Antropologia e nutrição:
um diálogo possível
Ana Maria Canesqui
Rosa Wanda Diez Garcia
orgs.
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CANESQUI, AM., and GARCIA, RWD., orgs. Antropologia e nutrição: um diálogo possível
[online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 306 p. Antropologia e Saúde collection. ISBN
85-7541-055-5. Available from SciELO Books <
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Antropologia e Nutrição:
um diálogo possível
F U N D A Ç Ã O O S W A L D O C R U Z Presidente
Paulo Marchiori Buss
Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação
Maria do Carmo Leal
E D I T O R A F I O C R U Z Coordenadora
Maria do Carmo Leal
Conselho Editorial
Carla Macedo Martins Carlos E. A. Coimbra Jr. Charles Pessanha
Gilberto Hochman Jaime L Benchimol José da Rocha Carvalheiro José Rodrigues Coura Luis David Castiel Luiz Fernando Ferreira Maria Cecília de Souza Minayo Miriam Struchiner
Paulo Amarante Vanize Macêdo
Coordenador Executivo
João Carlos Canossa P. Mendes
COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E SAÚDE
Editores Responsáveis: Carlos E. A. Coimbra Jr.
Antropologia e Nutrição:
um diálogo possível
Ana Maria Canesqui
Rosa Wanda Diez Garcia
Copyright © 2005 dos autores
Todos os direitos desta edição reservados à
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ I EDITORA
ISBN: 85-7541-055-5 Projeto Gráfico Angélica Mello Editoração Eletrônica Carlota Rios Capa Danowski Design Ilustração da Capa
A partir de desenho de Hans Arp, Torso With Flower Head, 1924
Revisão e Copidesque
Irene Ernest Dias Jorge Moutinho
Catalogação-na-fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
C221 a Canesqui, Ana Maria (org.)
Antropologia e nutrição: um diálogo possível. / organizado por Ana Maria Canesqui e Rosa Wanda Diez Garcia. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.
306p. (Coleção Antropologia e Saúde)
1. Antropologia Cultural 2.Hábitos Alimentares I. Diez Garcia, Rosa Wanda (org.) II. Título
C D D - 2 0 . e d . - 363.8
2005
EDITORA FIOCRUZ
Av. Brasil, 4036 - Térreo - sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ
Tels: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Fax: (21) 3882-9006
e-mail: editora@fiocruz.br http//:www.fiocruz.br/editora
AUTORES
• Ana Maria Canesqui
Doutora em ciências e livre-docente em ciências sociais aplicadas à medicina; professora colaboradora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas. Autora de diversas coletâneas e artigos na área das ciências sociais em saúde, antropologia da alimentação e da saúde. Publicou as coletâneas Ciências Sociais e Saúde para o
Ensino Médico (2000), Ciências Sociais e Saúde (1997) e Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva (1995).
• Carmem Sílvia Morais Rial
Antropóloga, professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou artigos nas áreas de antropologia urbana, antropologia audiovisual, globalização cultural e estudos de mídia, antropologia alimentar, etnias e gênero.
• Gérard Maes
Diretor honorário dos Hospitais Civis de Lyon, França. O autor tem várias contribuições sobre a alimentação hospitalar. Publicou o livro Les 40 Ans de la Mutuelle Nationale des Hospitaliers
et des Personnels de Santé (2001).
• Jean-Pierre Corbeau
Sociólogo, professor de sociologia do consumo e da alimentação na Universidade de Tours, França. É especialista em sociologia e antropologia da alimentação, com vários artigos publica-dos sobre práticas alimentares, cultura e alimentação. Co-autor com Jean Pierre Poulain do livro
Penser l 'Alimentation: entre imaginaire et rationalité (2002).
• Jesús Contreras Hernández
Antropólogo, catedrático de antropologia social da Universidade de Barcelona, Espanha. Autor de vários artigos e livros, destacando-se entre os últimos Alimentação e Cultura: necesidades,
gustos y costumbres (1995), Antropología de la Alimentación (1992), Antropología de los Pueblos de España (1991), Bárbaros, Paganos, Salvajes y Primitivos: una introdución a la antropología (1987) e Subsistencia, Ritual y Poder en los Andes (1986).
• Jungla Maria Pimentel Daniel
Antropóloga, professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná.
• Mabel Gracia Arnaiz
Antropóloga, professora titular do Departamento de Antropologia Social e Filosofia da Univer-sidade Rovira e Virgili, Tarragona, Espanha. Entre suas numerosas publicações sobre alimenta-ção, destacam-se os livros Somos lo que Comemos (2002), Paradojas de la Alimentación
Contemporânea (1996) e La Transformación de la Cultura Alimentaria: cambios y permanên-cias en un contexto urbano (1997).
• Maria Eunice Maciel
Antropóloga e professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenou o Grupo de Trabalho de Comida e Simbolismo da Associação Brasileira de Antropologia e tem vários artigos publicados sobre cultura e alimentação.
• Norton F. Corrêa
Antropólogo e professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Fede-ral do Maranhão. Autor de vários artigos sobre religiões afro-brasileiras.
• Rosa Wanda Diez Garcia
Nutricionista, doutora e professora do Curso de Nutrição e Metabolismo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e ex-professora da Faculdade de Nutrição da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É autora de vários artigos publica-dos sobre representações e práticas da alimentação no contexto urbano.
• Sílvia Carrasco i Pons
Antropóloga, professora titular do Departamento de Antropologia Social e Pré-História da Universidade Autônoma de Barcelona, com publicações na área de antropologia da alimentação, migrações e programas multiculturais de educação. Publicou o livro Antropologia y Alimentació:
una proposta per l 'estudi de la cultura alimentaria (1992).
• Veraluz Zicarelli Cravo
SUMÁRIO
U m a I n t r o d u ç ã o à R e f l e x ã o s o b r e a A b o r d a g e m Sociocultural
d a A l i m e n t a ç ã o 9
Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia
I - Olhares Antropológicos sobre a Alimentação
1. C o m e n t á r i o s s o b r e os E s t u d o s A n t r o p o l ó g i c o s da A l i m e n t a ç ã o 23
Ana Maria Canesqui
2 . I d e n t i d a d e Cultural e A l i m e n t a ç ã o 4 9
Maria Eunice Maciel
3 . O Valor Social e Cultural d a A l i m e n t a ç ã o 57
Jungla Maria Pimentel Daniel Veraluz Zicarelli Cravo
4 . A C o z i n h a é a B a s e d a R e l i g i ã o : a culinária ritual n o b a t u q u e
d o R i o G r a n d e d o Sul 69
Norton F. Corrêa
5 . Brasil: p r i m e i r o s escritos s o b r e c o m i d a e identidade 87
Carmem Sílvia Morais Rial
6 . P o n t o s d e Partida T e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c o s p a r a o E s t u d o S o c i o c u l t u r a l
d a A l i m e n t a ç ã o e m u m C o n t e x t o d e T r a n s f o r m a ç ã o 101
I I - Mudanças Econômicas e Socioculturais e o Sistema Alimentar
7. P a t r i m ô n i o e G l o b a l i z a ç ã o : o c a s o d a s culturas a l i m e n t a r e s 129
Jesús Contreras Hernández
8. E m d i r e ç ã o a u m a N o v a O r d e m A l i m e n t a r ? 147
Mabel Gracia Arnaiz
I I I - A Alimentação nos Espaços Privado e Público
9. M u d a n ç a s e P e r m a n ê n c i a s d a Prática A l i m e n t a r C o t i d i a n a d e
F a m í l i a s d e T r a b a l h a d o r e s 167
Ana Maria Canesqui
10. A l i m e n t a ç ã o e S a ú d e n a s R e p r e s e n t a ç õ e s e P r á t i c a s A l i m e n t a r e s
d o C o m e n s a l U r b a n o 211
Rosa Wanda Diez Garcia
11. A l i m e n t a r - s e n o H o s p i t a l : as d i m e n s õ e s o c u l t a s d a c o m e n s a l i d a d e .... 227
Jean-Pierre Corbeau
12. A S o p a n o H o s p i t a l : t e s t e m u n h o 2 3 9
Gérard Maes
I V - Diálogos das Ciencias Humanas com a Nutrição
13. C i ê n c i a s Sociais e H u m a n a s n o s C u r s o s d e N u t r i ç ã o 2 5 5
Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia
14. A A n t r o p o l o g i a A p l i c a d a às Diferentes Á r e a s d a N u t r i ç ã o 2 7 5
Rosa Wanda Diez Garcia
15. A p l i c a ç õ e s d a A n t r o p o l o g i a à A l i m e n t a ç ã o : a l g u m a s p r o p o s t a s 287
Uma Introdução à Reflexão sobre a
Abordagem Sociocultural da Alimentação
Ana Maria Canesqui
Rosa Wanda Diez Garcia
E s t a c o l e t â n e a r e ú n e p e s q u i s a s e reflexões q u e e l u c i d a m m ú l t i p l o s en-t e n d i m e n en-t o s a n en-t r o p o l ó g i c o s s o b r e a a l i m e n en-t a ç ã o c o m o f e n ô m e n o socioculen-tural h i s t o r i c a m e n t e d e r i v a d o . S e n d o a a l i m e n t a ç ã o i m p r e s c i n d í v e l p a r a a v i d a e a s o b r e v i v ê n c i a h u m a n a s , c o m o n e c e s s i d a d e b á s i c a e vital, ela é n e c e s s a r i a m e n -te m o d e l a d a p e l a cultura e sofre o s efeitos d a o r g a n i z a ç ã o d a s o c i e d a d e , n ã o c o m p o r t a n d o a s u a a b o r d a g e m o l h a r e s unilaterais.
