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Autoeducação e formação política no ativismo de rappers brasileiros

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BRÁULIO ROBERTO DE CASTRO LOUREIRO

AUTOEDUCAÇÃO E FORMAÇÃO POLÍTICA NO ATIVISMO DE RAPPERS BRASILEIROS

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10/12/2015, considerou o candidato Bráulio Roberto de Castro Loureiro aprovado.

Profª. Drª. Isabel Maria Frederico Rodrigues Loureiro

Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio

Profª. Drª. Cibele Saliba Rizek

Prof. Dr. Walter Garcia da Silveira Junior

Profª. Drª. Andréia Galvão

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu pai a generosidade e o empenho incansável. À minha mãe a firmeza e a sabedoria.

À minha tia Anna o sentimento e a dedicação. Ao meu tio Luiz a atenção carinhosa.

À Dani o convívio que ensina.

Ao meu irmão Alexandre a integridade que exemplifica. À minha avó Maria o cuidado.

À tia Glória e ao tio Mingo o afeto.

Aos meus amigos Hermes, Matheus e Caio os incontáveis momentos de companheirismo. Aos amigos do NEAP o acolhimento e o conhecimento vivo.

À professora Isabel Loureiro a orientação atenciosa e educativa.

Aos professores Marcos Del Roio, Sueli Mendonça e Fátima Cabral a inspiração pessoal e teórica para a realização do trabalho.

Aos professores Walter Garcia, Marcos Del Roio, Luciana Tatagiba, Cibele Rizek e Andréia Galvão as valiosas contribuições nos exames de qualificação e defesa.

Aos artistas e educadores do rap de Marília. Aos funcionários da UNICAMP.

À CAPES os recursos para a construção do trabalho.

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Escuta a voz de quem não tem vez

Trabalhador, ladrão, mendigo, camponês

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RESUMO

Este trabalho pretende investigar a formação política de rappers ativistas no Brasil. Rappers são compositores e cantores do estilo musical rap. Não raramente, esses artistas extrapolam as fronteiras da música e se dedicam a atividades assistenciais, culturais e políticas direcionadas às populações de seus bairros e da periferia urbana em geral. A esses sujeitos me refiro como rappers ativistas. Considerando que esses artistas militantes, em grande medida, vivem em precárias condições socioeconômicas, têm conturbadas histórias de vida e contam com baixos níveis de escolaridade, vale indagar como foi construído o processo educativo capaz de resultar em práticas que geralmente difundem referências críticas sobre a sociedade e que pretendem transformar as condições de vida de coletividades empobrecidas e espoliadas. Sustento que haja uma dinâmica autoeducativa no âmbito do movimento hip-hop, uma vez que os próprios rappers ativistas afirmam ter em sua visão política a influência de composições musicais e atividades político-culturais de outros rappers. Mediante pesquisa etnográfica, foram reunidos materiais oriundos de entrevistas individuais, diálogos informais, letras musicais e observação de atividades e situações que tiveram a participação de rappers ativistas da cidade de Marília-SP. Além disso, por meio de letras musicais e entrevistas registradas em sites, revistas e documentários, o trabalho traz informações sobre o ativismo e a formação política de rappers de cidades de seis estados brasileiros.

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ABSTRACT

This work intends to investigate the political education of rappers activists in Brazil. Rappers are composers and singers of rap music style. Sometimes, these artists go beyond the boundaries of music and engage in care and political activities directed to populations of its neighborhoods and the urban periphery. To these subjects I refer to as rappers activists. Generally, these militants artists living in poor socioeconomic conditions, have troubled life stories and have low levels of education. Therefore, how it was built the educational process that produced actions that spread critical references about society and want to transform the living conditions of impoverished communities. I maintain that there is a dynamic self education within the hip-hop movement because activists rappers claim to have in their political views the influence of musical compositions, political activities of other rappers. Through ethnography, materials were gathered coming from individual interviews, informal dialogues, musical lyrics and observations of activities and situations that participated rappers from the city of Marilia-SP. Besides, through musical lyrics and interviews published on websites, magazines and documentaries, the work covers information about activism and rappers political education from six brazilian states.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

AKLP – Associação de Moradores dos Jardins Karla, Laranjeiras e Petrópolis B.O – Boletim de ocorrência

BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais BPM – Batimentos por minuto

CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano CIA – Central Intelligence Agency

COHAB – Companhia de Habitação Popular CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CUFA – Central Única das Favelas CVSM – Como Vai Seu Mundo DJ – disc jockey

DMN – Defensores do Movimento Negro DRR – Defensores do Ritmo Rua

DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis DVD – Disco Versátil Digital

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio FBI – Federal Bureau of Investigation

FEBEM – Fundação Estadual do Bem Estar do Menor FMI – Fundo Monetário Internacional

FNR – Força Negra Radical

GAECO – Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado GRENON – Grêmio Recreativo Esportivo Nova Marília

HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana

HTPC – Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

IML – Instituto Médico Legal MC – mestre de cerimônia

MNU – Movimento Negro Unificado

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MRN – Movimento em Ritmo Negro

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NPC – Núcleo Piratininga de Comunicação

NUPE – Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão NWA – Niggaz With Attitude

OMS – Organização Mundial da Saúde ONG – Organização Não Governamental PCC – Primeiro Comando da Capital PCdoB – Partido Comunista do Brasil PM – polícia militar

PPPomar – Partido Popular Poder para a Maioria PROUNI – Programa Universidade para Todos PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PSOL – Partido Socialismo e Liberdade

PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado PT – Partido dos Trabalhadores

Q.G – Quartel General

Q.I – Quociente de Inteligência Q.U – Quilombo Urbano RAP – rhythm and poetry RG – Registro Geral

ROTA – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar

SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SNJ – Somos Nós a Justiça

SWAT – Special Weapons and Tactics UJS – União da Juventude Socialista

UMONT – União do Movimento Negro com Todos

UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura UNESP – Universidade Estadual Paulista

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SUMÁRIO

Introdução...13

Capítulo 1: História: o projeto “Hip-Hop com/ciência”...28

1.1- Antecedentes: o grupo de discussão de letras de rap...28

1.2- As atividades desenvolvidas...29

1.3- A presença de Markão II, do grupo DMN...34

1.3.1- Entre Marília e São Paulo: a eclosão do rap e do ativismo de rappers...36

1.4- II Mostra de Música e Poesia da UNESP/Marília...58

Capítulo 2: Práticas: a Nação Hip-Hop/Marília...62

2.1- O ingresso na Nação Hip-Hop/Marília...62

2.1.1- O contato com o rapper Péricles...62

2.1.2- O informativo cultural “Horizonte”...64

2.1.3- “II Grito da Consciência Negra”...66

2.1.4- Minhas atividades com jovens de Marília e região...67

2.2- A Nação Hip-Hop/Marília...73

2.2.1- A primeira reunião...73

2.2.2- O cursinho “Nós Por Nós”...77

2.2.3- Primeiro sarau: “Hip-Hop a lápis: literatura do oprimido”...84

2.2.4- Intervenção na Casa do Pequeno Cidadão...87

2.2.5- A presença de Aliado G, do grupo Face da Morte...90

2.2.6- O projeto “Agente Jovem de Cultura”...97

2.3- Ativismo pós Nação Hip-Hop/Marília...100

2.3.1- “Recreio Urbano”...100

2.3.2- Segundo sarau: “Poucas palavras”...104

Capítulo 3: Percepções: objetivos para o alcance da mudança social...108

3.1- “Resgate dos nossos”...109

3.2- Inserção e negociação...122

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Capítulo 4: Formação: educação e política no ativismo de rappers...153 4.1- “Aprendi no rap”...153 4.2- Educadores da periferia...169 Considerações finais...197 Bibliografia...200 Glossário...213

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Introdução

Rappers são compositores e cantores do estilo musical rap, abreviação de rhythm and poetry. O rap é a união de dois elementos do hip-hop, MC – mestre de cerimônia – e DJ – disc jockey. O hip-hop é um movimento artístico e cultural que surge nos guetos de Nova Iorque no início da década de 1970 e que apresenta quatro elementos principais: 1) break – dança de rua –; 2) grafite – pintura de rua –; 3) DJ – responsável pela base musical –; 4) MC – mestre de cerimônia que conduz a apresentação por meio de rimas. A expressão hip-hop, que traduzindo significa saltar balançando os quadris, foi utilizada em 1974 pelo DJ novaiorquino Afrika Bambaataa para se referir à aglutinação desses quatro elementos num movimento pautado nas noções de paz, união, amor e diversão. (LEAL, 2007).

