• Nenhum resultado encontrado

Graffiti: A arte que vem dominando os muros de Fortaleza Uma discussão sobre os festivais e oficinas na cidade. 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Graffiti: A arte que vem dominando os muros de Fortaleza Uma discussão sobre os festivais e oficinas na cidade. 1"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

Graffiti: A arte que vem dominando os muros de Fortaleza – Uma discussão sobre os festivais e oficinas na cidade.1

Caio Martiniano de Brito Baima – UFPB Marco Aurélio Paz Tella – UFPB Palavras-chave: Graffiti; Etnografia; Pandemia;

O contexto no Ceará

Além de toda uma necessidade de uma etnografia em contexto pandêmico, dedico esse início ao que pode ser feito durante esse período, colocando aqui uma discussão acerca da ida à rua, do que está ao nosso alcance durante o recolhimento mediante as restrições e, finalmente, analisaremos a possibilidade do retorno à rua associado ao processo de reabertura em etapas implementado pelo Governo do Estado do Ceará. Dessa forma, o objetivo é conseguir desenvolver vias de pesquisar colocando a manutenção da vida no patamar superior.

O Estado do Ceará lança em maio um plano de retomada através de um documento chamado “Retomada Responsável das Atividades Econômicas e Comportamentais”, o documento possui infográficos explicativos narrando os pré-requisitos para uma retomada, expondo as taxas de risco e divide em 4 fases (onde uma quinta seria a reabertura total).

Antes de tentar balancear uma possibilidade de uma regrada volta ao campo (físico / rua), vejo aqui uma oportunidade de trabalhar com os dados para uma justificativa de tipo ético da necessidade de ir, com todas as preocupações sanitárias, realizar etnografia.

O que é chamado de início da fase de transição se refere ao que foi (ou deferia ter sido) o lockdown transitando para as primeiras reaberturas econômicas, ou seja, o projeto aponta em etapas quais categorias devem voltar a trabalhar, quando e como veremos posteriormente qual porcentagem de cada uma delas.

O projeto ainda aponta quais critérios devem ser alcançados para que, em um período de 14 dias, se avance uma etapa ou entre em uma estagnação de período similar. É valido afirmar que o Governo do estado também prevê a possibilidade de uma regressão a depender da situação analisada a partir da divulgação dos dados.

1 Trabalho apresentado na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 30 de outubro e 06 de novembro de 2020.

(2)

A fase de transição se iniciou precisamente no dia no dia 01/06 2 e seguiu fielmente

sua proposta nos primeiros 7 dias, transitando para a primeira fase e posteriormente a cada 14 dias de uma fase para outra.

No mês de setembro chegamos na quarta e última etapa antes de uma reabertura total. Hoje já faz mais de um mês que estamos estagnados nessa etapa. Isso ocorre de forma a precaver um novo surto da doença, o que a infectologia chama de forma popular de segunda onda. Mantem-se fechadas, por exemplo, escolas e igrejas.

Esses dados por si só já dizem muito a nós para pensarmos nossa necessidade ou não de estar na rua realizando uma pesquisa de tipo etnográfica. Para essa análise deveremos observar três aspectos:

1) Condições pessoais de saúde envolvendo a si mesmo e familiares. 2) Retomada das atividades culturais envolvendo o graffiti.

3) Volta, de fato, dos artistas para a rua.

Vamos caso por caso. O primeiro ponto devo perpassar pelo fato de que parte dos familiares que coabitam comigo estão atualmente grupo de risco da doença3, portanto,

toda e qualquer decisão deve levar em conta uma relação de prevenção os colocando a frente e a par de qualquer que ela seja e mesmo estando em casa será necessário enfrentar um processo de solidão.

Processo de solidão? A fase da escrita é descrita de uma dissertação ou tese é descrita por muitos como uma fase solitária, mesmo na antropologia onde a escrita ocorre paralelamente a pesquisa (e assim é o caso deste trabalho). Entretanto, o que chamei de processo de solidão se trata da intensificação interna, onde este pesquisador habita, desse fator. Que nesse momento deve ser acentuado. Coexistir em um ambiente com pessoas que caso contaminadas podem potencialmente serem levadas as fatalidades dessa doença prevê o isolamento social não apenas externamente, mas também internamente.

O aspecto um se resolve se e somente se essas medidas forem tomadas.