N ã o c o m e m o s a p e n a s q u a n t i d a d e s d e nutrientes e calorias p a r a m a n t e r o f u n c i o n a m e n t o corporal e m nível a d e q u a d o , p o i s h á m u i t o t e m p o o s a n t r o p ó logos afirmam q u e o c o m e r e n v o l v e seleção, escolhas, ocasiões e rituais, i m b r i -c a - s e -c o m a so-ciabilidade, -c o m idéias e signifi-cados, -c o m as interpretações d e e x p e r i ê n c i a s e situações. P a r a s e r e m c o m i d o s , ou c o m e s t í v e i s , os a l i m e n t o s p r e c i s a m ser elegíveis, preferidos, s e l e c i o n a d o s e p r e p a r a d o s ou p r o c e s s a d o s p e l a culinária, e tudo isso é m a t é r i a cultural.
R e c e n t e m e n t e , C l a u d e F i s c h l e r ( 1 9 9 0 ) disse q u e , p e l o fato d e s e r m o s o n í v o r o s , a i n c o r p o r a ç ã o d a c o m i d a é s e m p r e u m ato c o m significados, funda-m e n t a l a o senso d e i d e n t i d a d e . S e as técnicas, as disponibilidades d e recursos d o m e i o , a o r g a n i z a ç ã o d a p r o d u ç ã o / d i s t r i b u i ç ã o na s o c i e d a d e m o d e r n a i m p r i -m e -m as possibilidades, c a d a v e z -m a i s a -m p l i a d a s , de p r o d u z i r e c o n s u -m i r ali-m e n t o s , c a b e à cultura definir o q u e é ou n ã o c o ali-m i d a , p r e s c r e v e r as p e r ali-m i s s õ e s e interdições alimentares, o q u e é a d e q u a d o ou n ã o , m o l d a r o g o s t o , os m o d o s d e c o n s u m i r e a própria c o m e n s a l i d a d e . A s escolhas a l i m e n t a r e s n ã o se f a z e m apenas c o m os a l i m e n t o s m a i s ' n u t r i t i v o s ' , s e g u n d o a classificação d a m o d e r n a nutrição, ou s o m e n t e c o m o s m a i s acessíveis e i n t e n s i v a m e n t e ofertados pela p r o d u ç ã o massificada. A p e s a r d a s p r e s s õ e s forjadas p e l o setor p r o d u t i v o , c o m o u m dos m e c a n i s m o s q u e
in-terferem nas decisões d o s c o n s u m i d o r e s , a cultura, e m u m sentido m a i s a m p l o , m o l d a a seleção alimentar, i m p o n d o as n o r m a s q u e p r e s c r e v e m , p r o í b e m ou p e r m i t e m o q u e c o m e r .
A s escolhas a l i m e n t a r e s t a m b é m são inculcadas m u i t o c e d o , d e s d e a infância, pelas s e n s a ç õ e s táteis, gustativas e olfativas sobre o q u e se c o m e , t o r n a n d o s e p o u c o p e r m e á v e i s à c o m p l e t a h o m o g e n e i z a ç ã o i m p o s t a p e l a p r o -d u ç ã o e pela -distribuição massifica-das. A s análises sociológicas -d o c o n s u m o , q u e f a z e m u m a i n t e r l o c u ç ã o c o m a cultura e t a m b é m se p r e o c u p a m c o m as e s c o l h a s a l i m e n t a r e s , m o s t r a r a m as c o n t r a d i ç õ e s da c u l t u r a m e r c a n t i l i z a d a : a persistência das diferenças nas estruturas d o c o n s u m o entre g r u p o s d e renda, classe, g ê n e r o e estágio d e vida, b e m c o m o a i n d i s s o l u ç ã o dos c o n s t r a n g i m e n -tos materiais e das idiossincrasias individuais.
N o v i d a d e e t r a d i ç ã o ; s a ú d e e indulgência; e c o n o m i a e e x t r a v a g â n c i a ; c o n v e n i ê n c i a e c u i d a d o - nos t e r m o s d e A l a n W a r d e (1997) - s ã o as principais a n t i n o m i a s das m o d e r n a s e contraditórias r e c o m e n d a ç õ e s q u e p r o c u r a m guiar a s e l e ç ã o d o s a l i m e n t o s e os h á b i t o s alimentares nos c o n t e x t o s sociais d o capit a l i s m o a v a n ç a d o , q u e se v e i c u l a m a c o m p a n h a d a s p o r u m capit o m m o r a l . D a m e s m a forma, ao analisar os c o n t e ú d o s das m e n s a g e n s publicitárias, d e s d e a d é c a -d a -d e 6 0 até 1990, na E s p a n h a , M a b e l G r a c i a A r n a i z ( 1 9 9 6 ) -d e s t a c a o s vários discursos: a tradição/identidade; o m é d i c o nutricional; o estético; o hedonista; o d o p r o g r e s s o e d a m o d e r n i d a d e ; d o e x ó t i c o e d a diferença. E n t r e c r u z a m - s e , p o r u m lado, os c o n s u m o s , as práticas e os valores q u e p e r m e i a m os c o m p o r t a -m e n t o s a l i -m e n t a r e s , e p o r o u t r o os discursos publicitários. A -m b o s se r e f o r ç a -m e são i m p u l s i o n a d o s r e c i p r o c a m e n t e , diante da a m p l i a ç ã o das o p o r t u n i d a d e s d e e l e i ç ã o alimentar q u e se m o s t r a m s i m u l t a n e a m e n t e plurais e contraditórias, e s p e c i a l m e n t e n a s s o c i e d a d e s capitalistas européias q u e ainda c o n v i v e m , tanto q u a n t o as l a t i n o - a m e r i c a n a s , c o m as diferenças sociais n o c o n s u m o , s e m se-r e m h o m o g ê n e a s . A c o m i d a foi e a i n d a é u m c a p í t u l o vital n a h i s t ó r i a d o c a p i t a l i s m o . M u i t o a n t e s d o s d i a s d e h o j e , o c a p i t a l i s m o p r o c u r o u p o r t o d a p a r t e transfor-m a r os a n t i g o s d e s e j o s p o r n o v o s transfor-m e i o s . A s c o transfor-m i d a s t ê transfor-m h i s t ó r i a s s o c i a i s , e c o n ô m i c a s e s i m b ó l i c a s c o m p l e x a s , diz S i d n e y Wilfred M i n t z ( 2 0 0 1 ) , e o g o s t o d o ser h u m a n o p e l a s s u b s t â n c i a s n ã o é i n a t o , forjando-se n o t e m p o e e n t r e o s i n t e r e s s e s e c o n ô m i c o s , o s p o d e r e s p o l í t i c o s , as n e c e s s i d a d e s n u t r i c i o n a i s e os significados c u l t u r a i s .
A o estudar o açúcar, esse autor levou e m c o n s i d e r a ç ã o a s u a história social, r e s s a l t a n d o q u e antes d e esse p r o d u t o ter c h e g a d o à m e s a d o o p e r a r i a d o industrial e m e r g e n t e d o século X I X , na Inglaterra, teve lugar n a f a r m a c o p é i a
m e d i e v a l , d a m e s m a forma q u e o t o m a t e , v i n d o das A m é r i c a s , foi t a m b é m r e c u s a d o pelos ingleses d u r a n t e o s é c u l o X V I I I p o r a c r e d i t a r e m ser e l e preju-dicial à s a ú d e (Wilson, 1973). O g o s t o e o paladar, e m vez d e se n a t u r a l i z a r e m , são p o r t a n t o cultivados n o e m a r a n h a d o d a história, d a e c o n o m i a , d a política e d a p r ó p r i a cultura.
S o b u m outro olhar e m a n t e n d o a p e r s p e c t i v a d e l o n g o a l c a n c e , Fischler ( 1 9 9 0 ) a i n d a nos fala d o p a r a d o x o d o o n í v o r o q u e resulta n a sua a n s i e d a d e p e r m a n e n t e : a n e c e s s i d a d e d a d i v e r s i d a d e alimentar, d e v a r i e d a d e , i n o v a ç ã o , e x p l o r a ç ã o e m u d a n ç a p a r a sobreviver, q u e c o n v i v e c o m a c o n s e r v a ç ã o n o comer, s e n d o cada alimento d e s c o n h e c i d o visto c o m o p o t e n c i a l m e n t e perigoso. O p r ó p r i o sistema culinário foi visto p o r Paul R o z i n (1976) c o m o u m p r o d u t o cultural resultante d o p a r a d o x o d o o n í v o r o a o trazer u m conjunto d e sabores peculiares à cozinha d e u m a d a d a r e g i ã o , p r o p i c i a n d o familiaridade e diversida-d e diversida-d e a l i m e n t o s .
