, um ou dois dependendo da necessidade, de secção quadrada e tampos espessos. As mesas redondas da biblioteca tem os seus apoios nas extremidades e não são somente pés, mas pequenas estantes para apoio de livros ou bolsas. Lembram nitidamente o sistema utilizado por ela na exposição Nordeste no Solar do Unhão.

As cadeiras utilizadas na biblioteca e no refeitório são compostas por três grandes peças de madeira: o assento, o encosto que vai até o piso e uma terceira peça que dá apoio ao assento e travamento ao encosto. Um sistema simples e inovador para montagem de uma cadeira. O único detalhe está na parte alta do encosto que tem uma fenda vertical que pode ter sido feita para apoio da coluna cervical, ou como contraponto ao corte inferior para encaixe da terceira peça. No começo algumas cadeiras tinhas um couro amarrado no encosto, mas com o tempo foram retirados e colocados em desuso. As cadeiras do teatro utilizaram a mesma linguagem do encontro das cadeiras da biblioteca, mas são contínuas, divididas somente pelos apoios de braços.

Os sofás e poltronas da sala de convívio são grandes caixas, com estofamento aparafusado, componíveis que podem ser utilizadas individualmente ou coletivamente, quando se juntam diversas. Estes mesmos móveis serão utilizados por Lina, posteriormente, no projeto do Centro de convivência da LBA em Cananéia, São Paulo (1988).142

Um dos projetos mais inovadores de Lina é o “caixotinho”. Esta pequena caixa cortada na diagonal com uma de suas superfícies rebaixadas criando um sistema extremamente simples e eficiente para crianças utilizarem como mesas e poltronas. Todas as partes tem rodinhas, facilitando o transporte e a montagem. A criança é

142

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livre para participar da disposição e utilizá-la sozinha ou com um grupo de amigos para jogar, desenhar, ler. Objeto de um desenho carregado de força e extremamente duro.

O mobiliário do Sesc inaugura uma nova fase na produção da arquiteta. Se comparados à produção do Studio Palma (1951) ou aos móveis do primeiro Masp da rua 7 de Abril (1947), nota-se uma mudança significativa no peso visual da peça e no não acabamento dos pés. As primeiras mobílias eram leves, em sua maioria com estrutura em madeira, mas com o afinamento dos pés ao encostarem no piso, um cuidado com os encostos de braço, o uso de couro, tecido e fibras. A mobília do Sesc, em contra partida, é firmemente colada ao piso, com toda sua pesada estrutura apoiando-se. Ao olhar se nota somente a madeira. Em poucos momentos se vê a lona do estofado das poltronas e o couro dos encostros. É a madeira maciça que predomina. Aparentemente é a evolução das estruturas criadas para as mostras do Solar do Unhão e de Roma ou, igualmente, da escada do Solar do Unhão.

São objetos únicos pois não se tinha, naquele período, nada nesta linguagem. Os demais designers, como Sergio Rodrigues ou Tenreiro utilizavam madeira, mas de uma forma completamente diversa.

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O ESPAÇO DE CONVÍVIO

O módulo do sofá do SESC que pode ser composto conforme a necessidade, feito em tábua de madeira maciça e estofamento forrado com curvim

Foto: acervo Instituto Lina Bo e P M Bardi

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A BIBLIOTECA

As mesas da biblioteca do sesc feitas em madeira maciça. A redonda com prateleiras que lembram as estantes das mostras do Nordeste. As cadeiras são muito mais pesadas, fisicamente e visualmente, das projetadas até 1958.

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O CAIXOTINHO

Este belo móvel feito para crianças é chamado de caixotinho. É um dos objetos mais simples e mais eficientes do SESC. O conceito é o de um cubo cortado na diagonal, com uma de suas tampa superior rebaixadas. Desta forma, tem-se uma mesa e uma cadeira componíveis e transportável, por ter rodinhas.

Imagem

Foto de Lina Bo Bardi. Acervo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi

Referências

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