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É a realidade da literatura menos real

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Academic year: 2018

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(1)

É

IHGFEDCBA

A R E A L I D A D E D A L I T E R A T U R A M E N O S R E A L ~

yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

José C elio Freire*

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RE SU M O

E ste a r tig o tr a ta d a q u e stã o d a r e a líd a d e n a lite r a tu r a . se ja n o p r o c e sso d e c r ia ç ã o se ja n a o b r a c r ia d a , n a

te n ta tiva d e ve r , p a r a a lé m d a su b lim a ç ã o o u d a p r o je ç ã o , a c o m b in a ç ã o e n tr e r e a líd a d e p síq u ic a e r e a lid a d e

e xte r n a n o tr a b a lh o d o e sc r ito r .

P a la vr a s c h a ve : Re a lid a d e , r e a lid a d e p síq u ic a , p r o d u ç ã o lite r á r ia .

I S T J lE R E A L lT Y O F L l1 'E R A T U R E N O T S O R E A L ?

ABSTRAC T

Th is p e p e r c o n c e r n s th e q u e stio n o f th e r e a lity in tb e lite r e tu r e . in to c r e a tio n p r o c e ss a n d in th e w o r k

c r e e te d . lt in te n d s to se e , b e yo n d tb e su b lim a tio n a n d th e p r o je c tio n p r o c e ss, a kin d o i'c o m b in a tio n b e tw e e n p syc h ic a l r e a lity a n d e xte r n a I r e a lity in to th e w r ite r 's w o r k

K e y w o r d s: Re a lity, p syc h ic a l r e slity. lite r a r y c r e e tio n .

* Professor do Departam ento de Psicologia da UFC, aluno do Curso de Doutorado em Psicologia Experim ental - Questões Teóricas da Psicologia, do IPUSP, e bolsista do PICDT - CAPES/UFC.

Revista de PSicologia, fortaleza, V.150/2) V.16O/2) p.97 . p.103 jan/dez 1997/98 hna de Publlcocào 2000

(2)

Tem m e cham ado cada vez m ais a atenção a

psi-cologia que se esconde por trás da produção literária,

realçada pela m etateoria da escritura

CBA

I .Para longe de

um a justaposição falsa, a m eu ver, entre obra ficcional

e biografia do autor, consigo enxergar a m esclagem

possível entre realidades distintas na origem , m as

co-presentes na tessitura do texto, que são da ordem do

psíquico e do externo. Por um lado, adm ito a

irnpossi-bílidade de um a assepsia do ficcionista com relação às

sensações e percepções do m undo m aterial à sua

vol-ta, quer relativas ao presente ou a um passado vivido;

por outro, devo crer inevitável, para a criação m esm a,

a com posição de forças internas e a conseqüente

"per-cepção endopsíquica" destas forças no resultado

'fi-nal' da obra.

São-nos caros os exem plos na literatura, neste

m om ento rem etendo-m e aos nom es de Proust. Joyce e

Borges, em plano m undial, e de Guim arães Rosa e

M anoel de Barros no contexto brasileiro. As im agens e

as sensações já foram bastante analisadas em Proust,

assim com o o fluxo de pensam ento em Joyce e a

pro-dução fantástica de Borges. Rem eterei o leitor às suas

obras, em alguns m om entos, enquanto noutros utilizarei

parte delas para exem plíficar a discussão sobre a

inter-venção que sofre/opera o escritor da/na realidade,

quan-do quan-do processo de criação literária. Rosa m e ajudará na

com preensão de com o o artista pode falar de algo que

não está ali (na realidade), m as poderia, ou bem

pode-m os falar de algo que nunca estará ali, pois só possível

no am biente fantástico, m as que torna-se quase

palpá-vel. em Borges, por exem plo. Já o poeta M anoel de

Barros confronta-nos com sua agram ática, com a

rique-za da ignorância, com um pré-originário assim bólico.

Tentarei tratar desta im bricação entre realidade

psíquica e realidade m aterial, levando em conta o

pen-sam ento freudiano de

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D e lír io s e So n h o s n a C r a d iva d e J e n se n (1906-7)2, E sc r ito r e s c r ia tivo s e d e va n e id ...1 9 0 7 - .