A ênfase n a i n s e r ç ã o d a a l i m e n t a ç ã o n o s i s t e m a cultural c o m o p o r t a d o r a d e significados q u e p o d e m ser lidos e decifrados c o m o c ó d i g o t e m m i n i m i z a d o o s fatores materiais e h i e r á r q u i c o s , p r e o c u p a n d o - s e m a i s c o m a c o n t i n u i d a d e e m e n o s c o m as m u d a n ç a s , s e n d o q u e o foco n a totalidade d e s c u i d a d a diferen-ça. P o r e s s a r a z ã o , J a c k G o o d y ( 1 9 9 5 ) sugeriu q u e os esforços d e isolar o c u l t u r a l , l e v a n d o - o a s u b m e r g i r e x c l u s i v a m e n t e n o s i s t e m a s i m b ó l i c o e significante, l e v a m a s u p o r a u n i d a d e cultural, o q u e i m p e d e referências às diferenciações internas, às influências socioculturais e x t e r n a s , aos fatores h i s -tóricos e aos e l e m e n t o s m a t e r i a i s .
O fato d e a c o m i d a e o ato d e c o m e r s e r e m p r e n h e s d e significados n ã o l e v a a e s q u e c e r q u e t a m b é m c o m e m o s p o r n e c e s s i d a d e vital e c o n f o r m e o m e i o e a s o c i e d a d e e m q u e v i v e m o s , a f o r m a c o m o e l a se o r g a n i z a e se estru-tura, p r o d u z e distribui os a l i m e n t o s . C o m e m o s t a m b é m d e a c o r d o c o m a distrib u i ç ã o d a riqueza na s o c i e d a d e , o s g r u p o s e classes d e p e r t e n c i m e n t o , m a r c a -d o s p o r -diferenças, h i e r a r q u i a s , estilos e m o -d o s -d e comer, a t r a v e s s a -d o s p o r r e p r e s e n t a ç õ e s coletivas, i m a g i n á r i o s e c r e n ç a s .
A antropologia se interessou t r a d i c i o n a l m e n t e pelas c r e n ç a s e p e l o s c o s -t u m e s alimen-tares dos p o v o s p r i m i -t i v o s , p e l o s aspec-tos religiosos e m -torno d o s t a b u s , t o t e m i s m o e c o m u n h ã o ; p e l a s preferências e repulsas a l i m e n t a r e s , p e l o s rituais sagrados ou profanos q u e a c o m p a n h a m a c o m e n s a l i d a d e , p e l o s i m b o l i s m o d a c o m i d a , pelas classificações a l i m e n t a r e s , a l é m d e m u i t o s o u t r o s a s p e c -tos. R e c e n t e m e n t e , v e m se i n t e r e s s a n d o p e l a s cozinhas e pela culinária, q u e t r a z e m a m a r c a da cultura. A s c o z i n h a s e as artes culinárias g u a r d a m histórias, tradições, tecnologias, p r o c e d i m e n t o s e ingredientes s u b m e r s o s e m s i s t e m a s
s o c i o e c o n ô m i c o s , e c o l ó g i c o s e culturais c o m p l e x o s , cujas m a r c a s territoriais, regionais ou d e classe lhes conferem especificidade, a l é m d e a l i m e n t a r e m iden-tidades sociais ou n a c i o n a i s .
C o m o e s p a ç o h a b i t u a l m e n t e r e s e r v a d o às m u l h e r e s , m a i s d o q u e aos h o m e n s , a c u l i n á r i a i m b r i c a - s e no sistema d e d i v i s ã o e estratificação d o traba-lho, e m b o r a o s chefs e os famosos c o z i n h e i r o s sejam antigos p e r s o n a g e n s dos serviços p e s s o a i s d e n o b r e s , p a p a s , d a b u r g u e s i a e d a s elites e m geral, q u e se t r a n s f o r m a r a m a o l o n g o d o t e m p o e m n o v a s f i g u r a s e s p e c i a l i z a d a s d a g a s t r o n o m i a m e r c a n t i l i z a d a e m torno d e restaurantes sofisticados ou d e outros serviços a l i m e n t a r e s .
O r e s g a t e d a g a s t r o n o m i a e d a culinária t e m s u s c i t a d o m a i o r interesse n o c o n t e x t o d a g l o b a l i z a ç ã o , n ã o s e n d o casual, m a i s r e c e n t e m e n t e , a r e c u p e r a -ç ã o das t r a d i -ç õ e s culinárias, d e p u b l i c a -ç õ e s a r e s p e i t o - entre as quais aquelas q u e e n f a t i z a m a a n t r o p o l o g i a da a l i m e n t a ç ã o ou a história d a a l i m e n t a ç ã o e dos c o s t u m e s a l i m e n t a r e s . A s atuais r e e d i ç õ e s d e G i l b e r t o F r e y r e (1997) e d e C â -m a r a C a s c u d o ( 1 9 8 3 ) , entre outros autores, -m o s t r a -m o interesse n e s s a te-mática, a s s i m c o m o a c r i a ç ã o d e grupos d e t r a b a l h o s o b r e s i m b o l i s m o e c o m i d a nas r e u n i õ e s d a A s s o c i a ç ã o Brasileira d e A n t r o p o l o g i a , a o l a d o d o s d e b a t e s e m m e s a s - r e d o n d a s , n o s c o n g r e s s o s d e nutrição. U m l a r g o e s p e c t r o d e q u e s t õ e s a s s o c i a d a s à a l i m e n t a ç ã o p o d e r i a a i n d a ser e x p l o r a d o n e s t a b r e v e i n t r o d u ç ã o , e m b o r a as c o n s i d e r a ç õ e s tecidas a r e s -p e i t o n o s -p a r e ç a m suficientes -p a r a a r g u m e n t a r a f a v o r d e s u a a b o r d a g e m sociocultural q u e , c e r t a m e n t e , se aprofunda e se c o m p l e t a n a leitura dos vários artigos a p r e s e n t a d o s p e l o s autores c o m p o n e n t e s d e s t a coletânea. A p e s a r d a h e t e r o g e n e i d a d e d o s enfoques na a b o r d a g e m d a a l i m e n t a ç ã o c o m o m a t é r i a cultural, sob os olhares diferenciados de antropólogos, sociólogos e nutricionistas, q u e c o m u n g a m a i m p o r t â n c i a d e a b o r d á - l a d e s s a m a n e i r a , e s p e r a - s e q u e esta c o l e t â n e a p r o p o r c i o n e aos profissionais d a s a ú d e , aos cientistas sociais, aos estudiosos, p r o f e s s o r e s e interessados na a l i m e n t a ç ã o h u m a n a u m a c o m p r e e n -são d o q u a n t o ela é tributária d a cultura.
O p a r a d i g m a b i o l ó g i c o da nutrição fez u m a interlocução c o m as ciências sociais na q u a l a cultura, o e c o n ô m i c o e o social se r e d u z e m a fatores ou variá-veis s o b r e p o s t o s a u m a visão biologizante d a s d o e n ç a s e d a própria desnutri-ção, a g r e g a n d o - o s às análises, q u e n ã o a b a l a r a m a estrutura d o seu entendi-mento. Esses estudos e iniciativas contribuíram para a multidisciplinaridade sem, n o e n t a n t o , ter se c o n s t i t u í d o u m a a b o r d a g e m c a p a z d e recriar n o v a s p e r s p e c -tivas d e leituras e c o m p r e e n s ã o d o s p r o b l e m a s a l i m e n t a r e s e nutricionais c o m os q u a i s a n u t r i ç ã o se p r e o c u p a .
G e r a l m e n t e , e s t ã o m a r g i n a l i z a d a s d a f o r m a ç ã o d o s nutricionistas a i m p o r t â n c i a d a a n t r o p o l o g i a e as leituras sociológicas s o b r e a a l i m e n t a ç ã o . D e -certo a vertente social da nutrição, i n a u g u r a d a por J o s u é d e Castro, abriu flancos, n o p a s s a d o , p a r a analisar a f o m e , os seus efeitos e criar u m a a g e n d a p a r a as intervenções d e políticas nutricionais e alimentares g o v e r n a m e n t a i s q u e , e m b o -r a t -r a n s f o -r m a d a s e m sua f o -r m u l a ç ã o e i m p l e m e n t a ç ã o n o q u a d -r o das políticas sociais, a i n d a se m a n t ê m .
A p e s a r d e m e n o s agudas atualmente e m relação às décadas imediatas após a S e g u n d a Guerra Mundial, pobreza, miséria e fome ainda c o n v i v e m a o lado da m a i o r abundância alimentar, q u e traz outros p r o b l e m a s nutricionais c o m o a obesidade e as doenças associadas, assim c o m o os distúrbios d o c o m p o r t a m e n t o alimentar (a bulimia e a anorexia, por e x e m p l o ) , fortemente ligados à i m a g e m corporal e q u e c o n v i v e m n o quadro das desigualdades sociais e epidemiológicas reinantes e m n o s s a sociedade. O e n t e n d i m e n t o restrito d a cultura, c a r i m b a d o geralmente c o m termos c o m o 'irracionalidades' a s e r e m removidas por interven-ções q u e se c r ê e m 'racionais' ou 'científicas', n ã o c o n c e d e espaço às diferenças e às diversidades culturais q u e m a r c a m a n o s s a sociedade.
