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Latusa digital ano 5 N 33 junho de 2008

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Latusa digital – ano 5 – N° 33 – junho de 2008

As dependências patológicas

*

Carlo Viganò

**

Somente há pouco tempo o tema da dependência assumiu uma configuração clínica no âmbito da saúde mental

1

. A ênfase se deslocou da substância – na Itália o protótipo foi a heroína – para a personalidade do sujeito que abusa dela. Ao mesmo tempo em que as substâncias se multiplicam de modo exponencial e tornam evidente a homogeneidade com a sociedade de consumo, nota-se uma certa uniformidade na história dos sujeitos, que aparece como a história de uma interrupção no desenvolvimento, no limiar do tornar-se adulto. Ou seja, quando o sujeito deve decidir por uma identidade de gênero, por uma forma de gozo, ele empaca tal como um jumento, e então a substância, qualquer uma, começando pelo alimento, torna-se seu universo de referência, um tipo de realidade substitutiva.

Trata-se de uma clínica que não tem uma clara correspondência com as estruturas terapêuticas, tanto que, para aceitar alguém em tratamento, se recorre ao artifício de um “duplo diagnóstico”. Até pouco tempo, prevalecia a concepção estritamente sociológica de comportamento desviante (concepção moral), à qual se opôs, em primeiro lugar, o movimento de origem protestante dos AA, reivindicando para o alcoolismo o termo doença.

Devemos acrescentar que nos últimos anos a dimensão clínica está passando por um fortíssimo redimensionamento num sentido reducionista,

* Texto veiculado no site http://www.forumpsi.it/chi_siamo.php.

** Analista Membro da Escola – AME. Membro da École de la Cause Freudienne (ECF); da Scuola Lacaniana de Psicoanalisi(SLP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).

1Ver: Caretti e La Barbera, Le dipendenze patologiche, Raffaelo Cortina. Eu reciso fazer esta nota

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que resolve o tradicional dualismo mente-corpo com a equação mente=corpo. Em conseqüência, perde-se também o sentido da palavra clínica, que indica o saber extraído da observação ao pé do leito – Kliné – do paciente, caso por caso. O lugar da observação se desloca do leito, portanto do corpo vivente e que sofre, para o computador que recebe todos os dados dos exames. Em outros termos, a equação médica mente=corpo está empenhada em uma pesquisa, no corpo, dos indicadores correspondentes ao sofrimento ou ao gozo, dos quais o sujeito desse corpo poderia se lamentar.

O fato de o corpo estar sendo examinado em laboratório e não mais auscultado no leito, produz uma grande distorção que está na base das contradições dessa clínica. Trata-se de uma segunda equação médica, que reforça a primeira, embora seja mais difícil de apreender, isto é:

corpo=carne. Embora se possa dizer que a equação médica mente=corpo seja propriamente um produto da clínica psicanalítica, a equação corpo=carne não é outra coisa senão um modo de renegar a primeira. Se o corpo chega a falar e a pensar, é porque houve um trabalho de subjetivação, de apropriação da carne para fazer dela um sujeito por meio de uma identificação. Trata-se daquilo que Freud descreveu como trabalho do luto, que está na base da passagem do narcisismo à relação de objeto.

Quando isso não acontece, o sujeito precisa tornar objeto qualquer coisa extraída de sua própria esfera, isto é, de sua imagem. Veremos adiante que a substância, objeto do mercado, é funcional para tornar, ilusoriamente, a própria imagem equivalente a um objeto real.

A psicologia acadêmica se esforça para situar a dependência patológica como doença. De fato, o tratado acima citado diz que a droga “tem como alvo principal a mudança da percepção de si e do ambiente circundante, que devem servir para modificar o estado de consciência comum, cujo mal- estar e sofrimento não podem ser regulados de outra forma”

2

. A alteração do estado de consciência é também o que os poetas e artistas procuravam, particularmente na época surrealista. Contudo, essa raiz cultural que queria se prover do uso ritual da droga em certas práticas mágicas ou religiosas,

2Ver : Caretti e La Barbera, Le dipendenze patologiche, Raffaelo, p. IX.

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nada explica quanto à clínica atual da dependência. Na psicologia, falta a categoria de corpo como equivalente psíquico, como subjetivação da carne.

Na medicina, ao contrário, falta a idéia de que nem toda carne vivente que se submete aos testes de laboratório faz parte do corpo de um sujeito.

