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A experiência travesti na escola: entre nós e estratégias de resistências

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

DANIELA TORRES BARROS

A experiência travesti na escola: entre nós e

estratégias de resistências

RECIFE/PE 2014 Programa de Pós-graduaçãoemPsicologia - UFPE

Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 9º andar - Recife/PE CEP 50670-901

Fone: (81) 2126 8730

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Daniela Torres Barros

A experiência travesti na escola: entre nós e

estratégias de resistências

Dissertação apresentada pela Mestranda Daniela Torres Barros ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Prof. Dra. Luciana Fontes Vieira

RECIFE/PE 2014

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291

B277e Barros, Daniela Torres.

A experiência travesti na escola : entre nós e estratégias de resistências / Daniela Torres Barros. – Recife: O autor, 2014.

166 f. il. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Luciana Fontes Vieira.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Pós-Graduação em Psicologia, 2014.

Inclui referências, anexos e apêndices.

1. Psicologia. 2. Travestismo. 3. Travestis. 4. Escolas. 5. Política pública. 6. Identidade de gênero. I. Vieira, Luciana Fontes (Orientadora). II. Título.

150 CDD (22.ed.) UFPE (BCFCH2014-42)

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CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CURSO DE MESTRADO

Experiência das travestis na escola: entre nós e estratégias de resistências

Aprovada em 26/02/2014

Comissão Examinadora

______________________________________ Prof. Drª. Luciana Leila Fontes Vieira

1º Examinador/Presidente

______________________________________ Prof. Drª. Maria Juracy Figueiras Toneli

2º Examinador

______________________________________ Prof. Drª. Karla Galvão Adrião

3º Examinador

Recife 2014

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AGRADECIMENTOS

Ao meu companheiro de vida, que soube me incentivar e (pacientemente) me acompanhar nessa jornada.

Ao bebê que carrego em mim, por ter dividido suas atenções (entre trancos e barrancos!) com minha outra gestação – a dissertação.

À minha mãe e meu pai que sempre acreditaram.

Às participantes da pesquisa, minha irmã e meu cunhado, que tomaram para si parte da responsabilidade com esse projeto.

À Secretaria Municipal de Educação pela abertura quanto ao projeto. À ONG Mulheres do Cabo pela sua hospitalidade.

À equipe do Diálogos, que me acolheu e apoiou nesse empreitada.

À banca examinadora (Juracy e Karla) que ofereceu muitos dos caminhos os quais percorri durante a apresentação do projeto de pesquisa. Bem como no componente curricular, Teorias Feministas e de Gênero, ministradas por Karla e Rose.

À minha (des)orientadora Luciana, às/aos minhas/meus colegas de turma com que muito aprendi ao dividir angústias e delícias ao longo desse mestrado (em especial Luciene, Bruno, Nathália, Roberta e Rocio).

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Se alguém disser pra você não dançar Que nessa festa você tá de fora Que você volte pro rebanho. Não acredite, grite, sem demora... Eu quero ser feliz agora! Se alguém vier com papo perigoso de dizer

que é preciso paciência pra viver. Que andando ali quieto Comportado, limitado Só coitado, você não vai se perder Que manso imitando uma boiada, você vai boca fechada pro curral sem merecer

Que Deus só manda ajuda a quem se ferre, e quando o guarda-chuva emperra certamente vai chover.

Se joga na primeira ousadia, que tá pra nascer o dia do futuro que te adora. E bota o microfone na lapela, olha pra vida e diz pra ela... Eu quero ser feliz agora! Oswaldo Montenegro

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 PERCURSO EPISTÊMICO-METODOLÓGICO ... 18

