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Jorge Martínez Barrera

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Academic year: 2021

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2 0 0 7 - R i o d e J a n e i r o

Tradução e prefácio:

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Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Título original

La Política en Aristóteles y Tomás de Aquino Tradução e Prefácio

Carlos Ancêde Nougué Revisão

Sidney Silveira

Coordenação editorial Octacílio Freire e Sidney Silveira ISBN 978-85-99255-06-3

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ B258p

Barrera, Jorge Martínez,

1954-A Política em 1954-Aristóteles e Santo Tomás

/ Jorge Martínez Barrera ; tradução Carlos Ancêde Nougué.- Rio de Janeiro : Sétimo Selo, 2007.

250p.

Tradução de: La Política en Aristóteles y Tomás de Aquino Inclui Bibliografia

ISBN

1. Aristóteles - Política. 2. Tomás, de Aquino, Santo, 12257-1274. 3. Ciência Política - Filosofia. 4. Ética. I. Título. 07-4064.

CDD 321.01 CDU 321.01

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Prefácio ... i

introdução ... 01

i. AriStóteleSeoneo-AriStoteliSmo ... 05

1. Dependência ou independência entre metafísica e filosofia prática? 2. A interpretação sistemática e a genética 3. A reabilitação da filosofia prática e o neo-aristotelismo 4. Ciência moral e ciência política 5. Phrónesis e filosofia prática 6. Ethos e filosofia prática

ii. ÉticAePolíticAem AriStóteleS ... 47

1. Eticidade da política e politicidade da ética 2. A justiça na Ética a Nicômaco

iii. formAeliberdAdenAfiloSofiAPolíticAde AriStóteleS ... 65

1. A forma em política: teleologia e pedagogia 2. A liberdade em política: dois planos de significação

iV. A trAnSiçãoPArAo criStiAniSmo ... 77

1. A justiça como virtude e a justiça “juridicizada” 2. O agostinismo político

3. O panorama que Santo Tomás encontra

V. ASdiferençASentre AriStóteleSe SAnto tomáS ... 91

1. Diferenças quanto ao aprofundamento da análise A) Filosofia e ciência prática b) Instâncias de legitimação da lei humana 2. Diferenças quanto à discutibilidade de algumas teses aristotélicas A) A teoria da escravidão natural b) O conceito de natureza b.1) O conceito de natureza em Aristóteles como resposta aos físicos e a Platão b.2) Dificuldades com a physis aristotélica b.3) Como trata Santo Tomás de Aquino o conceito aristotélico de “natureza”? b.4) O conceito tomista de natureza e seus alcances políticos

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A Política em Aristóteles e Santo Tomás  as realizações humanas b) Exclusividade étnica da pólis c) Limitação do número de cidadãos e meios pelos quais ela é alcançável d) A religião e seu lugar na filosofia das coisas humanas d.1) A inevitável referência religiosa da ética e dois de seus modelos d.2) Aristóteles e a religião

d.3) Cujus Deus, ejus religio: Santo Tomás e as diferenças teológicas com Aristóteles

d.4) Santo Tomás, a religião e suas implicações morais d.5) A ponte entre religião e moral em Santo Tomás

concluSão ... 207 bibliogrAfiA ... 217

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A Política em Aristóteles e Santo Tomás  A história da filosofia traça, grosso modo, uma nítida curva ascendente-descendente. No início dos esforços humanos por entender a realidade, foi o impulso superior do pensamento gre-go com Sócrates, Platão, Aristóteles, impulso que, superando quedas transitórias, foi em parte retomado – especialmente no terreno ético-político – pelo estoicismo e pelo pensador romano

Cícero. Depois de Cristo, foi o crescimento orgânico de um pensamento, o cristão, que atingiu a maturidade com Santo Agostinho e, sobretudo, oito séculos depois deste, com Santo Tomás de Aquino, cuja doutrina é a perfeita síntese do que de melhor haviam produzido os seus antecessores e a superação de aporias em que todos, em maior ou menor medida, haviam incorrido: a obra do Aquinate, segundo a feliz expressão que Louis Jugnet gostava de repetir, é sempre “um cume entre dois vales” (o que se verá nítida e luminosamente neste A

Políti-ca em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, de Jorge Martínez

Barrera). Por fim, a queda, numa seqüência também orgânica: Duns Scot e seu superdimensionamento da vontade em detri-mento da inteligência; Guilherme de Ockham e sua descrença

A verdadeira fonte

da ética e da justiça

“E, dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina.”

Santo Tomás de Aquino (De Regno, 466: 74-80) Carlos Ancêde Nougué

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás  precípua da inteligência; Descartes e seu pensamento que “cria” até o próprio ser pensante, mas do qual pensamento, e, logo, do próprio ser pensante que ele cria, se há de duvidar sempre e metodicamente; Kant e sua incognoscibilidade da coisa-em-si, ou seja, do real, para a nossa inteligência, cujos conceitos e raciocínios têm todos caráter apriorístico; Hegel e sua dialética, que não é senão outro nome de uma negação do princípio da não-contradição; Marx e sua pá de cal sobre o espírito, com a entronização absoluta da matéria; e toda a vertiginosa sucessão de niilismo, irracionalismo e abismo que caracteriza o tempo dos Wittgensteins, Sartres e Deleuzes.1 Intrínseca à parte descendente dessa curva, como se pode ver por seus últimos rebentos, é a tendência à negação de qual-quer realidade supramaterial ou metafísica, o que se refletirá dramaticamente naquilo que Aristóteles chamava “a filosofia das coisas humanas”: a ética e a política. Desde sempre, esses dois campos da práxis humana formaram um todo inextricável, e em geral tinham como fonte primeira a divindade. Já em um famoso passo da tragédia Antígona, de Sófocles, a protagonista desafia determinações de Creonte, o rei de Tebas, e presta hon-ras fúnebres a seu irmão Polinices, morto num combate pelo poder na cidade: a princesa justifica sua desobediência ao rei alegando obediência a normas divinas, eternas, intocáveis. Tal dependência da conduta ético-política, e portanto das leis, com relação à fonte divina é filosoficamente explícita na obra de Platão, em particular no diálogo As Leis.2 É bem verdade que o

mesmo não se dá, indubitavelmente, na obra de Aristóteles; mas nela ao menos estão asseguradas duas coisas. Primeira: a indisso-lubilidade entre ética e política. Com efeito, como lembra Jorge Martínez Barrera, “o último capítulo do último livro da Ética

 - Escreve Étienne Gilson, em Réalisme thomiste et critique de la connaissance (Paris, Vrin, p. 7), que seu livro é “um ensaio de teratologia metafísica” cujo objetivo é esclare-cer a corrente de pensamento cartesiano-kantiana “à luz do patológico”.

 - Dirá o Aquinate: “Ainda que a opinião de Platão pareça irracional quanto a supor que as espécies das coisas naturais são separadas e subsistentes, é absolutamente verdadeiro, porém, que há algo primeiro que por sua essência é ser e bom, ao qual chamamos Deus” (tomásde Aquino, Suma Teológica, Ia, q. 6, a. 4 c).

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

introdução à ciência política, precisamente com o objetivo de ‘levar a uma boa culminação, na medida das nossas capacidades, a filosofia das coisas humanas’. O que equivale a afirmar que o

telos da ciência moral é a política. Em sua expressão política, a

ética alcança sentido pleno”. Segunda: a existência do justo

por natureza ou justo “primeiro” (próton), o que, porém, não se

dá no Estagirita com todo o desenvolvimento desejável. Como lemos ainda em Barrera, “à exceção da passagem ‘por isso não é menos verdade que em qualquer lugar não há mais que uma só constituição conforme com a natureza, e essa é a melhor’, que poderia sugerir indiretamente uma relação mais estreita entre os dois tipos de justo (o natural e o convencional), não há em todo o livro V [da Ética a Nicômaco], que é, insistamos, o topos sistemático-analítico da justiça, um desenvolvimento da possível subalternação da ordem legal ‘convencional’ à natural. Pois bem, precisamente a busca dessa subordinação será uma das tarefas do Aquinate”.4

Muito antes, porém, que viesse ao mundo Santo Tomás de Aquino, já os estóicos haviam reconhecido a existência da-quilo que vincula o ético-político à divindade: a lei natural, noção que terá grande importância para o pensamento cristão e, em particular, para o mesmo Aquinate. Essa noção, elevou-a Cícero a grande perfeição. Seja-me permitido citá-lo longa-mente: “Existe uma lei verdadeira, a reta razão, conforme com a

natureza difundida em todos os seres, sempre de acordo consigo

mesma, não sujeita a perecer, e que nos chama imperiosamente a cumprir nossa função, nos interdita a fraude e dela nos afasta. Jamais o homem honesto é surdo às suas ordens e proibições [...]. Nesta lei, nenhuma emenda é permitida, não é lícito re-vogá-la total nem parcialmente. Nem o Senado nem o povo podem dispensar-nos de obedecer a ela, e não há necessidade de procurar um Sextus Aelius para explicá-la ou interpretá-la. Esta

 - mArtínez BArrerA, Jorge, A Política em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, Rio de Janeiro, Sétimo Selo, 007, p.54.