2 Para informações mais detalhadas do processo de reabertura deverá consultar o

https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/05/28/plano-de-retomada-da-economia-no-ceara-preve-liberacao-de-setores-do-comercio-ja-na-primeira-de-quatro-fases.ghtml (acessado em 24/08/2020). 3 O governo do Estado apontou quem são as pessoas que estão dentro do grupo de risco, é possível consultar no seguinte link: https://coronavirus.ceara.gov.br/project/quais-os-grupos-de-pessoas-com-maior-risco/ (acessado em 24/08/2020).

(3)

O segundo ponto demanda olharmos novamente para o mesmo documento que estávamos analisando. Recorro novamente a ele pois ao apresentar cada etapa o documento prevê em números brutos a quantidades de sujeitos por área que serão liberados. Todos os dados apresentados agora se tratam do ponto “Esportes, Cultura e Lazer” de cada fase apresentada no documento.

Na fase de transição foi feita uma liberação, de 580 pessoas na Grande Fortaleza. Um número muito baixo e faz referência apenas aos atletas individuais e clubes de futebol (houve uma pressão gigantesca pela volta do futebol, creio que não precisamos apresentar dados para supormos que há muito dinheiro envolvido nesse mercado). A primeira fase nesse mesmo local agora libera mais 750 pessoas, essas dessa vez são fábricas e comércios relacionados aos esportes, música e brinquedos. Fase dois libera apenas 167 envolvidos em aluguéis de equipamentos. Fase três não há liberação para o grupo “Esporte, Cultura e Lazer”, retomando apenas no quarto quando liberou academias, clubes e espetáculos.

A cada 14 dias uma parcela da população acredita fortemente que o Governo findará o isolamento social. Outro grupo que crê no contrário pressiona uma reabertura em caso de exceção para seu caso, é o caso das igrejas católicas que voltaram a atuar dia 5 de setembro.

Diante disso, o graffiti, não citado no documento, aparentemente só voltará de forma regular em uma abertura total, portanto, aquele graffiti vinculado à prefeitura e Estado via edital e projetos. Nas entrevistas que venho realizando posso afirmar que aqueles que vendem a arte enquanto produto (para restaurantes, academias etc) só pararam porque durante um tempo a recessão foi tamanha que ocorreu de ninguém os contratar, não fosse isso teriam seguido trabalhando. A conclusão que tiramos disso é que em alguns casos a necessidade de comprar comida supera o medo da contaminação, esse foi o caso de Kintana que ficou sem trabalhar durante muitos meses. Só voltou a pintar no começo de agosto, mas afirmou que teria ido trabalhar se tivesse oferta.

Essa explicação miúda das etapas é feita com uma razão, no decorrer da pandemia surge o tal Edital Arte Urbana, mais precisamente, esse edital esteve aberto até o dia 21 de abril. A proposta é que o Instituto Iracema conduza a pintura de 21 painéis (por 21 artistas) na Praia de Iracema. Meu objetivo de etnografia na rua passa a ser esse.

(4)

Contatei alguns artistas aprovados através desse edital, alguns acreditavam que logo no começo de agosto teriam iniciado a pintura dos painéis, outra expressou com sinceridade que não tinha ideia de quando estariam liberados para começar os trabalhos. Essa liberação se trata da última fase, a superação da quarta etapa do Governo, a qual é impossível prever. Possuímos a confirmação de que as atividades ocorrerão, mas a questão é quando acontecerão.

Desse segundo aspecto aqui abordado sai também uma segunda condição para uma etnografia nas ruas, apenas ocorrerá esse tipo de pesquisa caso os artistas sejam também liberados, afinal estes são o objeto dessa pesquisa.

Terceira e último aspectos que devemos analisar antes de retomar um trabalho além dos muros de casa: é extremamente necessário estar lado a lado com os artistas, isso significa observar se com a total liberação, com as datas para suas atividades esses irão sair de casa ou não, afinal, cada um está submetido as questões abordadas no aspecto um e outras situações que possam existir. Então, o pesquisador só deverá ir para a rua se o seu objeto de pesquisa quiser e for para a rua. Isso se distingue do que aponto no parágrafo anterior de forma simples: ali estou tratando da liberação da ocupação do espaço público pelo Estado, aqui trato das condições e do interesse pessoal dos artistas irem para a rua.

Caso esses três aspectos apontem para uma retomada da pesquisa de campo isso deverá ocorrer seguindo estritamente os aconselhamentos da OMS para prevenção da contaminação do coronavírus.