1.1 Campo epistemológico ... 18

1.2 Natureza da Pesquisa e suas implicações ... 28

1.3 Encontro com o campo ... 32

1.4 Participantes ... 36

1.5 Instrumentos e procedimentos da pesquisa ... 38

1.6 Procedimento de análise ... 42

2 A PRODUÇÃO DE DISCURSOS ACERCA DA EXPERIÊNCIA TRAVESTI ... 50

2.1 O nó da identidade ... 50

2.2 Concepções de travesti: entre o lugar comum e o não lugar ... 54

2.3 Desfazendo os a priori: gênero, sexo e corpo ... 61

2.4 A comédia, o engano aos sentidos e o desvio ... 70

3 POLÍTICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NAS ESCOLAS ... 74

3.1 Travestis: exclusão e vulnerabilidade ... 74

3.2 Leis e Diretrizes no cenário da educação brasileira ... 80

3.3 Educação Sexual nas escolas ... 83

3.4 Saúde e Prevenção nas Escolas ... 88

3.4.1 Gênero ... 89

3.4.2 Sexualidades ... 92

3.4.3 Diversidade Sexual ... 98

4 A ESCOLA E PRODUÇÃO DA DIFERENÇA ... 104

4.1 Escola, poder e modos de subjetivação ... 104

4.2 Travesti e o cotidiano escolar ... 115

4.2.1 O nó do nome ... 122

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4.3.3 A atuação política, a denúncia, o escândalo: um grito de resistência ... 135 4.3.4 “Gay normal”? ... 137 (IN) CONCLUSÕES ... 142 REFERÊNCIAS ... 147 ANEXOS APÊNDICES

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RESUMO

Nossa pesquisa almejou compreender as experiências das travestis no contexto escolar, residentes no município de Cabo de Santo Agostinho/PE. Para tanto, investigamos como se deu o acolhimento das travestis na escola, considerando os aspectos que favoreciam e desfavoreciam sua permanência. Além do mais, analisamos as políticas públicas atuais, no campo da educação, voltadas para a problemática do gênero e da sexualidade, mais especificamente, “Saúde e prevenção nas escolas”, por tratar-se de uma iniciativa implementada em várias escolas brasileiras. Podemos afirmar que esse estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa de cunho interventivo e analítico inspirado em Michel Foucault e em Judith Butler. Assim, foram aplicados questionários sócio demográficos e realizadas oficinas com grupo de travestis, ancoradas na perspectiva de pesquisa participante em Paulo Freire (1984) e permeadas pela noção de

cuidado de si e de práticas de liberdade em Foucault (2010). A realização das oficinas

permitiu a troca de saberes entre si, com as pesquisadoras, como também, a expansão de rede de solidariedade entre as mesmas. Com isso, percebemos diferentes experiências escolares (positivas e negativas) e diversas estratégias de sobrevivência, porém, constatamos o uso do nome social e do banheiro como gargalos/crivos que cerceavam suas existências. Por fim, consideramos que a presença das travestis pode ser uma excelente oportunidade de rever antigas práticas na área educacional brasileira, tradicionalmente comprometida com a reprodução da heteronormatividade.

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Our research has longed to understand the experiences of transvestites in the school context, residing in the city of Cabo de Santo Agostinho/PE. To this end, we investigated how was the host of transvestites in school, considering the aspects that favored/disfavored and its permanence. Furthermore, we analyze the current public policies in the field of education, aimed at the problem of gender and sexuality, more specifically, "Health and prevention in schools", because it is an initiative implemented in several Brazilian schools. This study is characterized as a qualitative research and analytical nature interventional inspired by Michel Foucault and Judith Butler. Thus, socio demographic questionnaires were administered and conducted workshops with group of transvestites, anchored in the perspective of participant research in Paulo Freire (1984) and influenced by the notion of self care and practices of freedom in Foucault (2010). The implementation of the workshops allowed the exchange of knowledge between themselves and with the researchers, as well as the expansion of the network of solidarity between them. Perceive different school experiences (positive and negative) and various survival strategies, however, found the use of social names and bathroom as bottlenecks/riddles that has estricted their stocks. We believe that the presence of transvestites can be an excellent opportunity to review past practices in the Brazilian educational area, traditionally committed to the reproduction of heteronormativity.