8 ) 3 'e O e str a n h o ' (1919)4. Estarei, assim , explorando a relação Ativo-Passivo diante da Realidade, terceiro

eixo de análise da questão da realidade em Freud''

(Co-elho Jr., 1995), que foi a tem ática desta disciplina.

Desejo, todavia, deixar clara a existência de dois

níveis de análise que, a m eu ver, se inrerpenetram . Falo

do processo criativo, de um lado, e da obra criada, de

outro. Em alguns m om entos, ao tratar do com o a

es-critura é gerada, m e reportarei a excertos das obras.

Noutros, abordando a construção realizada pelo

es-critor sobre um personagem ou tem a, estarei

inevita-velm ente supondo um a m ente criadora que opera de

um a m aneira presum ida. Em sum a, esta lim itação do

m eu texto talvez seja o cam inho para um a m elhor com

-preensão futura.

A questão que se coloca

o

que é m ais real. a vida ou a literatura? Fala-nos a arte de um a realidade anterior a qualquer

representabilidade? Quando lem os um poem a não

conseguim os repr oduzi-Io, ou m elhor, podendo

rnernorizá-lo na íntegra, não conseguim os no

entan-to transm itir as em oções e sentim entos que nos

pro-voca. M as cada vez que dele lem bram os tais

senti-m entos em ergem de não se sabe que lugar, às vezes

de form a ainda m ais intensa. E tam bém ao outro cabe

a experiência de seus próprios sentim entos. Que

di-zer de um livro lido e que ao ser lem brado traz-nos

não seu conteúdo, às vezes distorcido, m as o lugar

em que o lem os e os sentim entos naquele m om ento

sentidos, com o o diria Prousr"? Onde a fantasia, onde

a realidade? No m eu entendim ento a experiência de

I Entendo por "m erateoria da escritura" as tentativas de explicação ou explicitação do processo criador.

2 Sigm und Freud. (1906[7)) Delírios e Sonhos na G r a d iva de Jensen. Vol. IX da Coleção Standard das

Obras Com pletas de S. Freud. Rio de Janeiro, lrnago. 1976. Pp. 12-98.

3 (1907[ 1908)) Escritores criativos e devaneio. Volum e IX da Coleção Standard das

Obras Com pletas de S. Freud. Rio de Janeiro. Irnago. 1976. Pp. 145-158.

4 __ -,- __ - = -(1919) O 'Estranho'. Vol. XVII da Coleção das Obras Com pletas de S.Freud. Rio de

Janeiro.lm ago. 1976. Pp. 271-314.

6 De fato Proust defende esta tese em "Sobre a leitura".

5 Nelson Coelho Jr .. A força da realidade na clínica freudiana. São Paulo. Escuta. 1995.

(3)

nós leitores é pura realidade, por m ais ficcional que

seja o texto.

Na sua

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Bu sc a / Proust não se furta a indicar a

literatura com o "a verdadeira vida". No U lisse ? J o yc e

aproxim a a palavra escrita da palavra falada e da

coi-sa pencoi-sada. A literatura fantástica de Borges faz o

pen-sado tom ar ares de verdade, num a tangibilidade

ca-paz de surpreender o leitor m enos prevenido. Rosa

fala-nos de um sertão que existe dentro de um outro

que inexiste ou vice-versa. A poesia de Barros resiste

aquém do norneável. no instante em que o poeta

percebedor e a natureza percebida são indestinguíveis,

um a e a m esm a coisa - o hom em , o bicho, a planta,

as águas, a terra ...

Entretanto estou a falar das produções e não

do processo criador. Nesse outro n íve l de análise, com o já alertei na parte anterior, com o se dá a

rela-ção com a realidade? Ao tratar da questão da

reali-dade a Psicanálise aborda principalm ente a

distin-ção entre a realidade psíquica e a realidade m aterial.