Categorias a nos ater durante a análise dos dados construídos

O ponto de partida é a colocação de mim mesmo nos espaços que deverei permear, sejam esses virtuais ou físicos, enquanto um sujeito em muitos aspectos estranho. Em um primeiro momento, a elaboração de um projeto de pesquisa, desenho formas de me reaproximar com uma cidade que outrora vivi (para além de sobreviver, vivia a cidade). Antes de deixar a cidade para minha graduação o meu sentimento era de que conhecia os artistas e os movimentos nela presente, estava em certo grau inserido naquilo que havia de cultural, eu era até então um assíduo consumidor de cultura e arte.

Muito anos se passaram até meu retorno, isso durou uma graduação inteira e um pouco mais. Mas eu estava convicto de que laços se mantiveram, de que aquela antiga inserção ainda era viva. De fato, o era, mas não com a intensidade que havia pensando.

(5)

Já era sabido que a cidade passava por um intenso processo de metamorfose no espectro cultural, que aquilo que já existia se multiplicava dia após dia. Esse era o fenômeno que me interessava, mas nunca achei que o sentimento de estar alheio viria à tona.

Os contatos previamente estabelecidos não abrangiam todo o contexto que eu havia pensado, além disso as mudanças sincrônicas à pesquisa a afetaram mais do que o esperado. Fui levado a perceber que o Caio adolescente não era o mesmo pesquisador que estava em Fortaleza agora, mesmo onde estava mais familiarizado eu não passava de um estrangeiro.

Então, por partes, primeiro vamos extrair de “O Estrangeiro” a categoria que intitula o trabalho. Aqui, em nosso caso afirmo categoricamente que o estrangeiro é para nós, de forma muito intensa nessa pesquisa, o pesquisador, no caso, eu. Eu, o pesquisador, porque possuo “a unidade de proximidade e de distância” (SIMMEL, 2005a. p.1), porque conheço tudo aquilo, conheço todos os locais e muitos dos artistas, mas aquilo que eu conhecia não me fazia pertencente dali.

Nunca achei que estaria empreitando uma tarefa fácil, mas a pesquisa antropológica me mostrou que foi necessário ir à campo para compreender o tamanho do desafio. É um espaço que não é meu que estou adentrando, é um circuito, um trajeto, um rolê4 que é de não de um grupo artístico, mas de vários grupos artísticos, várias crews e

vários artistas autônomos. Sou para eles alguém absolutamente móvel, que parece estar ali em busca de objetividade, isso se expressa nas entrevistas onde as perguntas requerem respostas, mas essa objetividade é um aspecto ilusório, afinal, o que percebo no decorrer de todo o processo é que tanto a arte é subjetiva como os meus interesses que originalmente buscam isso ou aquilo na verdade encontram ou inúmeras respostas ou mais e mais perguntas. Sou “como um sujeito que surge de vez em quando através de cada contato específico e, entretanto, singularmente, não se encontra vinculado organicamente a nada e a ninguém” (SIMMEL, 2005a. p.267).

O artigo de Simmel se debruça sobre uma análise de como opera o relacionamento do estrangeiro naquele local que não é seu, como esse vê aquele espaço e aqueles que ali estão, estrutura frases para narrar também o contrário, a perspectiva daqueles sobre o estrangeiro. Isso não seria outra coisa senão a minha experiência nos meses que pude

4 Termo utilizado pelos atores deste campo. “Dar um rolê” ou rolé significa “dar um passeio”, “dar uma volta”.

(6)

realizar incursões, antes de sermos afetados pelo surto de covid-19. Acima de tudo, a relação que faço de mim mesmo com o descrito pelo autor é a capacidade daquele que não é dali que não está cego pelo bombardeio cotidiano dos mesmos estímulos, ver objetivamente uma série de fatores que pode ou não estar claro, mas apenas para esse é possível perceber. Mesmo que essa objetividade seja questionável, como apontei anteriormente.

Esse bombardeio de estímulos é uma característica comum aos territórios metropolitanos, ou melhor, os fenômenos psíquicos da vida na metrópole. O pesquisador estrangeiro5, está preparado para ter percepções que passam direto pela vista daqueles

que ali estão. Passam direto não porque aquele sujeito não saiba ou não veja, mas devido a banalização do cotidiano. Aquele espaço tão rápido, tão frenético de mudanças se sobrepondo a todo momento em nossos nervos gera a atitude blasé (SIMMEL, 2005b. p.15-16).