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INTRODUÇÃO

O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa do tipo qualitativo, de cunho interventivo e analítico, inspirada na obra de Michel Foucault e tomando como referência também os estudos de Judith Butler.1

Almejamos2, inicialmente, compreender as experiências3 no espaço escolar de travestis residentes no município do Cabo de Santo Agostinho/PE. Para tanto, investigamos como se deu o acolhimento das travestis no cenário escolar, considerando os aspectos que favoreciam e desfavoreciam sua permanência. Além do mais, analisamos as políticas públicas atuais, no campo da educação, voltadas para a problemática do gênero e da sexualidade.

Ao longo da confecção do texto, porém, outras questões se tornaram atraentes, dentre elas a reflexão sobre a noção de travesti que é subjacente ao trabalho, a qual foi enriquecida pelo encontro com as participantes, com os textos da área e com o fazer metodológico. Antes de qualquer coisa, um elemento que merece ser mais bem situado é o termo experiência, presente logo no título desta dissertação. Notadamente, essa palavra vem sendo usada em diferentes contextos e com significados variados. Sandra Azeredo (2010), por exemplo, critica o uso do conceito na psicologia enquanto a adoção de fatos, como dados correspondentes de uma realidade concreta.

Já Avtar Brah (2006), a partir do campo feminista, questiona o uso da experiência, adotado como uma verdade em si, de um sentido de legitimidade. Para ela, a experiência é constitutiva do sujeito, não o oposto; confere significados, portanto, e consequentemente inscreve sujeitos, enquanto Pelúcio (2009) ratifica que o conceito de experiência em Brah contribui para a compreensão dos processos de diferenciação e articulação entre micro e macroesfera, política e social.

Um outro olhar sobre essa noção nos é oferecido por Ricardo Miskolci (2009, p.173), quando apresenta nos estudos Queer a noção de experiência revisitada, completamente marcada pela construção social da diferença:

1 É preciso esclarecer que Foucault e Butler são considerados, de acordo com Maria Rita César (2009) e

Guacira Louro (2004, 2009), como referências para a Teoria Queer e para o Pós-Estruturalismo. 2 O uso da primeira pessoa no plural se refere à mestranda e orientadora.

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A antiga valorização da experiência que marcou o surgimento dos Estudos Culturais é revisitada e refinada analiticamente, a partir da percepção de que não são sujeitos que têm experiências, mas, ao contrário, são experiências que constituem os sujeitos. Assim, elas criam sujeitos marcados por processos sociais que precisam ser reconstituídos, explicitados e analisados pelo pesquisador. A invisibilidade da experiência esconde sua criação social e histórica: os sujeitos marcados pela diferença.

Nessa mesma linha de preocupação com a formação de diferenças, Joan Scott (1998) coloca em evidência o lugar de verdade que ocupa a experiência em algumas abordagens (como fonte de conhecimento na positivista e na fenomenológica) e propõe a experiência empregada como linguagem, em sua dimensão histórica, ao mesmo tempo coletiva e individual. Para Scott (1998, p.24), a experiência é uma forma de “[...] explorar como se estabelece a diferença, como ela opera, como e de que forma ela constitui sujeitos,” mas é sempre uma interpretação, passível, portanto, de questionamentos.

Vale ressaltar que a concepção, por nós empregada, dialoga com as proposições acima, na medida em que enfatiza o aspecto histórico, articula a experiência à linguagem e evidencia os processos de diferenciação. Não privilegiaremos a experiência na busca de uma constituição de um sujeito racional, dono de si, mas a experiência enquanto elemento historicamente situado, pois a produção de um “si mesmo” ocorre a partir de jogos de verdade (FOUCAULT, 1995, 2011b).

