Pesquisas encontram “solo fértil” no Rio Grande do Norte; projeto será unidade piloto
para os testes de viabilidade da tecnologia desenvolvida no país
Fazenda experimental de
artêmia aponta potencial das
salinas brasileiras
O Brasil produz, anualmente, cerca de duas toneladas de cistos de artêmia, microcrus-táceo considerado imprescindí-vel na dieta de certos organis-mos aquáticos cultivados, como os peixes e camarões. Essa produção, decorrente exclusiva-mente de atividades extrati-vistas (produtividade natural, sem a utilização de técnicas de manipulação dos processos reprodutivos), corresponde ao consumo mensal de alguns setores da aqüicultura brasileira. Em 2000, o Brasil consumiu 20 toneladas de cistos de artêmia, apenas na atividade de cultivo de camarões. Para os próximos anos, com a expansão prevista da área de cultivo das fazendas de camarão brasileiras, esse con-sumo deverá alcançar 80 tone-ladas anuais em 2003, e 120 toneladas até o final da década. Como alternativa para aten-der o mercado interno, devido principalmente aos altos preços
do mercado internacional e à crescente demanda, um projeto de implementação de uma fa-zenda experimental de cultivo de artêmia está sendo desenvol-vido na região de Grossos, no Rio Grande do Norte, por meio de uma parceria entre a Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o Programa Bra-sileiro de Intercâmbio em Maricultura (financiado pela Agência Canadense para Desen-volvimento Internacional, por meio de um consórcio entre uni-versidades canadenses e brasi-leiras) e a Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC).
A implantação da fazenda está sendo feita com base nos estudos desenvolvidos na UFRN sobre a biologia da artêmia, em especial da espécie Artemia
fransiscana, proveniente de São
Francisco (Califórnia, EUA). O projeto, além de ter como obje-tivo demonstrar a viabilidade econômica do cultivo de
Fazenda experimental de
artêmia aponta potencial das
salinas brasileiras
Implantação da
fazenda está sendo
feita com base em
estudos sobre a
biologia da artêmia
desenvolvidos na UFRN
artêmia, visa estabelecer uma unidade piloto para a validação da tecnologia desenvolvida no Brasil.
Por quê cistos?
O cisto de artêmia consiste em um estágio latente do desenvol-vimento do animal, decorrente de um mecanismo fisiológico de adaptação que lhe garante a sobrevivência em condições ex-tremas de temperatura, salinidade e oferta de oxigênio. Em 1947, Alvin Seale, do aquário de Steinhart, em São Francisco (EUA), descobriu que o cisto (forma encapsulada decorrente da interrupção do desenvolvimento embrionário), quando armazena-do adequadamente, permanece
viável por vários anos, retomando o seu desenvolvimento normal após incubação com água do mar por aproximadamente 24 horas. A partir de então, cistos de artêmia passaram a ser comercializados e distribuídos para diferentes centros de aqüicultura e aquariofilia no mundo.
A principal vantagem da utilização de artêmia na larvi-cultura de peixes e camarões é
larva de artêmia recém-eclodida após contato com água do mar). Além disso, os cistos, uma vez processados em salmoura, po-dem ser armazenados por várias semanas, ou até mesmo anos, quando em embalagens a vácuo ou atmosfera de nitrogênio.
A forma encistada da artêmia é comumente encontrada em ecossistemas aquáticos de alta salinidade, que ocorrem natural-mente em países como Estados Unidos, Argentina, Colômbia, Canadá, Austrália, França e China. Na década de 50, as fontes comerciais do produto eram restritas às salinas da baía de São Francisco (Califórnia, EUA) e do Grande Lago Salgado (Utah, EUA). Apesar de diferentes fontes terem surgido posteriormente, o
maior fornecedor continua sendo o Grande Lago Salgado, que atende cerca de 90% do mercado mundial. O Grande Lago Salgado é um lago altamente salino, com dimensões enormes, o que garante sua alta produtividade. Entretanto, nas duas últimas décadas, variações no clima e na salinidade ocasionaram uma significativa flutuação nas co-lheitas produzidas.
Além dos cistos, os indivíduos adultos de artêmia também são umimportante insumo utilizado na alimentação complementar durante algumas etapas do cultivo de camarão.
Com o crescimento expo-nencial da aqüicultura, devido principalmente ao aumento da demanda por alimento e à alta lucratividade de alguns setores aqüícolas, o consumo mundial de artêmia aumentou expressiva-mente, ocasionando aumento no preço do insumo, que passou de US$ 10/ kg, no início dos anos 50, para US$ 100/ kg, em 2001.