A p r i m e i r a p a r t e desta c o l e t â n e a iniciase c o m u m artigo d e r e v i s ã o b i -bliográfica, feita p o r A n a M a r i a C a n e s q u i , sobre os estudos socioantropológicos sobre a a l i m e n t a ç ã o realizados n o Brasil, p e r c o r r e n d o as d é c a d a s p a s s a d a s e a c o r r e n t e . D i s c u t e m - s e t e m a s , c o n c e i t o s e e n f o q u e s t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c o s a d o t a d o s p o r diferentes autores, e s p e l h a n d o a m u l t i p l i c i d a d e d e p a r a d i g m a s q u e c o n v i v e m entre si na a b o r d a g e m d e u m conjunto d e assuntos q u e foram p e s q u i s a d o s , tais c o m o hábitos e ideologias a l i m e n t a r e s ; p r o d u ç ã o , acesso, prá-ticas d e c o n s u m o e ideologia; o r g a n i z a ç ã o d a família, s o b r e v i v ê n c i a e práprá-ticas d e c o n s u m o alimentar; a l i m e n t a ç ã o , c o r p o , s a ú d e e d o e n ç a ; c o m i d a , s i m b o l i s -m o e i d e n t i d a d e e r e p r e s e n t a ç õ e s s o b r e o natural.
M a r i a E u n i c e M a c i e l d e s t a c a as c o z i n h a s , s i m u l t a n e a m e n t e , c o m o e x -p r e s s õ e s d a s tradições e c o n s t r u ç õ e s histórico-culturais. A s c o z i n h a s n ã o se r e s u m e m aos seus pratos e ingredientes e m b l e m á t i c o s ou específicos; a partir d a leitura d a c o m i d a c o m o l i n g u a g e m , a a u t o r a assinala q u e a c o z i n h a é c a p a z d e c o m u n i c a r as i d e n t i d a d e s d e g r u p o s sociais, é t n i c o s e religiosos; d a s r e g i õ e s e d e seus h a b i t a n t e s ou d a própria n a c i o n a l i d a d e . A s s i m , e s c r e v e a autora, " o p r a t o serve p a r a nutrir o c o r p o , m a s t a m b é m sinaliza u m p e r t e n c i m e n t o , servi-d o c o m o u m c ó servi-d i g o servi-d e r e c o n h e c i m e n t o s o c i a l " .
J u n g l a M a r i a P i m e n t e l D a n i e l e Veraluz Zicarelli C r a v o , p o r sua vez, e l u c i d a m a d i v e r s i d a d e d a s s o c i e d a d e s h u m a n a s (tribais, c a m p o n e s a s e
capita-listas), as r e g r a s e as r e l a ç õ e s sociais i m b r i c a d a s c o m o a s p e c t o s i m b ó l i c o q u e p e r m e i a m a p r o d u ç ã o , a distribuição e a c o m e n s a l i d a d e . Elas t a m b é m percor-r e m u m c o n j u n t o d e e s t u d o s etnogpercor-ráficos n a c i o n a i s , q u e m u i t o b e m e x p percor-r e s s a m a m a r c a das c o n t r i b u i ç õ e s antropológicas, p e l o m e n o s e m u m d a d o m o m e n t o d o d e s e n v o l v i m e n t o das p e s q u i s a s .
N o r t o n C o r r ê a n o s fala d a culinária ritual d o b a t u q u e n o Rio G r a n d e d o Sul. A l é m d e servir p a r a d e m a r c a r territórios r e g i o n a i s , sociais e diferenças identitárias, os alimentos servidos ritualmente n o contexto daquele culto religio-so a b a s t e c e m o s v i v o s , os m o r t o s ou as d i v i n d a d e s , i n s c r e v e n d o - s e nas rela-ç õ e s sociais. C o r r ê a m o s t r a q u e a cozinha, c o m o ' b a s e d a r e l i g i ã o ' , constitui f u n d a m e n t a l m e n t e a e s s ê n c i a e a existência d o p r ó p r i o b a t u q u e .
C a r m e m Sílvia M o r a i s Rial percorre os relatos d o s viajantes e suas in-terpretações s o b r e os c o s t u m e s a l i m e n t a r e s ; as e s p é c i e s vegetais e a n i m a i s c o m e s t í v e i s ; o seu p r e p a r o ; os sabores, o d o r e s e o s p a l a d a r e s o b s e r v a d o s ; os m o d o s d e c o m e r e beber, assim c o m o o c a n i b a l i s m o , j u n t a m e n t e c o m m u d a n ças e i n t r o d u ç õ e s d e n o v o s alimentos, m e d i a n t e o c o n t a t o c o m os c o l o n i z a d o -res. Ela n ã o se interessa a p e n a s pelos relatos e m si m e s m o s , m a s neles lê a i n t e r p r e t a ç ã o q u e t r a z i a m sobre a nossa i d e n t i d a d e , q u e a c o m i d a dos ' o u t r o s ' , e m s e n t i d o geral, foi c a p a z d e expressar, d e s p e r t a n d o r e a ç õ e s n a q u e l e s q u e a o b s e r v a r a m e c o m e n t a r a m c o m seus olhares d e e u r o p e u s .
Sílvia C a r r a s c o i P o n s , a d o t a n d o a p e r s p e c t i v a socioantropológica, s u g e -re q u e sejam a b o r d a d o s os c o m p o r t a m e n t o s e as e x p e r i ê n c i a s alimenta-res c o m o m e i o s d e reconstituir os sistemas alimentares, e x p o s t o s a u m conjunto d e trans-formações, n u m m u n d o globalizado e desigual q u a n t o à distribuição da riqueza. E s s e s i s t e m a sofre, a seu ver, u m conjunto d e influências, às quais se e x p õ e m as e c o n o m i a s tradicionais c o m e s c a s s e z c r ô n i c a d e a l i m e n t o s e crise d e d i s p o -nibilidade alimentar, p a s s a n d o pelas m u d a n ç a s t e c n o l ó g i c a s e e c o l ó g i c a s na p r o d u ç ã o d e a l i m e n t o s , p o r i n t e r v e n ç õ e s sociossanitárias i n d u z i d a s p e l o s p r o -g r a m a s d e ajuda internacional e s u b m e t i d a s aos p r o c e s s o s d e industrialização, u r b a n i z a ç ã o e m i g r a ç ã o . Ela l e m b r a t a m b é m , e n t r e as m u d a n ç a s r e c e n t e s dos sistemas a l i m e n t a r e s , a crise da a l i m e n t a ç ã o nos países d e s e n v o l v i d o s , ou seja, a ' g a s t r o - a n o m i a ' , a p o n t a d a p o r C l a u d e F i s c h l e r ( 1 9 9 0 ) . O d e s e n h o d e t a l h a d o d e u m a p r o p o s t a p a r a o estudo sociocultural d a a l i m e n t a ç ã o elucida o seu p o n t o d e vista s o b r e a r e c o n s t r u ç ã o d o sistema alimentar, c o m o c o m p o n e n t e d a cultu-ra q u e serve d e g u i a pacultu-ra u m tcultu-rabalho d e c a m p o d e n a t u r e z a a n t r o p o l ó g i c a c o m intenções comparativas e interculturais. A autora p õ e entre parênteses a feitura d e u m a etnografia d a nutrição, p r o p o n d o à antropologia a c o m p r e e n s ã o e a aná-lise das propriedades social e material da alimentação e dos processos sociais e
culturais e n ã o d o s a l i m e n t o s , per si, o u d o s p r o c e s s o s m e t a b ó l i c o s , p o s t o s pela b i o m e d i c i n a e p e l a nutrição.
N a s e g u n d a parte, os autores a p r o f u n d a m a reflexão sobre os p a r a d o x o s e a s r e p e r c u s s õ e s , n a c u l t u r a a l i m e n t a r , d a s t r a n s f o r m a ç õ e s e d a i n t e r n a c i o n a l i z a ç ã o d a e c o n o m i a , d a s t e c n o l o g i a s , das finanças, d a p r o d u ç ã o cultural e m escala m u n d i a l e d o c o n s u m o n o c o n t e x t o d a globalização. Trata-se d e u m p r o c e s s o q u e c o m p o r t a a h e t e r o g e n e i d a d e e a fragmentação, n ã o s e n d o h o m o g ê n e o , c o m o parte d a literatura s o b r e a g l o b a l i z a ç ã o sugere. O s artigos d e J e s ú s C o n t r e r a s H e r n á n d e z e d e M a b e l G r a c i a A r n a i z a d m i t e m , p o r u m l a d o , o s efeitos r e l a t i v a m e n t e h o m o g e n e i z a n t e s e positivos d a g l o b a l i z a ç ã o s o -bre a m a i o r afluência alimentar, a s s i m c o m o a massificação d o c o n s u m o e a m a i o r a c e s s i b i l i d a d e alimentar, n o s países industrializados, m o v i d o s p e l o n o v o ciclo e c o n ô m i c o d o capitalismo, c o n c e n t r a d o r d o s negócios e altamente especi-alizado nas r e d e s d e p r o d u ç ã o , distribuição e c o n s u m o . Por outro lado, refletem s o b r e a g e r a ç ã o e a p r e s e r v a ç ã o d e várias c o n t r a d i ç õ e s .