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v A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás v

outra para amanhã; é uma única e mesma lei que rege todas as nações em todos os tempos: para ensiná-la e prescrevê-la a todos, há um deus único. [...] quem não obedece a esta lei se ig-nora a si mesmo, e, porque ignora a natureza humana, sofrerá por isso mesmo o maior dos castigos, ainda que escape aos demais suplícios”.5

Pois bem, no marco daquela parte “descendente” da história da filosofia, não só se nega a dependência do ético-político com relação à divindade e a própria existência de um justo por natureza, mas se dissolve a própria totalidade das “coisas humanas”. E nessa dissolução sobressai a figura inaugural de Maquiavel, que, embora refletisse uma realidade que já se dava em certo grau, é quem nos começos do século XVI rompe intelectualmente, n’O Príncipe, o elo que sempre unira e deveria unir inextricavelmente ética e política, sendo esta, como de fato o é, uma extensão daquela. Esse elo, que, entre outras coisas, está para a razão prática assim como os primeiros princípios estão para a razão intelectiva, e que como tal sempre esteve pressuposto, como quer que fosse, não só na filosofia anterior, mas também na justiça veterotestamentária, no direito romano e na doutrina cristã, vê-se bruscamente desfeito pelas idéias do florentino. Como escreve Martínez Barrera, “a ética se transforma em assunto puramente privado, em boa medida estranho ao assunto exclusivamente público de que se ocupa a política”, enquanto “esta se torna, assim, um saber dessa segunda esfera, com suas próprias leis e exigências, que podem coincidir ou não – na maioria das vezes não – com as da ética. O político passa a ser identificado quase exclusi-vamente com o problema do poder público, tanto no plano nacional como no internacional”.6 Ora, só num mundo onde tal separação já se fez realidade completa é possível falar em “moralizar a política”, já que se trataria antes de reconhecer a intrínseca politicidade da ética

5 - CíCero, De republica, III, XXII. 6 - mArtínez BArrerA, Jorge, op. cit., p.49.

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v A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás v

perfeitamente, devemos ler este A Política em Aristóteles e

Santo Tomás de Aquino, porque foram precisamente esses dois

pensadores os que mais desenvolveram sistematicamente a “filosofia das coisas humanas”, tendo sempre presente, seria ocioso dizer, aquela união indissociável entre o saber ético e o político. Aliás, é corrente há muitos séculos a expressão aris-totelismo-tomismo, sendo visto Santo Tomás não raro como uma espécie de continuador medieval do Estagirita, ou pelo menos como o teólogo cristão que teria “batizado” a obra do grego. Pois um dos objetivos de Martínez Barrera neste livro é precisamente mostrar quão falsa é tal expressão e concepções. Embora não faltem, no próprio Aquinate, elementos aparentes para confirmá-las (entre outros, a enorme deferência de Santo Tomás para com Aristóteles e, particularmente, o uso por ele de todo um arcabouço conceptual deste), veremos neste livro que o frade dominicano se afasta do filósofo grego em pontos capitais. Antes de tudo, no olhar essencialmente metafísico com que trata a ética e a política, enquanto o Estagirita as estuda de um ângulo quase exclusivamente prático. Depois, no seu conceito de natureza e seus respectivos alcances polí-ticos, cujos corolários se podem resumir tanto na citação que pusemos em epígrafe deste Prefácio, como no seguinte comen-tário do Aquinate a uma passagem da Física aristotélica: “Diz [Aristóteles] que é freqüente reduzir três das causas a uma, de modo que a causa formal e a final sejam uma numericamente.

Mas isso se deve entender da causa final da geração, e não da causa final da coisa gerada. Com efeito, o fim da geração do

homem é a forma humana. No entanto, o fim do homem não é sua forma, senão que por sua forma lhe convém agir visando ao fim”;7 enquanto Aristóteles não só se limita a afirmar que a forma humana é a causa final da geração humana, mas não lo-gra ultrapassar os marcos da pólis ou comunidade política en-quanto ordem teleológica. E por fim no tratamento da religião

7 - tomásde Aquino, Comentário à Fisica, no 05, apud mArtínez BArrerA, Jorge, op. cit.,

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v A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás v

obra de Aristóteles tal qual chegou até nós.

O livro de Barrera é, como já se disse aqui, luminoso, não só porque esclarece, a meu ver definitivamente, o que separa Santo Tomás de Aristóteles, mas também porque, ao fazê-lo, nos fornece pré-condições para, como o faria o Aquinate, en-tender metafisicamente o próprio mundo em que vivemos e sua profunda crise ético-política (e religiosa). Como não haveria de estar completamente engolfado em tão profunda crise um mundo que renega a noção de lei natural que, aperfeiçoada por Santo Tomás de Aquino, radica, como já vimos, não só no estoicismo, mas em toda a tradição grega que culminou em Platão, e que, de uma maneira ou de outra, atravessou toda a história da humanidade até o Renascimento? O Aquinate, sem negar a doutrina aristotélica e a importância que ela confere ao sábio na expressão concreta da reta razão, “reformula-a segundo o espírito paulino da Epístola aos Coríntios, recordando que a perfeição da razão prudencial depende, em última instância, de sua conformidade com uma ordem normativa metapolítica, porque ‘ninguém, propriamente falando, pode impor uma lei a seus próprios atos’ [Tomásde Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q.

9, a. 5, resp.].” E, prossegue Barrera, “a grande contrapartida

da visão cristã consiste no reposicionamento axiológico das questões políticas. Esta conseqüência só se fará sentir, em seus efeitos práticos concretos, quando a cosmovisão secularizante da modernidade tenda a expressar-se num novo corpo jurídico para o qual a lei já não aspirará, como no caso do direito roma-no, a ser um ars boni et aequi, mas antes a uma enunciação de direitos e garantias individuais. Essa concepção da lei positiva é sustentada por uma nova concepção da lei natural, e uma de suas formulações já pode ser lida no Leviatã de Hobbes”.9

Tentemos articular tudo quanto se disse até aqui: a ten-dência a negar à inteligência sua capacidade própria leva, ao

8 - mArtínez BArrerA, Jorge, op. cit., p. 00. Diz ainda Santo Tomás de Aquino: “A primeira regra da razão é a lei natural” (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 95, a.  c.).