Assim, adotaremos a perspectiva de experiência em Foucault. O autor considera o mundo móvel e relativo, dotado de relações de poder que constituem, em sua positividade, experiências, formas de subjetividade (FOUCAULT, 2006). Neste sentido, a experiência seria fruto da articulação entre os seguintes elementos: a formação de saber, a normatividade e a pragmática de si. Essas dimensões dizem respeito, respectivamente, “às formas de um saber possível, às matrizes normativas do comportamento e aos modos de existência virtuais para sujeitos possíveis” (FOUCAULT, 2011b, p.5). Dizendo de outra forma, versam sobre os jogos entre verdadeiro e falso, o modo como se pretende moldar a conduta dos outros e, por último, se relacionam com as técnicas/tecnologias de relação consigo.

Ademais, por entendermos que o conhecimento construído é sempre um conhecimento situado (HARAWAY, 1995), outro elemento a ser sublinhado é o contexto geopolítico no qual se insere nossa investigação.

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Nossa pesquisa encontra-se vinculada, diretamente, ao projeto Diálogos para o Desenvolvimento Social em Suape, uma iniciativa de pesquisa-intervenção e interdisciplinar, que engloba os departamentos de Serviço Social e de Psicologia da UFPE, dentre outras instituições parceiras.4 Financiada pela Petrobras, a ação tem como meta minimizar os impactos sociais ocasionados pela migração maciça de trabalhadores para a subregião do Complexo de Suape, abarcando os municípios do Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca (RIOS et al, 2011).

Dentre as diferentes ações do Diálogos, a nossa pesquisa estava inserida no subprojeto intitulado: Chá de Damas, cujo público-alvo era constituído por mulheres e travestis profissionais do sexo. Resumidamente, o Chá de Damas pretendia conhecer a respeito dessa realidade e incentivar, através de oficinas, práticas de sexo mais seguro em relação às Doenças Sexualmente Transmissíveis e ao HIV/Aids (RIOS et al, 2011).

O município do Cabo de Santo Agostinho, localizado na Zona da Mata de Pernambuco, é considerado uma cidade de porte médio, em termos de habitantes. Em 2012, possuía 189.222 pessoas (BDE, 2012). Tem como principais fontes de renda a exploração turística de suas praias, a monocultura da cana-de-açúcar e, mais recentemente, o complexo industrial e portuário de Suape. Houve mudanças, portanto, no cenário econômico dessa subregião, em decorrência de um forte investimento no complexo portuário.

Essas transformações, no entanto, não parecem ter revertido em diminuição das desigualdades. Observando os indicadores socioeconômicos, podemos ver a discrepância entre o indicador do Produto Interno Bruto (PIB) per capita (que é calculado, tomando a produção de riqueza econômica – Produto Interno Bruto dividido igualmente pelo número de habitantes). Em 2010, somava R$ 24.194,00 por pessoa, destoando enormemente da realidade de renda média domiciliar de apenas R$ 745,10 por pessoa (BDE, 2012).

Por conseguinte, o investimento industrial na região com a chegada de uma quantidade significativa de trabalhadores gerou impactos sociais considerados negativos pelas instituições governamentais, tais como: o aumento de circulação de drogas, de prostituição e de gravidez na adolescência.

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As nossas interlocutoras narraram uma mudança substancial na cultura, na economia da cidade e na cartografia da prostituição, devido à implantação do complexo industrial. Houve um cerceamento maior da Prefeitura no combate à prostituição, associada a ponto de tráfico de drogas, que empurrou a maioria das mulheres e travestis que se prostituíam para regiões afastadas do centro urbano, sendo compelidas a aderirem ao regime das casas de prostituição e a se submeterem a relações mais acentuadas de exploração. Essa mudança dissipou as travestis do centro urbano, que passaram a trabalhar mais isoladamente, alterando a relação de coproteção.

Esse processo de migração da prostituição para zonas mais afastadas provocou uma desarticulação nas redes de proteção entre as mulheres e entre as travestis e impactou diretamente suas vidas, esfarelando laços, como também dificultou o nosso contato com as travestis e, posteriormente, a formação dos grupos para as oficinas.