Ainda que os Estados Unidos tenham sido o local onde o rap se constituiu como componente do hip-hop, as raízes dessa expressão musical remetem à Jamaica da década de 1960. Os toasters jamaicanos – mestres de cerimônia que versavam sob o ritmo de batidas musicais – transitavam em carros equipados com aparelhagem sonora e, na forma de canto falado, expunham a situação de pobreza e violência que vivenciavam em Kingston. Em 1969, o DJ jamaicano Kool Herc emigrou para Nova Iorque, levou seu equipamento de som e popularizou no Bronx aquilo que viria a ser o rap. (HATCH, 2006; WALKER, 2008).

Nos Estados Unidos, o MC surgiu como aquele responsável por entreter e animar o público nas festas de rua – as block parties – com refrãos mais ou menos elaborados. A afirmação do rap como música de contestação ocorreu somente na década de 1980, especialmente com o rapper Brother D e os grupos Grandmaster Flash & The Furious Five e Public Enemy. Este último, com um discurso direcionado à defesa dos interesses da comunidade negra, passou a ser referência de opinião tanto para os integrantes do movimento hip-hop quanto para as pessoas que se identificavam com as temáticas abordadas e com os questionamentos realizados. (BAKER, 2006; BRADLEY; DUBOIS, 2010).1

Na década de 1980, o rap extrapolou as fronteiras dos Estados Unidos e se difundiu pelos centros urbanos do mundo como expressão artística de negros e pobres. Entretanto, adquiriu particularidades de acordo com a tradição musical e as condições socioculturais das variadas localidades. Ainda que através das lentes de grandes veículos de

1

Mesmo que grande parte das produções de rappers estadunidenses disseminadas pela indústria fonográfica nas duas últimas décadas se vincule ao estilo gangsta-comercial, em que predominam temáticas ligadas à busca do padrão de consumo e modo de vida das classes dominantes – por exemplo, o álbum “Get rich or die tryin’” (2003), do rapper 50 Cent –, é importante destacar que rappers e grupos ligados às raízes ativistas e questionadoras da década de 1980 ainda existem e se expressam. Cito como exemplo os grupos Immortal Technique e Dead Prez.

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comunicação o rap apareça hoje como fenômeno global razoavelmente homogêneo e frequentemente associado à proposta comercial norte-americana2, é preciso considerar as produções de rappers mundo afora que procuram manter níveis mais elevados de autonomia cultural e criticidade. (MITCHELL, 2001). Mas, nunca é demais ressaltar que, mesmo na esfera do protesto social, as expressões na forma rap não se manifestam de maneira uniforme, já que se encontram atravessadas pelo quadro artístico, cultural e político de cada região, além da visão de mundo de cada rapper.

No Brasil, a chegada de músicas e videoclipes de rappers norte-americanos contribuiu para o surgimento do rap no contexto dos bailes black, na década de 1980, na cidade de São Paulo-SP. (FÉLIX, 2000; YOSHINAGA, 2001). Embora atualmente seja perceptível o aumento de rappers e grupos de rap desvinculados do movimento hip-hop e mais ligados ao modelo comercial, para aqueles que observam as pesquisas na área ou acompanham a produção musical de rappers de distintas regiões do país, é possível sustentar que o rap de denúncia social e articulado ao hip-hop ainda se manifesta em boa medida, característica forjada nos encontros, debates e apresentações que ocorreram na Praça Roosevelt – centro de São Paulo – no fim dos anos 80. A importância da mensagem contida nas letras musicais e o enfoque nos temas relativos às questões raciais, à pobreza e às formas de ação da polícia são elementos oriundos desse contexto.

Na década de 1990, a proliferação dos grupos de rap paulistanos3 foi acompanhada pela ampliação da capacidade organizativa de rappers e outros integrantes do movimento hip-hop. Essa organização se expressou na criação de posses4e coletivos de hip-hop voltados ao desenvolvimento de atividades artísticas e político-culturais na periferia de São Paulo. Após a experiência da Posse Sindicato Negro, na Praça Roosevelt, rappers participaram da estruturação da Posse Força Ativa e da Posse Aliança Negra, ambas na Cidade Tiradentes. Jovens artistas do hip-hop atuaram ainda na formação da Posse Conceitos de Rua, no Capão Redondo. A partir daí, foram fundadas posses em diversas cidades e regiões brasileiras. São coletivos como: Posse Hausa, de São Bernardo do Campo-SP; Posse Zulu Nation Brasil, de Diadema-SP; Posse Negroatividades, de Santo André-SP; Posse Rima &

2

Por “proposta comercial” me refiro a certo quadro de referências temáticas em que a expressão na forma rap tende a cultuar o individualismo, o consumo de mercadorias, a ostentação de objetos de valor, o divertimento em casas noturnas, o machismo, entre outras noções, afastando-se do pertencimento racial e de classe que marcou o seu desenvolvimento inicial.

3

Destaque para Thaíde e DJ Hum, Ndee Naldinho, Racionais MCs, Facção Central, DMN – Defensores do Movimento Negro –, Athalyba e a Firma, Conexão do Morro, Consciência Humana, entre outros.

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Crews ou posses, que traduzindo significa tripulação, pelotão ou destacamento, foram termos utilizados por integrantes do hip-hop dos Estados Unidos na nomenclatura das organizações do movimento. Também é comum encontrar tais termos nos coletivos de hip-hop do Brasil.

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Cia, de Campinas-SP; Associação Hip-Hop Atitude Consciente e Posse Voz Ativa, do Rio de Janeiro-RJ; Quilombo Urbano, de São Luis-MA; Posse Lelo Melodia, de Natal-RN; Associação Metropolitana de Hip-Hop, de Recife-PE; Movimento Hip-Hop da Floresta, de Porto Velho-RO; Alvo Arte Independente, de Porto Alegre-RS; Cartel do Rap, de Foz do Iguaçu-PR; Nação Hip-Hop/Brasil e Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro – MHHOB –, ambas com núcleos em diversas de cidades do país.

Ao participarem desses coletivos, ou mesmo atuarem individualmente, os rappers extrapolam as fronteiras da composição/expressão musical e se dedicam a atividades direcionadas às populações de seus bairros e da periferia urbana em geral. Campanhas informais de arrecadação de mantimentos, oficinas de rap para jovens, palestras e debates em escolas e instituições prisionais, organização para trabalho institucionalizado, inserção em partidos políticos e vinculação a movimentos sociais estão entre essas atividades. Neste trabalho, considerando o encadeamento produção musical-intervenção social, me refiro a esses sujeitos como rappers ativistas.

