• Nenhum resultado encontrado

NEGRO-TEMA: um discurso científico em prol da branquitude

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "NEGRO-TEMA: um discurso científico em prol da branquitude"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

.

NEGRO-TEMA:

um discurso científico em prol da branquitude

(Daniara Thomaz) Epígrafe

Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo a sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal. Eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no Brasil. (RAMOS, Guerreiro)

INTRODUÇÃO

(2)

Guerreiro Ramos estreou o campo de estudos sobre a identidade racial branca no Brasil ao inserir o branco dentro do panorama das relações étnico-raciais enquanto objeto de estudo científico. Ramos não somente deu o pontapé para o desenvolvimento do campo de estudos sobre branquitude cujas análises vislumbravam o branco como constructo social, mas também permitira o início do movimento de ruptura com as perspectivas que consideravam o racismo no Brasil como um problema do negro. O problema do negro no Brasil fora abordado por diversos autores dentro da literatura sociológica, histórica e antropológica nacional. Dentre eles podemos citar Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, entre outros. Apesar das discordâncias teóricas, todos eles, de algum modo, vincularam às questões de desigualdade racial e racismo no Brasil à imagem do negro, desconsiderando o papel e atuação do branco. Como se o racismo não agisse por meio de uma hierarquia racial que necessita de duas ou mais raças para seu funcionamento, o problema racial no Brasil tornou-se o problema do negro, isto é, um problema de encargo único e exclusivo da população negra. Nessa dinâmica de apagamento do branco das relações raciais, até mesmo outras raças e etnias prejudicadas pela hierarquia racial brasileira foram excluídas do panorama racial, como é o caso das populações indígenas e ciganas.

A estratégia de atribuir ao negro os problemas de desigualdade racial e racismo têm como pano de fundo o mito da democracia racial e o apagamento histórico dos processos violentos de colonização e escravização que ocorreram em terras brasileiras. Ao afirmar com respaldo científico que o racismo brasileiro é um problema do negro, esses autores não apenas retiraram de cena o branco e sua atuação enquanto algoz dentro das relações raciais, mas também menosprezaram os efeitos e impactos dos quase quatrocentos anos de exploração da população negra, de modo a limitar a real e total compreensão do que fora a colonização e escravidão em nosso país. A saber, não trataremos aqui das intenções desses autores em abordar o racismo brasileiro como problema do negro e assim intitulá-lo. Antes disso, prezamos por uma análise que considere os impactos desse movimento intelectual na concepção de racismo no imaginário social brasileiro e, principalmente, na concepção propagada acerca da população negra. Para isso, nos fazemos a seguinte questão: se o racismo brasileiro é um problema do negro, quem é este negro que tem em sua conta e costas os problemas raciais de seu país?

NEGRO-TEMA, RELAÇÕES DE PODER E O DISCURSO CIENTÍFICO

(3)

desigualdades. A primeira linha é caracterizada pelas produções acadêmicas da década de 1930, cujas conclusões sobre as condições raciais em nosso país corroboraram para a noção de ausência de preconceito e discriminação racial no Brasil. Esta linha de análise representa uma questão de duas vias, pois, ao mesmo tempo em que viabiliza a problematização das questões raciais e do racismo no Brasil, também impede a atribuição de responsabilidades reais e materiais àqueles que detêm as vantagens e benefícios oriundos desse sistema de hierarquia racial. A segunda onda de estudos raciais, influenciada por esta primeira linha de pesquisas, admite a existência de desigualdade no Brasil, contudo a associa muito mais às questões de classe do que de raça. Conduzidos pelas distinções entre os sistemas raciais estadunidense e brasileiro, tais autores chegaram a conclusões ilusórias, deturpando o real significado e impacto da questão racial em nosso país. Por fim, temos a última linha de estudos raciais sinalizada por Hasenbalg, esta linha diz respeito à onda de estudos sociais que surgiram entre as décadas de 1950 e 1960, tais pesquisas buscaram compreender o racismo brasileiro a partir do viés econômico, mais particularmente a partir da derrocada do sistema escravista e da implementação da sociedade de classes no Brasil. As conclusões obtidas por estes estudos são de suma importância para compreendermos como procedera a marginalização social da população negra no período pós-abolição. Passamos a refletir, então, como as três linhas de estudos raciais se articularam formando a concepção de raça e racismo que permeia até os dias de hoje o imaginário social brasileiro.