C o n t r e r a s n o s fala, entre a q u e l a s m u d a n ç a s , na d e f a s a g e m entre as r e -p r e s e n t a ç õ e s a l i m e n t a r e s dos c o n s u m i d o r e s e os ritmos e a v e l o c i d a d e d a s i n o v a ç õ e s e t e c n o l o g i a s ; d o s i s t e m a d e p r o d u ç ã o e distribuição d o s a l i m e n t o s e m e s c a l a industrial, diante d o s quais os c o n s u m i d o r e s p e r m a n e c e m desconfia-d o s , i n s e g u r o s e insatisfeitos. Reflete t a m b é m s o b r e a i m p o r t â n c i a desconfia-das políticas culturais q u e t o r n a m as c o z i n h a s e suas t r a d i ç õ e s objetos d e p a t r i m ô n i o , criti-c a n d o , t o d a v i a , o s seus u s o s i d e o l ó g i criti-c o s e m e r criti-c a n t i s por m e i o d a difusão e d a r e v a l o r i z a ç ã o d e s c o n t e x t u a l i z a d a d e certas c o z i n h a s regionais, locais e n a c i o -nais. S e a a n t r o p o l o g i a s e m p r e se i n t e r e s s o u p e l a s diversidades e diferenças, p r e s t a n d o a t e n ç ã o às relações sociais e às formas culturais criadas pelas d i s -tintas s o c i e d a d e s , s u g e r e o autor q u e i n d a g u e m o s s o b r e as diferenças e o s ritmos d o p r o c e s s o d e tornar objetos d e p a t r i m ô n i o as várias tradições culturais a l i m e n t a r e s n o s diferentes p a í s e s ; s o b r e o s a g e n t e s p r o p o n e n t e s , seus p r o p ó s i -tos e as características q u e a s s u m e m e m c a d a p a í s .
M a b e l G r a c i a A r n a i z é b a s t a n t e enfática a o tratar da persistência, na afluência alimentar, das d e s i g u a l d a d e s sociais n o a c e s s o ; d a s diferenças d o c o n s u m o , s e g u n d o a b a g a g e m sociocultural d o s vários g r u p o s sociais; d a g r a n -d e v a r i a b i l i -d a -d e -d a oferta alimentar, q u e s t i o n a n -d o a h o m o g e n e i z a ç ã o e reafir-m a n d o a e x i s t ê n c i a d o s p a r t i c u l a r i s reafir-m o s locais e r e g i o n a i s , não destruídos p e l o p r o c e s s o d e g l o b a l i z a ç ã o . P a r a a autora, a a b u n d â n c i a alimentar c o n v i v e c o m : 1) a m a g r e z a rigorosa, c o m o u m n o v o p a d r ã o d a estética corporal p r o d u z i d o p o r e p a r a c e r t o s setores sociais; 2) a s e g u r a n ç a e a i n s e g u r a n ç a a l i m e n t a r e s , ou seja, os riscos reais e subjetivos; 3) o s n o v o s p r o d u t o s c o m e s t í v e i s n ã o
-identificados; 4 ) a d e s t r u i ç ã o d a a l i m e n t a ç ã o tradicional, d o s seus ciclos e ritm o s e 5) a ritm a i o r v u l n e r a b i l i d a d e d e ritm u i t o s g r u p o s sociais e dos países e ritm p o -b r e c i d o s . S e g u n d o ela, a antropologia da a l i m e n t a ç ã o m o v e - s e n u m e s p a ç o q u e lhe p e r m i t e d e s c r e v e r e analisar as m u d a n ç a s d a o r d e m social e contribuir s i m u l t a n e a m e n t e p a r a m e l h o r a r a q u a l i d a d e d e v i d a e s a ú d e das p e s s o a s , r e d u -zir as d e s i g u a l d a d e s sociais, evitar d i s c r i m i n a ç õ e s , p r e s e r v a r o m e i o a m b i e n t e , a b i o d i v e r s i d a d e , m a n t e n d o as identidades.
N a terceira parte, transpõe-se a a l i m e n t a ç ã o p a r a os diferentes e s p a ç o s - p r i v a d o s e p ú b l i c o s - nos c o n t e x t o s u r b a n o s . A n a M a r i a C a n e s q u i a p r e s e n t a u m e s t u d o c o m p a r a t i v o s o b r e a prática a l i m e n t a r c o t i d i a n a n o â m b i t o d o m é s t i -c o , r e a l i z a d o e m dois p e r í o d o s e -conjunturas m a -c r o e -c o n ô m i -c a s distintas ( 1 9 7 0 e 2 0 0 2 ) entre s e g m e n t o s d e famílias t r a b a l h a d o r a s u r b a n a s q u e h a v i a m m i g r a -d o -d o c a m p o p a r a a c i -d a -d e , n o início -d a -d é c a -d a -d e 7 0 , q u a n -d o elas foram p r i m e i r a m e n t e e s t u d a d a s , e n u m a s e g u n d a v e z , a p ó s decorridos 3 0 a n o s d e e x p e r i ê n c i a e i n s e r ç ã o n a c i d a d e . A autora e n f o c a o s g r u p o s d o m é s t i c o s , ca-r a c t e ca-r i z a n d o - o s s e g u n d o a sua c o m p o s i ç ã o , f o ca-r m a s d e i n s e ca-r ç ã o n o m e ca-r c a d o d e t r a b a l h o , ciclo d e vida e divisão sexual d o s p a p é i s familiares, a t e n t a n d o p a r a o m o d o c o m o se o r g a n i z a e se estrutura a prática a l i m e n t a r cotidiana (provisão, p r e p a r o , distribuição e c o n s u m o final d o s a l i m e n t o s ) , i n d a g a n d o s o b r e as suas m u d a n ç a s e p e r m a n ê n c i a s n a q u e l e e s p a ç o d e t e m p o e entre duas g e r a ç õ e s . V a l e n d o - s e d a etnografía, possibilita c o m p r e e n d e r r e p r e s e n t a ç õ e s e ações so-bre os u s o s e o m o d o d e c o n s u m o d o s a l i m e n t o s - c o n f o r m a n d o u m d a d o estilo d e c o n s u m o - q u e e v i d e n c i a m outras l ó g i c a s q u e d e v e m ser c o m p r e e n d i d a s pelos profissionais d a s a ú d e . O e s t u d o d e corte qualitativo ultrapassa o s d e tipo o r ç a m e n t á r i o s o b r e o c o n s u m o , q u e g e r a l m e n t e c o n s t a t a m t r a n s f o r m a ç õ e s n o p a d r ã o a l i m e n t a r nas ú l t i m a s d é c a d a s , justificadas a p e n a s pela r e n d a e p e l a e s c o l a r i d a d e , s e m c o n s i d e r a r e m a c o m p l e x i d a d e d a s práticas a l i m e n t a r e s q u e , a l é m d o a c e s s o a o c o n s u m o , c o m p o r t a m v a l o r e s , identidades, a p r e n d i z a g e m , e s c o l h a s e g o s t o s a l i m e n t a r e s , c o n f o r m a d o s n o m o d o d e vida e p e r m e a d o s p o r várias a m b i g ü i d a d e s , q u e d e n o t a m s i m u l t a n e a m e n t e tradições e m u d a n ç a s .
R o s a W a n d a D i e z G a r c i a relata p e s q u i s a s o b r e as r e p r e s e n t a ç õ e s d a a l i m e n t a ç ã o d e funcionários públicos c o m o c u p a ç õ e s administrativas q u e tra-b a l h a v a m n o c e n t r o d a c i d a d e d e S ã o P a u l o e faziam refeições n o local d e trabalho ou e m restaurantes. N o e s t u d o , e l a identifica a existência d e u m d i s c u r s o s o b r e a r e l a ç ã o entre a l i m e n t a ç ã o e s a ú d e q u e associa causas d e d o e n -ças, c o n t a m i n a ç ã o alimentar e e x c e s s o d e p e s o c o r p o r a l , aspectos q u e se arti-c u l a m e m t o r n o d e valores a s s o arti-c i a d o s a o arti-c o r p o e a o seu arti-c u i d a d o , d e j u í z o s m o r a i s s o b r e o q u e é b o m ou n ã o p a r a c o m e r e d e formas d e p e n s a r a s s e n t a d a s
n a s c l a s s i f i c a ç õ e s c u l t u r a i s e s i m b ó l i c a s s o b r e a c o m i d a . U m c o n j u n t o d e c o n t r a d i ç õ e s e n t r e as f o r m a s d e p e n s a r e d e se c o m p o r t a r d i a n t e d a a l i m e n -t a ç ã o n o s m o s -t r a u m a m o b i l i d a d e e flu-tuações n o s d i s c u r s o s e n a s p r á -t i c a s q u e e s t ã o t e n s i o n a d o s p e r m a n e n t e m e n t e p o r e s c o l h a s i n d i v i d u a i s p e r c e b i d a s c o m o t r a n s g r e s s õ e s . O s o c i ó l o g o Jean-Pierre C o r b e a u d i s c o r r e s o b r e a d i m e n s ã o s i m b ó l i c a e o c u l t a d a c o m e n s a l i d a d e n o â m b i t o h o s p i t a l a r c o m b a s e n a análise d a ' s e q ü ê n -cia a l i m e n t a r ' : suas especificidades, o c o n t e x t o e a so-ciabilidade a l i m e n t a r na-q u e l e e s p a ç o . P a r a o autor, n a ' s e na-q ü ê n c i a a l i m e n t a r ' i n t e r a g e m a s p e c t o s p s i c o s s o c i o l ó g i c o s e culturais d o c o m e r c o m o s aspectos simbólicos e a p r ó p r i a p e r c e p ç ã o d o a l i m e n t o pelos c o m e n s a i s . E l e d e s t a c a seis eixos d e p e r s p e c t i v a s institucionais n a a l i m e n t a ç ã o hospitalar: a h i g i e n e , as p r o p r i e d a d e s d o s a l i m e n -t o s , o s e r v i ç o , o s a b o r d a a l i m e n -t a ç ã o , o s i m b ó l i c o e o s i m u l a c r o p r e s e n -t e s n a g e s t ã o d o s h o s p i t a i s f r a n c e s e s , m a t é r i a s d e c o n f r o n t o d e e x p e c t a t i v a s d e c o m e n s a l i d a d e dos usuários e das instituições, d e m o n s t r a n d o q u e a c o m i d a t e m efeitos n o s t r a t a m e n t o s , u m a vez q u e p o r t a m significados p a r a os a d o e c i d o s .