Diz-se, de outro m odo, realidade interna e

realida-de externa, o que tem o m érito de não subtrair o

estatuto de real àquilo que ocorre no psiquism o

hu-m ano. Contudo, persiste a dicotom ia, a separação e

a idéia de um a alteração im posta pela prim eira em

relação à segunda. M esm o que para o escritor,

dife-rentem ente do neurótico, esta alteração seja

enten-dida com o criação, com o ação sobre a realidade, e

não com o distorção da realidade insuportável.

ain-da vigora um certo juízo valorativo a favor da dita

"realidade externa". Trata-se do "eixo

ativo-passi-vo " trabalhado por Coelho Jr. em seu livr o sobre a

realidade na psicanálise". O escritor, em seu

traba-lho, estaria interferindo ativam ente sobre a

realida-de. Não sim plesm ente negando-a em parte, com o

faz o neurótico, ou criando um a n o va e interna rea-lidade, na psicose, m as agindo na realidade externa

através do produro de sua arte.

Todavia Freud (1907-8) va i m ais longe em sua

análise dos escritores c r ia tivo s. Diz ele:

7 M areei Proust.

IHGFEDCBA

E m busca do tem po perdido. 7 volum es. Globo, 1976.

8 Jam es Joyce. Ulisses. Civilização Brasileira. 1982.

U m a p o d e r o sa e xp e r iê n c ia n o p r e se n te d e sp e r -ta n o e sc r ito r c r ia tivo u m a le m b r a n ç a d e u m a e xp e r iê n c ia a n te r io r (g e r a lm e n te d e su a in flin -c ie ), d a q u a l se o r ig in a e n tã o u m d e se jo q u e e n c o n tr a r e a liza ç ã o c r ia tiva . A p r ó p r ia o b r a r e -ve la e le m e n to s d a o c a siã o m o tiva d o r a d o p r e -se n te e d a le m b r a n ç a a n tig a (p.156).

E m ais adiante:

A ve r d a d e ir a e r s p o e tic e e stá n a té c n ic a d e su -p e r a r e sse n o sso se n tim e n to d e r e p u lsa , se m d ú -vid a lig a d o à s b a r r e ir a s q u e se p a r a m c a d a e g o : d o s d e m a is. ( . .)

O

e sc r ito r su a viza oc a r á te r d e se u s d e va n e io s e g o ísta s p o r m e io d e a lte r a ç õ e s e d isfá r c e s, e n o s su b o r n a c o m op r a ze r p u r a -m e n te fo r m a l isto é , e sté tic o , q u e n o s o fe r e c e n a a p r e se n ta ç ã o d e su a s fá n ta sia s. ( ..) Ta lve z a té g r a n d e p a r te d e sse e fe ito se ja d e vid o à p o s-sib ilid e d e q u e oe sc r ito r n o s o fe r e c e d e , d a li e m d ia n te , n o s d e le ita r m o s c o m n o sso s p r ó p r io s d e

-ve n e r e s . se m a u to -a c u sa ç õ e s o u ve r g o n h a

(p.158).

Tem os aqui, parece-m e, nada m ais que a arte

com o substituto do sintom a. O escritor, vítim a de im -pulsos irresistíveis de am bição ou eróticos, canaliza

seus desejos para obras aceitáveis. Entende-se,

as-sim , que a realidade é maleável. perm ite transform a- .

ções, e que o artista não renuncia ao prazer, m as

efe-tua substituições para que a pulsão encontre objeto

de realização. Além disso, proporciona aos seus

lei-tores a possibilidade de experim entar, "por tabela",

suas próprias fantasias.

M as o que dizer de obras onde não se pode falar

de um a "sublim ação" no sentido psicanalítico, pois não

há um a substituição de desejos inaceitáveis por outros

aceitáveis? De obras que foram rechaçadas quando

escritas, algum as chegando às raias do tribunal com o

U lisse s, outras sendo recusadas para publicação por

9 Os dem ais eixos tratados pelo autor são: "Signo de realidade ou a possibilidade de um a representação verdadeira da realidade". "Fuga da realidade e fuga para a realidade" e "Realidade Externa e Realidade Psíquica".

99

(4)

seu teor obsceno com o a

ponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Re c h e r c h e i'? O conteúdo

da criação nada teria a ve r com o ato criador?

IHGFEDCBA

R e a l i d a d e n a f a n t a s i a

Voltem os àquestão colocada anteriorm ente: onde

se encontra a realidade e a fantasia na obra literária?