Isto não significa que os objetos não sejam percebidos... ...mas antes que o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as pr6prias coisas, são experimentados como destituídos de substância. Elas aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco (Idem)

Tal afirmação não quer dizer, por exemplo, que o graffiteiro de Fortaleza não tenha plena consciência que a concessão de espaços por meio do Poder Público tenha em algum grau (seja ele alto ou baixo) função de controle, na verdade os diálogos que foram realizados em campo nos levaram a ter não só a compreensão de que é o órgão que elabora determinado edital que concede o muro mas também que ele mesmo diz quem é o artista que vai ou não pintar determinado painel. O que há de blasé é o fato de que se olha diretamente para a relação entre artista e o Poder Público sem conseguir perceber o que flutua entre esses extremos. Uma das constatações que tive é a de que nas metrópoles a tamanha burocratização dos processos que viabilizam esse tipo de abertura para o graffiti são o grande impedimento para dar oportunidade para alguns artistas. É sim o Estado do Ceará ou a prefeitura de Fortaleza que impõem as dificuldades, mas isso se expressa através dos impasses burocráticos. Tive clareza disso em uma entrevista com uma graffiteira do bairro Granja Portugal onde Milla expressou de forma enfática que eles não estavam participando dos festivais e eventos recorrentes na cidade não por falta de interesse, mas porque nunca foram convidados a isso. O fenômeno blasé das cidades

5 Parto das relações que faço entre o pesquisador e o estrangeiro de Simmel para trabalhar com a categoria de um “pesquisador estrangeiro”.

(7)

grandes não trata da incapacidade dos sujeitos de perceber o que acontece, eles percebem, mas nem sempre estão plenamente atentos para os pormenores do que causa esses acontecimentos.

O exemplo de Milla não se resolveria apresentando a ela os caminhos para participar desses eventos ou mostrando como elaborar um projeto para submeter a determinado edital. Não é isso porque ela e seus companheiros não estão estagnados em seu bairro, eles exercem um papel importante na periferia de forma autônoma, sem subsídio do Poder Público, eles também fazem seus próprios eventos, oficinas e mutirões Devemos deixar claro, então, que a atitude blasé não corresponde a uma ignorância, tal fenômeno se dá talvez devido a um processo de saturação, os graffiteiros da Granja Portugal encontraram uma via mais rápida e com muita efetividade de pintar a cidade, uma de suas formas é, como ocorreu nas vésperas do surto de covid-19, distribuir comida na comunidade do Trilho e os moradores os cederem os muros. Nãos os interessa as complexas vias quando seus objetivos estão sendo atingidos.

Simmel explicita, para nosso melhor entendimento, que a metrópole enquanto antro da circulação monetária é fundamental para a existência de tal fenômeno, afinal somos incapazes de acompanhar todo círculo financeiro que paira sobre nossas vidas, por essa razão, nos tornamos indiferentes a isso. Esse exemplo, inclusive, pode ser aplicado em nosso caso. Em uma situação de oficina, festival ou edital, quem lida com as questões monetárias referentes aquilo é o sujeito que ocupa o espaço da produção cultural. Isso quando, a depender da proporção, ele não contrata um profissional da contabilidade. O que não significa que o artista não queira saber de toda negociação para que um kit de latas e uma camisa do evento chegue em suas mãos, mas o excesso de estímulos torna toda aquela explicação demasiadamente complexa ou até inintendível, o que não conduz à uma profunda indiferença, o que por sua vez é chamada por Simmel de atitude blasé é a camada criada para filtrar tais estímulos.

Dado isso, esses interlocutores atuam num determinado espaço comum a todos, onde devemos trabalhar a categoria de espaço. A resposta para qual espaço é rápida e indutiva, afinal, onde é feito o graffiti senão nos muros da cidade. É necessário então um recorte, essa pesquisa está no contexto da cidade de Fortaleza, mas o nosso foco está naquilo que nossos interlocutores estão interessados: os muros!