G é r a r d M a e s , a d m i n i s t r a d o r hospitalar, reconstitui a trajetória d a s m u -d a n ç a s n o t e m p o -d a a l i m e n t a ç ã o institucional, p o r m e i o -d e u m t e s t e m u n h o ar-g u t o d e suas t r a n s f o r m a ç õ e s n o c o n t e x t o francês: da sopa, q u e o c u p a u m l u ar-g a r histórico n e s s a trajetória, até os c a r d á p i o s m a i s recentes p r e p a r a d o s p o r chefs d e c o z i n h a . T u d o isso reflete s i m u l t a n e a m e n t e o s p r o c e s s o s d e m u d a n ç a d e valores e m r e l a ç ã o à hospitalização, a o g e r e n c i a m e n t o d o s hospitais n o p r e p a r o d a s refeições, n a p r o d u ç ã o d e c a r d á p i o s , a t u a l m e n t e influenciada p o r profis-sionais d e nutrição, e sua p e r m e a b i l i d a d e às t r a n s f o r m a ç õ e s n o estatuto d o d o e n t e - q u e p a s s o u a ser visto m a i s c o m o cliente e m e n o s c o m o p a c i e n t e .
N a quarta parte, são discutidas as p o s s í v e i s interlocuções e n t r e a n u t r i -ç ã o e a s c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s , e s p e c i a l m e n t e a a n t r o p o l o g i a . A s o r g a n i z a d o r a s fazem u m a análise d o s currículos d e cursos d e nutrição d o Brasil e d e a l g u n s p r o g r a m a s d e disciplinas p o r eles ofertadas. D e t ê m - s e s o b r e os c o n t e ú d o s d e p r o g r a m a s d e cursos d e c i ê n c i a s sociais e h u m a n a s s o b r e ali-m e n t a ç ã o , ali-m i n i s t r a d o s p o r u n i v e r s i d a d e s n o r t e - a ali-m e r i c a n a s e i n g l e s a s , c o ali-m a i n t e n ç ã o d e tecer c o m p a r a ç õ e s d e c o n t e ú d o s p r o g r a m á t i c o s e m e t o d o l o g i a s d e e n s i n o d a q u e l e s p r o g r a m a s c o m o s n a c i o n a i s , e a finalidade d e c o n t r i b u i r p a r a a d i s c u s s ã o d o m e l h o r e q u a c i o n a m e n t o d e s s a s disciplinas nos currículos d o s c u r s o s d e nutrição n a c i o n a i s . E n t r e as c o n s t a t a ç õ e s d o e s t u d o e s t ã o , p a r a a s i t u a ç ã o brasileira, a e x p a n s ã o d a i n c l u s ã o d a s c i ê n c i a s sociais e h u m a n a s n o s currículos, e m b o r a h e t e r o g ê n e a e d i s p e r s a q u a n t o aos c o n t e ú d o s , c a r g a h o r á r i a e disciplinas a p r e s e n t a d a s , o q u e p a r e c e c o n f o r m a r tensões e fragilidades n a
e x p e c t a t i v a d a p a r t i c i p a ç ã o d e s s a á r e a d e c o n h e c i m e n t o n a f o r m a ç ã o d o nutricionista. O s p r o g r a m a s internacionais analisados são m a i s específicos n o s seus c o n t e ú d o s , q u e se v o l t a m p a r a u m e x a m e m a i s focado n a t e m á t i c a d a a l i m e n t a ç ã o e d o s fatores q u e a e l u c i d a m , e x p o n d o u m a c e r v o diversificado d e p e s q u i s a s e p r e o c u p a ç õ e s b e m m a i s a m p l a s d o q u e as existentes n o Brasil.
O s d o i s a r t i g o s q u e s e s e g u e m s ã o d i r i g i d o s , r e s p e c t i v a m e n t e , a nutricionistas e a a n t r o p ó l o g o s . A m b o s a s s i n a l a m ser a c o m p l e x i d a d e d a ali-m e n t a ç ã o c o ali-m o o b j e t o d e e s t u d o o f u n d a ali-m e n t o p a r a u ali-m a a b o r d a g e ali-m interdisciplinar e t r a t a m d a s dificuldades q u e se o p e r a m n a sua a p l i c a ç ã o .
N a f o r m a d e d i á l o g o entre a a n t r o p o l o g i a e a nutrição, R o s a W a n d a D i e z G a r c i a reflete s o b r e a a d o ç ã o d a d i e t a m e d i t e r r â n e a c o m o m o d e l o d e d i e t a s a u d á v e l , d e s t a c a n d o a i n a d e q u a ç ã o cultural d e transportar ou g e n e r a l i z a r u m m o d e l o dietético f u n d a m e n t a d o n u m a cultura e n u m m e i o d e t e r m i n a d o s . Tra-d u z i r e m n u t r i e n t e s , o u e m i t e n s a l i m e n t a r e s , u m m o Tra-d e l o Tra-d e Tra-d i e t a é d e s c o n t e x t u a l i z a r a sua p r o d u ç ã o , e g e r a apropriações f r a g m e n t a d a s d e alim e n t o s q u e s ã o r e i n t e g r a d o s e alim o u t r o s alim o d e l o s dietéticos, d e s c o n s i d e r a n d o -se tanto o r e s u l t a d o d e s s e rearranjo q u a n t o a própria i d e n t i d a d e c u l i n á r i a c o m o p a t r i m ô n i o d e outra cultura.
D i r i g i d o i n i c i a l m e n t e a a n t r o p ó l o g o s , o artigo d e M a b e l G r a c i a A r n a i z traz u m a d i s c u s s ã o s o b r e as p e c u l i a r i d a d e s d a a n t r o p o l o g i a d a a l i m e n t a ç ã o , na q u a l l a m e n t a o r e d u z i d o i n t e r e s s e d o s a n t r o p ó l o g o s n o seu e s t u d o ; r e v e l a as r i v a l i d a d e s entre a a n t r o p o l o g i a t e ó r i c a e a prática e a r e l e v â n c i a atribuída à primeira, e m detrimento d a s e g u n d a . A aplicação d o c o n h e c i m e n t o antropológi-c o , u l t r a p a s s a n d o as p r e o antropológi-c u p a ç õ e s e x antropológi-c l u s i v a m e n t e teóriantropológi-cas, é d e f e n d i d a p e l a autora. E l a trava t a m b é m u m d i á l o g o c o m profissionais d a área d a s a ú d e e m a i s e s p e c i f i c a m e n t e c o m o s nutricionistas, a p o n t a n d o as fronteiras d o s c a m -p o s -profissionais n a análise d e -p r o g r a m a s e -políticas d e a l i m e n t a ç ã o .
E s p e r a - s e q u e e s t a c o l e t â n e a p r e e n c h a u m a l a c u n a b i b l i o g r á f i c a e fa-cilite a a p r o x i m a ç ã o d a a n t r o p o l o g i a c o m a n u t r i ç ã o . E m b o r a a c o n s t r u ç ã o d a i n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e n ã o g o z e d o c o n s e n s o d e t o d o s o s a u t o r e s d e l a p a r t i c i -p a n t e s , a b r e m - s e -p o s s i b i l i d a d e s d e i n t e r l o c u ç ã o e n t r e os d i f e r e n t e s c a m -p o s d i s c i p l i n a r e s n o â m b i t o d a p e s q u i s a , c o m o t a m b é m e n t r e o s i n c u m b i d o s , p o r o f í c i o , d e i n t e r v e n ç õ e s n o s p r o b l e m a s i n d i v i d u a i s e c o l e t i v o s d a a l i m e n t a ç ã o e n u t r i ç ã o - i n t e r v e n ç õ e s c u l t u r a l m e n t e ajustadas d e m a n d a m p r o f i s s i o n a i s q u e p e r m a n e ç a m m a i s s e n s í v e i s à c o m p r e e n s ã o d a s d i f e r e n ç a s e d a d i v e r s i -d a -d e c u l t u r a l a l i m e n t a r -d a s p o p u l a ç õ e s o u -d a s clientelas às q u a i s se -d i r i g e m . D a m e s m a f o r m a , t e n d o e m v i s t a a i n c i p i ê n c i a , d e s a r t i c u l a ç ã o e f r a g m e n t a -ç ã o o b s e r v a d a n a a i n d a frágil p a r t i c i p a -ç ã o d a s c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s n o
e n s i n o d a n u t r i ç ã o , e s p e r a - s e a u x i l i a r n o a m a d u r e c i m e n t o d a c o n f o r m a ç ã o d o s c u r r í c u l o s , p a r t i c u l a r m e n t e n o q u e d i z r e s p e i t o à s a b o r d a g e n s s o c i o a n t r o p o l ó g i c a s d a a l i m e n t a ç ã o .