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v A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás v

metafísica, o que consequentemente impede o reconhecimen-to da lei natural como emanada da lei eterna e apreensível pela mesma razão. Ter-se-á, por conseguinte, no plano político, a tendência à referida secularização, a qual se traduziu numa visão da história que poderíamos dizer “humano-messiânica”. Vejamo-lo mais de perto. Há, ainda grosso modo, outras três maneiras gerais de en-tender a história do homem. A primeira, a doutrina hinduísta dos ciclos históricos, segundo a qual cada ciclo perfaz uma ór-bita da mais alta elevação espiritual para um estado de gradual degradação, após o qual se dá uma restauração e se retorna ao início de novo ciclo, e assim ad infinitum.10 A segunda é a

própria doutrina cristã, segundo a qual, após a perda do estado de justiça original, a vinda do Messias marcou a consumação dos tempos, girando toda a história humana, tanto a passada como a subseqüente, em torno deste evento único. Por fim, a terceira, que engloba uma multidão de correntes de pensa-mento, é precisamente a que chamei “humano-messiânica”, porque, numa diametral inversão da doutrina cristã, entroniza o próprio homem no papel de messias. Por um lado, essa vi-são pode remontar-se, como o mostrou o neo-aristotélico Eric Voegelin,11 à concepção do monge cisterciense Joaquim de

Fiore (112-1202) segundo a qual a história da humanidade se compõe de três períodos ou reinos: o primeiro foi a era do Pai; o segundo, a do Filho; e a terceira e última será a do Espírito Santo ou Terceiro Reino.12 Não é difícil reconhecer as doutri-nas que lhe são de algum modo caudatárias: a renascentista e sua divisão da história em idade antiga, média e moderna; a de Turgot e Comte com suas fases teológica, metafísica e cien-tífica; a hegeliana e seus três estágios dialéticos que culminam na auto-realização do espírito absoluto; a marxista e suas três

0 - Esta doutrina foi retomada no século passado por mArCel de Corte, em Essai sur

la fin d’une civilisation (Paris, Librairie de Médicis, 949), numa tentativa, ao que parece

frustrada, de adaptá-la ao pensamento católico tradicional.

 - Cf. The New Science of Politics, Chicago, University of Chicago, 95.  - A doutrina de Joaquim de Fiore foi rejeitada pela Igreja.

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v A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás x

comunismo final; e a hitlerista ou nacional-socialista e seu Terceiro Reich (ou Reino).

Mas todas estas últimas têm um principal denomina-dor comum: para elas, a história humana marcha, inexo-ravelmente, para uma espécie de apogeu, por obra e graça do próprio homem (o “homem universal”, ou uma classe dele, ou uma raça dele), o qual assim se constrói ou deifi-ca construindo progressivamente seu paraíso terrestre — e nisso, como é patente, se afastam radicalmente da doutrina de Joaquim de Fiore. Pois bem, não é preciso ser nenhum Aristóteles nem Santo Tomás de Aquino para constatar que esse ideal programático ruiu com a ruína do mundo que ele criou: do Renascimento aos dias de hoje, tivemos nada menos que as centenas de milhões de mortos das guerras de religião pós-Reforma luterana; da Revolução Francesa e seu Terror liberal e guilhotinesco; da Revolução Russa, cujas vítimas feudais, burguesas, pequeno-burguesas e camponesas (e operárias “reacionárias”, claro) foram abatidas por um Es-tado que se dizia auto-extinguível; das duas guerras mundiais e seu inaudito bombardeio de cidades repletas de crianças, mulheres, velhos e inválidos; do massacre em massa, com requintes científicos de crueldade, de uma raça em nome da ereção de outra, sob as escuras brumas nietzschianas e wag-nerianas de certa doutrina germanófilo-gnóstica; das por todos os ângulos desnecessárias bombas de Hiroshima e Na-gasaki e sua herança de degeneração genética; da carnificina incontável dos Maos Tse-tungs e Pols Pots em nome de uma revolução cultural nascida da “amplitude” intelectual de um folheto vermelho. Nunca nenhum Átila, nenhuns bárbaros, nenhuma civilização tinha sido capaz, tanto absoluta como proporcionalmente, de tamanha façanha. Mas importa ressaltar aqui a principal dessas correntes, da qual, de um modo ou de outro, as outras se geraram, e que efetivamente é a que se tornou hegemônica: a liberal. Caracteriza-se ela, antes de tudo, por uma negação ou

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re-v A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás x todas as suas configurações pluriformes, a fonte do justo e do ético não é algo meta-humano, mas, ao contrário, a consciê-ncia do indivíduo — historicizada e tornada autônoma em relação ao Sumum Bonum. Perdem o justo e o ético, assim, qualquer base objetiva pela qual se possam reconhecer, para obscurecer-se em meio à névoa do subjetivo e, pois, do rela-tivo. Logo, perde-se, propriamente falando, a noção mesma do justo e do ético.14 E por essa razão é que a lei já não

pode aspirar a ser um ars boni et aequi, mas somente a ser mera enunciação de direitos e garantias individuais.15 Não  - Como salienta François Lemoine, na história do liberalismo, todas as vezes em que os seus ideólogos defenderam a lei natural, fizeram-no privando-a do seu fundamento divino e primevo: o Ipsum Esse (o Próprio Ser), como diria Santo Tomás. A “moral”

libe-ral, pois — em todas as suas linhas —, é uma moral da perda do Sumo Bem, que não se conforma às consciências individuais pelo simples fato de que estas não são fundantes dos valores, mas no máximo têm potência para reconhecê-los na estrutura ontológica da realidade, que culmina no Próprio Ser, de acordo com a metafísica de Tomás de Aquino. Assim, por uma questão de prioridade ontológica, só poderia dar-se o contrá-rio: elas é que precisariam conformar-se ao Sumo Bem, sendo a liberdade verdadeira (na perspectiva cristã) não a escolha entre bens e males, mas a escolha objetiva de bens reais pela inteligência e pela vontade, potências distintivas da alma humana, para Santo Tomás. Entre as conseqüências suicidas de uma generalização do liberalismo, Lemoine aponta: a) a degradação dos fundamentos das religiões; b) a indução dos

indivíduos a relacionar-se com a cultura não mais para “receber e transmitir”, e sim para “produzir e consumir”; c) tendência dos crentes das religiões a “fabricar” eles mesmos

os seus próprios sistemas de crenças, conformando-os mentalmente às práticas de suas vidas (pautadas, ainda que escamoteadamente, no elogio da consciência indivi-dual); d) a diabolização de toda moral universalista, que não pode ter lugar numa

socie-dade em que os indivíduos são induzidos a fazer dos seus umbigos o centro dos valores objetivos; e) a instauração de um ambiente hedonista e de crescente busca da

auto-sa-tisfação; f) a indução das pessoas a um sensualismo feérico; g) tecnicismo exacerbado.

Ver lemoine, François, De la liquidité du libéralisme à sa liquéfaction par le libertarisme, em http://www.laportelatine.org/formation/disputatio/liberalismelemoine/lemoine.php

4 - Tal é verdadeiro ainda que um ou outro autor liberal se esforce por encontrar uma fonte objetiva para o justo e o ético. Por se tratar precisamente de pensamento liberal, seu esforço é fadado ao fracasso.

5 - Completamente diverso é o espírito que inspira estas linhas do Aquinate: “Aquele que quer o bem comum da multidão quer também, por conseguinte, o seu próprio bem, por duas razões. Primeira, porque o bem próprio não pode existir sem o bem comum, seja da família, da cidade ou do reino. Razão por que Máximo Valério diz dos antigos romanos que “eles preferiam ser pobres num império rico a ser ricos num império po-bre”. Segunda, porque, por ser o homem parte da casa e da cidade, precisa considerar o que é bom para si levando em conta o que é prudente com respeito ao bem da mul-tidão, porque, com efeito, a boa disposição das partes é julgada segundo sua relação com o todo. Por isso diz Agostinho, no livro das Confissões, que “é disforme aquela

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x A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás x

se concretizaria na perfeita democracia universal segundo o ideário iluminista.17

Tal meta, porém, mais que quimérica, deriva de e redunda

em algo patológico (e correlato à descendente filosófica

car-tesiano-kantiana, como tratada por Étienne Gilson).1 Como

escreve Martínez Barrera, “a melhor descrição da psicopatolo-gia e da conseqüente sociopatologia devidas à entronização da liberdade como uma meta por alcançar é vividamente apresen- tada por Platão a partir do capítulo 10 do oitavo livro da Repú-blica”.19 Por que a liberdade é ao mesmo tempo boa, quando é uma questão ética (como o afirma toda a tradição que vai de Sócrates ao pensamento cristão), e má como objetivo político? “A liberdade”, responde Barrera, “não pode ser formulada como o fim de uma comunidade política que se queira moralmente aperfeiçoadora porque essa comunidade só existe quando as ações que a conformam são isto mesmo, ações ou atos, e não

potências ou faculdades. A liberdade, no vocabulário técnico

da filosofia, é um conceito afim ao de potência; a liberdade é sempre liberdade de algo e não liberdade pura, em si. [...] Se ela fosse o ideal da comunidade política, esta se poria na situação de reservar-se o direito de modificação perpétua de todas as ações, independentemente de sua bondade ou maldade.”20 E

conclui nosso autor: “[...] a prelazia do princípio de liberdade é precisamente o que leva à dissolução da ciência política numa simples cratologia, numa ciência do poder. É essa, precisamente,

parte que não é congruente com seu todo” (tomásde Aquino, Suma Teológica, IIª-IIª, q. 47, a. 0, ad ).