A fim de se orientar, a concepção hoje dominante da psicopatologia recorre a uma projeção do sujeito sobre a cena social, fundamentada na objetivação dos comportamentos e seus desvios estatísticos da normalidade (DSM). Isso, porém, é uma orientação anti-clínica, que conduz a tratamentos do tipo cognitivo-comportamental, que não incidem sobre a subjetividade, mas, ao contrário, contribuem para cancelar sua sensibilidade ética. O que é foracluído é a idéia freudiana de patologia como condição do viver civil. O sujeito é causado pela linguagem, depende dela, que há de melhor para ele pois assim poderá tornar-se sujeito. Essa condição de dependência da cultura, da ordem simbólica, comporta uma renúncia ao gozo. Substituir a coisa pelo significante obriga o homem a uma busca da satisfação que renuncia ao gozo direto da coisa e segue as vias do discurso: a demanda, a mediação do Outro. É o mal-estar na civilização que toma, na história particular de cada um, as formas do sintoma neurótico, o compromisso entre renúncia pulsional e satisfação por meio de objetos parciais, ou as formas do absoluto psicótico: a recusa da mediação do Outro, a satisfação alucinatória ou a passagem ao ato.

A via do sintoma é uma longa construção que advém nos dois tempos previstos no desenvolvimento sexual do ser falante. O primeiro, referido à sexualidade infantil e ao seu período de latência; o segundo, que implica também em como se desenvolveu o primeiro tempo, chamado o da educação – da pulsão, com transferência sobre o saber –, referido à sexualidade adulta, sintomática. Vemos agora que o sintoma é uma estrutura necessária, ainda que sua forma seja contingente, e que a função de norma é a do simbólico como tal – a lei, paterna ou edípica.

Para o psicanalista, o sofrimento que freqüentemente acompanha certo

sintoma não está relacionado à patologia, ao pathos da incidência do

significante, mas a seu êxito, no que concerne ao discurso do sujeito, ao

fato de o sintoma criar para ele, um a um, um vínculo social satisfatório.

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Quando o sintoma não estrutura uma coincidência – significado etimológico de sintoma –, coincidência comunicativa, mas isola o sujeito tornando-se insuportável, gerando angústia, pode então ocorrer um pedido de ajuda.

Digo “pode”, porque sabemos o quanto isso é problemático em muitos casos de psicose, quando o sujeito está fora do discurso, nos casos de neurose, em que o sujeito é vítima da própria fantasia, e também nas dependências, em que devemos considerar esse aspecto como uma nova forma social da inibição.

A dependência patológica é, portanto, uma forma de inibição pela qual o sujeito não chega a autorizar-se a fazer da carne o lugar de uma identidade sexual, de um desejo que lhe dê um “corpo próprio”.

Devemos situar a clínica das dependências no que diz respeito a essa visão da clínica como questão da comunicação humana – apenas por brevidade não falo aqui da perversão. Acrescento imediatamente que a clínica do sujeito não se opõe ao conhecimento neurobiológico, ao contrário, o integra, caso consideremos o critério segundo o qual a causa científica, universal, de um fato bioquímico, entra em ressonância com o fato particular dos efeitos de significação – a produção do sujeito –, conforme os modos da plasticidade já conhecida em genética. Plasticidade entendida aqui como o êxito feliz de um encontro entre duas faltas: a do nível universal com a do particular. Ao invés disso, quem se opõe a essa plasticidade não o faz em nome das leis científicas, mas da própria necessidade de não se querer saber do sujeito e da comunicação no tratamento. Em outros termos, o biologismo é uma defesa social diante do operador do real do sofrimento. Se quiséssemos nos limitar à causalidade do tipo científico, química e comportamental, eu poderia parar aqui, porém devemos saber que assim contribuiremos seja para anular a questão ética que a clínica comporta, seja para transformar a sociedade em um campo de concentração ou em um conjunto desses campos.

Devemos a Freud a primeira intuição do lugar clínico ocupado pelas

dependências, quando, ao abordar o mal-estar da civilização, ele deu o

exemplo da droga, no caso a morfina, como uma solução alternativa à

construção do sintoma neurótico. Não se trata de uma recusa total do Outro

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da mediação simbólica, como na psicose, mas apenas no que diz respeito às satisfações mais ligadas ao corpo, e por isso à responsabilidade de fazer dele objeto de desejo sexual.

Essa maneira de dizer a parcialidade da recusa é minha, pude fazê-la a partir da coincidência extensamente provada pela clínica, entre a insurgência das práticas específicas da dependência e o fim da latência sexual. Latência que é muitas vezes prolongada de modo desmedido pelo próprio sujeito.