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Parte I
OLHARES ANTROPOLÓGICOS
SOBRE A ALIMENTAÇÃO
1
Comentários sobre os Estudos
Antropológicos da Alimentação
Ana Maria Canesqui
Será revisto aqui u m conjunto de estudos sobre a alimentação feitos princi-palmente por antropólogos, acrescentando-se alguns mais orientados pela socio-logia, que se destacam na literatura examinada. Incorporam-se t a m b é m as contri-buições recentes de profissionais da saúde que assimilaram conceitos e metodologias das ciências sociais na análise da dimensão sociocultural da alimentação. Embora não se aprofundem as especificidades teórico-metodológicas de cada paradigma, q u e i n c l u i a b o r d a g e n s n o s s e u s v á r i o s ' i s m o s ' , d e l i n e i a m - s e c o n c e i t o s e metodologias empregados pelos autores que refletem, a cada tempo, algumas cor-rentes de pensamento utilizadas pelos pesquisadores.
Parte-se de estudos anteriores (Canesqui, 1988, 1994) que elaboraram, res-pectivamente, uma revisão dos estudos antropológicos sobre a alimentação e daque-les relacionados à saúde e doença, acrescentando-se pesquisa bibliográfica para a década de 90 e início dos anos 2000, com base na consulta aos artigos publicados nas revistas nacionais de antropologia, saúde pública/saúde coletiva e nutrição.
Foi Geertz (2001) q u e m sugeriu que o entendimento das ciências pode passar não apenas pelas teorias, mas pelos seus praticantes, importando assim analisar aquela produção sem que se faça u m a etnografia do saber antropológico sobre a alimentação. O interesse mais recente pela gastronomia e culinária, o cres-cente volume de publicações do mercado editorial e o maior desenvolvimento da antropologia da alimentação ou da nutrição, no âmbito internacional, sinalizam a maior centralidade do tema nos debates intelectual e social, c o m reflexos na pro-dução acadêmica nacional, ainda que este assunto se encontre entre os 'objetos' secundários para a antropologia.
Se durante a década de 70 alguns antropólogos pesquisaram a alimentação, interessando-se pelo m o d o de vida das classes populares, incluindo a cultura e a
ideologia, nos anos 80 o interesse a respeito foi muito residual, embora o assunto tivesse se articulado aos estudos das representações do corpo, saúde e doença ou das representações de saúde e doença. Tais estudos marcaram algumas etnografías e as pesquisas 'qualitativas' e m saúde no Brasil, e m função do maior desenvolvi-mento das ciências sociais e m saúde e do crescente envolvidesenvolvi-mento dos antropólo-gos c o m as questões relacionadas à saúde e m geral, da qual a alimentação é u m dos componentes.
Desde a segunda metade da década de 90, no âmbito das discussões do Grupo de Trabalho sobre Comida e Simbolismo, promovido pela Associação Bra-sileira de Antropologia, renovados e antigos temas se incorporam ao debate inte-lectual, c o m o os regionalismos culinários; comida e simbolismo; cozinhas e reli-gião; hábitos alimentares de grupos específicos ou os promovidos pelo marketing; os fast-food e a reorganização da comensalidade na sociedade urbano-industrial, entre outros. Compõe-se, assim, u m a bibliografia recente, ainda não inteiramente publicada, o que dificultou a realização de u m balanço mais abrangente e detalhado dessa produção acadêmica recente.
D a m e s m a forma, no âmbito dos Congressos Brasileiros de Nutrição, na década de 90 houve tentativas ainda tímidas de maior interlocução c o m as ciên-cias sociais no c a m p o da saúde (psicologia, antropologia e sociologia), por m e i o da c o n v o c a ç ã o do debate multidisciplinar, e m mesasredondas e grupos de e s -pecialistas e m nutrição. Seria amplo demais para este estudo abordar as contri-buições dessas diferentes disciplinas no assunto e x a m i n a d o ; por esta razão, pre-ferimos destacar apenas os estudos antropológicos, c o m os quais temos maior familiaridade.
ANTIGAS E NOVAS CONTRIBUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS
Os ESTUDOS DE COMUNIDADE
Roberto DaMatta (1983) sintetizou os objetos dos primeiros estudos antro-pológicos no Brasil: os negros, brancos e indígenas, e certamente muitos antropó-logos brasileiros continuam interessados nas relações raciais e na questão indíge-na. De fato, essa classificação aplicava-se a u m dado momento da história da antropologia brasileira, circunscrita aos estudos monográficos daqueles e de ou-tros grupos sociais (camponeses e populações ribeirinhas, entre ouou-tros).
Os estudos de comunidade enfocaram a dimensão cultural da alimentação, nanifestada por meio de crenças e tabus (proibições) associadas à gestação, ao
parto e ao pós-parto. Mostraram também as fontes de produção e de abasteci-mento alimentares das economias de subsistência e extrativas, c o m baixa depen-dência do mercado, j u n t a m e n t e c o m as crenças, permeando a c o m p o s i ç ã o da dieta, o preparo dos alimentos, os hábitos alimentares e a classificação dos alimen-tos ('quentes/frios, fortes/fracos'). As crenças alimentares, cujas origens aqueles estudos pouco exploraram, foram consideradas c o m o verdadeiros patrimônios da cultura folk (Ferrari, 1960).
Charles Wagley também se enquadra entre os estudiosos de comunidade, c o m o u m dos primeiros antropólogos norte-americanos que estiveram no Brasil e se dedicaram à antropologia aplicada à saúde pública, tendo sido técnico da Fun-dação de Serviço Especial de Saúde Pública no período de 1942 a 1946 (Nogueira,
1968). De seu estudo sobre a comunidade amazonense destacam-se os seguintes aspectos quanto à alimentação e à saúde: a análise dos regimes alimentares, das receitas e despesas alimentares; da disponibilidade de calorias, do estilo de vida; b e m c o m o das crenças tradicionais relacionadas à saúde, à doença e às suas cau-sas e meios de tratamento, englobados genericamente sob a magia, segundo Wagley (1953). Tomando esse conjunto de crenças c o m o barreiras à adoção de mudan-ças, imprimidas pela introdução de medidas higiênicas e terapêuticas calcadas no conhecimento médico-sanitário, o autor fornece u m típico exemplo d o compro-metimento do saber antropológico c o m a educação sanitária etnocêntrica, que, apoiada na racionalidade do modelo médico-sanitário dominante, considera inade-quados os saberes e procedimentos tradicionais de cura.
A tradição dos estudos de comunidade geralmente entendeu a cultura c o m o totalidade indiferenciada e m todas as suas dimensões e foi criticada por tratá-la como u m sistema fechado, funcional e isolado. C o m o afirmou Nogueira (1968:182), foram três as tendências dos estudos de comunidade:
1) dar ênfase aos aspectos locais e atuais, n u m a exageração d o grau d e isolamento d a c o m u n i d a d e ; 2) dar ênfase ao desenvolvimento histórico, c o m a consideração simultânea das condições atuais; e 3) estudar a vida social d a c o m u n i d a d e e as c o n d i ç õ e s ecológicas d a região.
Quanto à alimentação, destaca-se o estudo de Cândido (1971), que ampliou e renovou os estudos de comunidade anteriores e explicou as mudanças a partir da produção dos meios de sobrevivência, das relações entre o h o m e m e seu hábitat na provisão daqueles meios. Cândido identificou, nessa que é u m a monografia clássica sobre a alimentação, os padrões de sociabilidade e os aspectos das trans-formações culturais (tecnológicas, no sistema de crenças e valores).
Não se tratava mais de conceber a cultura c o m o u m sistema fechado. Ela estava exposta às transformações dadas e m u m a sociedade rural e tradicional pelo desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial, que proporcionou novas fei-ções ao meio 'rústico' paulista. Diante daquelas mudanças, eram maiores ou me-nores os graus de ajustamento dos distintos agrupamentos ao equilíbrio entre o meio físico e as necessidades básicas vitais, que se satisfaziam através da explo-ração dos recursos naturais, mediante o emprego de tecnologias e de formas de organização social. Esse conjunto de fatores e processos afetava a produção e a distribuição dos bens alimentícios, o sistema de abastecimento e o consumo ali-mentar, refletindo-se ainda na dimensão cultural.
O autor explorou as várias formas de distribuição dos alimentos, entre elas as r e a l i z a d a s nas festas públicas e entre v i z i n h o s e p a r e n t e s . Ele inseriu a comensalidade nos padrões de sociabilidade e nas relações de parentesco e vizi-nhança, e m que o sistema de trocas alimentares assentava-se na cooperação. Muitas crenças alimentares reportavam-se ao sistema religioso e às suas prescrições e rituais, que persistiam naquele ambiente 'rústico', apesar das mudanças na orga-nização social, econômica e cultural. Estas se refletiam na provisão dos meios de vida. Rural e urbano, sempre postos c o m o fenômenos relacionados, sofriam u m processo acelerado de transição. Essa obra de Antônio Cândido é u m b o m exem-plo da prática multidisciplinar entre as ciências sociais, desde que recorreu a con-ceitos e metodologias procedentes da história, da antropologia e da sociologia, tendo influenciado algumas pesquisas posteriores sobre a alimentação.