(8)

Esses tais muros, sejam eles públicos ou privados apontam para algo, para a rua, diferente das galerias. Alguns interlocutores, o caso de Narcélio Grud, permeiam entre ambos, as galerias e os muros, mas o que nossa pesquisa mostrou e que se evidenciou na fala dos artistas via entrevista, seja entre os curadores dos festivais (produtores culturais e graffiteiros simultaneamente) e os artistas que não estão no papel da gestão e sim da atividade direta nos muros é que a arte do graffiti nos muros se direciona ao espaço aberto, e, atenção, não devemos confundir o espaço público com o espaço aberto, essa seria a leitura da arquitetura e do urbanismo (LEITE. 2002. p.2). Dada essa distinção, filtrando ainda mais nosso foco, qual o nosso interesse? O espaço aberto ou o público? Bom, como o objetivo aqui é trabalhar com os editais e eventos que viabilizam uma concessão do espaço público, são as áreas administradas pelo Poder Público que nos interessam. Atenção, há exceções, no caso, a exemplo do Festival Concreto, a maioria dos muros disponibilizados são no espaço público, entretanto, houveram edições onde foi feito o diálogo com setores privados vinculados ao Estado ou à prefeitura, como quando os muros da empresa distribuidora de energia elétrica foram transformados em painéis de graffiti. Mas isso não apaga o envolvimento da gestão pública.

Olhemos primeiro para juventude: Há algo que se tornou comum ao pensar em juventude, como mostra Leccardi (2005), observar juventude como estado transitório em direção a fase adulta também “como uma “travessia” guiada por passagens de status”, mas o que necessariamente não trataria do cenário que vivemos agora. O que não significa que essa forma de pensar se isente de contribuições, pelo contrário, a nível analítico:

A juventude concebida como fase de transição, em uma palavra, permitia pensar a relação entre identidade individual e identidade social como uma relação entre duas dimensões não apenas complementares, mas superpostas de modo praticamente perfeito. (LECCARDI, 2005. p.48)

Ainda para nossas necessidades metodológicas, a autora aponta formas de olhar para desdobramentos subjetivos do que é ser jovem, isso se dá quando fala de individualização das biografias, pois “a continuidade biográfica torna-se, assim, fruto da capacidade individual de construir e reconstruir, sempre de novo, molduras de sentido, narrativas sempre novas, a despeito da moldura temporal presentificada” (LECCARDI, 2005). Isso nos leva ao interesse de trabalhar, para além de juventudes, com as práticas juvenis. Isso amplificaria a liberdade de tratar de pessoas que reproduzem uma vida social (e artística, em nosso caso) da juventude extrapolando-a para o decorrer de sua própria vida. Abrange,

(9)

por exemplo, artistas e produtores culturais que se vincularam mais e mais com a arte em sua fase adulta.

“Pratica juvenil”, prática é a palavra que hei de me referir alternativamente ao graffiti. É a forma acadêmica que opto por usar (não é em oposição as formas nativas, vejamos com uma forma de diálogo com a ciência). Uma “prática” de juventude por não ter como atores apenas jovens, nossa pesquisa, inclusive, dialogará com algumas pessoas que há muito deixaram a faixa etária demográfica categorizada como juventude, mas ainda enveredam por esse caminho. Chamar de prática juvenil mantém a arte como característica de uma geração sem que impeça que outras gerações levem para o resto de suas vidas.

A grande questão que se coloca sociologicamente é, portanto, não só perceber as semelhanças existentes entre os jovens, mas, sobretudo, perceber que entre eles existem diferenças várias que nos impossibilitam falar de uma única cultura juvenil. Esse estado de coisas conduz a que a sociologia da juventude se tenha desenvolvido em torno de duas tendências: a juventude enquanto indivíduos com características uniformizantes e similares, situados numa dada “fase da vida”; e a juventude como um conjunto social diversificado, entendendo-se que os jovens possuem características sociais diversas, diferentes. (GUERRA, P; QUINTELA, P. 2016. p. 204)

A única ressalva em relação a afirmação dos autores é meu anseio de utilizar a ideia de prática juvenil para extrapolar a tal da “fase da vida” e só assim conseguir vislumbrar in loco as duas tendências pensadas pela sociologia e aqui amigavelmente trazendo-as para nosso campo de estudo antropológico. Perceba que falei em extrapolar, não criticar, questionar ou refutar, mas sim potencializar, amplificar e conseguir ir além desse limite.

Seria a incorporação da ideia de que “a juventude constitui um momento determinado, mas não se reduz a uma passagem” (DAYREL, 2003. p.42). Parece um argumento de um adulto em “crise de meia idade”, falo de forma cômica mas sem perder a seriedade do assunto, afinal, o que empiricamente chamamos assim é uma forma de fincar uma porta divisória entre a juventude a fase adulta, pressionando por um lado a necessidade de um “amadurecimento” (no sentido mais popular desse tipo de conversa) e sendo impedido por outro lado pelas forças atrativas da vida juvenil.

