LITERATURA I N F A N T I L E MITO (CONCLUSÃO)
UaAia. Magaty TtUndadt GONÇALVES*
O que a q u i pretendemos é somente f a z e r al. gumas reflexões sobre l i t e r a t u r a i n f a n t i l e pen samento mítico, sem q u a l q u e r p r o p o s t a de um d i s ; c u r s o u n i f o r m e ou r i g i d a m e n t e ordenado e, apesar do título, de forma nada c o n c l u s i v a .
Surge uma p r i m e i r a questão, no caso da l i . t e r a t u r a i n f a n t i l , r e l a t i v a a seu enquadramento num campo específico. T r a t a - s e de um tema a s e r d i s c u t i d o no âmbito da Didática ou na T e o r i a da L i t e r a t u r a ? Poderíamos p r e l i m i n a r m e n t e a d m i t i r como válidas as duas p o s s i b i l i d a d e s , não p a r a f u g i r ã polémica h o j e c a n d e n t e e, a s s i m , e v i t a r as conseqüências de uma tomada de decisão, mas como p r o c e d i m e n t o o p e r a c i o n a l no encaminhamento do as
s u n t o . Que se t r a t e de um tema da T e o r i a Literá r i a p a r e c e , a nós p a r t i c u l a r m e n t e , p o n t o pacífic co, já que sua adjetivação - " i n f a n t i l " - não a n u l a sua n a t u r e z a s u b s t a n t i v a - a de "literátu r a " . Que s e j a questão própria da Didática p a r e ce-nos afirmação menos tranqüila, proposição
aceitável apenas quando r i g o r o s a m e n t e e x p l i c i t a da.
F i q u e bem c l a r o , já de início, que não e s t a mos a c o n f i r m a r uma visão da l i t e r a t u r a i n f a n t i l que a r e d u z a ã c a t e g o r i a de i n s t r u m e n t o de ensi. no e, como t a l , r i g o r o s a m e n t e d e s p r o v i d a de e s t a t u t o próprio, a s e r e n c a r a d a e x c l u s i v a m e n t e em sua " u t i l i d a d e " , como um e n t r e o u t r o s r e c u r s o s didáticos, e n q u a n t o meio, em suma, e j a m a i s como v a l o r em s i . O c o r r e que a l i t e r a t u r a (a i n f a n t i l i n c l u s i v e ) i n s c r e v e - s e no p l a n o estético, sendo p o r t a n t o e s s e n c i a l m e n t e um f a z e r , um e x p r i m i r e um conhecer, no já f a m i l i a r tripé f o r m u l a d o p o r e s t u d i o s o s como L u i g i Pareyson e A l f r e d o B o s i . A l i t e r a t u r a i n f a n t i l , a s s i m , como forma de c o n h e c i m e n t o que também é, tem p o r n a t u r e z a um p a p e l e d u c a t i v o , uma função, diríamos nós, p r o v o c a d o r a de c r e s c i m e n t o . Como t a l e l a i m p l i c a uma questão que se p o d e r i a c l a s s i f i c a r g e n e r i c a m e n t eí
como pedagógica, o que não a u t o r i z a , e n t r e t a n t o , que se a i g u a l e a um m a t e r i a l p a r a exercício g r a m a t i c a l (como os t e x t o s e s c o l a r e s de caráter es t r i t a m e n t e i n s t r u m e n t a l ) .