A adolescência com sintoma

O tempo de latência assinala uma escansão, uma descontinuidade entre o tempo infantil da vida sexual e o de “adulto”. Geralmente, é acompanhado da transformação puberal – precedida pela maturação dos caracteres sexuais secundários, aqueles que estão referidos à imagem, ao corpo como ideal –, isto é pelo somático da fertilidade. Trata-se de um salto de qualidade, que Freud estigmatiza como a saída do complexo de Édipo. O que isso quer dizer?

Para a criança, a satisfação é obtida por meio de objetos pulsionais, objetos parciais ligados à relação com a mãe, extraídos do corpo da criança e capazes de compensá-la pela ausência da mãe – Freud fala de uma sexualidade perverso-polimorfa. O recalque do valor erótico desses objetos (oral, anal, visual e auditivo) era garantido pela “ingenuidade infantil”.

Portanto, até aqui a lei paterna é veiculada pela realidade: a mãe não é um

objeto sexual (incesto) no simbólico, e isso se apóia na imaturidade

biológica. Com a transformação real do corpo, a proibição do incesto deve

ser assumida pelo filho como castração simbólica, o que é facilitado pela lei

do pai que não é mais unicamente de proibição, mas se transforma em

dom. A função do pai como doador de uma competência adulta na vida

sexual é formalizada por Lacan como “metáfora paterna”, e consiste na

capacidade de sublimar os objetos da pulsão, de dar ao objeto parcial

infantil um valor erótico simbólico, o valor fálico. É com essa habilidade que

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o sujeito poderá dirigir sua demanda de amor ao seu semelhante, aos outros de mesma idade e assim destacar-se do objeto materno.

Desse modo, podemos sintetizar a função do pai no Édipo nos dois tempos da sexualidade: 1) a sedução primária, o trauma originário pelo qual a identificação ao pai por incorporação entra no corpo do gozo, que é o gozo da linguagem – Freud fala em termos de excitação. O sujeito reage com um movimento de condenação, dado que o trauma lhe é intolerável por ser inarticulável, sem representante simbólico. 2) Com a aquisição da imagem especular, por meio da produção das fantasias infantis, o sujeito aprende a apropriar-se do gozo e faz do corpo o lugar da libido. Podemos dizer que o gozo alienado da carne se transforma em satisfação do corpo. Na fantasia, existe um primeiro nó por meio do qual o imaginário fálico encontra, no Nome-do-Pai, uma promessa de recuperação do gozo originário perdido com o nascimento.

Nesse ponto, devemos fazer uma observação fundamental para explicar a

patologia humana e com isso a natureza do sintoma. A experiência da

psicanálise se separa da psicologia que, revelando sua raiz filosófica, atribui

a patologia a uma alteração da consciência. Para Freud, ao contrário, o

sintoma foge ao controle consciente por ser uma “formação do

inconsciente”. Essa formação advém sempre em dois tempos. Enquanto no

tempo infantil a lei edípica era o veículo da lei como tal, de um princípio

universal do direito (o supereu como interdição do incesto), com a escansão

puberal se abre o tempo em que a função do pai se coloca como mediação

entre o supereu e o ideal do eu, o objeto é alcançável pela via simbólica, a

demanda de amor que o erotiza. Essa mediação está na base da formação

do sintoma, que representa o compromisso particular do sujeito entre a

exigência de renúncia pulsional e o desejo de satisfação – fantasia

inconsciente. Nesse ponto, o supereu torna-se uma alternativa à pulsão

erótica, um investimento da renúncia, o gozo na sua forma mais

masoquista, a saber: prazer encontrado no sofrimento da renúncia ao

objeto, como se exprime Lacan, o nada como objeto da pulsão. Certos

momentos anoréxicos ilustram bem essa tentativa do sujeito de separar-se

do objeto materno, sem que encontre no pai a função do dom, a função

fálica da castração e, por isso, o recurso à lei como pura proibição.

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A crise da adolescência concerne ao terreno da fantasia, à capacidade de organizar a decisão não mais adiável sobre a própria identidade sexual na relação de amor com o semelhante, e, por isso, com seu corpo. Já não basta a promessa fálica, há que passar do ser fantasmático ao jogo do ter ou do não ter, do dar e do pedir. Por isso, o sintoma tende a manifestar-se nesse momento. Naturalmente, o pôr à prova real que se dá na adolescência esclarece o que na infância estava enodado. Muitos jovens advertem que não têm os instrumentos subjetivos, isto é, uma vida inconsciente para afrontar a prova. Tendem, então, a prolongar a latência ou se bloqueiam depois da primeira tímida tentativa de sedução. Esse bloqueio está na base das freqüentes depressões na adolescência. São difíceis de tratar porque o sujeito se encontra impossibilitado de falar dele, não pode elaborar a perda de um objeto que nem mesmo pode fantasiar.