Tanto esse e s t u d o q u a n t o os de c o m u n i d a d e foram efetuados entre as décadas de 4 0 e 6 0 , e na década de 70 a antropologia ganhou maior impulso e atualização n o Brasil, c o m a e x p a n s ã o dos cursos de pósgraduação e as m u d a n ças geradas pelas reflexões críticas sobre a disciplina, que lhes imprimiram n o -vas faces, sob no-vas influências e correntes de p e n s a m e n t o (o estruturalismo lingüístico e outras formas de estruturalismo; a fenomenologia; a etnometodologia; as correntes c o m p r e e n s i v a s ; o marxismo e outras), s e m que estas tenham subs-tituído integralmente a perspectiva funcionalista anterior, que c o m p u n h a a ma-triz disciplinar.
Naquele m o m e n t o , a questão da desnutrição estava posta entre os efeitos adversos do 'milagre e c o n ô m i c o ' brasileiro e despertou o maior interesse das políticas governamentais de nutrição e alimentação, levando à ampliação dos fi-nanciamentos para as pesquisas nessa área, que resultou no envolvimento de an-tropólogos no tema da alimentação, sem que pudesse ser identificada a antropolo-gia especializada n o assunto, embora ela se voltasse para as questões urbanas, sensibilizando-se c o m a dramaticidade dos problemas sociais.
HÁBITOS E IDEOLOGIAS ALIMENTARES
Na década de 70, u m a linha de estudos antropológicos voltou-se para a cidade, especialmente para desvendar o modo de vida dos grupos socialmente desfavorecidos, composto de u m conjunto de práticas e representações (formas de pensamento e ação) de tradições, entre as quais se incluiu a alimentação. Assim, ao lado do Diagnóstico Nacional das Despesas Familiares (FIBGE, 1974/1975), o Grupo de Ciências Sociais do Estudo Nacional de Despesas Familiares (Fineep/ Inan/IBGE) fez várias etnografias sobre os hábitos e as ideologias alimentares, integrando pesquisadores da Universidade de Brasília e do Museu Nacional. N e m todos esses estudos foram publicados e amplamente divulgados, embora tivessem sido realizados e m distintas localidades do país, entre grupos rurais (camponeses independentes, parceiros agrícolas, pescadores, produtores agrícolas) e segmen-tos de trabalhadores urbanos. A esses estudos financiados somaram-se outros empreendidos por pesquisadores independentes, sempre ligados aos cursos de pós-graduação e m antropologia social, de forma que o tema alimentação ganhou visibilidade na bibliografia produzida.
Apesar de heterogêneos, os estudos produzidos por aquele grupo foram comentados por Woortman (1978) e Velho (1977), ambos coordenadores do pro-grama de pesquisa. Para eles, os hábitos alimentares foram compreendidos de duas formas: a primeira privilegiou as teorias alimentares, por meio do sistema de classificação dos alimentos ('quente/frio, forte/fraco, reimoso/descarregado'), que presidem as prescrições, proibições e os próprios hábitos alimentares. A segunda associou aquele sistema ao conjunto das diferentes práticas sociais e significa-ções, conferidas pelos distintos grupos sociais e que se ancoram na ideologia e na cultura e não apenas nos modelos de pensamento, que ordenam previamente as categorias alimentares.
A p r i m e i r a a b o r d a g e m situou a a l i m e n t a ç ã o c o m o parte do u n i v e r s o cognitivo e simbólico, q u e define as qualidades e propriedades dos alimentos e dos que se alimentam; as indicações e prescrições alimentares apropriadas ou não a situações específicas e o valor dos alimentos. Isso tudo se ancora e m u m m o d e l o de p e n s a m e n t o que conceitua e define a relação entre o alimento c o m o organismo que o c o n s o m e , identificando simbolicamente a posição social do indivíduo (Woortman, 1978).
O s hábitos alimentares, para esse autor, resultavam de lógicas relacionadas à racionalidade econômica, ao acesso, à seleção dos alimentos, fatores que, isola-damente, eram insuficientes para explicá-los, u m a vez que a alimentação é fenô-meno cultural, detentor de conteúdos simbólicos e cognitivos relativos às
classifi-cações sociais, à percepção do organismo humano e às relações entre este e as substâncias ingeridas, operantes por meio de u m sistema de conhecimento e de princípios ordenadores que tratam a relação entre a alimentação e o organismo (Woortman, 1978). Desses planos compreendiam-se os padrões que caracteriza-vam os hábitos alimentares.
Esse tipo de análise se preocupa com princípios ordenadores dos hábitos alimentares, que operam c o m o modelos classificatórios, acrescentando ou não os modos de acesso aos alimentos e a sua relação c o m a sobrevivência e a reprodu-ção, ou seja, com os fatores da infra-estrutura econômica da sociedade. Nesses embates intelectuais estavam marxistas e estruturalistas, sendo que Otávio Velho (1977) se opôs à estruturação dos modelos ordenadores prévios dos princípios classificatórios, que são formas de pensar, postos como códigos a serem desven-dados pelos pesquisadores.
O autor sugeriu a busca dos vários princípios classificatórios que presi-dem os hábitos alimentares evidenciados e m cada caso, u m a vez que a relação entre os alimentos e a natureza e a sociedade, antes de configurar formas de pensamento, remete às formas concretas e historicizadas. Para ele, os sistemas classificatórios alimentares comportam u m conjunto de princípios ordenadores que conduzem às concepções particulares de saúde e doença nos diferentes gru-pos sociais e à relação entre a alimentação e o organismo humano. São, portanto, princípios ligados à prática social de cada u m dos diferentes grupos, uma vez que estes p o r t a m distintos ethos e habitus, tal c o m o foram estudados por Pierre Bourdieu (1977).
Outro estudo elucida a perspectiva estruturalista na abordagem das classi-ficações alimentares, das proibições e dos tabus associados ao sistema de cren-ças. A pesquisa de Peirano (1975) entre pescadores de Icaraí, no Ceará, foi exem-plar sobre a influência do estruturalismo de Lévi-Strauss na explicação das proibi-ções alimentares associadas à categoria 'reimoso', aplicada a certos peixes e que compõem as crenças de algumas populações e o próprio sistema classificatório dos alimentos.
A classificação de peixes 'reimosos' foi entendida pela autora c o m o u m a manifestação paratotêmica, na qual a série cultural, referida aos seres humanos, relacionava-se c o m a série natural dos seres marinhos pela via de relações de homología entre ambos, traduzidas, no plano simbólico, nas proibições do consu-mo de certos peixes por certas categorias de pessoas, enquanto outras espécies animais, que são caçadas (os voadores), se incluíam também naquela categoria, cujos critérios explicativos se referiam ao hábitat e ao revestimento externo.
Essa forma de análise não foi compartilhada por Maués e Maués (1978, 1980), q u a n d o estudaram as representações sobre os alimentos, as proibições alimentares e a classificação dos alimentos entre pescadores. Eles admitiram a existência de tabus alimentares ligados ao comportamento ritual e não ao sistema totêmico, c o m o quis Peirano. Para esses autores, os tabus alimentares aplicavam-se a alguns alimentos classificados c o m o 'fortes', 'frios', 'quentes' e 'reimosos', associados a pessoas impedidas de consumi-los, entre elas as mulheres menstrua-das. Eles sugeriram que os alimentos e as categorias de pessoas, u m a vez relacio-n a d o s , f o r m a v a m u m tipo de c l a s s i f i c a ç ã o s i m b ó l i c a b a s t a relacio-n t e c o m p l e x a e globalizante, referida aos alimentos, ao xamanismo e ao ritual, integrando a visão de m u n d o daquela população, não sendo redutíveis à polaridade estabelecida entre a natureza e a cultura, segundo posto pelo estruturalismo. Os tabus alimentares também não comportavam regras fixas e eram flexíveis, podendo funcionar c o m o mecanismos de defesa contra a fome, nos momentos de escassez alimentar, sub-metendo-se a manipulações situacionais e às transgressões, ou seja, saíam do m u n d o das idéias para habitar o m u n d o das ações e das relações sociais.
A o c h a m a r a atenção para a relação entre a alimentação e a saúde e a doença, Rodrigues (1978) reportou-se ao sistema classificatório dos alimentos, que provê as relações de certas categorias de alimentos c o m o organismo, tanto por seus efeitos na produção e no agravo de doenças, quanto na garantia e na manutenção da saúde. N a origem de certas categorias alimentares, que estão presentes n o discurso popular das classificações alimentares, estão os saberes médicos antigos, c o m o a medicina humoral hipocrática, que foi difundida pelos portugueses n o Brasil.
O autor observou a grande variação dos significados das categorias 'reima' e ' r e i m o s o ' (Rodrigues, 2001) e sua associação c o m pessoas, ocasiões e situa-ções, admitindo que a 'reima', sem ser propriedade intrínseca dos alimentos ou seu atributo, relacionava-se c o m o organismo, aplicando-se à classificação das doenças e a certas atividades que interferem no fluxo dos humores corporais, provocando ou gerando doenças. N a alimentação, a categoria 'reima' se aplica às proibições alimentares.
A análise da categoria ' c o m i d a ' e sua classificação ('forte/fraca, leve/ forte; pesada/leve; gostosa/sem gosto; de rico/de p o b r e ; b o a ou m á para a saú-d e ' ) c o m o c o m p o n e n t e s saú-da isaú-deologia alimentar saú-de segmentos trabalhasaú-dores ur-banos ganharam relevância e m alguns estudos, não apenas para elucidar o sistema de p e n s a m e n t o mais amplo, mas t a m b é m c o m o referência aos usos ou à apro-priação dos alimentos nas práticas de consumo. Contrariando a existência de mode-los classificatórios alimentares pré-estruturados, alguns autores que estudaram as