É preciso salientar que a proposta de investigar a atuação dos rappers ativistas não veio do interesse por um fenômeno que se manifestava a muita distância de mim. Ela responde a contatos e experiências que tive no interior do movimento hip-hop durante alguns anos. O fato de ouvir rap e compor poesias sobre a realidade social brasileira desde adolescente contribuiu para que eu desenvolvesse na cidade de Marília-SP, paralelamente aos meus estudos de graduação e mestrado, intervenções pautadas nas relações entre hip-hop, educação e política. Essas atividades, cujo marco inicial foi o ano de 2006, tiveram como público estudantes de escolas públicas e adolescentes cumpridores de “medida socioeducativa”. De modo geral, os encontros mesclavam exposição de aspectos da história do hip-hop, análise de letras de rap e discussões sobre condições de vida, educação e política. Também organizei um informativo cultural intitulado “Horizonte”, cujo propósito era fomentar a livre expressão e a reflexão de jovens dos bairros periféricos do município.

Isso me aproximou de rappers e integrantes do movimento hip-hop de Marília já no ano de 2007. Em meados de 2008, fui convidado a participar de uma ação da Nação Hip-Hop/Marília.5 Integrei o coletivo durante os anos de 2009 e 2010. Nesse intervalo de tempo, entre outras atividades pontuais, participei da estruturação de um cursinho pré-vestibular

5

A Nação Hip-Hop/Marília foi criada em 2006. Trata-se de um coletivo composto por rappers, grafiteiros,

b.boys – dançarinos praticantes do elemento break – e DJs de Marília. As atividades desenvolvidas pelo coletivo

ao longo dos anos podem ser divididas entre: 1) festas, apresentações e oficinas artísticas envolvendo os elementos que compõem o hip-hop; 2) palestras e debates sobre hip-hop, juventude, educação, drogas, entre outros temas. As intervenções sempre priorizaram locais como bairros periféricos, favelas, escolas públicas, e instituições prisionais da cidade.

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popular na periferia da cidade e do projeto “Agente Jovem de Cultura”, promovido pela Secretaria Municipal da Juventude de Marília.

Quando se dedica atenção às falas e composições de rappers – sobretudo os ativistas –, é comum notar a presença de termos que sinalizam para a existência de um adversário contra o qual se luta, geralmente chamado de “sistema”, “eles” ou “vocês”. Ademais, a preocupação e a identificação com negros e pobres, frequentemente tratados como “irmãos” ou “manos”, é um aspecto passível de destaque. Recordo aqui de trechos de duas músicas de rappers ativistas marilienses que se aproximam desse teor. O primeiro, cantado por Aloísio, é da música “Respeito é pra quem tem”:

Sistema arma o jogo, conheço sua tática

Nos oferece o tráfico pros loucos pôr em prática Maldade atuante que para alguns é fantástica

Mas a solução é uma dose diária de português e matemática 6

O segundo, cantado pelo rapper Carlito, é da música “É você”: Aquele ali de blazer parado na esquina

Humilhou preto e pobre, causou ódio na vida O foda que era negro fazendo trampo do branco Ignorante, um rato, tipo capitão do mato

Que não honrava a cor, Judas, espírito fraco Amigos de Fleury, opressores estão lá Capachos do demônio, esperando cê passar E nós deixando pra eles bem mais fácil

Desunindo a quebrada, só conhecendo a lei do aço Somos a maioria no poder da minoria

Precisamos usar a mente pra não cair em armadilha Entrar em debate, contra-ataque, choque no sistema Mostrar que nós tá certo, eles que são o problema 7

Mas, também é possível identificar a conjugação pertencimento-antagonismo em composições de rappers ativistas de outras cidades e regiões brasileiras. Por exemplo, Mano

6

Aloísio. “Respeito é pra quem tem”. In: CD. Mixtape. Marília: Gravação independente, 2006.

7

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Zeu, rapper que já foi vinculado ao coletivo Cartel do Rap, de Foz do Iguaçu, expõe na música “Fala favela 2” os seguintes versos:

Fala favela, fala Solta a voz da senzala

Fala para aquele que nos oprime Ser pobre não é crime, chega de bala Vocês têm medo do pobre

Tem medo da nossa favela Se trancam em seus condomínios Constroem suas próprias celas Fala favela, favela querida Favela que nunca se cala

Porque nossa luta é pela liberdade Ninguém mais vai amputá-la 8

Eduardo, rapper ex-integrante do grupo Facção Central, de São Paulo, que realiza atividades musicais e educacionais com menores internos da Fundação Casa, traz referências semelhantes ao abordar na música “Discurso ou revólver” a contradição entre direitos sociais previstos formalmente e o cotidiano precário e opressivo na periferia urbana.

Fizeram da sua rua filial do Vietnã

Deram rifles pras crianças, estupraram sua irmã Exilaram na favela o cidadão, na teoria

Oprimido e censurado no país da democracia Te dão crack, fuzil e cachaça no boteco Esse é o campo de concentração moderno 9

Demis Preto Realista é rapper do grupo A Família, de Hortolândia-SP. O grupo mantém ligações com o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – da região de Limeira-SP. Na introdução da música “O incendiário”, ouve-se:

Eu tive a oportunidade

De ser mais um entulho no lixão da humanidade

8

Mano Zeu. “Fala favela 2”. In: CD. Brasil ilegal. Foz do Iguaçu: Gravação independente, 2010.

9

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Reagi, me reciclei, não foi fácil E me tornei defensor do proletário Aí vai o depoimento do incendiário 10

Na introdução de “Em pé de guerra”, Augusto Comparsa, rapper do grupo Rebelião Racional, de Rio Branco-AC, que realiza atividades com jovens em presídios do Acre, também defende a necessidade da união de certos grupos sociais espoliados para ações e enfrentamentos que produzam melhores condições de vida à população pobre.

Armando as nossas mentes

Para lutar pela melhoria dos que moram em casa de palafita E que nem chegam a comemorar os quinze anos de sua cria 11

Por fim, Hertz, rapper que atua dentro do coletivo Quilombo Urbano e pertence ao grupo Gíria Vermelha, de São Luis, parece dirigir seus versos, na música “O imortal”, aos grupos detentores do poder político e econômico.

Mesmo assim sou mais resistente Fui criado na lama

O seu filho é cheio de frescura Chama a empregada de mama Vocês que se abanam com leque Arrancaram o sorriso da plebe Não satisfeito cês quer arrancar O estatuto que mal me protege Vocês não respeitam direitos É só preconceito do lado de cá Vocês criaram o BOPE e o robocop Pra me matar

Mas aí eu não temo a morte Eu não posso morrer Imortais seremos milhões Enquanto o capitalismo viver 12

10

A Família. “O incendiário”. In: CD. Pra você. São Paulo: G. Maior, 2009.

11

Rebelião Racional. “Em pé de guerra”. In: CD. Em pé de Guerra. Rio Branco: Gravação independente, 2009.

12

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Esses são alguns trechos que trago não ainda para serem explorados analiticamente, mas com o intuito de apresentar elementos que demonstram a existência das noções que identifiquei antes. Para quem acompanha e ouve o conjunto das produções musicais difundidas por rappers ativistas, não há dúvida que esses artistas militantes alcançam e abordam questões relevantes sobre a realidade social brasileira. Todavia, descobrir o modo como esse espírito de conflito e essa identificação com os subalternos da sociedade se manifestavam nas ações empreendidas para além da expressão musical sempre me inquietou. Devo confessar, porém, que uma situação pontual desencadeou o impulso efetivo que fez com que minhas vivências no hip-hop resultassem neste trabalho. Melhor dizendo, a delimitação da pesquisa não emergiu diretamente de leituras e reflexões teóricas, mas de uma roda de conversa na periferia de Marília.