Também não se j u s t i f i c a uma a t i t u d e que r e l e g u e a l i t e r a t u r a i n f a n t i l a uma posição i n f e r i o r ã das ciências, e s t a s de u t i l i d a d e (até ne
c e s s i d a d e ) o s t e n s i v a , como se e l a r e p r e s e n t a s s e apenas um l u x o permissível em situações mate r i a i s favoráveis, mas sem q u a l q u e r premência, o supérfluo na p r o s p e r i d a d e . Educar é c a p a c i t a r o indivíduo p a r a a v i d a s o c i a l e, p o r t a n t o , p a r a o t r a b a l h o , d e n t r o de um s i s t e m a de produção, mas nunca em s e n t i d o g r o s s e i r a m e n t e l i m i t a d o e ime d i a t i s t a . É p r o p i c i a r ao indivíduo a aquisição de dados, c a p a c i d a d e de uso das f a c u l d a d e s men t a i s , competência, t u d o que l h e possa p e r m i t i r v i v e r , mas em s e n t i d o p l e n o , r e s p e i t a n d o sua na t u r e z a de Homo Fáber e de Homo Ludens, o i n s t i n t o de produção e o i n s t i n t o lúdico, e n t e n d i d o es t e último em t o d a sua a m p l i t u d e e v i t a l i d a d e (a g r a t u i d a d e do b r i n c a r é apenas a p a r e n t e ) . Quando a f a c e "Ludens", capaz de c r i a r a p a r t i r do j o go, é pouco f a v o r e c i d a p e l o p r o c e s s o e d u c a t i v o a f a c e "Fáber", ao contrário do que se pode s i m p l i s t i c a m e n t e i m a g i n a r , é também e n f r a q u e c i d a .
Mais g r a v e a i n d a é a redução do "Fáber" ao u n i c a m e n t e tecnológico: a concentração no u t i L i tãrio, na competência p r o d u t i v a i m e d i a t a , às ex pensas da a t r o f i a do l a d o c o n h e c i d o i n d e f i n i d a mente como h u m a n i s t a , já m o s t r o u s e r e q u i v o c a d a , podendo g e r a r uma s o c i e d a d e capaz de f a b r i c a r o s o f i t i s c a d o sem c o n s e g u i r às vezes c o o r d e n a r a
produção de bens ( m a t e r i a i s ou não) e s s e n c i a i s . 0 "Fáber" r e c o b r e , na v e r d a d e , uma ampla f a i x a da experiência humana, a experiência do f a z e r , do d e s c o b r i r , do p r o d u z i r , mas também do c r i a r . 0 saber científico, p o r exemplo, a p a r t i r dessa visão, é a l g o a s e r construído p e l o educando, em p r o c e s s o a t i v o , nunca através de assimilação me ramente p a s s i v a .
Assim e n t e n d i d o , o "Fáber" r e v e l a - s e como f a c e não o p o s t a , nem mesmo p a r t i c u l a r m e n t e d i s t a n t e do "Ludens". E s t a r e c o b r e uma camada de ex periência que e n v o l v e , digamos, o j o g o em t o d a s as suas manifestações, desde as m o d a l i d a d e s p r i . m a r i a s do " b r i n c a r " , passando p o r situações de competição ( i n s t i t u c i o n a l i z a d a s ou não) e s i s t e mas e s p e c i a i s de r e l a c i o n a m e n t o p e s s o a l ou a t i v i dade g r u p a i ( a p a r e n t e m e n t e de caráter não p r o d u t i v o ) , p a r a a t i n g i r formas de a p r e n d i z a d o espon tãneo e n a t u r a l ( e n c o b e r t a s ãs vezes sob o d i s f a r c e da g r a t u i d a d e ) . A f i r m a - s e i g u a l m e n t e no "Ludens" o caráter de produção, de aquisição a t i va do s a b e r , de criação.
De forma s i m p l i f i c a d a , podemos a s s o c i a r ao "Fáber" o t r a b a l h o , desde que e s t e não se r e s t r i n j a ã a t i v i d a d e economicamente p r o d u t i v a , ma3 s u c u m b i r ã tentação de a e l e c o n t r a p o r radicajj.
mente a f a c e lúdica do homem c o n d u z i r i a a uma g r o s s e i r a distorção. Além de c o e x i s t i r e m com i g u a l v i t a l i d a d e , os d o i s lados tendem freqüente mente a a p a r e c e r sobrepostos na experiência huma na. A a r t e , por exemplo, não se d e f i n e como pro dução do utilitário (sua essência é exatamente antagônica a i s s o ) , mas, na visão m a r x i s t a de um E r n e s t F i s c h e r , como em o u t r a s , e l a
"... é quase tão a n t i g a q u a n t o o homem. £ uma f o r m a de t r a b a l h o , e o t r a b a l h o é uma a t i v i d a d e c a r a c t e r i s t i c a do homem."