Apesar das limitações práticas e a ausência de consonância com a realidade racial vivenciada no país, os estudos raciais da década de 1930 inovaram dentro da área das ciências sociais, pois, romperam com as perspectivas deterministas e biológicas do racismo científico propagadas por autores como Nina Rodrigues e Oliveira Viana que defendiam o atavismo, isto é, a hereditariedade biológica de características intelectuais, comportamentais, etc. Dentre esses estudos inovadores, é importante mencionarmos a obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, publicada originalmente em 1933 e que configura um grande marco na história dos estudos raciais brasileiros. Neste livro, Freyre (2006) rejeita as premissas negativas atribuídas à miscigenação que, para os intelectuais antecessores, significaria a degeneração da raça branca superior e passa a defender a miscigenação como o grande elemento da identidade nacional (Munanga, 1999; Guimarães, 1999).

(4)

Estado-nação todas as manifestações culturais atribuídas à população negra e indígena e que, simultaneamente, descartasse o conceito de raça enquanto uma categoria social útil para a compreensão da dinâmica das relações raciais brasileiras. Para ele, o conceito de raça no Brasil não adquirira significado ou utilidade o suficiente, uma vez que o processo de miscigenação por aqui teria ocorrido de modo muito mais pacífico do que violento, se levado em comparação o cenário racial estadunidense, por exemplo. Esta lógica de pacificação das desigualdades e discriminações raciais produzira uma imagem de democracia racial no Brasil, imagem que seria logo desmistificada pelas pesquisas da terceira onda de estudos raciais, caracterizada, sobretudo, por autores como Florestan Fernandes (2008) e Roger Bastide (1972) que viriam a desenvolver o conceito de mito da democracia racial.

O mito da democracia racial se tornou um alicerce na manutenção das desigualdades raciais e racismo brasileiro, afinal, não é possível combater aquilo que não existe. Com esta imagem de nação racialmente democratizada, o Brasil manteve sua sujeira racial debaixo do tapete durante algum tempo. E talvez a mantivesse ainda mais, se não fosse pelos reais números que expressavam a desigualdade racial brasileira e pelas reivindicações do Movimento Negro Unificado a partir do final da década de 1970 frente às violências e desigualdades sociais que acometiam a população negra brasileira. Esse discurso de democracia racial forneceu respaldo para uma perspectiva anti-racialista dentro dos estudos dos primeiros expoentes da formação do Estado nacional nas ciências sociais brasileiras (Guimarães, 1999), cuja literatura socioantropológica excluiu de suas competências as análises acerca do conceito de raça, priorizando as questões relacionadas às desigualdades econômicas, atribuindo à categoria chave de classe todas as mazelas sociais que afetavam a população brasileira.

(5)

categorias dicotômicas de povo/elite substituíram as categorias negro/branco, produzindo uma discussão racial latente.

É importante dizer que este discurso anti-racialista impactou a maneira com a qual a população brasileira concebe o conceito de raça e racismo. Ainda hoje verificamos a atuação dessa noção de inutilidade acerca dos termos raciais para a compreensão das relações sociais em nosso país. A questão a ser sinalizada aqui é a de que, apesar da resistência em absorver o conceito de raça como um elemento necessário para a formação do Estado-nação brasileiro, o discurso anti-racialista constituiu-se como um discurso racial e fora incorporado pelo imaginário social brasileiro como o modo de lidar com as questões de desigualdade e discriminações raciais. O efeito desse modelo racial esquizofrênico de interpretação da realidade social está no racismo a la brasileira, um tipo de discriminação estrutural e sistêmica que atinge à população brasileira em todos os níveis, mas que não ganha espaço nos discursos e interpretações dos indivíduos acerca das mazelas sociais que assolam o país. É exatamente este modelo racial que permite estatísticas assombrosas de violência, assassinato, desemprego, analfabetismo, etc. entre a população negra sem que isso seja interpretado como questão de racismo e/ou discriminação racial. Em outras palavras, o discurso adotado para conceber, ou melhor, não conceber a raça e o racismo brasileiro é um dos mecanismos que mantém a desigualdade racial em funcionamento.