6 - Aqui, trata-se da liberdade não como um princípio interior inamovível da alma humana (a partir dos atos livres da vontade e da inteligência), mas da liberdade política, tão-somente.

7 - Parece-me ouvir os acordes ribombantes que envolvem, na Nona Sinfonia de Beethoven, a “An die Freude” (Ode à Alegria) de Friedrich Schiller, inspirada precisa-mente no ideário liberal do Iluminismo. Aliás, o coral beethoveniano com a “Ode” de Schiller é, desde 985, o hino oficial da União Européia.

8 - Cf. acima, nota  deste Prefácio.

9 - mArtínez BArrerA, Jorge, op. cit., pp. 7-74 0 - Ibid., p. 74..

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x A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás x deve dizer que, se não há liberdade interior, nenhuma decisão justa e boa será possível. Trata-se antes de reposicionar a função da liberdade em seu lugar natural, ou seja, o político, como um conceito subordinado ao de sociedade boa, e não subordinante dela; e no ético, como uma condição prévia das boas escolhas e decisões, ou seja, como um instrumento da verdade prática.”21

E, se isso é assim, a própria democracia universal em que se concretizaria tal meta política também é, mais que quimé-rica, sociopatológica, no sentido preciso em que lhe dá Platão. Como, porém, a democracia se transformou no grande ícone da sociedade moderna, é preciso explicar aqui, minimamen-te, essa afirmação. Tomemos, em prol da brevidade, apenas a última palavra de Santo Tomás a respeito do melhor regime político:22 “A melhor ordenação de uma cidade ou reino aos príncipes é aquela na qual um é posto como chefe com poder, o qual a todos preside; e sob o mesmo estão todos os que go-vernam com poder. Assim, tal principado pertence a todos, quer porque [o príncipe] pode ser escolhido dentre todos, quer porque também é escolhido por todos. Tal é, com efeito, o melhor governo, bem combinado: de reino, quando um só preside; de aristocracia, enquanto muitos governam com po-der; e de democracia, isto é, com o poder do povo, enquanto os príncipes podem ser eleitos dentre as pessoas do povo, e ao povo pertence a eleição dos príncipes”.2 A preocupação do

Aquinate é aqui, precisamente, a melhor maneira de fazer par-ticipar a todos no regime político, de sorte que todos se sintam responsáveis por ele e se evitem o mais possível as dissensões

 -mArtínez BArrerA. Idem, p.75.

 - Tenha-se sempre em mente, todavia, o que diz Martínez Barrera: “Naturalmente, pode-se saber o que pensava Santo Tomás acerca desta questão [do melhor regime político], mas não deixemos de ver que ela não é tematizada motu proprio em seu pensamento. Em outras palavras, Santo Tomás não é um cratólogo político. Por isso é muito discutível a pretensão de ver nele um defensor dos direitos humanos em sua versão subjetivista contemporânea, um campeão da democracia, ou um paladino da monarquia. Se buscarmos isso como filosofia política no Aquinate, estaremos escamo-teando o verdadeiro status epistemológico que o saber político tem para ele” (mArtínez

BArrerA, Jorge, op. cit., p.07).

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x A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás x lacera a comunidade política e lhe impede o bem comum pró-prio: a paz social. É isso o que se dá na democracia moderna, nascida do Terror da Revolução Francesa? Não, exatamente pelo que se disse acima, ou seja, porque nela o político não é um conceito subordinado ao de “sociedade boa”, e porque nela o ético não é a condição prévia das boas escolhas e decisões, não é um instrumento da verdade prática. E, neste vácuo éti-co, a democracia moderna nunca poderá ser senão o que dela podemos dizer com Chesterton: uma partidocracia a serviço de uma plutocracia, na qual se sufoca o que supostamente se pre-tendia valorizar, a liberdade interior, que na tradição socrática “é a condição sine qua non das decisões que conformarão por sua vez as ações boas e justas, objeto da política”.24 Mais que isso, porém: o reposicionamento global das coisas políticas empreendido pelo Aquinate “traduz certa desconfiança quanto à consecução de uma ordem política perfeita; [ele] suge-re que a aproximação a esta meta será sempre assintótica. Nisto Santo Tomás, alinhado com a tradição cristã, é mais estóico que grego [...]”.25 E isso pode ser assim porque para o Aquinate

o fim do homem está verdadeiramente além da comunidade política, “a tal ponto, que se poderia dizer, sem medo de errar, que para Santo Tomás buscamos politicamente fins transpolíticos. A comunidade política, portanto, não é um fim último e não constitui a última perfeição humana. Esta doutrina constitui uma forte impugnação a qualquer forma de totalitarismo e tira-nia, ainda que essa tirania esteja nas mãos de uma maioria”.26

Eu ousaria dizer até que, mais que uma forte impugnação a qualquer forma de totalitarismo e tirania, esta doutrina é a úni-ca garantia que podemos ter contra elas. Diz Santo Tomás: “[...]

4 - mArtínez BArrerA, Jorge, op. cit., p.7.

5 - Ibid., p.89. Mas esclarece de imediato o mesmo autor: “O distanciamento cristão do ideal grego de perfeição política, que, seria ocioso esclarecer, não tem as mesmas raízes da ‘desilusão política’ estóica, foi consolidando ao mesmo tempo sua posição ante as utopias renascentistas, na medida em que estas eram uma ressonância distan-te da meta de perfeição política absoluta” (idem).

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x A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás x a sua pessoa e todas as suas coisas, e por isso não convém que todos os seus atos sejam meritórios ou demeritórios com relação à comunidade política. Antes, tudo o que o homem é, tudo do que ele é capaz e tudo o que ele tem deve ordenar-se a Deus”.27 Trata-se, em verdade, da encruzilhada em que desde sempre se viu o homem: ou a permanente exposição a uma tirania brota-da de suas próprias debilidades e limitações, ou a submissão a uma ordem maior, objetiva, fonte perene do bem e do justo. Como já o dizia Antígona.

Nota breve sobre a tradução

Com respeito às palavras gregas transliteradas para o alfabe-to latino, acentuei-as, quando necessário, apenas para marcar as tônicas. Tentou-se evitar, assim, uma pronúncia demasiado errô-nea por parte do leitor não familiarizado com a língua grega.

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A Política em Aristóteles e Santo Tomás  O livro que o leitor tem nas mãos é fruto de uma longa freqüentação dos autores estudados. A um período inicial de compreensão seguiu-se outro, de interrogações e dúvidas acerca do verdadeiro alcance da dívida que o Aquinate teria com o Estagirita. Fiquei desencantado desde o início com a expressão “pensamento aristotélico-tomista”. Sem ter aprofundado sequer por que intuía no início de minhas leituras um equívoco colos-sal nesse enunciado, o certo é que nunca me persuadi de que pudesse existir tal híbrido filosófico. Isso me levou a privilegiar um tipo de estudo em que se pudessem apreciar com maior niti-dez os pontos suscetíveis de ser comparados. O último capítulo deste livro, o quinto, recolhe as conclusões a que cheguei após considerar nos três primeiros capítulos alguns dos principais tópicos da filosofia política aristotélica, especialmente os que de uma maneira ou de outra serão retomados depois por Santo Tomás. Já o último subtítulo do primeiro capítulo, que lhe serve de conclusão, visa a mostrar que até uma ciência que alcança sua dignidade epistemológica como ciência prática possui um inevitável fundo metafísico. Os trabalhos de Enrico Berti e Franco Volpi me foram aqui de valiosa ajuda. Uma vez ressaltada a articulação da filosofia prática com a metafísica, o que lhe assegura, se não a posse, ao menos a inspiração na busca da verdade, era preciso fazer ver a relação entre ética e política. Para Aristóteles, a pretensão de “mora-lizar” a política não tem sentido, dado que ela mesma é uma ciência prática ou ciência moral. A moralização da política só é pensável para uma política que já não se concebe a si mesma como ciência prática. Ao mesmo tempo, a ética só alcança sua plenitude como saber da virtude moral num contexto político; por isso, em vez de moralizar a política, trata-se para Aristóteles de achar a dimensão política da moral. A noção que permite esta ponte com a dimensão comunitária da ética é a de lei. Ela tem uma missão de pedagogia moral que adquire sentido na entronização da justiça. O notável é que essa noção de justiça