Podem os dizer que é necessária um a boa dose de

rea-lidade para se fazer um a boa ficção? Ou que toda

fan-tasia é da ordem da realidade, seja ela um a realidade

psíquica ou não?

Não se pode fugir à constatação de que há algo

de biográfico em toda ficção. Parece-m e que não foi à

toa que o personagem -herói da Re c h e r c h e foi nom

ea-do por M areeI. Contudo aquela obra não é a

autobio-grafia de Proust. O m esm o para U lisse s, em bora um

dos personagens, Stephen Dedalus (Telêm aco) possa

ser visto , no seu livr o anterior, com o um auto-retra-to!' .Ta lve z possam os dizer que o escritor entra e sai da escritura, que a vida do autor não explica a obra,

m as que a obra sem esta vida não teria sido possivel/ .

De outro lado existe o que Freud cham ou de

"percepção endopsíquica". e que seria m ais elaborada

no artista. Ou seja, o artista estaria m ais afinado com

suas disposições internas, seus desejos, suas pulsões,

m esm o que de form a não representacional. Assim ,

dando form a a essas pulsões, poderia "alucinar" de

form a sadia, não perdendo contato com a realidade.

Um exem plo disto poderia ser a parte do texto de Joyce

onde Leopold Bloom incorpora vá r io s seres distintos e participa de várias situações delirantes, ilusórias ou

alucinantes 13. O autor deixou que sua personagem

alucinasse àvontade, m as ele continuou com os pés na

realidade. Persistem os níveis da elaboração artística

-onde haveria um esforço consciente do escritor para

trabalhar com elem entos buscados tanto em sua

reali-dade psíquica quanto na externa - e da obra realizada

- em que o artista pôde descrever eficientem ente um

psiquisrno, um a fantasia ou um sentim ento, e que tem ·

o poder de tocar o nosso psiquism o, as nossas fantasias

e os nossos sentim entos. Com o venho entendendo, o

trabalho criador se dá no âm bito da realidade, apesar

de lidar com a fantasia; a obra criada. m esm o que pura

ficção, interfere na realidade.

Em

CBA

B o r g e s ! " , tem os o encontro m ágico dele

con-sigo m esm o, quando m oço, num banco de praça:

M e io sé c u lo n ã o p a ssa e m vã o . So b n o ssa c o n

-ve r sa ç ã o d e p e sso a s d e le itu r a m isc e lâ .n e a e d e

g o sto s d ive r so s, c o m p r e e n d i q u e n ã o p o d ía m o s

n o s e n te n d e r . É r a m o s d e m a sia d o d ife r e n te s e

d e m a sia d o p a r e c id o s. N ã o p o d ía m o s n o s e n g

s-n e t; o q u e to r n a o d iá .lo g o d iflC /!. C a d a u m d e n ó s d o is e r a o a r r e m e d o c sr ic stu r e sc o d o o u tr o .

A situ a ç ã o e r a a n o r m a l d e m a is p a r a d u r a r m u ito

m a is te m p o .

Ac o n se lh a r o u d isc u tir e r a in ú til p o r q u e se u in e

-vitá .ve l d e stin o e r a se r o q u e so u . ( . .) O e n c o n

-tr o fo i r e a l, m a s o o u -tr o c o n ve r so u c o m ig o e m

u m so n h o e fo i a ssim q u e p u d e m e e sq u e c e r . E u

c o n ve r se i c o m e le n a vig l1 iae a le m b r a n ç a a in d a

m e a to r m e n ta .

O o u tr o m e so n h o u , m a s n ã o m e so n h o u

ngoro-sa m e n te . (O Outro em "O Livr o de Areia", p.24).

10 A obra de Joyce subm eteu-se a julgam ento nos EUA, sendo absolvida após um a verdadeira crítica literária do J U I Z . Em suas m ais de oitocentas páginas podem os encontrar m om entos de forte erotism o beirando o obsceno com o no solilóquio de M olly Bloom (Penélope) -Parte 111- ostos. "Em busca do tem po perdido" traz cenas tam bém "inapropriadas" para a época de sua publicação, com o as que

descrevem as relações sado-rnasoquistas do barão de Charlus. .