No Brasil, a artêmia não é nativa: o microcrustáceo foi introduzido em meados dos anos 70, no município de Macau (RN), como resposta a seu uso crescente na aqüicultura. Atra-vés de pássaros aquáticos e de disseminações realizadas pelo vento e pelo próprio homem, a artêmia se dispersou por toda a região salineira do Rio Grande do Norte. O país começou a que, a partir de um material
apa-rentemente inerte (cisto), é possível obter alimento vivo (a
Projeto traz, além das
conseqüências
socioeconômicas,
aumento da
biossegurança
Coleta de cistos Marcos Câmaracomercializar e exportar o produto a partir da década de 80, para países como os EUA e o Japão.
Alternativa
O projeto de implantação e operacionalização da unidade piloto para o desenvolvimento de pesquisas na área de produção de cistos e biomassa (indivíduos adultos) de artêmia está sendo
desenvolvido sob a coordenação de Marcos Rogério Câmara, do Departamento de Oceanografia e Limnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Segundo ele, o principal objetivo da iniciativa é fornecer subsídios econômicos, científicos e tecnológicos para balizar a implementação de fazendas de cultivo de artêmia no Brasil por parte da iniciativa privada, uma vez que a produção baseada no
Dentre os crustáceos, classe de animais predominantemente aquática, portadora de um exoesqueleto calcário e cabeça e tórax fundidos em uma estrutura denominada cefalotórax, podemos encontrar os caranguejos, as lagostas, os camarões e as artêmias. As artêmias são crustáceos de tamanho diminuto (alcançam cerca de 1 cm de comprimento quando adultos) que conseguem sobreviver em ambientes com ampla variação de temperatura (4 oC a 37 oC) e salinidade (5 g/L e 250 g/L).
Além disso, esse microcrustáceo, conhecido popularmente como camarão de salmoura, pode viver em baixas concentrações de oxigênio dissolvido na água (até 1 mg/L). A reprodução pode ser por ovoviparidade (produzindo larvas) ou por oviparidade (produzindo cistos). A oviparidade manifesta-se quando as condições ambientais não são favoráveis. A espécie, para garantir sua manutenção, mantém o embrião em estado de diapausa (pausa no desenvolvimento embrionário na fase avançada de blástula ou incipiente de grástula). Quando as condições ambientais retornam à normalidade, os embriões retomam o seu
desen-volvimento e eclodem sob a forma de larvas (náuplios).
O modo reprodutivo ovovíparo, por sua vez, consiste na produção direta de lar vas e ocorre quando as condições ambientais não são estressantes (isto é, alto teor de oxigênio dissolvido na água e alimentação abundante).
Os indivíduos adultos possuem o corpo alongado, plano e ovalado, medem cerca de 10 mm e pesam aproximadamente 1 mg. Apresentam dimorfismo sexual (diferenças mor fológicas entre machos e fêmeas) marcante e as fêmeas são, geralmente, maiores que os machos. A artêmia é um organismo filtrador não seletivo e sua dieta consiste principalmente em microalgas de pequeno por te. Em condições adequadas de temperatura e salinidade, as larvas de artêmias demoram cerca de uma semana para atingir a maturidade sexual, aumentando significativamente sua biomassa nesse período.
Microcrustáceo sobrevive em
condições adversas
Microcrustáceo sobrevive em
condições adversas
Com o crescimento da
demanda, o preço do
quilo de cistos no
mercado internacional
passou de US$ 10 para
US$ 100
Náuplio: primeira fase de desenvolvimento da artêmia após a eclosão
M
a
rc
perspectivas de aumento a curto e médio prazo.
Com larga experiência em áreas relacionadas com a carcinicultura (cultivo de crustáceos) e a ecologia apli-cada, Câmara explica que o projeto surgiu a partir do desen-volvimento de pesquisa básica e aplicada. Segundo ele, a apli-cação do conhecimento gerado com base em estudos da caracterização reprodutiva de populações de artêmia existen-tes na região salineira do Rio Grande do Norte tem promo-vido o desenvolvimento de tecnologias próprias que estão possibilitando o cultivo desse microcrustáceo em regime semi-intensivo.
principal contribuição do projeto é apontar para o potencial de exploração das salinas existentes no estado do Rio Grande do Norte, biótopos relativamente pouco estudados. Câmara explica que essa região salineira apresenta os recursos naturais (clima, topografia, solo e água do mar) necessários à implementação de fazendas de cultivo de artêmia, além de contar com o suporte acadêmico oferecido pelo Laboratório de Nutrição Aquática da UFRN.
Independência
Itamar de Paiva Rocha, presidente da ABCC, afirma que a fazenda de artêmia possi-bilitará o desenvolvimento de
Se for comprovado que a fazenda de artêmias é um empreendimento economicamente viável, a atividade poderá ser uma boa alternativa para gerar lucro nas regiões de salinas, favorecendo a expansão da aqüicultura no Brasil.
A empresária Ana Carolina Guerrelhas acredita que qualquer atividade nova que possua pacote tecnológico acessível e que gere riquezas atrai investidores. “A fazenda experimental deve mostrar aos produtores como produzir cisto e biomassa de artêmia em cativeiro, os índices de produtividade, se a produção é possível o ano todo e se é
viável sob o ponto de vista econômico”, diz ela.
