• Nenhum resultado encontrado

AFINAL, O QUE SE ENTENDE POR VIDA COTIDIANA, SABER COTIDIANO, SABER MATEMÁTICO COTIDIANO E ESCOLAR?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "AFINAL, O QUE SE ENTENDE POR VIDA COTIDIANA, SABER COTIDIANO, SABER MATEMÁTICO COTIDIANO E ESCOLAR?"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

AFINAL, O QUE SE ENTENDE POR VIDA COTIDIANA, SABER COTIDIANO, SABER MATEMÁTICO COTIDIANO E ESCOLAR ?

Prof. Doutor José Roberto Boettger Giardinetto

Universidade Estadual Paulista, Departamento de Educação,Campus de Bauru, S.P., Brasil jrbgiar@fc.unesp.br

RESUMO

O objetivo desta comunicação é apresentar a contribuição da concepção marxista de educação para a reflexão da relação entre vida cotidiana (matemática da vida cotidiana) e a esfera escolar (a matemática escolar).

Nesse sentido, a comunicação expõe a necessária fundamentação teórica sobre o cotidiano, o saber cotidiano e a relação com o saber escolar, de forma a questionar os condicionantes históricos e sociais da estrutura da vida cotidiana e suas implicações para a esfera escolar quando se elege o cotidiano como referência para o trabalho pedagógico.

Palavras-chaves: Educação e Marxismo, Fundamentos da Educação, Educação Matemática, Matemática escolar, Matemática cotidiana.

1. Introdução

A defesa pela utilização do saber matemático cotidiano tem sido objeto de pesquisas no cenário da Educação Matemática. A ênfase a essa defesa nasce de crítica, muito pertinente, à concepção de Ensino Tradicional de Matemática.

Com a publicação de obras como “Na vida Dez, na Escola Zero” e o progressivo desenvolvimento da Etnomatemática, o saber cotidiano passa a ser objeto de maior interesse, passando a ser prioritária referência para o trabalho educativo com vista à

(2)

apropriação da matemática escolar. Um ensino de matemática “motivador” seria aquele que respeitasse os “interesses” dos alunos, isto é, que considerasse os problemas oriundos das experiências vividas em seus contextos culturais.

Para o autor deste trabalho, o que chama a atenção sobre o discurso sobre o uso do cotidiano para o ensino de matemática, é a quase nula reflexão no âmbito dos fundamentos históricos-sociológicos e filosóficos que explicitem o que se entende por cotidiano enquanto esfera específica de formação do indivíduo, as características do pensamento aí desenvolvida e as implicações dessa concepção com relação ao trabalho educativo escolar.

Da mesma forma, a relação buscada para com a matemática escolar também não coloca como objeto de reflexão a natureza e especificidade da educação escolar quanto à sua relação com o saber cotidiano.

O objetivo desta Comunicação é trazer a contribuição da concepção marxista sobre essa temática. Dados os limites de tempo de exposição (oral e escrita) de uma

“Comunicação de trabalho”, a idéia é centrar as considerações sobre a estrutura da vida cotidiana, a natureza e especificidade do saber escolar e a relação dialética possível entre a matemática escolar e a matemática da vida cotidiana. Trata-se de pesquisa concluída que resultou na Tese de Doutorado intitulada “O fenômeno da supervalorização do saber cotidiano em algumas pesquisas da Educação Matemática”, tese defendida na Universidade Federal de São Carlos, em 1997. A pesquisa, com modificações, foi publicada pela Editora Autores Associados de Campinas, Estado de São Paulo, em 1999, com o título

“Matemática Escolar e Matemática da Vida Cotidiana”. Mesmo passados 09 anos de sua publicação, trata-se de trabalho acadêmico ainda pertinente que possibilita uma contribuição para a reflexão sobre o tema “Matemática escolar (formal) e Matemática cotidiana (não- formal)” no âmbito da Educação Matemática.

2. A estrutura da vida cotidiana: sua natureza e limites.

Segundo Heller (2002, p. 37), vida cotidiana “é o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a

(3)

possibilidade da reprodução social”1.

Na vida cotidiana, o indivíduo tem acesso à determinadas objetivações do gênero humano. As objetivações denotam os produtos do processo histórico-social de transformação da realidade natural em realidade humanizada.