Em meados de 2010, o rapper Aloísio me chamou para acompanhá-lo numa apresentação na cidade de Tupã-SP, região de Marília. Seu grupo se apresentaria num evento organizado pela ONG – organização não governamental – UMONT – União do Movimento Negro com Todos. Como havia outro grupo do município que também participaria do evento, combinamos todos de aguardar o horário de saída da van num ponto do bairro Santa Antonieta, zona norte. Pouco a pouco, os rappers foram chegando e logo se formou uma pequena roda de conversa. Rapidamente os assuntos transitaram das brincadeiras e notícias do cotidiano dos bairros de cada um para questões políticas do município e do país. De certo momento em diante, como já havia acontecido em outras ocasiões, espontaneamente passei de participante da discussão a observador. Notei que os ânimos se acirraram quando o debate tocou na questão da educação, precisamente da qualidade e do papel da escola pública. Enquanto uns defendiam a necessidade de aconselhar o jovem da periferia a persistir nos estudos, outros olhavam com mais descrédito para os benefícios educacionais trazidos pela escola defasada que conheciam. Foi quando questionei Carlito, um dos rappers que argumentavam mais ardentemente em favor desta última visão. Disse a ele: “Mas todo esse embasamento que você tem hoje para pensar e falar desse jeito não veio em grande parte da própria escola?” Ele respondeu: “Não, isso eu aprendi no rap!”13

Aquela resposta me marcou muito. Pensei nela por vários dias, até que cogitei: ora, se o rap parece ter tido um papel significativo na formação educacional e política do Carlito, jovem articulado que canta e milita no movimento hip-hop, será que o rap e o hip-hop não podem ter participado da formação de outros rappers ativistas? Essa reflexão contribuiu

13

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diretamente para a definição do problema que aqui enfrento, resultando, assim, nas seguintes indagações: de que modo esses rappers – que, em grande medida, vivem em precárias condições socioeconômicas, têm conturbadas histórias de vida e contam com níveis de escolaridade baixos e medianos – se formam politicamente? Quer dizer, como foi construído o processo educativo capaz de resultar em práticas ativistas que aparentemente difundem referências críticas sobre a sociedade e que pretendem transformar as condições de vida de coletividades empobrecidas e espoliadas? Esse movimento formativo carrega algum sentido político? É objetivo deste trabalho, portanto, investigar a maneira pela qual os rappers ativistas se educam, buscando examinar a intensidade da presença do rap na formação política dos militantes e decifrar o sentido político de um suposto processo autoeducativo no interior do hip-hop.

Seguindo as pistas teórico-metodológicas de Antonio Gramsci, para quem “[...] todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral [...]” (GRAMSCI, 2002a, C25, §2, p. 135), acompanhei o cenário do rap mariliense entre janeiro de 2006 e dezembro de 2013, participando de diversas situações, atividades e eventos que contaram com a presença de rappers ativistas. No Caderno 25, intitulado “Às margens da história: história dos grupos sociais subalternos”, Gramsci oferece elementos para o estudo das manifestações culturais populares. Ali, o filósofo sardo critica a forma elitista pela qual eram estudados os fenômenos sociais relacionados aos grupos sociais subalternos: “[...] em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolava-se o protagonista e só se fazia sua biografia patológica.” (GRAMSCI, 2002a, C25, §1, p. 131). Ao comentar, por exemplo, sobre o movimento camponês liderado por Davide Lazzaretti, na Itália do século XIX, Gramsci deixa referências analíticas significativas quando afirma que “[...] no movimento, a tendência republicana estava bizarramente misturada ao elemento religioso e profético. Mas esta confusão é que representa a característica principal do acontecimento, porque demonstra sua popularidade e espontaneidade.” (GRAMSCI, 2002a, C25, §1, p. 132). A inquietação de Gramsci com relação à maneira pela qual a filosofia da práxis poderia se tornar senso comum o levou a considerar as questões do folclore, da religiosidade e das concepções de mundo dos simples. No âmbito do marxismo, essa sensibilidade o localiza num terreno distinto da mera oposição entre verdadeira e falsa consciência, já que sua teorização atribui relevância à autoatividade das massas e não rechaça o seu senso comum. De suas reflexões, destaco, para a perseguição dos objetivos deste trabalho, dois aspectos principais: 1) a perspectiva abrangente presente na análise dos

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fenômenos e movimentos sociais, cujo horizonte é a unificação histórica dos grupos sociais subalternos tendo em vista a superação da subalternidade, da exploração de classe e da separação entre dirigentes e dirigidos; 2) a não recusa em lidar com a contraditoriedade por vezes presente nas manifestações culturais dos de baixo, debruçando-se sobre a complexidade constitutiva das filosofias espontâneas do povo.

Inspirado e informado por tais noções, além da audição e análise de músicas rap, observei, entrevistei e dialoguei com dezenas de indivíduos vinculados direta ou indiretamente ao movimento hip-hop de Marília. Num total de aproximadamente 50 pessoas, rappers, grafiteiros, b.boys, DJs, estudantes de escolas públicas, frequentadores de eventos de hip-hop, trabalhadores das secretarias da Cultura e da Juventude, lideranças comunitárias, dirigentes de ONGs e os próprios familiares dos hip-hoppers contribuíram para a composição da rede de informações que estruturou a pesquisa.14 Contudo, o texto apresentado se organiza a partir dos relatos e das trajetórias de cinco rappers ativistas que pude acompanhar de modo mais aprofundado: Augusto, Aloísio, Carlito, Jairo e Péricles. São rappers oriundos de regiões diferentes da cidade, especificamente, Jardim Santa Antonieta, Jardim Teotônio Vilela e Núcleo Habitacional Teruel. Cabe esclarecer que a opção por rappers de Marília se justifica: 1) pela possibilidade de ampliar a apreensão do fenômeno, ao observar rappers que residem fora dos tradicionais espaços onde o rap se desenvolveu no Brasil; 2) pela relação que estabeleci com esses sujeitos durante minha passagem pela cidade, fator que viabilizou a realização do trabalho de campo.

De acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –, Marília, situada na região centro-oeste do estado de São Paulo, tem a população de 216.745 habitantes.15

14

Por motivo de sigilo e privacidade, os nomes ou apelidos dos indivíduos envolvidos na pesquisa de campo em Marília foram modificados.

15

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Foto aérea do município de Marília Fonte: Google earth

Foto aérea do Jardim Santa Antonieta Fonte: Google earth

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Foto aérea do Jardim Teotônio Vilela Fonte: Google earth

Foto aérea do Núcleo Habitacional Teruel Fonte: Google earth

Embora as observações e entrevistas diretas tenham se assentado primordialmente no círculo mariliense, julguei apropriado extrapolar os limites do município a fim de compor um arco de informações que me permitisse visualizar e identificar os aspectos da formação política de rappers ativistas com maior abrangência e rigor. Por meio de letras musicais e entrevistas registradas em sites, revistas e documentários, busquei enriquecer as informações colhidas no trabalho de campo em Marília com elementos fornecidos por rappers ativistas de

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outras localidades.16 Assim, além dos rappers marilienses, o trabalho traz informações sobre o ativismo e a formação política de 18 rappers de cidades de seis estados brasileiros: Maranhão, Ceará, Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.

Posto isso, sustento que:

1) a despeito do horizonte comum que almeja a melhoria das condições de vida na periferia urbana e o fortalecimento do movimento hip-hop, não é adequado conceber o ativismo de rappers como manifestação uniforme, pois entre ações, objetivos e adversários é possível identificar variações nas concepções e posturas de diferentes rappers e coletivos de hip-hop;

2) há um processo de autoeducação em que rappers se politizam primordialmente: a) ao ouvirem rap – expressões que carregam análises político-sociais elaboradas por sujeitos pertencentes ao mesmo grupo social –; b) na composição do seu próprio rap – atividade que exige reflexão sobre suas condições de existência –; c) nas experiências vividas no contexto da militância no hip-hop;

3) os rappers ativistas aparecem como educadores da periferia – de acordo com o papel que Antonio Gramsci conferiu aos intelectuais no processo que chamou de “progresso intelectual de massas” – à medida que são capazes de problematizar aspectos do cotidiano da periferia e colaborar para a construção de um canal de reflexão coletiva sobre as causalidades do conjunto de experiências vividas pelos subalternos nos centros urbanos.