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

uma virtude do caráter. Este é o tema do segundo capítulo. No terceiro, trato o problema da liberdade política em Aristóteles. Aqui aparecem dois tópicos. Um deles é o alcance do conceito de liberdade política no Estagirita. Esta não parece ser uma noção essencialmente vinculada a uma questão de direitos, entendidos estes como capacidade juridicamente tutelada, mas sim à idéia socrática de liberdade interior, associada por sua vez a certas características psicológicas. Os escravos estão excluídos da vida política porque não têm liberdade, mas não a têm não porque a tenham perdido, e sim porque nunca a tiveram. A escravidão não é a causa da perda da liberdade, mas a condição mais conveniente para aquele que não é livre desde o princípio. Por alguma razão inexplicável, o escravo, tal qual o descreve Aristóteles, não possui a faculdade de de-liberação que define um homem livre; não tem capacidade de decisão e, portanto, não pode participar de pleno direito na comunidade ética da pólis, pois a virtude moral se define, precisamente, como a perfeição dessa capacidade de decisão. Como quer que seja, a liberdade não é para Aristóteles o bem supremo da comunidade política, e isto nos leva ao segundo problema, ou seja, o suscitado por um tipo de constituição que faz da liberdade o fim da pólis: a democracia. Quando Santo Tomás trata estes temas da política aristo- télica, já sucedeu de permeio mais de um milênio de Cristia-nismo. Os tempos do agostinismo político ficaram para trás; a reflexão dos pensadores cristãos já teve ocasião de provar-se diante de vários antagonistas e alcançou uma maturidade que lhe permite acolher Aristóteles sem maiores temores. Ou melhor, este é o caso do Aquinate, não necessariamente com-partilhado por alguns de seus contemporâneos, que viam nas doutrinas do Estagirita um sério perigo para a fé. Disso me ocupo no quarto capítulo.

Eu disse no começo que este livro é fruto de uma longa freqüentação dos textos. Estou longe, porém, de pretender que os meses e anos dedicados à leitura e estudo de Aris-tóteles e Tomás de Aquino garantam, por si sós, uma

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inte- A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

lacunas, defeitos e imprecisões que não podem ser corrigidos por meus exíguos recursos pessoais, não somente no terreno material, que seria o menos preocupante, mas especialmente no intelectual. Felizmente, neste último caso contei sempre com o apoio, o conselho e a crítica dos amigos e colegas. Não exagero se atribuo os acertos que este trabalho possa conter à ingerência oportuna deles, e os desacertos somente a mim mesmo. Neste sentido, quero expressar minha gratidão a diversas pessoas e instituições que tornaram possível este livro: o Prof. Ángel Luis González, por tê-lo acolhido na Serie

Cuadernos de Anuario Filosófico, da Universidade de Navarra;

Alejandro Vigo; Joaquín García Huidobro; Carlos Massini Correas; Héctor Padrón; Ricardo Crespo; Miguel Verstraete; Jacques Follon; James McEvoy; Juan Cruz Cruz. Todas essas pessoas me honram com sua amizade e são raros exemplos de virtude ética e intelectual. Quero agradecer também, na pessoa do Professor Jan Aertsen, a todo o Thomas-Institut da Universidade de Colônia, que me proporcionou um ambiente ideal durante dois meses para eu poder trabalhar no tema da religião e da ética em Aristóteles e Tomás de Aquino. E, natu-ralmente, vai toda a minha gratidão à Cristina, minha esposa, por sua paciência, abnegação e amizade.

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(25)

I

Aristóteles e o

neo-aristotelismo

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A Política em Aristóteles e Santo Tomás  1. dePendênciAouindePendênciA entremetAfíSicAe

filoSofiAPráticA? A interpretação da filosofia prática de Aristóteles, isto é, sua filosofia moral e sua filosofia política, oscila hoje entre duas tendências particularmente evidentes na erudição alemã. Tais tendências são as seguintes: a) uma que insiste nos pressupostos metafísicos desta filosofia, representada particularmente pelos trabalhos de Manfred Riedel, Metaphysik und Metapolitik. Studien zu Aristoteles

und zur politischen Sprache der neuzeitlichen Philosophie,

Frankfurt-a-M., 1975,1 e de Andreas Kamp, Die politische

Philosophie des Aristoteles und ihre metaphysischen Grundla-gen. Wesentheorie und Polisordnung, München, 195;

b)

e uma que insiste, antes, em certa autonomia da filosofia prá- tica aristotélica. Esta última tendência é, especialmente, a re-presentada por Günther Bien, Die Grundlegung der politischen

Philosophie bei Aristoteles, Freiburg-München, Alber, 197.2

Entre os autores não alemães que aderem a cada uma dessas interpretações, temos os seguintes. Em primeiro lugar, os que se inclinam para a presença de um forte conteúdo metafísico na reflexão prática aristotélica são, entre os mais conhecidos: Pierre Aubenque, Le problème de l’être chez Aristote, Paris, 1962 (nova edição em 1991) e La prudence chez Aristote, Paris, 196 (ª. edição corrigida e aumentada em 196); Richard Bodéüs, Le - Edição em espanhol: Metafísica y Metapolítica, Buenos Aires, Alfa, 976.

 - Cf. BodÉüs, R., Politique et philosophie chez Aristote, Namur, Société des Études Classiques, 99, p. vi. Os trabalhos citados por Bodéüs estão referidos na bibliografia.

 - Escreve Aubenque: “Que nos seja permitido, então, voltar a uma interpretação interna dos textos aristotélicos, essencialmente a Ética a Nicômaco e, acessoriamente, a Ética

a Eudemo e a Grande Moral, pondo porém estes textos em relação com o que constitui

seu marco natural: as doutrinas metafísicas de Aristóteles. O reconhecimento de tal relação e da necessidade de estudá-la parece evidente; até agora, porém, não parece ter sido posto em prática. A maior parte dos intérpretes, supondo que uma especializa-ção excessiva lhes impediu estudar ao mesmo tempo a Metafísica de Aristóteles e suas

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

philosophe et la cité, Paris, 192; e o já citado trabalho Politique et philosophie chez Aristote. Também o autor italiano Enrico Berti,

em vários de seus trabalhos, se mostra favorável a interpretar a filosofia prática aristotélica, se não em linha dedutiva direta, ao menos como não hostil a certos pressupostos metafísicos.4 Em contrapartida, os autores que enfatizam certo grau de independência da ética e da política com respeito à metafísica são, entre outros, John Finnis, Fundamentals of Ethics, Oxford, 19 (2ª. edição em 195), e especialmente René-Antoine Gauthier, La morale d’Aristote, Paris, 195 (ª. edição revisada e corrigida em 197).

Tal divergência de interpretações provavelmente obedece, como assinala Bodéüs, à própria marcha do pensamento aristoté-lico, que não permite concluir de maneira definitiva quanto a este assunto. O certo, de qualquer modo, é que a metafísica aristotélica, ao conceber a possibilidade de um estudo filosófico do bem huma-no, rompe com a unidade quase monolítica do bem platônico e se coloca como um estudo com seus próprios princípios. E, como o homem não é, para Aristóteles, um deus, mas um ente submetido ao devir e à mudança, seu bem próprio de alguma maneira também será afetado por esses processos metabólicos. Como quer que seja, o lugar que o estudo filosófico do bem humano ocupa no pensamento do Estagirita encontra-se essencialmente em suas Éticas, na Política e também, em alguma medida, na Retórica.