Na vida cotidiana, é próprio desta estrutura da vida social que os indivíduos tenham acesso à linguagem, aos costumes e aos utensílios (os objetos que circundam a vida do indivíduo). O indivíduo se relaciona com essas objetivações segundo relações espontâneas2, não-intencionais e, por isso, são denominadas de “objetivações em-si”. Na vida cotidiana, a apropriação da realidade se dá de forma não-intencional, porque dentre as características inelimináveis da vida cotidiana, há a espontaneidade e a pragmaticidade.

Dada a complexidade do processo de transformação da realidade, mediante o trabalho, em realidade humanizada, as objetivações humanas não são restritas à esfera da vida cotidiana. Existem outras objetivações, que por conta de sua complexidade, compõem o que Heller (2002) denomina de “esfera da vida não-cotidiana”. São a ciência, a filosofia, a arte, a moral e a ética. A apropriação dessas objetivações, ao contrário da forma como o indivíduo se relaciona na vida cotidiana, ocorre por meio de uma relação intencional, sistemática, não-espontânea. São denominadas de “objetivações para-si”.

Portanto, os termos “em-si” e “para-si” retratam a forma como que se dá a relação entre o indivíduo e as objetivações do gênero humano (as objetivações genéricas).

O termo “em-si”, denota uma relação espontânea, não-intencional do indivíduo para com essa determinada objetivação.

O termo “para-si”, denota uma relação não-intencional, não-espontânea.

As objetivações genéricas para-si exigem, para sua apropriação, a necessidade de superação do caráter espontâneo, não-intencional, presente na apropriação das objetivações genéricas em-si. Nesse sentido, a apropriação de tais objetivações exigem uma forma de pensar e agir mais complexa, além da constatação imediata dos fatos da

1 No livro, em espanhol, a citação é: “La vida cotidiana es el conjunto de actividades que caractezan la reproducción de los hombres particulares, los cuales, a su vez, crean la posibilidad de la reproducción social.”

2 Aqui espontâneo não denota algo “genuíno”, que é “próprio” do indivíduo. Segundo a concepção marxista todas as objetivações são mediações histórico-sociais. A criança não “constrói”

conhecimento, apropria o já existente.

(4)

realidade.

Ocorre que a vida cotidiana é uma estrutura social cuja característica ineliminável é sua inerente pragmaticidade e espontaneidade.

Na medida em que a vida cotidiana é absolutamente prática, o pensamento a ela dirigido para a execução de uma determinada atividade apresenta-se em intrínseca unidade.

Como tal, o conhecimento resultante do modo de vida cotidiano é regido segundo uma lógica que garanta esse imediatismo. Como tal, essa lógica é essencialmente economicista3. Devido à essa lógica, o pensamento aí desenvolvido imprime ao indivíduo uma concepção de realidade imediata, como algo “natural”. O indivíduo entende que a realidade é aquela que se projeta de imediato à ele.

Ocorre que nossa realidade é uma realidade alienada. O processo histórico-social de transformação da realidade natural em realidade humanizada tem sido realizada sob a égide de relações sociais de dominação de uma minoria sobre uma maioria. A humanização da realidade tem sido feita às custas de muitos homens, tem se realizado mediante relações sociais alienadas. Quanto mais o gênero humano produz, mais a maioria dos indivíduos singulares se torna impedida de usufruir esses produtos, mais essa maioria é cerceada das possibilidades objetivamente existentes. As relações sociais de dominação determinam que os homens produzam os objetos que compõem o mundo humano, mas não possibilitam que esses mesmos homens venham a usufruir da totalidade do mundo resultante da somatória dos trabalhos humanos.

Na alienação, o homem não se coloca como o agente intencional gerador de suas objetivações. A relação entre indivíduo e objetivações se dá na forma espontânea, não- intencional, na forma de um submetimento, como algo estranho ao indivíduo. A alienação faz do trabalho humano algo estranho ao próprio homem (Cf. MARX, 1985, p. 105-106).

Segundo Heller (1972, p. 37-41), a vida cotidiana pode vir a ser um terreno legitimador da alienação, ao expandir sua estrutura para outras instâncias da vida social, próprias da vida não-cotidiana.

Como já se referiu aqui, uma atividade não-cotidiana exige uma execução

3 E, considerando a realidade alienada, essa lógica é também consumista.

(5)

intencionalmente dirigida, aspecto este completamente oposto a aquele próprio das atividades cotidianas. A atividade não-cotidiana requer, portanto, um modo de agir intencional. Se o modo de agir cotidiano passa a ser referência para o modo de apropriação das objetivações para-si, a espontaneidade e pragmatismo aí inerente que deveria ser superado, passa a ser legitimado. O conteúdo das objetivações para-si passa a ser reduzido a um pragmatismo imediatista retirando a possibilidade de um exercício mais complexo de pensamento.