(10)

Conseguem lembrar de Sharma? Sharma era interlocutor de Gerald Berreman (1975) em uma pesquisa feita em Sirkanda no Himalaia. O autor o chama de “assistente-interprete”, esse termo já remete a importância fundamental para que Berreman compreendesse aquele espaço, dadas as limitações, Sharma não tinha apenas a função de o introduzir em espaços sociais, mas também de conseguir interpretar na medida do possível as situações do interesse de Berreman.

Acontece que pouco depois, quando o antropólogo consegue conquistar seus primeiros passos naquele espaço, “o interprete-assistente adoeceu e era evidente que não poderia voltar ao nosso trabalho na aldeia durante algum tempo. Nessas circunstancias, isso foi um golpe desencorajador.” (BERREMAN, 1975. p.137). A palavra importante foi dita ao final: desencorajador.

Esse é o sentimento de impacto quando uma pesquisa em desenvolvimento, ao mostrar que ela não tem condições de ter seguimento como já começa a dar frutos é pressionada a ser interrompida.

Trouxe essa rápida memória da teoria antropológica por não conseguir olhar para a nossa situação sem lembrar de Berreman. O autor mesmo com a drástica situação em que se encontrava encontrou formas de dar continuidade e não perder toda sua investigação. Inspirado pela discussão do autor acerca do que pode abalar nossa pesquisa de campo devo dar explicações sobre o contexto em que essa pesquisa de mestrado se encontra, apresentando inclusive uma curta discussão política sobre toda a estrutura que nos encontramos tendo em vista que estamos sofrendo abalos de uma situação global.

Mas e se essa retomada da pesquisa não ocorrer como foi pensando ao projetá-la, qual nossa saída? Trabalhamos então com dois planos, vulgarmente chamando de plano A e plano B:

Plano A

Instituto Iracema, lança o Edital de Arte Urbana da Praia de Iracema, esse se tornou meu foco. Justifico a escolha devido aos ocorridos que me levaram até aqui. Em primeiro momento, o CUCA da Barra do Ceará que estava em meu projeto original apontado como locus passou todo o ano de 2019 sem oferecer oficinas de graffiti, o que colocava em risco total minha pesquisa. A outra vertente que originalmente eu iria trabalhar seria o festival CONCRETO, esse, devido a pandemia do coronavírus, que atingiu o planeta inteiro no

(11)

primeiro semestre de 2020, esteve com data incerta, mais precisamente, na incerteza de ocorrer. Até setembro as ações do CONCRETO ocorreram de forma distinta do festival, se associando com o grupo de artistas La Casa Duz Vetin6 para pintar alguns prédios em

bairros periféricos de Fortaleza. Isso apresenta todas as características do que me interessava investigar, entretanto, minhas dúvidas sobre a existência do festival nesse ano (Narcério Grud, o produtor do evento sempre me garantiu que ele existiria em 2020) me levaram a olhar mais amplamente o que estava acontecendo na cidade.

Foi então que percebi algo que havia olhado apenas brevemente, o edital divulgado pelo Instituto Iracema. Eu sabia da existência do edital, mas com sua publicação no mês anterior do fechamento das atividades comerciais no Ceará, o deixei de lado. Foi então que em busca de artistas para entrevistar para ter um panorama geral da cidade que um interlocutor falou, “mas tu tá sabendo que 21 artistas vão pintar 21 painéis na praia de Iracema entre agosto e dezembro?”. Não, eu não estava sabendo. Foi aberta nesse momento uma nova via de diálogo, encontrei facilmente o edital, passei a acompanha-lo e tentar entrar em contato com os artistas envolvidos. Minha primeira percepção, ao buscar as redes sociais utilizando o nome dos aprovados que foi divulgada publicamente, me deparei com uma grande maioria de jovens, o que nos leva a não passar por cima da categoria de juventude.

Evoco aqui o conceito de juventude para me referir a esse grupo, afinal, me deparei com nomes uma jovem que tinha o nome familiar, logo fui em busca de entrar em contato com ela. Não eram de fato uma amiga, mas era uma moça que eu já tive contato. Para minha surpresa, fez ensino médio na mesma escola que eu, claro, ela deveria se tornar uma interlocutora, aquele pesquisador estrangeiro encontrou ali pela primeira vez em muito tempo um terreno um pouco mais confortável. Gabi Queiroz, é o nome dela. Ela foi extremamente receptiva, gostou que eu a procurasse e me surpreendi mais uma vez, aquele seria o primeiro mural que a artista pintaria (com a demora para liberação dos muros ela acabou sendo contratada para pintar outro nesse meio tempo).