I I Personagem central de "Um retrato do artista quando jovem " de 1916, portanto anterior ao Ulisses de 1921. Editado no Brasil pela Siciliano (1992).

12 Aqui m e sirvo da discussão em sala de aula e de com entários diretos do Prof. Dr. Nelson Coelho .Ir.. correndo o risco de não lhe ser fiel, o que justificaria o não uso das aspas. Sua fala referia-se a M erleau-Ponty em "A dúvida deCézanne". na disciplina "Problem as Filosóficos

nas Teorias Psicológicas I: percepção e realidade na psicanálise freudiana", do Program a de Pós-Graduação em PSicologia Experim ental do IPUSP. durante o segundo sem estre de 1997.

13 Jam es Joyce em "Ulisses": Parte 11- Odisséia, Episódio 15 - Circe. Cena - O bordei, Hora - 24, Órgão - Aparelho Locornotor. Arte -M ágica, Sím bolo - Puta, Técnica - Alucinação (p.485 a 633).

14 Jorge Luis Borges. Livro de Areia.

(5)

Um encontro possível. sim , m as fantástico.

Reali-dade e fantasia im bricadas.

CBA

A poesia traz ainda um a dim ensão de realidade m ais revolucionária, principalm ente quando se põe

antes da linguagem , num a gram ática outra que não a

da convenção da língua. Com o em Barros!":

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N o d e sc o m e ç o e r a o ve r b o

Só d e p o is é q u e ve io o d e lír io d o ve r b o

o

ve r b o te m q u e p e g a r d e lír io (Um a dialética da invenção, p.15)

Noutro m om ento:

Ac h o q u e o n o m e e m p o b r e c e u a im a g e m

(Um a dialética da invenção, p.25)

E a realidade supera a fantasia:

O u a n d o o r io e stá c o m e ç a n d o u m p e ixe ,

e le m e c o isa

E /e m e r ã

E le m e á r vo r e (M undo Pequeno, p.75)

Para Freud. portanto, esta "realidade fingida"

(Fingierten R e a lit a r ) . "realidade poética" (Poetischen

Realitat). não seria redutíve] à realidade psíquica, já

que esta é um a zona nebulosa entre realidade e

fanta-sia. Contudo, se o ato criativo do escritor não é fruto

sim plesm ente de seu m undo psíquico, não se pode

deixar de perceber, segundo Freud, sua habilidade em

tratar dessa realidade através de seus personagens. Em

seu estudo sobre a C r a d iva de Jensen, Freud coloca:

D ize m q u e u m a u to r d e ve r ia e vita r q u a lq u e r

c o n ta to c o m a p siq u ia tr ia e d e ixa r a o s m é d ic o s a

d e sc r iç ã o d o s e sta d o s m e n ta is p a to ló g ic o s. A ve r /

d e d e , p o r é m , é q u e o e sc r ito r ve r d a d e ir a m e n te

c r ia tivo ja m a is o b e d e c e a e ssa in ju n ç ã o . A d e

s-c r iç ã o d a m e n te h u m a n a é , n a r e a lid a d e , se u

c a m p o m a is le g ítim o ; d e sd e te m p o s im e m o r ia is

e le te m sid o u m p r e c u r so r d a c iê n c ia e ,

porten-to , ta m b é m d a p sic o lo g ia c ie n tífic a . M a s o lim ite

e n tr e o q u e se d e sc r e ve c o m o e sta d o m e n ta l

15 M anuel de Barros. O Livro das Ignorãças.

n o r m a l e c o m o p a to ló g ic o é tã o c o n ve n c io n a l e .

tã o va r iá ve l, q u e é p r o vá ve l q u e c a d a u m d e n ó s

o tr a n sp o n h a m u ita s ve ze s n o d e c u r so d e u m

d ia (p.50)

Está assim colocada, para m im , a significação do

estudo psicológico da produção literária, do ato de cri,

ar e das obras criadas, o que m otivou esse trabalho,

em especial.