Se o imediato basta à vida cotidiana, é insuficiente para outros âmbitos da esfera da vida social, nos quais as formas de pensamento exigidas não podem estar restritos a uma compreensão no nível da manifestação do fenômeno, que é próprio do pensamento cotidiano.

Na alienação, esse fenômeno da expansão da estrutura da vida cotidiana para as atividades não-cotidianas torna-se cada vez mais disseminada e, pode-se dizer, cada vez mais necessária para garantir um tipo de conduta não consciente, já que para a perpetuação das relações sociais de domínio e subordinação é imprescindível que haja uma relação não- intencional entre indivíduo e objetivações do gênero humano. Com esta relação não- intencional, assegura-se uma maior probabilidade de não se entender a realidade na essência das suas contradições que são geradas pela divisão social do trabalho, mas que surge aos olhos, de imediato, como algo "naturalmente pré-determinado", como se essa estrutura sempre tivesse sido a estrutura da sociedade. Desse modo, a expansão da estrutura do pensamento cotidiano para as esferas da vida não-cotidiana é um fenômeno que serve à alienação e, como se verá a seguir, compromete a realização de uma prática educativa escolar verdadeiramente crítica. Nesse sentido, se faz necessário refletir sobre a natureza e especificidade do saber escolar, assunto do próximo item.

3. A natureza e especificidade do saber escolar

Considerando o desenvolvimento atingido pelo gênero humano, a formação do homem singular não é suficiente no âmbito da vida cotidiana. A realidade tornou-se tão

(6)

complexa ao ponto de a vida cotidiana não mais ser o suficiente na formação do indivíduo.

Viu-se necessário um espaço próprio para transmissão e apropriação do saber historicamente acumulado, a escola (Cf. SAVIANI, 2003, p.94-103).

Compete à escola, a transmissão e apropriação de um saber metódico, científico, elaborado, sistematizado. Não se trata, portanto do saber espontâneo, não-intencional produzido nas outras instâncias da vida social. Requer intencionalidade para sua apropriação e utilização (Ibidem. p.15),

A educação escolar se constitui numa atividade mediadora entre o saber cotidiano e o saber não-cotidiano, isto é, entre o conhecimento resultante das objetivações em-si próprias da vida cotidiana e as objetivações para-si. A escola é o espaço próprio em que se realiza o processo de ensino-aprendizagem dos conteúdos das objetivações para-si (os conteúdos científicos, os conteúdos que promovam a sensibilidade artística, a postura filosófica, etc)

Percebe-se, portanto, que para a concepção marxista de Educação, a escola é elemento intrínseco para formação da individualidade. Nessa perspectiva, o papel da escola para a formação do educando, é aquele que aponta para a apropriação das objetivações do gênero humano, para a cultura humana considerada na sua perspectiva totalizadora.

Nesse sentido, o acesso à cultura, pela apropriação dos conteúdos escolares, não constitui uma ameaça à autonomia intelectual dos indivíduos, como que uma ingerência no sentido negativo do termo. Muito pelo contrário, é altamente positivo e necessário para a formação cultural do educando.

Nesse sentido, cumpre fazer aqui uma crítica à idéia de “respeito ao aluno”4 com relação aquilo que ele “sabe”, isto é, com relação às formas de apropriação do conhecimento (matemático) na vida cotidiana. O verdadeiro “respeito ao aluno”, “à sua vida cotidiana” não está se restrita à aquilo que o aluno “é”, mas sim, à aquilo que o aluno “está em formação”.

Nesse sentido, acreditar estar valorizando um indivíduo pela restrita utilização daquilo que “ele sabe” não modifica e nem aponta para a superação das condições pelas

4 Trata-se de um “clichê” (frase vazia, sem reflexão, tomada como uma obviedade). As nefastas implicações do uso de “clichês” no universo da prática educativa escolar é muito bem analisada por MAZZEU(1999) e MELLO(2000).

(7)

quais fazem desse indivíduo um marginalizado cultural já que a superação da exclusão não está apenas em considerar o que “sabe” mas em superar as dificuldades pelos quais esse indivíduo não têm acesso a cultura humana em geral, devendo, portanto, garantir a apropriação daquilo que “não sabe”.