2. A interPretAçãoSiStemáticAeAinterPretAçãogenÉticA

Um segundo grupo de problemas levantados pela crítica

contemporânea é o da famosa disputa entre a exegese sistemáti-ca e a genética. Este tema é um problema relativamente recente,

e sua história é resumida nas primeiras páginas do citado livro de R.-A. Gauthier, La morale d’Aristote.

‘sistemática’ e uma ética que [...] faz profissão, se nos atrevemos a dizê-lo, de assiste-maticidade” (AuBenque, P., La prudence chez Aristote, Paris, P.U.F., 986, p. 7). 4 - Ver, por exemplo, AuBenque, P., “La philosophie pratique d’Aristote et sa “réhabilita-tion” récente”, em Revue de Métaphysique et de Morale, nº /990, pp. 49-66.

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

Sabemos, diz Gauthier, que o Corpus aristotelicum, ou seja, a coleção de escritos tradicionalmente atribuídos ao Estagirita, e cuja Editio Princeps é a de Bekker (Berlim, 10), contém três tratados de moral: a Ética a Nicômaco, a Ética a Eudemo e a

Grande Ética ou Magna

Moralia. A esses três tratados se acres-centa um trabalho que não está contido no Corpus, o Protréptico. A primeira questão que a crítica moderna se coloca é, obvia-mente, a autenticidade de tais trabalhos. A resposta que se dê a esta pergunta depende em boa parte da maneira de conceber a exegese do pensamento de Aristóteles. Pois bem, existem dois grandes tipos de exegese que dividem os especialistas: a exegese sistemática e a exegese genética.

A primeira delas, a sistemática, prossegue Gauthier, é a exegese chamada “tradicional”. Ela foi inaugurada, no século II da nossa era, pelo comentador grego Aspásio. Na Idade Média, esta interpretação encontrou sua expressão acabada na obra de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, e foi retomada em nossos dias por numerosos especialistas, entre os quais os mais notáveis são Franz Dirlmeier5 e Ingemar Düring.6 Conscientemente ou não, a exegese sistemática é edificada sobre uma hipótese que para ela é evidente: Aristóteles, enquan-to filósofo, reuniu num sistema coerente todos os conhecimentos de seu tempo, e o Corpus aristotelicum contém a exposição desse sistema. É pois legítimo interpretar as diversas partes desse con- junto como se tivessem uma sólida conexão intrínseca. Em parti-cular, este procedimento tem aplicação quando se trata da moral, que se pode explicar recorrendo à psicologia e à metafísica. Foi isto o que fizeram os medievais com consumada mestria, embora não tenham deixado de verificar a existência de vários desacor-dos. Mas essas contradições não foram capazes de desorientá-los, porque desde Pedro Abelardo o Sic et Non era o fundo mesmo do método teológico e não havia, em conseqüência, contradição

5 - dirlmeier, F., vols. 6, 7 e 8 da coleção Aristoteles. Werke in deutscher

Überset-zung, respectivamente: vol. 6: Nikomachische Ethik, Berlin, 956 (5ª. ed., 969); vol.

7: Eudemische Ethik, Berlin, 96 (ª. ed., 969); vol. 8: Magna Moralia, Berlin, 958 (ª ed., 966).

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0 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás  que não pudesse ser resolvida por uma distinção. Nesse sentido, vários modernos permaneceram fiéis ao método medieval. Não obstante, o desacordo entre a psicologia suposta pelos tratados de moral e a psicologia do tratado De anima é de tal magnitude, que se fez necessário oferecer uma explicação. E assim nasceu a teoria da compartimentação, elaborada, entre outros, por John Burnet:7 em seus tratados de moral, Aristóteles faz voluntariamente abs-tração de suas próprias teorias psicológicas, as quais ele considera demasiado técnicas, para ater-se a uma psicologia popular acessí-vel a todos. A moral, com efeito, não é para ele uma ciência, mas uma dialética, ou seja, uma arte de persuadir menos preocupada com a verdade que com a eficácia. Assim, em função do sistema atribuído a Aristóteles, a crí-tica levantou o problema da autenticidade, neste caso ao menos, das três Éticas atribuídas ao Estagirita. As diferenças obedecem, em última instância, ao tipo de público a que Aristóteles teria dirigido cada uma de suas obras.

A exegese genética nasceu em 192 com a publicação do trabalho de Werner Jaeger (1-1961). A tese de Jaeger é, se-gundo Gauthier, simplesmente genial. Jaeger teria descoberto em Aristóteles não um sistema fixo e fechado, mas uma investigação viva. Aristóteles não teria sido sempre Aristóteles, mas tornou-se o que foi de maneira paulatina. Podemos acompanhar a evolu-ção de seu pensamento já desde a sua primeira obra, o Gryllos, publicada por volta de 5 a.C., quando tinha 26 anos, até sua fuga de Atenas para Cálcis, onde morre em 22 aos 62 anos. De início preconizara o idealismo platônico, mas depois o criticou e rejeitou; no momento da rejeição, lançou os fundamentos da filosofia realista, atenta à experiência concreta, e, lentamente, levou este modo de ver as coisas até suas últimas conseqüências. De todos os trabalhos inspirados pelo Aristóteles de Jaeger, o mais importante é o livro de François Nuyens L’évolution de la

psycho-logie d’Aristote, publicado em holandês em 19 e traduzido para

7 - Burnet, J., The Ethics of Aristotle, London, 900.

8 - JAeGer, W., Aristoteles. Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung, Berlin, 9 (numerosas edições e traduções posteriores).

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0 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

o francês dez anos depois. Dois especialistas notáveis do aristote-lismo contemporâneo, Mons. Agustin Mansion e sir David Ross, bem como grande número de especialistas de primeiro nível, como, por exemplo, H. J. Drossaart Lulofs, fizeram sua a exegese genética de Jaeger e de Nuyens.9

Pois bem, sem negar o enorme mérito dos trabalhos de Jaeger e da novidade que a interpretação genética implica, não se pode deixar de considerar que ela apresenta algumas limitações, que foram assinaladas, entre outros, com particular agudeza por Pierre Aubenque.10 Embora seja verdade que a crítica de Aubenque à exegese genética inaugurada por Jaeger se refere essencialmente ao as-sunto da phrónesis, não é possível deixar de comprovar que suas observações são de alcance mais amplo que o referente apenas ao tema da prudência. “Para querer submergir Aristóteles em seu meio histórico”, escreve Aubenque, “em reação à tradição da exegese, à força de multiplicar as pesquisas sobre as fontes e sobre a evolução de seu pensamento, acabou-se por acentuar quase exclusivamente textos marginais, como os do Protréptico, da Ética a Eudemo ou da Gran-de Moral, e por Eudemo ou da Gran-descuidar do texto essencial, que continua a ser o livro VI da Ética a Nicômaco. Mais ainda”, continua Aubenque, “o trabalho filosófico de reconstituição das fontes e da evolução, embora seja verdade que teve como resultado despertar de sua sonolência uma longa tradição de paráfrase trivial e de ampli-ficação piedosa, não contribuiu menos, porém, para extraviar a interpretação numa direção que deixava de lado o essencial. “Em poucas palavras”, prossegue Aubenque, “poderíamos resumir assim a nossa crítica: depois dos trabalhos de filólogos como Ernest Kapp11 e Werner Jaeger, substituiu-se o problema da interpretação da ética aristotélica no conjunto da especula-ção aristotélica pelo do lugar da Ética a Nicômaco na história da ética aristotélica e, mais geralmente, da ética aristotélica na

9 - GAuthier, R.-A., La morale d’Aristote, Paris, P.U.F., 97, pp.5-0. 0 - AuBenque, P., art. cit.