A literatura acadêmica e não acadêmica sobre o hip-hop e o rap no Brasil já é considerável.17 No processo de revisão bibliográfica, estudos como Andrade (1996), Damasceno (1997), Silva (1998), Casseano et al. (2001), Magro (2002), Félix (2005), Pardue (2007), Moreno (2007), Bastos (2008), Tavares (2009), Siqueira e Oliveira (2010) e Silva (2012) ofereceram respostas mais nítidas sobre o fenômeno específico da formação política de rappers ativistas. A reunião dos resultados de tais produções indica que a formação política de rappers ativistas tende a estar relacionada a quatro situações principais: 1ª) busca autônoma por conhecimentos; 2ª) reflexões e noções geradas no contato com a música rap; 3ª)

16

Entre artistas marilienses e de outras cidades brasileiras, este trabalho contou com a audição, classificação e análise de 1152 músicas rap, utilizadas como fonte reveladora de experiências e concepções de mundo e conforme as exigências dos diversos momentos do texto.

17

Menciono aqui os trabalhos de Andrade (1996), Damasceno (1997), Herschmann (1997, 2005), Guimarães (1998), Silva (1998), Tella (2000), Casseano et al. (2001), Yoshinaga (2001), Magro (2002), Alves (2004), Barreto (2004), Pardue (2004, 2007), Lima (2005), Carril (2006), Félix (2005), Matsunaga (2006), Garcia (2006, 2007), Leal (2007), Moreno (2007), Alves (2008), Bastos (2008), Kehl (2008), Santos (2008), Buzo (2010), Bezerra (2009), Tavares (2009), Maffiolleti (2010), Siqueira e Oliveira (2010), Amaral (2011), Caldeira (2011), Carvalho (2011), Santos (2011), Weller (2011), Gomes (2012), Nascimento e Silva (2012), Santos (2012), Silva (2012), Toni C (2012), Tedeia (2012), D’Andrea (2013), Frederico (2013) e Oliveira (2015).

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participação em atividades desenvolvidas por coletivos e posses; 4ª) relações que essas posses e coletivos estabelecem com entidades e organizações exteriores ao hip-hop. A contribuição da presente tese de doutorado, por sua vez, além de apresentar de modo organizado um mapeamento de ações, objetivos e formação política de rappers ativistas de diferentes regiões brasileiras, se refere à busca por aprofundar a conclusão analítica sobre o sentido político da maneira como esses rappers se formam, ou seja, dos significados de um processo em que jovens negros e pobres se educam e se apoiam mutuamente.

Mediante investigação etnográfica, foram reunidas informações oriundas de entrevistas individuais, diálogos informais e observação de atividades e situações que tiveram a participação dos rappers marilienses. Com relação às entrevistas, os relatos orais foram coletados por gravação de som e com a autorização dos entrevistados. Posteriormente, foram transcritos para favorecer o manuseio dos dados e preservar o conteúdo. Neste ponto, segui as sugestões de Maria Isaura Queiroz (1983), para quem é importante que o próprio entrevistador seja o responsável pela transcrição do material. Segundo a autora,

A transcrição efetuada pelo próprio pesquisador tem, também, o valor de uma primeira reflexão sua sobre a experiência de que partilhou, e que ele cria uma segunda vez ao escutar a fita. Porém, nesta segunda vez, uma distância se estabeleceu entre ele e o informante, representada pela fita gravada – distância que constitui uma “colocação em situação”, que possibilita captar toda a experiência havida a partir, agora, do exterior, sem a acuidade dos envolvimentos emocionais que o contexto vivo acarretava. (QUEIROZ, 1983, p. 83).

Optei pela modalidade entrevista semiestruturada, que consiste na busca de informações a partir da elaboração prévia de um roteiro capaz de guiar a entrevista para os objetivos desejados, no caso: a) identificar o contexto social do qual emergem os rappers ativistas; b) mapear práticas, objetivos e processos de formação política nas trajetórias pesquisadas. Trata-se de um tipo de entrevista que parte de determinados questionamentos apoiados em teorias e hipóteses, mas que fornece ao pesquisado a possibilidade de atingir níveis consideráveis de liberdade e espontaneidade no momento da interação.

[...] A entrevista semiestruturada mantém a presença consciente e atuante do pesquisador e, ao mesmo tempo, permite a relevância na situação do ator. Este traço da entrevista semiestruturada, segundo nosso modo de pensar, favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...] (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).

Orientei-me também pelas indicações de Pierre Bourdieu (2003), que em anos de pesquisa de campo se convenceu de que “[...] esta prática não encontra sua expressão adequada nem nas prescrições de uma metodologia frequentemente mais cientista que

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científica, nem nas precauções anticientíficas das místicas da fusão afetiva.” (BOURDIEU, 2003, p. 693). A relação de pesquisa não deixa de ser uma relação social que repercute nos resultados obtidos. Com isso, estar atento às distorções que a própria estrutura da relação é capaz de produzir, bem como controlar os fatores geradores de formas de violência no ato da entrevista, é fundamental para o alcance de respostas razoavelmente francas.

Procurou-se então instaurar uma relação de escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-intervenção da entrevista não dirigida, quanto do dirigismo do questionário. Postura de aparência contraditória que não é fácil de se colocar em prática. Efetivamente, ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à singularidade de sua história particular, que pode conduzir, por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vista, em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento das condições objetivas, comuns a toda uma categoria. (BOURDIEU, 2003, p. 695, grifo do autor).

Outros estudos que se debruçaram sobre procedimentos recomendados à pesquisa de campo alertam para o problema da assimetria entre pesquisador e pesquisado. Defendem a supressão de constrangimentos por meio da construção de uma relação de confiança entre os envolvidos. Alba Zaluar (2000) adverte para o fato de que, especialmente em contextos populares, essa familiaridade é fundamental para que os entrevistados exponham noções, opiniões, memórias e pensamentos que normalmente encontram-se reprimidos. Para Eduardo Manzini, “A intimidade com a população a ser entrevistada auxilia a escolha do vocabulário a ser utilizado, além de auxiliar na compreensão das palavras faladas.” (MANZINI, 2003, p. 13).

Como mencionei, tive uma aproximação natural com os rappers ativistas de Marília, pois já havia realizado intervenções pautadas nas referências do hip-hop. Em virtude disso, observei e participei de apresentações e atividades desenvolvidas por rappers durante oito anos. Pude capturar com considerável profundidade elementos e dinâmicas de seu cotidiano. Como afirmou William Foote Whyte (1980, p. 81), “Se as pessoas o aceitam, você pode perambular por todo canto e em longo prazo vai ter a resposta que precisa sem fazer perguntas.” Descrições e comentários sobre minhas experiências foram registrados e compuseram um diário de campo. Com a triangulação a) letras musicais, b) depoimentos e c) observações foi possível conjugar o que foi escrito, cantado, dito e praticado por esses sujeitos.