Percebe-se, na Educação Matemática, um grande número de pesquisas preocupadas em apontar a matemática que os indivíduos “sabem”, aquelas oriundas do modo de vida no âmbito da cotidianidade. E “aquilo” que esses indivíduos “não sabem ?” É bom lembrar que a vida cotidiana é uma estrutura da vida social alienada e, portanto, limitada e particularizada a cada indivíduo. Não são elementos imprescindíveis para a efetiva realização de um ensino que valorize o indivíduo, aquilo que esses indivíduos “não sabem ?” Portanto, interessa aqui entender que a plena valorização dos indivíduos não se restringe ao que “produzem” mas sim, à apropriação, no âmbito escolar, da sistematização do saber.

Em segundo lugar, como se esclareceu no item anterior, a forma de apropriação no âmbito da vida cotidiana, por se dar segundo raciocínios pragmáticos e imediatos, impõe um

“saber” no restrito nível dessa pragmaticidade e imediaticidade. Portanto, os indivíduos investigados sob o ponto de vista da expressão sistematizada do conhecimento, não sabem o que “sabem” (daí a referência a esse fato em aspas). Isto porque somente através da utilização da matemática escolar (a matemática sistematizada) como um instrumento de análise que é possível decodificar, nas atividades dos indivíduos, a matemática produzida por esses indivíduos5. Sem esses instrumentos eles continuam utilizando o conhecimento matemático de forma pragmática e utilitária, forma própria exigida na esfera da vida cotidiana.

A matéria-prima da atividade escolar é o saber objetivo produzido historicamente (Cf. SAVIANI, 2003). Esse saber, em suas diversas manifestações na estrutura da vida cotidiana, lançam gérmens para atitudes teorizadoras (Cf. DUARTE, 1996). Resta, portanto, entender a dinâmica relacional possível entre o saber matemático escolar e o saber matemático cotidiano, assunto do terceiro, e último, item deste trabalho.

5 Trata-se de se diferenciar “elaboração” do saber de “produção” do saber. Segundo Saviani (2003, p. 77) “a produção do saber é social, se dá no interior das relações sociais. A elaboração do saber implica em expressar de forma elaborada o saber que surge da prática social.”

(8)

4. A relação dialética entre a matemática escolar e a matemática da vida cotidiana.

Até o presente momento, evidenciou-se os limites intrínsecos à natureza do saber cotidiano. Nesse sentido, estaria o autor deste trabalho defendendo um ensino de matemática que desmereça a contribuição do aluno (quanto à matemática de sua vida cotidiana desenvolvida no contexto social de sua comunidade ) no processo de apropriação da matemática escolar ?

Longe disso ! A utilização do saber matemático cotidiano é importante para o desenvolvimento do trabalho educativo escolar. Entretanto, trata-se de uma possibilidade e, além disso, é entendida como um elemento inicial do processo educativo que, devido às suas especificidades, deve ser superado pela apropriação do saber matemático escolar.

A utilização do saber matemático cotidiano é uma possibilidade porque a matemática escolar trabalha com níveis de sistematização cada vez mais complexos, abstratos.

Muitas vezes, por conta dessa complexidade, a apropriação dos conceitos ocorre na relação exclusiva com outros já elaborados anteriormente, impossibilitando ao professor

“achar” sua “aplicação” na vida cotidiana através da caracterização da manifestação cotidiana dos conceitos. A teoria matemática apresenta uma relativa autonomia (jamais absoluta) frente aos problemas da prática social.

Quanto ao fato do saber matemático cotidiano ser elemento inicial do processo educativo que, como tal, deve ser superado, cumpre observar o que se segue:

O saber escolar não advém do “nada”. Como foi dito anteriormente, a matéria- prima da atividade escolar é o saber objetivo produzido historicamente (Cf. SAVIANI, 2003).

O conhecimento matemático se faz presente ao longo das esferas da sua produção, quer na esfera da produção cognoscente relativo aos raciocínios que exigem níveis de abstrações (a esfera do não-cotidiano) sem se limitar a uma relação objectual empírica imediata como fonte geradora de conhecimento, quer no plano cognoscente relativo aos raciocínios mais imediatos próprios da vida cotidiana. Nas diferentes esferas o

(9)

indivíduo elabora hipóteses matemáticas cujos dados são reflexos do conhecimento matemático nessa determinada esfera regida pela atividade do sujeito (Cf. GIARDINETTO, 1999).

Assim, uma forma específica de manifestação do conhecimento acessível aos homens é a sua forma sistematizada e gradualmente trabalhada de acordo com a faixa etária do indivíduo presente na esfera escolar.

Uma outra forma específica de manifestação do conhecimento ocorre no âmbito da vida cotidiana.