Por essa razão, ele viverá unicamente um sentimento de inferioridade ou de diversidade no confronto com os seus contemporâneos.

A depressão que acompanha a puberdade pode ser a ocasião para inserir-se na via do uso dependente de um objeto ou de um comportamento. A fim de compreender o mecanismo desse uso, devemos ter em conta que o remanejamento pulsional em seguida à puberdade é acompanhado da necessidade social de encontrar uma identidade sexuada. É a partir dessa exigência que se explica o recurso a uma prótese, ao objeto da dependência. Esse pode ser também o caso de quem simplesmente “decide”

não enfrentar o problema, conservando uma arrumação libidinal de tipo infantil, e afrontando o laço social imitando os contemporâneos, ou os adultos, identificando-se a um modelo de vida adulta. Muitas vezes, essa solução não aparece como patológica no ambiente externo porque o sujeito mantém um comportamento normal. A fragilidade dessas identificações imaginárias, observável pelos professores, pode determinar comportamentos rígidos e forte inibição afetiva, ou remeterem a uma crise por tempo indeterminado.

O rapaz que, ao invés disso, tem urgência de um compromisso social, de

permanecer no grupo, e, não encontrando na castração simbólica a via do

sintoma - do que falaremos daqui a pouco -, utiliza então uma substância

ou um comportamento como mediador social, como substituto protético da

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demanda de amor. Os objetos de consumo são aqueles que estão mais à mão: telefones como comunicação, motos como transporte, vestidos como imagens do corpo, violência de grupo como promessa fálica. Mas há também comportamentos de renúncia centrados sobre o nada: a anorexia, a automutilação, unhas, cabelo, piercing; ou sobre a imagem do corpo, tatuagens, cultos, etc. Outros comportamentos se baseiam no movimento do corpo, como a inquietação, o balanço, ou da mente, como a excitação, a desinibição química. Todos são reproduções da dinâmica da castração, mimese do ser como metáfora do não ter, que param na entrada do simbólico, não acedem ao lugar do Outro, lugar êxtimo do anodamento fantasmático. Mas não é só isso: a inconsistência da mediação paterna faz desses sujeitos os dependentes antes de tudo do supereu. Vemos, no tratamento, como se deve ter presente que a dependência não é uma doença moral, é hipermoralista, não é uma doença da consciência, é do inconsciente, embora não seja uma formação do inconsciente.

Da dependência ao sintoma

A dependência patológica não tem a estrutura do sintoma, construção do sujeito, ela forma um bloco único, uma inibição que não lhe permite aceder à nominação social via o sintoma. Isso poderia justificar a idéia de

“diagnóstico duplo”. No entanto, para que o diagnóstico psiquiátrico não se transforme em segregação, é preciso que ele seja construído em um trabalho com o sujeito, sob transferência.

Com a necessidade de assumir a definição do sexo, o adolescente repete a

perturbação infantil, uma excitação-satisfação que lhe concerne em um

ponto de exterioridade interna. O gozo retorna de um modo não regulado

libidinalmente pelo significante, como gozo primário da carne que deve ser

normatizado. Essa erupção requer um trabalho psíquico, o adolescente

precisa reconstruir os véus fálicos que, na forma de fantasias infantis, lhe

foram arrancados. Para fazê-lo, se apóia em instâncias ideais de sua relação

com os seus semelhantes, ou seja, sobre o eu ideal. Esta é a construção do

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sintoma, a utilização do Nome-do-Pai como dom simbólico do falo para dar uma nova forma ao real da sexualidade.

Hoje, o adolescente se encontra particularmente em dificuldade para realizar esse trabalho por dois motivos: um ligado à sua infância, ou seja, a uma pobreza de construções ideais. O jogo, via pela qual a criança mobiliza na fantasia sua imagem especular no espaço da realidade e da relação com o semelhante e se identifica com os personagens das histórias, é, nos dias de hoje, um trabalho extremamente apassivado. As histórias são oferecidas pela televisão sem que o sujeito precise traduzi-las em imagens para, assim, articulá-las à sua própria imagem. O outro motivo está relacionado a uma importante função do pai: o dom de uma fundação – “é assim porque eu digo”. Hoje, essa função é multiplicada ao infinito, inúmeros são os portadores de uma autoridade cuja fundação tem o estilo científico – “é assim porque a ciência diz”. O sujeito da ciência, do saber do real, é encarnado pela propaganda que transforma esse saber em verdade. É a operação do discurso capitalista no qual o mestre passa para uma segunda ordem: ele é seduzido pelo sujeito da ciência que o torna seu porta-voz institucional. Os novos mestres são os “especialistas”, os universitários, os opinion lieder, os formadores de opinião.