Dentro desta proposta, o trabalho aparece organizado em quatro capítulos. O primeiro, intitulado “História: o projeto ‘Hip-Hop com/ciência’”, é construído a partir da intervenção político-educacional que realizei ao longo do ano de 2006 com jovens de uma

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escola pública da periferia de Marília. O projeto, vinculado ao Núcleo de Ensino da UNESP – Universidade Estadual Paulista –, campus de Marília, marcou o início da minha trajetória de observações e contatos com rappers do município. Com o intuito de ampliar o conhecimento do leitor acerca do objeto em questão, paralelamente ao relato de tal experiência, trago elementos históricos sobre o rap no Brasil e nos Estados Unidos.

O segundo capítulo, “Práticas: a Nação Hip-Hop/Marília”, traz de maneira ordenada as discussões, reuniões, eventos e ações que acompanhei antes, durante e depois da minha passagem pelo coletivo Nação Hip-Hop/Marília. Esta parte do trabalho apresentará as características da militância dos rappers marilienses.

“Percepções: objetivos para o alcance da mudança social” é o título do terceiro capítulo. Ali exponho as principais referências políticas inscritas nas concepções de mundo dos rappers ativistas de Marília e de outras cidades brasileiras.

Por fim, no quarto capítulo, denominado “Formação: educação e política no ativismo de rappers”, sustento que a heterogeneidade e as contradições presentes no movimento hip-hop não impedem a ocorrência de processos de formação política, bem como não impossibilitam que os rappers ativistas apareçam como educadores da periferia.

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Capítulo 1: História: o projeto “Hip-Hop com/ciência”

1.1- Antecedentes: o grupo de discussão de letras de rap

No ano de 2005, numa sala de aula da UNESP/Marília, realizavam-se reuniões semanais com o objetivo de analisar e discutir letras de rap. Organizadas por Júlio, Davidson e Sarah, estudantes da universidade, as atividades ocorriam aos sábados e consistiam na audição de duas músicas, seguidas de comentários sobre forma e conteúdo. Participei de alguns poucos encontros, mas lembro-me que as canções eram selecionadas previamente pelos responsáveis e as letras deixadas numa pasta no serviço de fotocópia do campus. Assim, os participantes poderiam acessá-las com alguma antecedência. Também me recordo que a atividade era divulgada por um anúncio escrito a giz na lousa de recados do saguão do prédio de atividades. Os três organizadores cursavam Ciências Sociais e tinham grande interesse pelo rap, além de trazerem um histórico de experiências na periferia urbana. Sarah era a única natural de Marília. Cresceu no Jardim Marajó, zona sul da cidade. Júlio veio de São Paulo, especificamente da região de São Mateus. E Davidson viveu sua infância e juventude na COHAB – Companhia de Habitação Popular – de Carapicuíba.

Conheci Davidson num ato do movimento estudantil. Conversávamos muito sobre questões sociais e rap. No fim daquele mesmo ano, ele me informou sobre a possibilidade de financiamento para a realização de um projeto educacional – via Núcleo de Ensino da UNESP/Marília18 – numa escola pública na periferia da cidade. Sua ideia era construir uma proposta de intervenção que norteasse as ações do Núcleo em 2006 a partir do tema “hip-hop”. Elaboramos o projeto em alguns encontros de trabalho. Na reunião de seleção das propostas, apresentamos o material à coordenação do Núcleo de Ensino. O projeto foi aprovado e inserido na temática “Ciências Sociais na escola: Sociologia em questão”. A unidade escolar que o receberia foi definida, era a Escola Estadual José Alfredo de Almeida, localizada no bairro Jardim Continental. Nas semanas seguintes, organizamos as ideias e

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O Núcleo de Ensino da UNESP é um programa educacional que desde 1997 promove, através de projetos e assessorias, o estreitamento das relações entre universidade e educação básica. Segundo a coordenadora da unidade de Marília, professora Drª. Sueli Mendonça, “Esse programa, denominado Núcleo de Ensino, pauta-se na atuação sistemática com os níveis antecessores de ensino (pré-escola ao ensino médio), passando pela formação e qualificação dos profissionais da Rede de Ensino, ações pedagógicas junto aos alunos, contemplando, também, a realização de pesquisas educacionais. Docentes e alunos da UNESP, juntamente com docentes e especialistas da Rede Pública de Ensino, trabalham em projetos coletivamente.” (MENDONÇA, 2005, p. 346).

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incrementamos o plano de atividades. Era o início do que chamamos de projeto “Hip-Hop com/ciência”.

1.2- As atividades desenvolvidas

Para a realização do projeto “Hip-Hop com/ciência” não bastavam as definições internas no âmbito do Núcleo de Ensino. Também era preciso apresentar a proposta de trabalho aos coordenadores e docentes da escola. Isso ocorreu logo no início de 2006, numa reunião de HTPC – Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo. Durante seu período de vigência – entre março e novembro de 2006 –, o projeto contou com a participação de 12 estudantes da UNESP/Marília, entre bolsistas, estagiários e voluntários. A maioria estava presente naquela reunião delicada que apresentou o nosso plano de intervenção. Com exceção do coordenador geral da escola – responsável pela abertura da instituição à atuação do Núcleo de Ensino –, os demais funcionários da escola estavam desconfiados de uma proposta cujo enfoque abrangeria estudantes considerados indisciplinados.

Após a apresentação do roteiro de atividades, da metodologia e do cronograma de execução, fomos alvo de inúmeros questionamentos, sobretudo dos professores. À medida que íamos sanando dúvidas e esclarecendo pontos a respeito do rap e do hip-hop enquanto elemento educativo, parte dos docentes passou a se posicionar favoravelmente à atuação do nosso grupo. Mas, apesar da aprovação da direção e do apoio de alguns professores, não houve consenso. O pessimismo – justificado talvez pelas precárias condições de trabalho e pelo histórico de iniciativas que não obtiveram bons resultados – marcou a atmosfera daquela reunião. As razões para isso tornam-se mais explícitas quando me lembro das intervenções de dois professores que pediram a palavra após a exposição do projeto. O primeiro nos dirigiu a seguinte frase em tom de desafio: “Eu quero só ver vocês conseguirem fazer o Júnior prestar atenção em alguma coisa!”19 O segundo, visivelmente desanimado, afirmou: “Vocês vêm aqui, fazem algum projeto, usam a escola, publicam seus trabalhos de mestrado e nunca mais voltam!”20

Como tínhamos objetivos político-educacionais vinculados à superação da divisão classista do conhecimento, não nos abatemos com a reação dos docentes e prosseguimos com a organização do trabalho. Inicialmente, demarcamos um período de observações – entre abril

19

Diário de campo, Marília, 2006.

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e junho – para apreender a dinâmica interna da escola, conhecer os estudantes e divulgar o projeto que começaria, efetivamente, em agosto. Passávamos nas salas de aula levando informações gerais e utilizávamos o período do intervalo para conversar com os interessados. Não foi preciso tanto esforço para o estabelecimento dos primeiros contatos. Os estudantes já vinham e perguntavam: “Por que vocês estão aqui?”, “O que vocês vieram fazer aqui?”, “De onde vocês são?” Explicávamos mais detalhadamente os motivos da nossa presença ao mesmo tempo em que aproveitávamos para saber da história de cada um daqueles jovens.