A literatura fantástica teve seu m om ento de

aná-lise por Freud e m

O

'E str a n h o :

O

H o m e m d e Ar ú ~

de Hoffm ann, analisado por Freud. e O Livr o d e Ar e Ia

de Borges nos servirão de exem plo. A tese básica de

Freud, naquele m om ento, é a de que a experiência do

estranho advém da "cornpulsão à repetição". Em ou'

tras palavras, o estranho tem a ver com o fam iliar,

po-rém oculto, reprim ido. Isso explicaria, para ele, a

am bivalência do term o 'estranho', sabiam ente captu,'

rada por Schelling, com o o que deveria ter perm aneci,

do secreto m as veio à tona. Neste caso, U n h e im lic b .

sinistro, é h e im /ic h - fam iliar, porém secreto, oculto.

Freud diz:

E m p r im e ir o lu g a r , se a te o r ia p sic a n a lític a e stá

c e r ta a o su ste n ta r q u e to d o a fe to p e r te n c e n te a

u m im p u lso e m o c io n a l, q u a lq u e r q u e se ja a su a

e sp é c ie , tr e n sio r m e -se . se r e p r im id o , e m sn sie

-dede,

e n tã o , e n tr e o s e xe m p lo s d e c o isa s e ssu s-te d o r e s, d e ve h a ve r u m a c a s-te g o r ia e m q u e o e le /

m e n to q u e a m e d r o n ta p o d e m o str a r /se se r a lg o

r e p r im id o q u e r e to m a . E ssa c a te g o r ia d e c o isa s

a ssu sta d o r a s c o n stitu ir ia e n tã o o e str a n h o ; ( . .) se

é e ssa , n a ve r d a d e , a n a tu r e za se c r e ta d o e str e

-n h o , p o d e /se c o m p r e e n d e r p o r q u e o u so .

lin g ü ístic o e ste n d e u d a s H e im lic h e [ 'b o m e lv'

(d o m é stic o , 1 8 m lfla r ')} p a r a o se u o p o sto , d a s

U n h e im lic h e (p á g .2 8 3 ); p o is e sse e str a n h o n ã o

é n a d a o u a lh e io , p o r é m a lg o q u e é fa m d la r e h á

m u ito e sta b e le c id o n a m e n te , e q u e so m e n te se

a lie n o u d e sta e tr e vé s d o p r o c e sso d a r e p r e ssã o . (p.300, I)

Freud dirá m ais além que as praticas m ágicas

têm lugar quando da extinção da distinção entre

fanta-sia e realidade, onde ocorre um a supervalorização da

(6)

realidade psíquica em detrim ento da m aterial. Estaria

no plano da onipotência do pensam ento, típica da

m ente infantil. Porém , ao tratar da literatura, Freud

sublinhará que esta não se subm ete ao "teste de

reali-dade", portanto seu conteúdo não parece estranho ao

leitor.

CBA

É o que vem os em Borges no conto O

ponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Livr o d e Ar e ú i (do livro hom ônim o):

D isse q u e se u livr o se c h a m a va o Livr o d e Ar á a ,

p o r q u e n e m o livr o n e m a a r e ia te m p r in c íp io

o u fim . ( p . 1 2 5 )

Naquele conto o personagem que adquiriu o

li-vro, sem pre que tom ava a prim eira página, outras se

interpunham entre esta e a capa, o m esm o

acontecen-do para a últim a. A num eração não tinha ordem . O

livro sem pre se renovava. Quanto m ais era m

anusea-do m ais apareciam novos conteúdos e gravuras. Ora,

tal livro, im possível na realidade, tornou-se 'palpável'

na fantasia, a ponto do leitor poder com preender a

estranheza do personagem sem experim entá-Ia de fato.

M as de onde nasceu a construção do estranho pelo

autor? De seu m undo psíquico, de suas pulsões e

dese-jos, de seus recalques? Ou de um exercício de

cons-trução textual onde im agens 'inéditas' tornam -se

pala-vras? E onde as palavras são sucessivam ente buriladas

para chegar ao efeito desejado pelo autor.

A m eu ver, o "livro de areia" é um a invenção

para a qual devem ter colaborado as fantasias do

escri-tor. M as junto deste produto 'inventado' há um

perso-nagem que experim enta a sensação do "estranho", e

que nem é o autor nem sou eu, o leitor. É outra 'inven-ção', m as tais invenções interagem com o leitor na

rea-lidade da leitura. Um a leitura freudiana talvez pudesse

dizer que o personagem estaria subm etido às forças

inconscientes de desejos onipotentes. Ter "o livro sem

com eço nem fim " seria com o ser eterno, onipotente,

onisciente e onipresente, ser deus em sum a. Seria um a

descrição legítim a do personagem , m as poderia sê-Io

do autor?