Por outro lado, os “efeitos colaterais indesejados do progresso” (drogas, DSTs, prostituição, gravidez na adolescência) geraram a demanda e iniciativa da Petrobras de subsidiar o Diálogos, que assumiu a tarefa de minimizar os impactos sociais na comunidade, ao trabalhar com os temas da saúde do trabalhador, direitos sexuais e reprodutivos, protagonismo juvenil e prostituição (RIOS, et al, 2011).

No entanto, gostaríamos de resgatar as contribuições de Gyan Prakash (1994), autora que adota a perspectiva do pós-colonialismo,5no que concerne à necessidade de problematizar a tendência histórica e colonialista em se compreender, avaliar e responder como negativo e insatisfatório o desenvolvimento de uma região, a partir de critérios capitalistas.

Nesse sentido, estávamos em alerta para que a própria chegada ao Cabo do projeto Diálogos não se restringisse à missão de mapear, diagnosticar e mitigar os “problemas sociais,” causados pela instalação do complexo industrial na região. Afinal, corremos o sério risco de reproduzir um padrão colonial, higienista, norteado por um viés epidemiológico de agravo/doença e de prevenção.

A existência do Diálogos, todavia, parece ser o reconhecimento de que o desenvolvimento econômico de uma região não implica, necessariamente, a melhoria das condições de vida de sua população. Pensando em dirimir essa condição de invasores de um grupo de forasteiros intelectuais que irão destrinchar, produzir um saber sobre a população da região de Suape, as estratégias do Chá de Damas e, mais

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precisamente, desta pesquisa, seguiram no sentido de buscar pactuar com as coparticipantes, o quê, como, onde e quando as ações seriam traçadas.

Para realizar, especificamente, a nossa pesquisa, foram aplicados questionários sociodemográficos (ver apêndice A) e realizadas oficinas com grupo de travestis, residentes no Cabo de Santo Agostinho. As oficinas estiveram ancoradas na perspectiva de pesquisa participante em Paulo Freire (1984) e permeadas pela noção de cuidado de

si e de práticas de liberdade em Foucault (2010).

Nessa perspectiva, no primeiro capítulo, intitulado Percurso Epistêmico-Metodológico, objetivamos esclarecer os processos envolvidos na produção da dissertação, o campo epistemológico a partir do qual nos posicionamos, como também apresentamos nossa visão sobre a ciência, do papel da/do pesquisadora/pesquisador6.

Outrossim, antes de adentrarmos na questão da experiência escolar das travestis, consideramos necessário problematizar a própria construção da categoria travesti para não corrermos o risco de naturalizá-la. Para tanto, desenvolvemos o capítulo 2 denominado A Produção de Discursos Acerca da Experiência Travesti, versando sobre os diferentes discursos, no senso comum e no âmbito científico, que dão forma a essa noção.

Consideramos ainda, que seria preciso compreender sobre a conjuntura legislativa e de políticas públicas que dão sustentação à permanência de travestis na escola (ou identificar a ausência delas). Assim, no terceiro capítulo Políticas Públicas para Travesti na Escola, analisamos as políticas públicas atuais no campo da educação, voltadas para o gênero e a sexualidade, mais especificamente, “Saúde e prevenção nas escolas,”7 por se tratar de uma iniciativa implementada em várias escolas brasileiras, e sua importância para as travestis, ao mesmo tempo em que questionamos os limites e potencialidades de uma política de identidade.

Por fim, analisamos no último capítulo, A Escola e a Produção da Diferença, examinando os aspectos que puderam favorecer e desfavorecer a permanência das travestis no âmbito escolar. Com efeito, problematizamos a instituição escolar a partir de uma perspectiva foucaultiana, fazendo diálogo com autores da área educacional, entremeando recortes das falas das participantes para discutir o lugar da escola,

6 Utilizamos a escrita flexionando alternadamente feminino/masculino, masculino/feminino de maneira a evitar a reprodução de uma visão androcêntrica, sem com isso cairmos em seu oposto.

7 Uma iniciativa do Ministério da Saúde em parceria com o Ministério da Educação e desenvolvido pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

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levantando aspectos que foram adversos, positivos e relevantes em suas experiências escolares.