Saguão de entrada da Escola Estadual José Alfredo de Almeida Fonte: Diário de campo, Marília, 2006

Num desses dias de observação, o professor de Geografia, que já tinha longa experiência na escola e naquela região da cidade, convidou Davidson para percorrer de carro algumas ruas próximas à unidade escolar. Eu permaneci no pátio conversando com um grupo de alunos. No final da manhã, no ponto de ônibus, Davidson comentou sobre a precariedade e o abandono dos lugares pelos quais passou, destacando o descontentamento daquele professor com a estrutura educacional e os serviços públicos em geral. Eu já conhecia aquela região, pois costumava jogar bola perto da escola desde 2003. O local corresponde a um dos flancos da zona sul de Marília, encontro dos bairros Jardim Continental, Núcleo Habitacional Costa e Silva, Jardim Aparecida Nasser, Jardim Monte Castelo e Núcleo Habitacional Toffoli. A região sul contém o maior contingente populacional da cidade, de aproximadamente 52 mil habitantes. (ALMEIDA et al., 2009). Em grande medida, são loteamentos populares, conjuntos habitacionais da CDHU – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano

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– e favelas que margeiam os limites do relevo, áreas conhecidas em Marília como “itambés” ou “buracões”. Vale destacar que toda a zona sul conta com apenas três pontos de saída para o restante da cidade: Avenida João Ramalho, Avenida Sampaio Vidal e Rodovia Transbrasiliana.21

O município de Marília foi fundado em 1929, fruto da crescente ocupação da região centro-oeste do estado de São Paulo em decorrência da produção cafeeira e da expansão ferroviária. (LARA, 1991). Até a década de 1940, a população se concentrava majoritariamente na área rural. Aqueles que residiam na cidade estavam fixados, principalmente, nas regiões centrais. A expansão urbana de Marília resultou da diversificação agrícola – reflexo da crise cafeeira –, da fixação de novas empresas e da chegada de migrantes. Na década de 1950, a população urbana já superava a rural. Esse contexto foi marcado pela consolidação do setor industrial – com destaque para as áreas alimentícia e metalúrgica – e de serviços. (BALESTRIERO, 1984). A partir da década de 1970, o crescimento urbano atinge os vales que cercam a cidade, intensificando processos de segregação socioespacial. A ocupação massiva da zona sul ocorreu no início da década de 1980, com a criação do Núcleo Habitacional Nova Marília. Tal empreendimento deslocou por volta de 15 mil pessoas para uma localidade distante do centro e que não contava com condições adequadas de abastecimento de água, saneamento básico, asfaltamento de ruas e transporte coletivo.

Além de casas muito pequenas e sem muro, a concentração desse enorme contingente populacional com parcas condições de vida provocou um caos na região, agregando à zona sul sujeitos egressos de diversos bairros da cidade, particularmente os que desejavam fugir dos alugueis no centro e regiões próximas pauperizadas para conquistar a casa própria. Esse afluxo populacional, concretizado em pouco tempo e sem os equipamentos urbanos necessários, criou um espaço de conflito que delineou os índices criminais nos primeiros anos e demarcou percepções sobre o bairro até os dias atuais. (ALMEIDA et al., 2009, p. 40-41).

Recordo aqui de três situações em que essa região me foi citada de modo enfático. As duas primeiras, ressaltando certo aspecto de precariedade e conflitividade. A última, manifestando um teor de orgulho e pertencimento: 1) numa atividade política com menores em regime de “liberdade assistida”, no ano de 2007, um deles me falou: “A zona sul tem um

21

A periferia mariliense não se restringe aos conjuntos habitacionais e às favelas da zona sul. Como registram as pesquisas do grupo Gestão Urbana de Trabalho Organizado, as regiões norte e oeste também são historicamente marcadas por precárias condições de habitação, renda, escolaridade e serviços públicos. (CARVALHO; CARVALHO, 2003; CARVALHO; FELIX, 2003). No que diz respeito ao setor norte, onde se localiza a principal área industrial do município, destacam-se os loteamentos populares que conformam a região do bairro Santa Antonieta, além da maior favela da cidade, a favela da Vila Barros.

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miolo que também tem boy, mas o resto é só favela!”22; 2) conversando com um amigo entregador de lanches e morador da Vila Real, ouvi: “A zona sul é tensa, é só cachorro louco!”23

; 3) no centro comunitário do próprio Núcleo Habitacional Nova Marília, em que jovens praticavam breakdance, observei um deles convocando os demais para dançarem à noite numa avenida da cidade, local em que os integrantes e simpatizantes do hip-hop costumavam se reunir aos finais de semana. Disse ele: “Hum... sabadão, hora de ir pra casa tomar uma ducha e depois descer pra Avenida das Esmeraldas. Vamo representar a nossa zona sul!”24

O jovem que proferiu a última sentença era irmão de um dos alunos da escola José Alfredo de Almeida, com quem já havíamos conversado. O período de observações realmente permitiu que avaliássemos melhor a situação geral da escola e de seu entorno, além de possibilitar que conhecêssemos mais profundamente a história de alguns alunos. Concluído esse momento preliminar e passadas as férias de julho, iniciamos as atividades teóricas e práticas previstas.

Como a proposta era lidar não somente com estudantes matriculados, mas abranger um grupo mais amplo de jovens, os encontros foram agendados para os sábados. No começo, com a presença média de 10 participantes, trabalhávamos com exibição de videoclipes e documentários, audição e análise de letras do rap nacional, produções de texto e dinâmicas de grupo. O foco era expandir o conhecimento sobre os aspectos artísticos e culturais do hip-hop brasileiro, bem como identificar o contexto histórico no qual surgiu e se desenvolveu aquele movimento que tanto nos interessava. Com isso, chamávamos a atenção tanto para a importância da historicização do elemento artístico com o qual se identificavam quanto dos demais fenômenos sociais com que se deparavam cotidianamente. Nas palavras da coordenadora do projeto,

A partir da temática “Sociologia no Ensino Médio” e da particularidade demandada pela escola a proposta foi estruturada tendo como eixo central o “pensar sociologicamente”, que se coloca como um aprender a pensar, um “pensar criticamente”, isto é, em essência, “pensar historicamente”. Saber a história do que se vê e daquilo que se participa é tomar consciência e dar sentido ao que fazemos e por que fazemos parte. (MENDONÇA, 2007, p. 7-8).

Tivemos alguns momentos marcantes, relativos a atividades que geraram boas discussões. Ressalto aqui: a) a exibição do videoclipe da música “Vida loka – parte II”, do grupo Racionais MCs; b) a projeção do documentário “Sabotage”; c) a audição e a análise da

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Diário de campo, Marília, 2006.

23

Diário de campo, Marília, 2006.

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música “Periferia ao vivo”, do rapper GOG. Nas três ocasiões, o debate foi norteado por reflexões acerca do apelo social em favor da posse e do consumo de mercadorias, do envolvimento dos jovens da periferia com o crime e do potencial político-educacional do hip-hop. Havia dois meninos, Breno e Marcos, cujo comprometimento era notável. Ambos eram alunos da escola e cresceram nos extremos da zona sul. Ajudavam-nos na preparação da sala de atividades e na divulgação do projeto. Também contribuíam com as informações e opiniões que expunham nos debates. Na época, com 15 e 18 anos, respectivamente, eles se aventuravam compondo e cantando rap, ainda que de forma incipiente. Nunca deixavam de se posicionar sobre os temas debatidos e sempre se referiam a situações envolvendo rappers e grupos de rap das diferentes regiões de Marília.

Porém, se naquele primeiro mês as atividades já satisfaziam as expectativas, nossa relação com a direção da escola se complicava. Como boa parte dos frequentadores do projeto era de pessoas não matriculadas – em muitos casos amigos de alunos regulares –, os anseios de que contribuiríamos para a diminuição de comportamentos violentos no interior da escola não foram diretamente correspondidos. Ademais, o cuidado para que equipamentos e objetos da sala de trabalho não fossem danificados ou furtados aparecia como alerta recorrente nas recomendações que a diretoria nos endereçava. O desgaste era evidente. E a coordenação nos comunicou que, a partir daquela semana, os encontros deveriam se restringir aos alunos regulares. Como não tínhamos outra opção, e o esvaziamento do projeto seria inevitável, sugerimos trabalhar no horário normal de aula. A proposta foi aceita em razão da intervenção da professora de História, que permitiu que aproveitássemos duas de suas aulas no 1º ano do ensino médio. Era um novo momento do projeto “Hip-Hop com/ciência”.