( 1 . P. 21)
0 impulso que l e v a à criação artística, como em qualquer t r a b a l h o ( i n c l u s i v e o utilitário) é o sonho mágico de t r a n s f o r m a r a n a t u r e z a , de c r i a r enfim. Compreende-se a s s i m que o papel da l i t e r a t u r a , já nas f a s e s i n i c i a i s do a p r e n d i z a do, tem um peso fundamental. Como toda expressão artística, e n t r e t a n t o , embora s e j a um conhecer, embora acabe por e n s i n a r , e l a j a m a i s se confunde com simples m a t e r i a l didático, e só pode a t i v a r sua força e d u c a t i v a (formadora) quando não d e i x a de s e r o que realmente é: l i t e r a t u r a .
R e s p e i t a r a n a t u r e z a da l i t e r a t u r a i m p l i c a d i s t i n g u i r s e u conhecer de o u t r a s formas de co
n h e c e r ( d e o u t r a s formas de c o n h e c e r ) , d e f i n i n d o - a como m o d a l i d a d e de t r a b a l h o , mas com a c l a r a consciência de sua e s p e c i f i c i d a d e , de seu cará t e r lúdico, p o r exemplo. A " g r a t u i d a d e " , n e s t e c a s o , não se c o n f u n d e com irrelevância. T r a t a -se, em suma, de e n t e n d e r o s e n t i d o da a r t e . I s t o s i g n i f i c a e n t e n d e r a l i t e r a t u r a como n e c e s s i d a d e v i t a l , uma n e c e s s i d a d e que, l o n g e de c o r r e s p o n d e r apenas ao d e s e j o de d i v e r t i m e n t o , i n d i c a o i m p u l s o do homem p a r a f u g i r âs limitações de seu eu i n d i v i d u a l , ã i n c o m p l e t u d e de sua r e a l i d a d e , na contemplação de uma " r e a l i d a d e i n t e n s i f i c a d a "
( 1 , P- 12) .
A q u i a l i t e r a t u r a r e v e l a seu p a r e n t e s c o com o m i t o . Neste i g u a l m e n t e o homem busca uma forma de s u p e r a r as limitações de sua r e a l i d a d e e a t i n g i r a p l e n i t u d e . O m i t o , como a a r t e , a m p l i a o u n i v e r s o do eu i n d i v i d u a l p a r a integrá-lo num t o do p r o v i d o de significação, d i f e r e n t e do caos da experiência p e s s o a l . Na l i t e r a t u r a , e n t r e t a n t o , como em t o d a a r t e , o movimento é d u p l o : i d e n t i f i . cando-se com a l g o e x t e r i o r a e l e mesmo, o homem a b s o r v e uma r e a l i d a d e ampla, capaz de r e v e l a r o r dem e s e n t i d o , mas e x p e r i m e n t a i g u a l m e n t e o d i s t a n c i a m e n t o da contemplação e o p r a z e r de supe r a r o r e a l através de sua representação. A mesma
d u p l i c i d a d e e x i s t e na fruição e na criação da o b r a de a r t e :
"A tensão e a c o n t r a d i ç ã o d i a l é t i c a são i n e r e n t e s ã a r t e ; a a r t e n ã o só p r e c i s a d e r i v a r de uma i n t e n
sa e x p e r i ê n c i a da r e a l i d a d e como p r e c i s a s e r cons-truída, [ . . . ] . A r i s t ó t e l e s , tão f r e q ü e n t e m e n t e mal compreendido, sustentou que a função do drama e r a p u r i f i c a r as e m o ç õ e s , superando o t e r r o r e a pieda de, de maneira que o e s p e c t a d o r , ao se i d e n t i f i c a r com O r e s t e s ou É d i p o , v i e s s e a s e r por sua vez l i bertado daquela i d e n t i f i c a ç ã o e se erguesse acima da a ç ã o cega do d e s t i n o . " ( 1 , p. IA)
A l i t e r a t u r a i n f a n t i l , enquanto a r t e , i n t e g r a e l i b e r a , como o f a z o m i t o .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 . FISCHER, E. A tive toxidade da aAtz. T r a d . de
Leandro Konder. R i o de J a n e i r o , Zahar, 1966.