Adiante, discorreremos sobre a relevância deste estudo e a aproximação ao campo, situando, brevemente, elementos da literatura científica.

b) Justificativa e problemática

Desde o início, a aprovação no mestrado me8 fez deparar com o estranhamento causado pela notícia da escolha em estudar sobre travestis. A cada vez que descrevia meu tema de pesquisa, escutava risos, piadas, olhares desconfiados (de baixo para cima, verificando indícios da “minha” travestilidade), quando não ouvia diretamente as questões: “Por que travestis?” “O que é que tem a ver contigo?” “Qual teu nível de

contato com esse universo?” Dava a entender que, para se estudar travesti seria

necessário ser travesti ou pelo menos homossexual para, literalmente, “identificar-se com a causa,” e, ainda, demonstrava que, para a maioria das pessoas, este é um assunto que está à margem, distante e inalcançável.

Não obstante, o espanto e/ou piadinhas, também percebemos um certo encantamento (“Muito interessante!” “Massa!”) e o reconhecimento de ser uma questão pertinente e urgente. Este impacto, permeado de deslumbre e de inquietação, pode ser mais bem compreendido, a partir de Marcos Benedetti (2005, p.132), quando destaca o abalo causado pela figura das travestis:

É a não adequação aos olhos do senso comum, entre os significados dos seus corpos e os de suas práticas: social e sexual, que confere aos travestis um poder especial ambíguo, uma aura subversiva e perigosa, mas ao mesmo tempo sedutora e libertária.

Os sentidos descritos remontam à ideia de seres dotados de uma capacidade de viver no “entre”, pensamento inserido dentro de uma lógica binária de divisão sexual, a qual está colada, atualmente, a inteligibilidade humana.

Seguimos respondendo ao questionamento recorrente do meu interesse nesse tema. Pode-se dizer que partiu das inquietações do cotidiano enquanto psicóloga, numa escola pública profissionalizante localizada no município de Vitória de Santo Antão – PE. Com a chegada de algumas travestis nessa instituição, emergiram atos e discursos

8 O uso da primeira pessoa do singular ocorre para evidenciar a pesquisadora em sua relação com as participantes.

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de cunho preconceituoso, dúvidas, sobretudo a respeito do uso do banheiro e do nome social – elementos que vêm sendo debatidos e questionados pelo movimento político de travestis, transexuais e transgêneros (BANDEIRA, 2009; CRUZ, 2011; PRÓCHNO; ROCHA, 2011; JUNCAS; SILVA, 2008).

Imersa nessa situação, fui convocada a enquadrar e a orientar as travestis9 a terem um comportamento menos espalhafatoso ou afetado, com o objetivo de fazer com que não chamassem atenção. Assim, mais uma vez o lugar reservado para a Psicologia foi o da normatização dos sujeitos. Vale lembrar as contribuições de Conceição Nogueira (2008, p.238), ao criticar a psicologia e sua articulação entre o poder disciplinar e a normatividade, corroborando com os mecanismos de vigilância dos corpos pautada numa moralidade:

Para a prática da vigilância, é necessário informação acerca das pessoas para depois ser usada com o fim de estabelecer normas de “saúde” ou de comportamento moralmente “aceitável”, normas em face das quais as pessoas são avaliadas ou se avaliam a si próprias.

Resistindo a tal perspectiva, busquei trilhar outros caminhos, menos retos, menos estreitos, que questionassem o saber psicológico atrelado ao compromisso de ajustar pessoas às normas sociais. Deste modo, consideramos que este estudo se alinha à proposta de João de Oliveira (1993), para uma psicologia crítica feminista: uma Psicologia que se comprometesse a detalhar os processos como as normas constroem e constituem os sujeitos e movimentos de resistência e que estuda o modo como o referencial de humano conduz às relações de exclusão e de inclusão. Com esse espírito, busquei respaldo na literatura científica, porém sem obter muito êxito. Pois, pouco havia sido escrito sobre a tal proposta, o que foi confirmado, posteriormente, por Luma de Andrade (2012), em sua tese “Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa.”