Plano B

O plano B é a ideia da realização de uma pesquisa não multisituada. Essa por sua vez estancará nas tentativas de voltar para a rua e deverá se efetivar no virtual.

6

(12)

Por ser uma situação especifica e de muita possibilidade de ocorrer, dada a situação mundial que vivemos, preferir não dar spoilers na explanação do plano A, mas devo deixar claro que todo colocado aqui como plano B estará incorporado no plano A caso consiga se efetivar. O plano B se trata de um extrato necessário do que ansiava em realizar originalmente.

Coagidos pelas limitações do modo de produção capitalista a nos confinar em casa e realizar uma pesquisa apenas no âmbito virtual, recorremos a autores que experimentaram, mesmo que em outros contextos, a aplicação de métodos da etnografia virtual.

Rifiotis (2016) nunca esteve tão certo ao afirmar que “estamos diante de um desafio crítico de revisão dos eixos analíticos baseados no uso, apropriação e representação, envolvendo os objetos técnicos” dessas novas tecnologias. É nesse sentido que o autor percebe a relação mutua entre a nossa entrada nos meios tecnológicos simultaneamente ao ver esses se incorporando em nossos espaços sociais, assim “repovoando o social”.

Em 2020 isso é extremamente evidenciado, a necessidade do uso das tecnologias faz com que elas avancem exponencialmente, dia após dia, se inserindo cada vez mais, se ajustando e indo além de nossas necessidades, potencializou-se o processo de repovoamento como jamais tínhamos visto na história, esse é o hibridismo evocado pela Diógenes:

...consideramos que as cidades, mais que lugares estabelecidos, de forma cingida, nas cartas geográficas, também se movimentam por panoramas não materiais, formando híbridos entre tecnologias digitais e estruturas concretas. O ciberespaço, não muito diferentemente dos ambientes urbanos, ao ser percorrido e anunciado, é também marcado entre seus habitantes. (DIÓGENES. 2013. p. 57)

Diógenes (idem) nos mostra que não apenas a tecnologia repovoa o social, nos estamos inseridos naquele ambiente e participamos intensamente e diretamente desse processo, não há, portanto, um grande projeto minucioso sendo encaminhado, como Castells (1999) se adiantou no fim dos anos, nós somos desenvolvedores disso ao mesmo tempo que somos usuários, essa é a geração transitória que vivemos, os impactos do coronavirus que por um lado aparentam uma grande estagnação, por outro conduzem os mais rápidos avanços da história.

(13)

É nesse novo espaço, no habitat virtual que tentaremos fazer nossas observações e através da etnografia construiremos nossos dados. Aqui proponho duas coisas, uma análise ampla da ocupação dos artistas grafiteiros nas redes sociais, acompanhar os diálogos públicos, conversar com esses sujeitos e por outro lado tentar me envolver nesse processo utilizando a experiencia feita pela Diógenes (2015) em sua estadia em Portugal. Em sua experiência de pós-doutorado, após perceber que o tempo a pressionaria e precisava se inserir num espaço pouco conhecido, dá uma investida que funcionou, abriu virtualmente um blog, este se chama Antropologizzzando 7 onde decide que esse, de

forma pública, será seu caderno de campo.

Nesse espaço fez capturas de imagens, abriu uma discussão cientifica de tipo antropológica para cada postagem e fez com que não apenas seus escritos, mas as reações nos campos de comentários fossem parte integrante de seu caderno. Seria talvez um caderno-blog.

A proposta que apresento aqui é trazer novamente a tona algo similar ao AntropologiZZZando mas dessa vez numa plataforma mais usual, mais moderna e que a juventude massivamente está usando. O instagram seria essa plataforma, onde deve ser criado um novo perfil, nesse perfil publicada as imagens e logo abaixo um pequeno texto apresentando o autor da pintura, discutindo um pouco a imagem e se convir colocando (via uma ferramenta da plataforma) expor a localização para que os interessados possam visualizar a obra fora do ambiente virtual. (BAIMA, Caio. 2019. p.427)

Essa proposta demorou (muito) para ser colocada em prática pois ainda havia questionamentos sobre esse procedimento, eu não compreendia como algo público poderia ser meu caderno de campo, não compreendia como isso deveria ser feito sem ter em paralelo outro caderno, um de fato. Foi a própria autora da proposta que sanou esses questionamentos.