IHGFEDCBA

P a r a a l é m d a s u b l i m a ç ã o

A discussão freudiana nos rem ete sem pre para o

tem a da sublim ação. Todavia, tal explicação não m e

satisfaz. A m eu ver o ato criador não se vincularia

ape-nas ao que se repete, ao sintom ático. Aliás, podem os

ver a repetição com o aquilo que gera a diferença,

dife-rença esta que explicaria a novidade da obra, seu

po-der im pactante, sua especificidade. sua singularidade.

"Repetir, repetir até ficar diferente" já nos disse Barros.

Assim , o artista não estaria preso ao sintom a m as

aber-to às possibilidades que este im plica. Por isso não

en-tendo que, de form a linear, a biografia do autor

expli-que sua obra.

Sublim ar enquanto canalizar pulsões para

obje-tos aceitáveis, por exem plo através do trabalho

artísti-co, não explicaria obras que foram num prim eiro m

o-m ento abom inadas e tiveram proibida sua publicação.

E, apesar de Freud entender este processo com o um as

das form as de se atingir o equilíbrio entre prazer e

desprazer, ele "não tinha absoluta certeza de que a

sublim ação pudesse garantir plenam ente a vinculação .

com a realidade{Coelho

.Ir..

p.67).

A projeção seria outra explicação fácil, m as com o

justificar toda a construção m atem ática de U lisse s, se-não por um trabalho árduo e consciente? Com o ler

M anuel de Barros sem esforçar-se por despregar-se

das significações usuais das palavras e das regras

gra-m aticais convencionadas? Com o com preender o

ser-tão de Rosa sem deixar de se lim itar à geografia e à

antropologia das Geraes. adm itindo que os dicionários

o auxiliaram tanto quanto as cadernetas de notas que

usava nas com itivas de boiadeiros? Com o dar conta da

Bu sc a de Proust, sem se perm itir cair no engodo de ver

na hom ossexualidade retratada em Albertine o Inverso

de seu hom oerotism o?

Tornar sublim e o que é vil ou pôr no outro - na

personagem , na obra - o que é do autor, são explica-.

ções que m e parecem não dar conta efetivam ente do

ato criador. Isso não im pede, contudo, que possam os

pensar a escritura com o um a construção decorrente

da fantasia tanto quanto da realidade. Ou que

enten-dam os o autor com o aquele que co.nsegue criar a partir

de elem entos de sua realidade psíquica e da

realida-de externa, concom itantem ente. Alguém que

conse-gue perceber, conscientem ente ou não, desejos e

angústias, seus e alheios, e, forrnatando-os diferentem

en-te, pela com posição com elem entos retirados de seu

cotidiano e de tipos reais (de quem reúne traços de

uns e de outros para form ar um só personagem ),

ela-bora cenas, enredos e desfechos singulares. M as tais

histórias já não são redutíveis aos elem entos

originári-os da biografia do autor - não são m eras 'sublim

a-ções' ou 'projeções'.

Freud nos ensinou m uito sobre a im portância

econôm ica dos sonhos e dos devaneios, no psiquism o

hum ano. Os escritores parecem que com preendem ,

m esm o sub-repticiarnente. esta form ação que

descre-vem tão bem através de seus personagens. Os leitores

som os agraciados com a possibilidade de adentrarm os

a fantasia criada pelo escritor e, de m uitas m aneiras,

(7)

vivenciarm os as nossas próprias. Restaria saber o que

faz com que uns tenham esta 'sensibilidade' m aior para

gerir a fantasia, não de m aneira a escapar à realidade,

m as transform ando esta realidade definitivam ente.

Se-ria o m ero esforço, além do interesse pela escrita, e a

persistência? Alguém já disse que pouco se deve à

ins-piração e quase tudo à transpiração. M anuel de

Bar-ros, ao ser indagado sobre sua inspiração, falou que a

m aior parte do que faz é invenção e o restante é m

en-tira m esm o.