Em 2011, conversei informalmente com uma estudante travesti, de 22 anos, da-quela escola, sobre a intenção de me debruçar nessa seara, investigando como se dava a inserção das travestis no contexto escolar. Ela mostrou-se bastante interessada em colaborar e contente com essa iniciativa. Repercussão semelhante aconteceu em 2012, após apresentação da proposta da pesquisa do mestrado, no III Encontro de Travestis e Transexuais de Pernambuco, na cidade do Recife. As situações narradas fortaleceram

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imensamente o anseio de investir nesse campo rico e desafiante. Essa preocupação em escutar os diversos atores envolvidos alinha-se com a concepção de pesquisa participante defendida por Carlos Brandão (1984), na qual o/a pesquisador/pesquisadora não deve determinar sozinho/sozinha aquilo que vai estudar, mas consultar seus pares, movimentos sociais, grupos de base, já que entende a produção de conhecimento como uma estratégia política e um procedimento coletivo.

Nessa perspectiva, Peters e Besley (2008) indicam a relevância de estudos no campo educacional, com base em Foucault, devido à sua importante contribuição, para repensar elementos, como a escola, a disciplina e a liberdade.

Investigando os estudos no campo educacional, percebemos o consenso para diversos/as autores/as de que o acesso e a permanência das travestis vêm sendo represado pelas posturas negativas de colegas e de funcionários, pela omissão ou estímulo de figuras de autoridade com relação à violência por elas recebida (ABRAMORAY, 2004; ANDRADE, 2012; CRUZ, 2011; DINIZ; LIONÇO, 2009; JUNCAIS; SILVA, 2008; PERES, 2005, 2009). De tal sorte, que Berenice Bento (2011) coloca em xeque o uso do termo evasão escolar e prefere caracterizar essa situação específica das travestis, como exclusão.

A respeito dessa exclusão das travestis, Judith Butler (2010), referência nos estudos de gênero contemporâneos, a considera decorrente da transgressão da norma de gênero que torna os corpos inteligíveis, definindo o que é uma pessoa e o que ela precisa ser e fazer, quais as normas e práticas deve-se respeitar para ser reconhecida como humana. Nesse âmbito, travestis, transexuais e transgêneros são mais passíveis de violência por atravessarem e embaralharem a norma de gênero e a aparente coerência entre sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2010). Este aspecto é reiterado por Guacira Louro (2004), ao afirmar que a existência travesti expõe as fragilidades das fronteiras de gênero, gerando resistência e violência.

Um agravante para as travestis que frequentam a escola, levantado por Ivan Juncais e Gisele Silva (2008), é que essa passagem obrigatória, muitas vezes, marca negativamente as suas trajetórias de vida. Em consonância, um estudo ampliado, realizado em escolas públicas de 11 capitais brasileiras, constatou a existência de preconceito e dificuldade em abordar o tema da diversidade sexual em todas as instituições de ensino, sobretudo quanto a travestis e transexuais. O relatório concluiu, dentre outras coisas, que é preciso “investigar melhor a situação de travestis e transexuais nas escolas e os motivos do abandono escolar” (REPROLATINA, 2011,

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p.65).Apesar do quadro pessimista acima desenhado, os trabalhos mais recentes de Luma de Andrade (2012), Marília Amaral (2012), Davi Dairrelet et al (2012), Eliana Quartiero e Henrique Nardi (2011) apontam a emergência de novas situações: a permanência de jovens travestis nas escolas e em suas famílias ou mesmo a presença de docentes e gestoras travestis na rede pública.

Diante desse cenário multifacetado, nos preocupamos ao longo da construção dessa pesquisa com a sinalização de Jardel Silva (2008), segundo a qual é preciso ter cuidado para não enquadrar, objetificar os sujeitos da pesquisa, afogando-os somente em teorias e hipóteses. De fato, pensamos no risco de a nossa pesquisa servir apenas para confirmar a existência de preconceito na escola contra travestis: afirmação esperada e anunciada. Destarte, estávamos atentas para não reproduzir as teorias em que as vozes das travestis apenas as ilustrariam e as reafirmariam.