O adolescente é facilmente seduzido em seu meio ambiente por uma autoridade desse tipo, atribuída ao sujeito da ciência. Ele não tem condição de perceber que esse pai não é capaz de fornecer uma garantia real, aquilo que se chama um exemplo de vida. O adolescente então curtocircuita o trabalho da escolha, evita a responsabilidade da escolha tomando um objeto de consumo como véu, como roupagem, para dar corpo à nova carne. O objeto droga ou o objeto nada são uma solução prète-à–porter que está no lugar da fantasia inconsciente e organiza o gozo. É uma forma de nominação, por meio da identificação, a um comportamento que vem preencher o vazio fantasmático, o “desabonamento do inconsciente”, como se exprime Lacan.

Na realidade, esse sinthoma é uma suplência à função do Nome-do-Pai e se

diferencia completamente do sintoma freudiano:

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- não é êxtimo, não é alguma coisa absolutamente particular de um sujeito, mantido escondido até perturbar sua vida de relação. Ao mesmo tempo, é um ‘corpo estranho’;

- ao contrário, é coletivizante, muitas vezes difunde-se como formas de epidemia, e, em certa medida, favorece a vida de relação, pois soluciona a inibição do sujeito.

Tudo isso explica a sintomatização da adolescência, o fato de a adolescência ser um sintoma social. Porém, digamos imediatamente: a psicanálise ensina que somente o sintoma subjetivo é tratável com a interpretação. O sintoma como suplência é uma construção apenas nossa. Isso muda os tempos do tratamento, que deve prever inicialmente um acompanhamento da subjetivação do sintoma até fazer dele, quando possível – ou seja, quando não descobrimos uma estrutura psicótica -, um verdadeiro sintoma. Isso é possível quando a relação do sintoma com a causa é après-coup, faz parte do tratamento analítico, no qual a interpretação, o ato analítico, leva o sujeito a encontrar a causa. Ocorre, por isso, uma série de retificações: o sujeito constrói na transferência um sintoma particular, uma atividade expressiva ou uma relação afetiva, depois supõe uma causa que lhe diz respeito.

Por outro lado, o psicanalista sabe que o discurso do capitalista é um discurso ‘insustentável’, é um discurso mascarado que, por isso, não cria laço social. Nesse sentido, ele funda a própria ética ao fazer-se rebotalho do capitalista. Ademais, ele sabe que qualquer tentativa de ressurgimento da promessa edípica é destinada a produzir somente sectarismo, porque se funda apenas no supereu, como a perversão de Kant com Sade. Hoje, ao contrário, a via que se abre é a da père-version, da letra de gozo construída pelo sujeito para ligá-la, por meio do nó borromeano, ao resto do simbólico, de modo a fazer nó com o imaginário e o real.

Portanto, trata-se de se servir do pai além do Édipo, em uma topologia

completamente separada do desenvolvimento psicológico, diferente do

biológico. Os pontos de partida desse além são ligados à incompletude do

Édipo, a saber, do Outro e do sujeito, não todos presos à lógica fálica do

Édipo – a palavra, ao contrato.

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O corpo e o paradoxo da sexualidade

Para o ser falante, o desenvolvimento da vida sexual se funda em uma relação paradoxal ao crescimento biológico. O ponto crucial da maturação é o encontro com o outro sexo que se decide nas formas do discurso, isto é, do amor. Ora, esse encontro, do qual depende a estabilização do desejo como sexual, depende estruturalmente, em sua dinâmica, da incompletude da maturação biológica dos órgãos sexuais na longa e decisiva vida infantil.

Esse desenvolvimento retardado faz com que naqueles anos se desenvolvam os percursos imaginários, as fantasias que, em seguida, conduzirão ao encontro real. Esses percursos, que fomos habituados a sintetizar no algoritmo da fantasia ($

WWWW

a ), são identificações imaginárias.