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

história da ética. Poder-se-ia dizer que à compreensão horizontal, que multiplica as conexões com as outras partes do sistema, se preferiu a compreensão vertical dos diferentes momentos da história de uma noção ou de um problema. O resultado é que, à força de ver no aristotelismo uma simples etapa entre o pré-aristotelismo do jovem Aristóteles e o pós-aristotelismo de seus epígonos, se acabou por esquecer o que tinha de específico: o aristotelismo mesmo [...]. Desse modo, o método genético, sem-pre mais preocupado com os processos que com as estruturas, sempre mais disposto a descobrir as contradições de uma dou-trina que sua coerência, sempre mais atento à instabilidade de um pensamento que à sua vocação para a unidade, tendeu, tal-vez sem querer, a transformar-se numa interpretação pejorativa que vê em todas as partes transição e passagem entre extremos, ali onde o ponto de vista do autor teria permitido discernir pro-vavelmente um cume”.12 Já mais contemporaneamente, encontramos alguns trabalhos que de algum modo ratificam as observações de Aubenque contra a exegese genética. Entre esses autores, podemos mencionar Pierre Pellegrin.1 A conclusão deste autor é que, ao fim e ao cabo, não surgiu nada inquestionável das inumeráveis pesquisas que foram feitas sobre a cronologia interna da Política de Aristóteles. Do mes-mo modo, ficou por resolver o problema da ordem em que deve ser lido esse texto. Sabemos, diz Pellegrin, que foram propostas várias modificações na ordem tradicional dos livros e que, por exemplo, a hipótese segundo a qual os livros VII e VIII deviam ser transpostos para depois do livro III remonta pelo menos a Nicolau de Oresme.14 Pois bem, com respeito a essas reacomodações, prossegue Pellegrin, existem duas classes de reconstituições possíveis: as lógicas e as cronológicas. Mas estas duas não são senão dois aspectos de uma mesma tarefa. Com efeito, nossas hipóteses cronológicas, na au-sência de critérios “objetivos”, não são mais que a sombra de nossas

 - AuBenque, P., op. cit, pp. 6-7.

 - pelleGrin, P., “La Politique d’Aristote : unité et fractures. Éloge de la lecture som-maire”, em Aristote Politique. Études sur la Politique d’Aristote, sous la direction de Pierre Aubenque, publiés par Alonso Tordesillas, Paris, P.U.F., 99, pp. -4. 4 - A tradução francesa da Política por Nicolás de Oresme dataria de 70.

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

concepções “lógicas” acerca do desenvolvimento do pensamento aristotélico. Nossas propostas cronológicas fundam-se, por exem-plo, em nossa convicção de que Aristóteles ou se teria afastado progressivamente do platonismo, ou teria rompido bruscamente com ele. E, se levarmos seriamente em consideração esse pressu-posto hermenêutico e suas exigências, seremos necessariamente levados a desmembrar não só a ordem dos livros da Política, mas também o próprio conteúdo deles. Daí, por exemplo, a cronologia proposta por Aubonnet: a Política fundamental (Urpolitik) seria constituída por um primeiro esboço dos livros VII e VIII, pelo livro II reduzido à crítica do Estado platônico, e pelo livro III menos os capítulos 14 a 1. Depois viriam os livros IV, VI e V; depois o livro I, e mais adiante o livro II com os estudos sobre Esparta, Creta e Cartago. Finalmente, Aristóteles teria dado uma nova edição dos livros III, VII e VIII, harmonizada com os livros IV a VI. Por seu lado, Phillippe Betbeder, numa importante monografia sobre ética e política em Aristóteles, adere a um suposto consenso generali-zado quanto à seguinte ordem: livros VII-VIII, livro II, livro III, livros IV-VI, enquanto o livro I, mais difícil de situar de maneira incontrovertível, viria depois do livro III, ou seja, ao final.15 Cabe assinalar que a edição da Ética a Nicômaco de Gauthier e Jolif16 também é sobrecarregada de transposições e reacomodações do texto, com a finalidade de respeitar minuciosamente os requisi-tos da exegese genética, mas, ao fim e ao cabo, essas manipulações tornam às vezes incompreensível a leitura e até a própria doutrina. O que nasce com intenção de esclarecer termina, paradoxalmente, por confundir tudo e fazer perder de vista a coisa mesma de que se fala, quando não a própria doutrina. Diante dessa postura, que exacerba os pruridos interpreta-tivos da exegese genética, Pellegrin mostra-se desencantado. Em suma, depois de uma longa freqüentação e, sobretudo, de uma cuidadosa, como a chama ele, “prática do texto”, Pellegrin julga-se em condições de concluir que a questão da ordem dos

5 - BetBeder, Ph., “Étique et politique selon Aristote”, em Revue des Sciences

philoso-phiques et théologiques, T. LIV (970), n°, pp. 45-488.

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4 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 5 livros da Política é algo que por ora está fora de nosso alcance. Além do mais, é um bom método pô-la conscientemente fora de nosso alcance e adotar, ainda que provisoriamente, a hipótese da unidade da Política. E, se alguém objeta que a presença de estratos redacionais de diversas épocas, e até de diversos autores, é uma evidência inquestionável em algumas passagens, Pellegrin respon-de que sua leitura quase sistemática não significa ao mesmo tempo a suposição de que a Política seja uma obra acabada. Nada impede, com efeito, que uma exegese mais próxima da tradição sistemática que da interpretação genética possa considerar a Política como uma obra in statu nascendi, ou como notas reunidas antes da redação definitiva. Em todo o caso, a proposta de Pellegrin, ante as des-vantagens que uma hiperespecialização exegética, uma excessiva insistência em aspectos lexicográficos e de estilo e a sutileza de prestigiosas análises oferecem à compreensão filosófica profunda do texto, é de retorno a uma leitura sumária da obra, isto é, a uma lei-tura que até se coloque aquém das posições antagônicas existentes hoje. Essa leitura sumária nem sequer deve pretender superar as atuais contradições, pois esta tarefa se mostra, ao menos no estado atual das pesquisas, como um beco sem saída. Há certas regras mínimas de leitura da Política, e talvez de toda a obra aristotélica, que obedecem à simples precau-ção de considerar a primeira coisa que deveria ser levada em conta: o estado literário em que nos chegaram os textos. Com relação a isto, não há a menor dúvida de que, em geral, tais textos não têm em sua maioria a forma de obras acaba-das destinadas à publicação, apesar de existirem espargidas, aqui e ali, algumas passagens mais “cuidadas”. Em todo o caso, é sumamente complicado fazer um estudo estilístico comparável ao que foi feito com os diálogos platônicos, que permitiu uma ordenação cronológica com respeito à qual há pouco desacordo.17

O estado literário dos textos, então, prescreve por si só certas normas de leitura ou interpretação. Entre elas, Pellegrin menciona as seguintes.

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4 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 5 Em primeiro lugar, devemos rejeitar as cronologias funda-das em critérios doutrinais. Esta regra proíbe, por exemplo, o seguinte raciocínio: “Aristóteles se afastou do platonismo; logo, os livros VII e VIII da Política são antigos”. A segunda regra nos fará rejeitar também as ordenações de textos segundo critérios “lógicos”, como, por exemplo: “O livro V da Política deve ser colocado depois do livro VI porque é preciso terminar de tratar as constituições antes de tratar o problema de sua corrupção”. E, em terceiro lugar, devemos privilegiar uma aproximação

formal do texto; isto significa que não devemos extrair nenhu-ma conseqüência estrutural das diferenças de conteúdo. Em razão desta terceira regra, tentaremos privilegiar as declarações programáticas, as fórmulas de abertura e fechamento dos tex-tos, os anúncios de plano. Desse modo se evidenciará que a ordem em que nos chega-ram os textos da Política não é totalmente insensata, e até pode ser a menos ruim para uma primeira leitura da obra.

Chega então Pellegrin à seguinte conclusão, após ter feito sua leitura “sumária” de várias passagens da Política: “A leitura que fizemos da Política é inabitual e frustrante. Ela vai, em todo o caso, contra uma das convicções mais arraigadas em nossa profissão, aquela para a qual quanto mais fina é uma leitura — more fine- grained, diriam nossos colegas anglo-saxões — mais está em con-dições de explicar os meandros secretos de um texto e, portanto, é mais verdadeira ou, popperianamente falando, mais dificilmente ‘falseável’. Ante essa prática minuciosa, encontramo-nos um pouco na situação daquelas pessoas que falam de um livro de que leram só o sumário. De fato, o caráter sumário de nossa aproximação lhe deu uma solidez inesperada ao colocá-la abaixo da maior parte das controvérsias que constituem a história da interpretação da Política. Ao mesmo tempo que nos dá uma visão geral (poder-se-ia dizer geográfica?) do texto, esta leitura confirmou a minha primei-ra impressão: uma interrogação séria sobre a ordem dos livros da

Política excede as nossas (em todo o caso, as minhas) forças [...]”.1 8 - Ibid., p. 4.