Ao lerm os relatos biográficos de autores com o

Proust e Joyce vam os encontrar anos e anos de

pre-paro de seus rom ances fundam entais. Têm em

co-m uco-m , tam bém , o fato de seus livros terem sido

de-senvolvidos a partir de 'protótipos' -Jeen

ponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Sa n te u ile m

relação a E m Bu sc a d o Te m p o P e r d id o , em Proust, e

U m Re tr a to d o Ar tista Q u a n d o J o ve m para com

U lisse s, em Joyce.

CBA

É sabido que a escritura é um pro-cesso de construção e reconstrução sem fim , o que

faz com que o final de um rom ance seja algo

arbitrá-rio. Isto serve para nos convencer do quanto é

traba-lho, e trabalho árduo, a escritura. A im agem de

al-guém que recebe a inspiração do alto, do além , do

fundo d 'alm a, é m ais um m ito que a realidade do

es-critor. Isso nos torna m uito parecidos com eles,

fa-zendo a diferença o interesse por esse tipo de

traba-lho e o prazer de fazê-lo que supera os obstáculos.

Isso nos traz de volta ao eixo ativo-passivo

di-ante da realidade. O escritor, a m eu ver, é um agente

ativo frente quer à sua realidade interna quer à

reali-dade externa. Talvez, nesse sentido, possam os falar

que a realidade da literatura é tão real quanto a

rea-lidade da vida. Proust foi m ais longe dizendo que "a

verdadeira vida, a vida digna de ser vivida, é a

litera-tura". Serei m enos am bicioso e m ais parcim onioso:

o produto da literatura é duplam ente real. Prim eiro,

por provir e tratar da realidade psíquica, onde até

m esm o a fantasia tem de ser encarada com o dado

real. Segundo, por intervir na realidade externa m

es-m a, coes-m o um produto acabado ou com o um

instru-m ento de suspeição, de questionam ento e de

propo-sição de algo distinto.

Obviam ente ao falar de literatura não m e refiro

aos livros de fácil 'digestão'. Se bem que não seja fácil

dar cabo das três m il páginas da Re c h e r c h e proustiana,

ou engalfinhar-se com os neologism os, as aliterações,

as onom atopéias, a ausência de pontuação etc. do

U lisse s joyceano, a diferença é que não se sai incólu-m e desta leitura. E tais obras pedem para ser lidas

no-vam ente. Que peso tem sobre nós a leitura do verso

"as coisas que não existem são m ais bonitas" ou "as

coisas que não têm nom e são m ais pronunciadas por

crianças" (de Barros)?

Ao acom panharm os o périplo de Bloom ,

duran-te o dia 16 de junho de 1904, nos deparam os com o

banal, com o sórdido, com o pequeno, com o visceral.

Ora, esse anti-Ulisses pode ser encontrado em qual-:

quer hom em a qualquer m om ento. Onde a fantasia,

onde a realidade? Ao viverm os a juventude de M areei

quantas vezes não nos confrontam os com a m entira, a

hipocrisia, a prepotência, a inveja, o m edo, o ciúm e?

Onde a fantasia, onde a realidade? Nos bois que

fa-lam e sentem do Rosa e no poeta que se confunde

com a natureza em Barros, onde a fantasia, onde a

realidade? Na linda m ulher im aginada que habita

so-nhos e devaneios de um conto borgeano, onde a

fan-tasia, onde a realidade?

É desta 'alucinação saudável' que estive falando todo o tem po. Desta capacidade que tem a realidade,

psíquica ou não, de se refazer continuam ente com as

novas experiências e de poder ser redescrita. Da

possi-bilidade de se tratar do desejo (realidade interna,

psíqui-ca) e do social (realidade externa, m aterial), ao m esm o

tem po, que a literatura perm ite. Dessa form a o escritor,

m ais que autor, passa a ser ator diante da realidade.

IHGFEDCBA

R e f e r ê n c i a s B i b l i o g r á f i c a s

BARROS, M anuel de.

O

Livr o d a s lg n o r é ç e . Rio de

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S. Freud. Rio de Janeiro, Irnago. 1976. Po.

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Referências

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