Não se trata de conhecimentos distintos (o cotidiano e o escolar), mas sim, de formas de manifestação distintas do conhecimento já produzido pela humanidade.

No cotidiano, o conhecimento é regido por raciocínios que servem eficazmente para dar respostas às tarefas do cotidiano. O conhecimento aí se manifesta regido por uma lógica essencialmente prático-utilitária, própria desse âmbito da vida humana. Os limites dessa eficácia não são adequados a raciocínios complexos necessários para apropriação do saber historicamente acumulado, via escola.

Na vida cotidiana, o indivíduo desenvolve um tipo de raciocínio muito ligado à resposta imediata que ele tem que dar e esse tipo de raciocínio, se tomado como referência para a prática pedagógica, determina limites, pois, cerceia o acesso às formas sistematizadas do saber, dadas as exigências de um raciocínio mais complexo aí presente.

Na escola, o indivíduo tem a possibilidade de aprender a matemática enquanto conteúdo e processo de pensamento. Na medida em que não ultrapassa os raciocínios mais imediatos, se restritos à lógica do cotidiano, ele não só não aprende esse processo de pensamento complexo, como não se apropria das formas sistematizadas do saber matemático determinando a impossibilidade de se objetivar num grau cada vez mais complexo.

Ao impossibilitar-se a apropriação dos instrumentos lógico-conceituais imprescindíveis para elevação do conhecimento matemático para além dos problemas restritos à lógica do conhecimento cotidiano, não se efetiva as condições para superação do nível de entendimento da realidade restrito à mera familiarização e orientação das coisas. A escola, de instituição mediadora do saber cotidiano para o não-cotidiano, passa a se

(10)

restringir aos limites da lógica do cotidiano, transformando-se numa instância legitimadora dessa lógica pragmática e imediata. O conteúdo matemático torna-se restrito aos parâmetros daquilo que pode ser apropriado fora da escola pelo cotidiano. Os conteúdos escolares, em vez de serem apropriados no âmbito do “para-si”, acabam sendo apropriados no âmbito do “em-si” próprio da vida cotidiana. Imprime-se a esses conteúdos um caráter pragmático e imediato, condicionando-os, quanto à sua necessidade de apropriação, a um discurso pragmático do “para que serve?” gerando um esvaziamento da prática pedagógica.

Além disso, é sempre bom lembrar que o indivíduo, no cumprimento de suas tarefas cotidianas freqüentemente associadas ao tipo de trabalho que realiza, cumpre-as inseridas no quadro atual da divisão social do trabalho, um trabalho alienado6. Neste contexto, o indivíduo é obrigado a adquirir um conhecimento que é restrito às respostas necessárias para superação de suas necessidades e que retrata aquilo que foi possível, dentro de um determinado meio social, sob relações sociais alienadas e alienantes, apropriar do existente.

Assim, por exemplo, a criança feirante, o engraxate, o vendedor, não apropria o conhecimento de uma forma "espontânea" e "natural". Na verdade, tais indivíduos objetivam aquilo que as injustiças sociais, através da marginalização aí inerente, os obrigam a aprender por um processo verdadeiramente massificador e autoritário.

A apropriação dos instrumentos lógico-conceituais imprescindíveis para elevação do conhecimento matemático para além dos problemas restritos à lógica do conhecimento cotidiano ocorre segundo um processo regido por uma lógica de superação por incorporação do conhecimento local na relação com o conhecimento escolar:

Trata-se do seguinte: essas duas formas de conhecimento matemático, no processo pedagógico, se opõem e se completam mutuamente. Esses conhecimentos se opõem na medida em que o novo [referindo-se ao saber escolar - JRBG], ao ser assimilado pelo educando, supera o velho (conhecimento prévio do educando [o saber cotidiano “de posse” do aluno - JRBG]) e se completam na medida em que essa superação só se efetiva plenamente quando realiza a incorporação do velho ao novo, do que já era conhecido ao que não o era e passou a ser. A necessidade do novo conhecimento se faz sentir quando o já conhecido se mostra insuficiente para interpretar situações novas. Mas o novo conhecimento só será realmente assimilado, só será incorporado à consciência do educando,

6 Trabalho que constantemente se altera, dada a dinâmica do desemprego.

(11)

tornando-se um de seus instrumentos culturais se se relacionar substancialmente e organicamente com seu conhecimento anterior, de tal modo que o novo seja gerado no seio do antigo como produto do processo de superação por incorporação. (GASPARINI, 1990, p.20).