Como não se tratava mais de um projeto em que os participantes ingressavam voluntariamente, já que o público seria composto por alunos regulares, redefinimos a metodologia de trabalho e adaptamos as atividades às novas condições: duas aulas semanais – às quartas-feiras – numa sala de ensino médio no decorrer dos meses de setembro, outubro e novembro. O hip-hop prosseguiu sendo objeto de estudo, mas elaboramos outros eixos temáticos a partir de sugestões vindas dos estudantes. Dividimos a classe em grupos de oito alunos, conforme o interesse pelos seguintes temas: “Hip-hop”, “Papel da mulher na sociedade”, “Drogas” e “Trabalho”.

As atividades sempre começavam com a exibição de algum material audiovisual. Posteriormente, dividíamos a classe de acordo com os grupos pré-estabelecidos, debatíamos o conteúdo exibido no interior dos grupos e finalizávamos num grande círculo com uma apresentação geral dos resultados. Nosso coletivo de voluntários, estagiários e bolsistas do

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Núcleo de Ensino fornecia livros, jornais e revistas visando ao aprofundamento das discussões. Também atuávamos como mediadores no debate. Buscávamos fomentar a exposição das perspectivas e pontos de vista dos jovens, despertando nos alunos novas impressões sobre as possibilidades educativas no interior da escola.

Na ocasião em que o curta-metragem “Ilha das Flores” foi exibido, conseguimos identificar e discutir os aspectos destrutivos do modo de produção capitalista. Na projeção do documentário “Sonho Real”, a respeito da reintegração de posse no Parque Oeste Industrial, acampamento de aproximadamente 12 mil pessoas na cidade de Goiânia, além das experiências relatadas por alunos que vivenciaram situações semelhantes, houve um debate intenso acerca das relações entre propriedade, Estado e polícia. Lembro-me que nesse encontro os jovens que mais participaram e se destacaram foram os que estavam sob minha orientação no grupo “Hip-hop”. Curiosamente, os mesmos que no mês de junho comentavam na quadra de esportes sobre a organização de uma “rebelião” na escola. Eis um trecho dos registros de campo:

Os alunos considerados indisciplinados se envolvem bastante nos debates e atividades. Ainda que às vezes envergonhados, não deixam de dar opiniões. Claramente, os encontros fazem sentido para os jovens, tanto é que os professores das outras disciplinas do dia nos deram todas as aulas da manhã. E alunos de outras salas nos questionaram se não “daríamos aula” na sala deles também.25

Ainda que trabalhássemos numa única sala, mantínhamos um bom contato com os demais estudantes, inclusive, passando aos interessados materiais sobre hip-hop e outros temas. O interesse geral contribuiu para que investíssemos na ideia de convidar algum rapper nacionalmente conhecido para o fechamento do projeto. Pensamos numa atividade que envolvesse todas as turmas do ensino médio. Davidson ficou encarregado de realizar o contato e o convite. No início de novembro, na reunião periódica mensal do grupo na UNESP, ele nos comunicou que estava confirmada a vinda do rapper Markão II, do grupo DMN, para o final do mês.

1.3- A presença de Markão II, do grupo DMN

Na sexta-feira da última semana do projeto “Hip-Hop com/ciência”, concretizávamos o objetivo de encerrar a nossa intervenção na escola José Alfredo de

25

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Almeida com a participação de um nome de peso do rap nacional. Markão II estava pronto para iniciar a palestra que faria para 200 alunos. De pé e com o microfone ligado a uma caixa de som em frente ao espaço destinado à distribuição da merenda, o rapper falou durante 50 minutos. Professores e coordenadores ficaram surpresos com a organização e o comportamento dos alunos. Estavam todos sentados e atentos às palavras de Markão II, que discorreu sobre o valor do conhecimento para a juventude que frequenta a escola pública. Embora ciente da precariedade estrutural que assola a educação pública no Brasil, o rapper se concentrou num tipo de chamada de atenção sobre a postura dos jovens na escola e em casa. A certa altura, disse ele: “É importante estudarmos e nos esforçarmos porque o mundo não foi feito para os pretos e pobres. É duas vezes mais difícil! Por isso, temos que nos respeitar, respeitar a família, estudar, entender o mundo e buscar um futuro melhor para nós.”26

Ao final da exposição, abrimos para as questões. Os jovens não pouparam indagações e comentários. Markão II respondeu sobre sua história de vida, seu início no rap, sua visão do rap e seus planos futuros. Finalizou cantando um trecho da música “Homem de aço”, conhecida canção do álbum “Homem de aço”, de 1998.

Sei que não é fácil, sei que não é fácil Sei que não é fácil ser homem de aço Andar na rua vendo o povo em desespero

Brigando pelo melhor lugar, quem chega primeiro Vivendo um pesadelo acordado, correndo assustado Cabreiro com quem está do seu lado

Ver o moleque viciado na televisão O baixo nível da escola e da educação A preta linda que não olha no espelho Tem vergonha do nariz, da boca e do cabelo O super-herói com apenas doze anos

Feliz da vida porque conseguiu um cano A piveta que já tem um pivete

Que até dá mamadeira, ei mano ela se esquece Ambição, alto grau, apocalipse final

Eu não consigo ficar na moral

Famílias inteiras estão caindo na vala

26

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Perdendo a resistência e o pesadelo não para 27

Em entrevista concedida ao escritor periférico Alessandro Buzo, Markão II revelou que a repercussão da música fez com que o grupo DMN conseguisse denunciar em todas as regiões brasileiras os problemas sofridos pela juventude da periferia. Nas palavras do rapper, “O sucesso desse som a todo instante continuará fazendo jovens (homens e mulheres) refletirem sobre o que nos prejudica por conta do racismo, machismo, violência policial, etc.”28

Naquele mesmo dia, no período da noite, a atividade foi no campus da UNESP/Marília. Além dos alunos da universidade, o debate que organizamos com a participação de Markão II contou com a presença da turma do projeto “Hip-Hop com/ciência” e de outras salas do horário noturno. Com um ônibus fretado, trouxemos os jovens da escola para o campus. Numa sala de aula do prédio de atividades, às 20 horas, Davidson, Markão II e outros dois rappers marilienses compuseram a mesa e iniciaram o debate acerca de temas como produção artística, movimento hip-hop, acesso à universidade, pobreza, racismo e violência. Da mesma forma que pela manhã, Markão II enfatizou a necessidade da formação educacional dos negros e pobres brasileiros, chamando a atenção para a necessidade do conhecimento para a criação de possibilidades que resultem em intervenções conscientes na realidade. Já as falas dos rappers locais destacaram as dificuldades gerais da produção musical do rap e criticaram a desunião e a competição entre os grupos de Marília.

1.3.1- Entre Marília e São Paulo: a eclosão do rap e do ativismo de rappers

É importante registrar que em Marília o rap surge no início da década de 1990. Nesse processo, vale considerar o impacto causado pelo grupo Racionais MCs, que já havia alcançado projeção nacional. Além disso, a circulação de revistas ligadas ao universo do rap e do hip-hop, a veiculação de videoclipes de diferentes grupos de rap e a realização de bailes e shows no interior do estado de São Paulo incrementaram o cenário do rap mariliense, que naquele momento contava, principalmente, com as composições e apresentações do grupo Comando Verbal. Cabe lembrar que o grupo desfrutava da participação de Rick, ex-integrante

27

DMN. “Homem de aço”. In: CD. Homem de aço. São Paulo: Gravação independente, 1998.

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