O presidente da ABCC, Itamar Rocha, ressalta os diversos aspectos positivos que o domínio da tecnologia de produção de artêmia trará para o Brasil, especialmente para a região Nordeste do país. Ele acredita que o incremento da produção poderá representar uma nova fonte de captação de divisas para o setor pesqueiro. “A auto-suficiência nessa nova atividade contribuirá significativamente para o forta-lecimento do programa de bios-segurança na aqüicultura e dispo-nibilizará uma tecnologia que possibilitará o surgimento de centenas
de pequenos e médios empre-endimentos, criando uma nova alternativa de exploração econômica e geração de emprego nas áreas desativadas de antigas salinas.”
Rocha acredita também que o interesse do setor privado, tanto nacional como internacional, em assumir os investimentos para o desenvolvimento da atividade de produção de ar têmia é muito grande. “Não há dúvidas de que, tão logo sejam disponibilizadas as informações técnicas, o setor privado passará a assumir a exploração econômica dessa nova atividade”, conclui.
“Não há dúvidas de que o setor privado assumirá a
exploração econômica dessa nova atividade”
“Não há dúvidas de que o setor privado assumirá a
exploração econômica dessa nova atividade”
produz, por ano,
quantidade de cistos
equivalente ao
consumo mensal de
alguns setores da
aqüicultura brasileira
tecnologias que permitam assegurar a auto-suficiência do Brasil na produção desse estratégico insumo da aqüi-cultura. “Nossa expectativa é que os resultados das pesquisas contribuam para alavancar essa atividade econômica, utilizando as vastas áreas representadas pelas salinas desativadas, dando oportunidade de emprego a milhares de salineiras e ex-pescadores, hoje totalmente marginalizados face à
deca-dência de seus setores de trabalho”, afirma Rocha. “Além disso, o domínio da tecnologia de produção de cistos e o aumento da produção de bio-massa de artêmia representarão uma grande contribuição para o desenvolvimento, em bases competitivas, de diversos outros segmentos da aqüicultura brasi-leira, com reflexos altamente positivos na socioeconomia de suas regiões de intervenção.”
Rocha enfatiza também o aspecto do aumento da bios-segurança para a carcinicultura brasileira, uma vez que, atu-almente, o cisto de artêmia é o único subproduto de crustáceo passível de importação pelo Brasil, o que facilita a introdu-ção de novas doenças no país. Ana Carolina de Barros Guer-relhas, sócia e diretora-executiva do laboratório Aqua-tec de produção de larvas de camarão marinho, afirma que, normalmente, a produção de cistos se dá em lagos salgados ou salinas sem muito controle. “Se a natureza sofre algum tipo de alteração ambiental, a produção cai e não retorna rapidamente, fazendo com que os preços flutuem bastante e os consumidores paguem qualquer valor imposto pelo mercado”, afirma a empresária. Segundo ela, com a última crise
mundial de cistos de artêmia, as fábricas de rações balan-ceadas melhoraram substan-cialmente seus produtos, ocasionando uma diminuição no consumo de cistos. “Entre-tanto, a artêmia ainda é consi-derada o melhor e mais com-pleto alimento para ser usado nas larviculturas de peixes e camarões.” Como exemplo de iniciativa de sucesso, a empre-sária cita o Vietnã, que já possui uma fazenda produ-zindo cistos e biomassa de artêmia em escala comercial. “É esse o caminho que devemos seguir. Não podemos e nem queremos ficar na depen-dência de outros países, seja pela política comercial ou pelos problemas de bios-segurança.”
Implantação
A fazenda experimental de ar têmia foi formalmente inaugurada em abril de 2001, apesar de ter surgido em meados do ano 2000. Sua área total é de quatro hectares (ha), incluindo áreas de evaporação (dois evaporadores de 0,56 ha) e de produção de cistos e biomassa de ar têmia (três viveiros de 0,56 ha), além de laboratórios e infra-estrutura de apoio (casa de bombas, armazém para apetrechos de pesca, acomodações para técnicos residentes etc.).
Após um período de testes e ajustes, a fazenda já obteve dois ciclos de produção, e um
terceiro encontra-se em andamento. O primeiro ciclo foi conduzido em um período de 40 dias, entre 12 de julho e 21 de agosto de 2001. O segundo ciclo aconteceu em um espaço de tempo menor, de cerca de 32 dias (26 de agosto a 28 de setembro). Até agora, a produtividade foi de até 10 kg/ha/ciclo de cisto e 354 kg/ha/ciclo de biomassa de artêmia. O coordenador do projeto afirma que esses resultados são promissores e demonstram, preliminarmente, a viabilidade de cultivo desse microcrustáceo em regime semi-intensivo.
Armazenados
adequadamente, cistos
permanecem viáveis
por vários anos
Quando processados em salmoura, cistos podem ser armazenados por várias semanas M a rc os Câmara