Hoje possuo um acervo fotográfico próprio, todas imagens retiradas na orla e em suas imediações, um cadastro no instagram foi realizado e a etapa em que me encontro é a da filtragem e organização do material para que assim eu estipule uma rotina de publicação a ser seguida pelo menos até o final desse trabalho.

Algumas fotos seguirão o exemplo da Diógenes (2015), uma discussão acerca do trabalho do artista, marcar8 este, esperar comentários, executar mudanças no texto caso

7 http://antropologizzzando.blogspot.com/

(14)

os artistas anseiem isso etc. A partir disso, fazer antropologia virtual em contexto pandêmico.

A outra situação que ocorrerá será a publicação de artes não assinadas ou que não consegui localizar o artista para marcar na publicação. A depender do decorrer do experimento isso poderá nos servir para construção de dados.

Por final, para não abandonar o que tanto desejei construir, em ambos os planos há, já atualmente, um esforço para abrir uma via de diálogo também com o Poder Público, diante do que for obtido nessa forma construir uma discussão baseada entre os artistas e o Estado.

Conclusão

Nesses tempos, encaminhando as saídas encontradas para sustentar uma pesquisa de tipo antropológico, consegui no decorrer dos meses comprovar que o campo não havia sido dizimado, ele apenas estava forçadamente realocado.

Em busca de formas de me reaproximar, encontra nos diálogos com a Gabi uma forma de olhar para a relação entre o Estado e os artistas, percebendo como isso se da mesmo que em uma proporção menor do que no caso do Concreto.

O outro campinho também foi viabilizado, atualmente está aberto para o público o @muro_digital, perfil no instagram no qual produzo fotografias dos muros da cidade e os publico buscando os artistas e observando suas interações, claro, por vezes interagindo também.

Os experimentos estão colocados em prática e uma pesquisa que parecia ter sido completamente levada pela pandemia se demonstrou ainda de pé, firme e forte.

Referências

BAIMA; C. M. de B. Arte em Muros: Dos jovens grafiteiros de Fortaleza aos métodos de pesquisa nesse campo. In: Anais da 6ª Reunião Equatorial de Antropologia - REA. Tema: diversidades, adversidades e resistências. v. 1. pp. 416.

BERREMAN, G. Etnografia e controle de impressões em uma aldeia do Himalaia. In: Zaluar, A. Desvendando máscaras sociais, Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1975. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1.

(15)

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Rev. Bras. Educ. n.24. 2003. pp.40-52. DIOGENES, G. A arte urbana entre ambientes: “dobras” entre a cidade “material” e o ciberespaço. Etnográfica. Vol.19, n.3, p.537-556, 2015.

_____________. Cartografias da Cultura e da Violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo: Annablume, 1998.

GUERRA, Paula; QUINTELA, Pedro. Culturas urbanas e sociabilidades juvenis contemporâneas: um (breve) roteiro teórico. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza. Vol. 47. 2016. pp. 193-217

LECCARDI, Carmen. Por um novo significado do futuro mudança social, jovens e tempo. Tempo Social: revista de sociologia da USP,v. 17, n. 2, 2005. p. 35-57.

LEITE, Rogerio Proença. (2002), ”Contra-usos e Espaço Público: notas sobre a construção social dos lugares na Manguetown”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 49, pp.115-134.

SEGATA, Jean; RIFIOTIS, Theophilos (orgs.). 2016. Políticas etnográficas no campo da cibercultura. Brasília, ABA Publicações; Joinville, Editora Letradágua.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, 2005, p. 577-591

______________. O Estrangeiro. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 4, n. 12, pp. 265-271. João Pessoa, 2005.

Referências

Documentos relacionados

Ficou com a impressão de estar na presença de um compositor ( Clique aqui para introduzir texto. ), de um guitarrista ( Clique aqui para introduzir texto. ), de um director

Assim pa a além do Secto das Est adas este modelo de O&M Assim, para além do Sector das Estradas, este modelo de O&M poderá estender-se no curto prazo a outros sectores,

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Os interessados em adquirir quaisquer dos animais inscritos nos páreos de claiming deverão comparecer à sala da Diretoria Geral de Turfe, localizada no 4º andar da Arquibancada

Acreditamos que o estágio supervisionado na formação de professores é uma oportunidade de reflexão sobre a prática docente, pois os estudantes têm contato

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

Nas comparações entre os trabalhos estudados, percebe-se uma modificação no perfil nordeste, e, o centro do arco praial da praia de Camboinhas apresentou nos últimos