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6 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás  3. A reAbilitAçãodA filoSofiAPráticAeo

neo-AriStoteliSmo Com este tema, entramos num dos debates mais interessan-tes que se suscitaram atualmente com respeito à interpretação da filosofia prática de Aristóteles. A importância dessas discussões é garantida em grande parte pelo fato de que não só os pontos em disputa não remetem apenas a um academicismo erudito, mas, como tentaremos examinar, estão em jogo implicações vitais, ou, para dizê-lo em termos atuais, existenciais, muito mais profundas que as simples considerações científicas.19

Desde o começo da década de 1960 e até o final da de 1970, teve lugar na Alemanha um intenso debate que alcançou celebridade mundial com o título de “reabilitação da filosofia prática”.20 Segundo Volpi, os dois textos mais importantes que

abrem a corrente neo-aristotélica são os de Hannah Arendt,

A Condição Humana, publicado nos Estados Unidos pela pri-meira vez em 195, e o de H.-G. Gadamer, Verdade e Método, publicado pela primeira vez em alemão no mesmo ano. Trata-se de obras com numerosas edições e traduções, também para o espanhol. Na verdade, o que esteve estritamente na origem do neo-aristotelismo foram algumas partes desses livros. No de Arendt, foram os capítulos dedicados à análise da “vita activa”, e no de Gadamer o referente à “atualidade hermenêutica de Aris-tóteles”. Berti menciona também os trabalhos de outros autores que contribuíram para esta reabilitação da filosofia prática em chave aristotélica: o trabalho de Leo Strauss “What is Political Philosophy?”, publicado pela primeira vez em What is Political

Philosophy and Other Studies (1959) e reimpresso em Political Phi-losophy. Six Essays by Leo Strauss (edited with an introduction

by Hilail Gildin, Indianapolis, New York, Pegasus, 1975); o de

9 - Para a preparação deste ponto, sigo em suas linhas fundamentais a análise de

Berti, E., art. cit., pp. 49-66, e a de Volpi, F., art. cit., pp. 46-484. Cabe assinalar que, segundo Berti, a expressão “neo-aristotelismo” foi usada pela primeira vez por Jürgens Habermas em 975.

0 - O livro mais importante sobre este debate foi o trabalho editado por riedel, M.,

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6 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

Wilhelm Hennis Politik und praktische Philosophie. Eine Studie

zur Rekonstruktion der politischem Wissenschaft (Neuwied am

Rhein u. Berlin, Hermann Luchterhand Verlag, 196); e o de Eric Voegelin The New Science of Politics (Chicago, University Press, 1952).21

Uma citação do livro de Hennis nos dará uma idéia dos motivos que animaram e animam ainda hoje o neo-aristotelis-mo. Diz este autor na Advertência do livro: “Este trabalho não tem intenção histórico-científica em sentido rigoroso. Voltado exclusivamente para a problemática atual e para a tarefa da ciência política, quer somente recordar a forma primeira dela, hoje quase desaparecida da consciência moderna. O autor está convencido de que tal ‘recordação’ pode ser uma orientação e uma ajuda para o trabalho atual”.22 O movimento de “reabilitação da filosofia prática” nasce em grande parte como reação ao modo moderno de conceber o conhecimento científico, e mais especificamente à idéia de que deve existir um paradigma científico, fundamentalmente teoré-tico, que deve ser estritamente respeitado por qualquer ramo do saber que aspire a uma categorização epistemológica. A história evolutiva do paradigma epistemológico moderno, pelo menos quanto às matérias morais e políticas, tem raízes em Descartes e Hobbes, e até se pode remontar à obra de Ockham. Mas, para nosso propósito, basta assinalar que, em geral, o alvo das críticas é a célebre tese da neutralidade axiológica (Wertfreiheit) da ciência, que teve em Max Weber um de seus expoentes. Esta tese proibia à política e, em geral, a toda e qualquer ciência prática exercer uma função orientadora e prescritiva da ação, porque isso impli-caria compromisso pessoal com juízos de valor, os quais, por sua natureza, não podem ser objeto de ciência. A ciência deve ser, ao contrário, objetiva, universal e, sobretudo, axiologicamente

 - Cf. mCAllister, T., Revolt Against Modernity. Leo Strauss, Eric Voegelin, and the

Search for a Postliberal Order, Kansas, University Press, 996; possenti, V., Le società

liberali al bivio. Lineamenti di filosofia della società, Perugia, Marietti, 99²; CrespiGny,

A. de, & minoGue, K. R., Contemporary Political Philosophers, New York, Dodd, Mead & Co., 975.

 - Política y filosofía práctica, versión castellana de Rafael Gutiérrez Girardot, Buenos Aires, Sur, 97, p. 7.

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 A Política em Aristóteles e Santo Tomás A Política em Aristóteles e Santo Tomás 

neutra. “O saber que orienta a moral”, escreve Franco Volpi, “transforma-se então no saber neutro das ciências do espírito, das ciências da cultura ou do homem. Sua consideração do agir se conforma ao ideal da objetividade e da universalidade descritiva do saber científico; a consideração prático-moral de outrora se transforma numa consideração teórico-constatadora e perde, assim, o conteúdo de verdade que lhe era próprio na tradição anterior [...]. A neutralidade descritiva se transforma, em determinado momento, num caráter imanente à razão, a qual, por isso, é progressivamente desapossada de seus conteú-dos substanciais e se desenvolve assim cada vez mais na direção da mera instrumentalidade e da mera funcionalidade. Sendo incapaz de orientá-la, ela perde sua importância para a vida.”2

Mas essa “contaminação” axiológica na ciência política, sobre-tudo de raiz aristotélica, suscitou não poucas réplicas no sentido de que esta abriria as portas a posições políticas concretas de tipo conservador.24 Mas ao “conservadorismo” de Aristóteles

voltaremos mais adiante. O que interessa, em todo o caso, é que para o Estagirita o propósito cognoscitivo na “filosofia das coi-sas humanas”, como ele mesmo chama a ética e a política, tem um fim que vai além do simples conhecimento. Diversas vezes assinala Aristóteles que a reflexão nestes assuntos se faz com o propósito de influir no comportamento humano. Não se trata aqui de uma compreensão livre de juízo valorativo, mas de uma compreensão que esteja em condições de servir à condução mes-ma da vida.25 Por outro lado, há uma interessante peculiaridade  - Volpi, F., art. cit., pp. 470-47.

4 - Cf. Berti, E., art. cit., p. 5. Segundo Berti, as críticas mais penetrantes ao neo-aristotelismo foram desenvolvidas por riedel, M., “Über einige Aporien in der praktischen Philosophie des Aristoteles”, em Rehabilitierung..., vol. I, pp. 79-97; hABermAs, J., “Über Moralität und Sittlichkeit. Was macht eine Lebensform ‘rational’”, publicado no vol. edita-do por H. Schnädelbach, Rationalität, Frankfurt-a.M., Suhrkamp, 984, pp. 8-. 5 - “[...] o fim da política não é o conhecimento, mas a ação” (Ética a Nicômaco, I, , 095 a 6). “[...] o presente tratado não é teórico como os outros (pois não investigamos para saber o que é a virtude, mas para ser bons, já que de outro modo seria totalmente inútil), temos de considerar o relativo às ações, como devemos realizá-las” (Ética a Nicômaco, II, , 0b 6 ss.). “Com razão se diz, pois, que praticando ações justas a pessoa se faz justa, e com ações morigeradas, morigerada. E sem praticá-las ninguém tem a menor possibilidade de vir a ser bom. A maioria, porém, não pratica essas coisas, mas se refugia na teoria e crê filosofar e assim poder vir a ser homens completos” (Ética a Nicômaco, II,

Referências

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