O paradoxo lógico é que a formação sexual, a capacidade de fazer encontros, está ligada à incompletude orgânica do sujeito. A escolha ‘certa’

do parceiro não pode ser natural, e a escolha feita hoje pela via cultural não é mais aceita, pelo menos nas formas tradicionalmente assinaladas pelo mito. Esse é um débito abissal que o homem negociou com a ciência. Ela demonstrou a inexistência da relação sexual, ao mesmo tempo em que rompeu o encanto que o mito lhe havia revelado. Como o sujeito poderá se orientar, uma vez perdida a bússola do desejo?

Apresento a vinheta clínica do caso de um jovem de trinta anos de idade.

Desde os dezesseis anos, usava substâncias segundo o progresso clássico desse consumo: fumo, heroína, depois abandonada ‘sabiamente’ com o uso de cocaína, ecstasy, fumo e álcool. Há dois anos está completamente abstinente. Ligou-se a uma jovem que o ama, está sempre muito próxima e é muito paciente. Nesse novo caminho, sua dificuldade é uma extrema instabilidade emotiva. Torna-se inexplicavelmente indiferente para com a moça que ama, tem fantasias de tipo perverso, ímpetos tremendos de violência e depressões profundas.

Não creio que se trata de lesões ‘orgânicas’ com destruição de áreas

cerebrais, nem de desequilíbrios de neurotransmissores. Ele de fato não

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extrai benefícios dos fármacos, limitando-os a uma dose mínima de um neuroléptico atípico, a risperidona. Creio que sua nova experiência no amor foi possível por uma ‘suplência’ importante: aprendeu com surpreendente rapidez a tocar piano. Compõe musicas, dá aulas, trabalha numa loja de instrumentos musicais e está se preparando para os exames finais no Conservatório de música.

A dificuldade maior desse tratamento é a de reparar/remediar a falta de representações de si, isto é, de um ideal, porquanto ele ainda tem de se construir um corpo próprio. É como se por mais de dez anos tivesse vivido sem vida imaginária, ou melhor, com o real e o simbólico atados e o imaginário livre, louco. Ora, o mundo simbólico da música configurou o quarto elo, em um enodamento do imaginário, uma suplência do Nome-do- Pai, em uma via da père-version.

Não sei ainda se ele chegará a ‘ter’ um verdadeiro sintoma e qual poderá ser, isto é, se o sintoma atual criará um vínculo articulado com o inconsciente, permitindo-lhe encontrar uma fantasia que o reconecte à sexualidade infantil e ao objeto perdido.

Aprender outra linguagem, a da música, ofereceu a esse sujeito a oportunidade de ligar o gozo, o que está fora do efeito de significação, ao significante, segundo os modos da ‘letra’, ou seja, um significante fora da cadeia. O gozo foi ligado ao significante por meio da produção de um texto, tal como quando ele tece um motivo musical. Naturalmente ele escolheu um gênero de música que prescinde da melodia: o blues e o jaz.

O acompanhamento que pude realizar até agora é oposto a uma análise.

Forneço a garantia do Outro como espelho, como lugar de elaboração de uma imagem virtual e da descoberta do corpo próprio como substrato do ser. Houve inclusive um episódio de somatização, ou seja, um ataque à função do corpo como casa própria, sob a forma de uma nevralgia do trigêmio.

Para que a linguagem vivida fora do registro do sentido se enganche na

linguagem dialética, na dinâmica da verdade, aguardo o surgimento do

sujeito na abertura produzida pelo efeito de comicidade, mais precisamente

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no compasso do espírito. Para que a fala possa produzir esse efeito, é preciso saber enganar a espera do outro, conduzi-la em um falso trilho para depois surpreendê-la. Para isso, sou cúmplice do estilo com o qual ele involuntariamente cria essa espera, sou cúmplice sem crer nisso, disponível para o instante no qual o sujeito trairá a espera e pronto para rir dela, com ele.

É uma outra versão, me parece, do analista: a de quem aceita ser um rebotalho da humanidade, o rebotalho do delírio comum que envolve a verdade da ciência. O analista participa do amor pela verdade do cientista, mas disso se ocupa em seu limite, na linha de sombra onde isso cala. Ele está empenhado em testemunhar uma nova relação com o saber, comparativamente ao filósofo que se limita a procurar as condições de verdade do saber, pois busca a via seguida pelo sujeito a fim de furar o saber. De fato, essa ainda é a única via em condições de orientá-lo quanto ao seu desejo. A via que leva o sujeito a produzir um significante novo, o do seu sintoma.

Tradução: Maria Angela Maia Revisão: Vera Avellar Ribeiro

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