De modo geral, para que o racismo brasileiro viesse a se tornar um discurso racial latente alguns fenômenos foram imprescindíveis. Entre eles, o mito da democracia racial que já fora citado, o apagamento do branco como constructo sociorracial e ator das relações raciais e, finalmente, a produção de uma imagem do negro que sustentasse as noções científicas sobre raça. E é sobre este negro produzido cientificamente que devemos direcionar nossa atenção e análise. Para tanto, é necessário retornarmos aos escritos de Guerreiro Ramos sobre o negro-tema para entendermos como a essencialização da população negra como objeto de estudo científico resultou no apagamento epistemológico das produções negras e, principalmente, no suprimento da subjetividade negra.

(6)

realidade social brasileira. A noção europeia de organização social e política permeou as entranhas não apenas das estruturas econômicas e políticas de nosso país, mas também das formas culturais e sociais, gerando uma socialidade nacional totalmente vincula à ideia eurocêntrica de civilidade e progresso (Fernandes, 1975). Essa noção de civilização e progresso pode facilmente ser traduzida como um discurso racialista, na qual o homem branco europeu ocuparia a posição de maior prestígio e destaque, enquanto que o homem negro, o selvagem africano, simbolizaria o primeiro estágio da humanidade, a barbárie. Criou-se, assim, uma classificação da humanidade tendo como base a raça e o discurso determinista social (Schwarcz, 1993). Como já dito, essa concepção evolucionista da humanidade, apoiada principalmente nos discursos produzidos nos primórdios da antropologia, teve seu impacto nos pensadores sociais brasileiros e, apesar do avanço das linhas de estudos raciais posteriores que romperam com o determinismo biológico, essa noção de hierarquia racial a partir do viés biológico do conceito de raça ainda é alimentada pelo imaginário social brasileiro.

BRANQUITUDE: CRIADOR E CRIATURA

(7)

facilmente à raça e cidadania, respectivamente. Não seria um equívoco concluir que esta correspondência entre sangue-solo e raça-cidadania levou ao que conhecemos como racismo científico, teoria racialista embebedada na teoria antropológica do evolucionismo e determinismo social.

Se o homem branco teria sido formado à imagem e semelhança de Deus, o homem negro, por sua vez, fora concebido pela ausência e dessemelhança frente ao homem branco. Ou seja, tudo aquilo referente ao homem negro, sua cultura, organização familiar e social, religião e crença, política e economia, diz respeito à sua desigualdade perante o homem branco. Se ao branco é atribuída a racionalidade, a habilidade artística, a erudição, ao negro é vinculada a emoção, a funcionalidade artesã, a capacidade corpórea. Ao branco, a religião desenvolvida, a escrita; para o negro, o animismo, culto aos seres irracionais, a oralidade. Toda a complexidade utilizada para descrever e elucidar o homem branco encontraria, portanto, suas raízes na bestialidade, na simplicidade esdrúxula do homem negro. O negro seria, então, nada mais que o Outro absoluto do homem branco, não sujeito e nem mesmo ator de sua história, apenas a sombra deturpada da imagem do homem branco, humano por excelência (Hall, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

(8)