A manifestação cotidiana de determinado conceito matemático, desenvolvida nas relações entre os homens e para com a natureza em contextos sociais diversos, revela a forma pragmática desse mesmo conceito em sua expressão escolar, expressão sistematizada do saber7. Cabe ao professor de matemática, identificar nas diferentes manifestações da matemática em contextos sociais diversos, aquilo (DUARTE (1989) chama de "núcleos válidos", que propicia “atitudes teorizadoras”), que é possível auxiliar na apropriação da versão sistemática já constituída, passível de ser socializada via escola.

Através da apropriação do saber matemático escolar, o aluno identifica no conteúdo a-escolar, gérmens do conceito sistematizado na versão escolar e, mais importante, os limites desse conteúdo a-sistemático para apropriação da versão sistemática.

5. Considerações Finais

As considerações aqui apresentadas apontaram a necessidade de uma compreensão quanto à natureza e especificidade da estrutura da vida cotidiana, da escola, do saber cotidiano e do saber escolar no âmbito dos Fundamentos da Educação Matemática. Isto porque se constata que a defesa da utilização do saber cotidiano na esfera escolar reflete uma ausência de criticidade quanto à concepção de realidade, de conhecimento, de cotidiano e de escola. Essa defesa é considerada óbvia, aceita sem reflexão e, freqüentemente, permeada de “clichês”.

Norteado pela fundamentação marxista sobre a tais concepções, este trabalho não procurou depreciar o saber cotidiano, mas sim, entender sua especificidade e sua limitação para com a formação do indivíduo.

7 Exemplos em Giardinetto(1999, p. 108-113) e em Gasparini(1990, p.141-238)

(12)

No cotidiano, o indivíduo apropria os conceitos numa forma imediata, forma inerente à atividade cotidiana, não ultrapassando a lógica pragmática que dirige seu pensamento. De limitado avanço (pois na vida cotidiana o indivíduo "aprende" e muitas pesquisas apontam a diversidade dessa produção), o conhecimento adquirido em práticas não-escolares revela-se, diante dos raciocínios práticos-imediatos que aí se apresentam, dificuldades para efetiva apropriação dos conceitos escolares. É de fundamental importância para a atividade escolar a superação, entendida enquanto superação por incorporação, dos raciocínios pragmáticos-imediatos.

6. Referências Bibliograficas

DUARTE, Newton. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski.

Campinas, S.P.: Autores associados, 1996 (Coleção polêmicas do nosso tempo)

_____. A individualidade para-si: contribuições a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1993 (Coleção Educação Contemporânea).

_____. O ensino de matemática na educação de adultos. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989 (Coleção educação contemporânea).

HELLER, Ágnes. Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Península, 2002.

_____. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e terra,1972.

GASPARINI, João Baptista. A Lei dialética da negação da negação na busca de superação da dicotomia entre o conhecimento prévio do aluno e o saber escolar.

São Carlos : UFSCar, Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de São Carlos, 1990.

GIARDINETTO, José Roberto Boettger. Matemática escolar e matemática da vida cotidiana. Campinas: Editora Autores Associados, 1999 (Coleção polêmicas do nosso tempo).

_____. O fenômeno da supervalorização do saber cotidiano em algumas pesquisas da Educação Matemática. São Carlos : UFSCar. Tese (Doutorado), Universidade Federal de São Carlos, 1997.

MARX, K. Manuscritos: Economía y filosofía. Madrid : Alianza Editorial, 1985.

MAZZEU, Francisco José Carvalho. Os “clichês” na prática de ensino: o que há por trás

(13)

desse problema?. São Carlos : UFSCar. Tese (Doutorado), Universidade Federal de São Carlos, 1999.

MELLO, Suely Amaral. Linguagem, consciência e alienação: o óbvio como obstáculo ao desenvolvimento da consciência crítica. Marília, S.P.: Unesp-Marília-Publicações, 2000.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas, S.P.: Autores associados, 2003 (Coleção educação contemporânea)

Referências

Documentos relacionados

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

lhante; linhas vasculares bem v1S1veis, cheias de conteúdo amarelo-pardo, em geral retas; pa- rênquima axial moderadamente abundante, pa- ratraqueal em faixas; raios

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

A Variação dos Custos em Saúde nos Estados Unidos: Diferença entre os índices gerais de preços e índices de custos exclusivos da saúde; 3.. A variação dos Preços em

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de

Ao final do período de consulta, a urna será lacrada e rubricada pelos integrantes da Mesa Receptora e pelos fiscais de chapa, e entregue juntamente com o