O silenciamento acerca do branco enquanto ator das relações raciais promoveu uma cegueira por parte da branquitude que dificilmente é capaz de se enxergar em termos raciais. Vestindo-se com os trajes da universalidade, o branco, paradoxalmente, se oculta (Cardoso, 2014), pois aquilo que está em evidência não precisa ser visto e muito menos estudado. Desta forma, o discurso científico sobre o negro-tema cria um mecanismo de sustentação do pacto narcísico e da invisibilidade do branco como ator racial, ao mesmo tempo em que mantém o branco em sua posição de sempre: a de superioridade, a posição daquele que questiona e nunca é questionado, aquele que estuda o Outro, porém nunca é estudado. A produção do negro-tema enquanto campo de estudo sociológico e antropológico pode ser compreendido como uma armadilha racial, pois coloca o branco como o sujeito científico preocupado em elucidar as problemáticas do Outro racializado, preservando, simultaneamente, o lugar seguro da invisibilidade de seus privilégios e atuação na dinâmica das desigualdades raciais e, ainda, sua posição enquanto produtor de conhecimento.

Por certo, podemos afirmar que o negro-tema representa o anseio da branquitude em reafirmar sua posição de superioridade a partir de um modelo de negro criado a sua própria vontade e necessidade. O negro-tema é em si mesmo uma ferramenta discursiva de perpetuação das relações assimétricas de poder que envolvem o conceito de raça. Ao ser alocada nesse lugar de objetificação científica, a população negra tornou-se uma massa homogênea sem subjetividade, singular, fixa e essencializada. Ancorada no regime de representação racializado produzido pela branquitude, sobretudo pela classe científica, a população negra – ampla, multiforme e plural – é transformada no negro – uniforme, singular e reduzido. O negro-tema seria, portanto, resultado desta imagem distorcida da população negra, produzida para que o discurso de superioridade branca atingisse o patamar da materialidade no campo da cientificidade e para além dele.

REFERÊNCIAS

BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. 490 p. Tese, Doutorado em Ciências Sociais, UNESP, Araraquara, 2014.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. In: A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

(9)

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Raça e os estudos das relações raciais no Brasil. Novos

Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 54, p. 147-156, jul., 1999.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Tradução de Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO: Apicuri, 2016.

HASENBALG, Carlos Alfredo. Raça, classe e mobilidade. In: GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. 67-113 p.

KUPER, Adam. The invention of primitive society: transformation of an ilusion. New York: Routledge, 1988.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.

PIZA, Edith. Adolescência e racismo: uma breve reflexão. In: Simpósio Internacional do Adolescente, 1, 2005, São Paulo. Anais eletrônicos. Universidade de São Paulo, 2005. Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000082005000 100022&lng=pt&nrm=abn>. Acesso em 09 out. 2020.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Informações do(a)(s) autor(a)(es) Daniara Thomaz

Mestranda em Antropologia pelo PPGAA/UFPR, bolsista Capes. E-mail: daniaratfm@gmail.com

Referências

Documentos relacionados

Patrocínio Clube Tempo Balizamento 0ª SÉRIE. 0 JULLIA

Da mesma forma, O Filho de Deus teve uma existência com Deus, interagiu com Deus, porem como eu e você Ele não tinha um corpo como o temos hoje, mas quando chegou o momento do Filho

VICENTE PAULO 1970 N/C GABRIELA SILVA RIO DE JANEIRO EM DR SOCRATES 1971 N/C MARIA CLAUDIA ALMEIDA RIO DE JANEIRO COL SANTOS ANJOS 72795 N/C ANA BEATRIZ PEREIRA RIO DE JANEIRO EM JUAN

As provas escritas serão realizadas na cidade de Sumaré, em data, local e horário a serem fixados por Edital, publicado com antecedência mínima de cinco (5) dias. a) O

Enquanto no National Wilms Tumor Study- 2, os resultados indicaram que o pior prognóstico em pacientes com mais de 2 anos refletia a associação com outras variáveis

4.. Passados oito dias durante os quaes não houve o menor indicio de sahida da urina pela vagina, julgamos opportune verifi- car pelas injecções intra-vesicaes o estado

Todas essas dimensões, que são construídas culturalmente, podem possibilitar o estado de transe (AUBREÉ, 1996). Assim, acredito que, como a maioria dos corinhos de

pontos de transferências modais mais estratégicos e mais importantes. Uma análise que se pretende útil para o planejamento de investimentos ou medidas de controle para mitigar a