Sendo assim, nos identificamos com o postulado ético, segundo o qual é preciso que a ciência abra mão de sua paixão pela verdade, em que a valorização da utilidade (para que serve?) funcionaria como critério para considerar ou não tal teoria ou método (SILVA, 2008). Em suma, esperamos que esta pesquisa possa ter uma função social de tornar as travestis visíveis, no contexto escolar e, ao mesmo tempo, problematizar a ausência delas nesse espaço. Neste sentido, nos apropriamos da proposta de Alfredo Veiga-Neto (2007), segundo a qual muito mais importante do que perguntar “o que é isso?” é “[...] examinarmos como as coisas ocorrem e ensaiarmos alternativas para que elas venham a funcionar e acontecer de outras maneiras” (VEIGA-NETO, 2007, p.19).

Nesta perspectiva, é possível indagar: o que acontece nas escolas que torna inviável a permanência de muitas travestis? E, mais especificamente: como as travestis, residentes do município do Cabo, experienciam/experienciaram a escola? Como foi o seu acolhimento? Como se constituiu o processo de permanência na escola? Quais aspectos favoreceram e desfavoreceram a sua permanência no âmbito escolar? Estas questões nortearam nosso olhar, nossa escrita.

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1 PERCURSO EPISTÊMICO-METODOLÓGICO

Ao longo deste capítulo, pretendemos discorrer, brevemente, sobre as diferentes correntes de pensamento que nos atravessaram, como singelo intuito de compartilhar com os/as leitores/as os diferentes modos e lugares que nos situamos ao longo da construção da pesquisa. Nessa perspectiva, refletimos sobre o lugar da ciência e da ética, buscando esclarecer sobre a noção de pesquisa adotada, bem como os seus procedimentos metodológicos e analíticos.

1.1 Campo epistemológico

De antemão, consideramos importante esclarecer de que lugar falamos, não do ponto de vista de lugar social, mas de um olhar. Afinal, partimos do pressuposto de que a ciência não é isenta de posicionamentos éticos e políticos. Muito pelo contrário, ela se encontra, desde seu nascimento, imbricada com essas questões. Pois, se o projeto da ciência é o de encontrar a verdade (mesmo que provisória), esse discurso com valor de verdade tende a dirimir, deslegitimar outros possíveis enunciados10 (FOUCAULT, 2008).

Por conseguinte, situamos que nosso campo epistemológico é influenciado por diferentes correntes de pensamento, sobretudo pelo pós-estruturalismo e pela teoria

queer que foram construídas por saberes interdisciplinares (tais quais antropologia,

filosofia, ciências sociais, história, literatura...). Ambas foram inspiradas em variados movimentos sociais que questionaram alguns aspectos considerados eminentemente científicos, como a busca pela verdade, calcada na racionalidade, e o consequente estabelecimento de padrões normativos formados pela mesma.

Nesta perspectiva, iremos discorrer como esses campos de saber (pós-estruturalismo e queer) foram atravessados pelo pós-modernismo, feminismo, estudos pós-coloniais que se retroalimentaram, adquirindo focos diferentes. Antes de qualquer coisa, porém, é preciso situar nosso entendimento sobre a modernidade e pós-modernidade, condições sócio-históricas de surgimento de diferentes discursos.

De acordo com Stuart Hall (2006), a modernidade foi um período histórico ligado aos valores da Revolução Francesa, ou seja, comprometida com os valores da

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igualdade, da liberdade e da racionalidade. Momento no qual a ciência avançou enquanto saber hegemônico, em que se desenvolveram e se consolidaram os Estados-nação e os valores democráticos.

José Ternes (1995), por sua vez, atribui a modernidade à centralização do pensamento no humano (sujeito transcendental), como ponto de partida para a compreensão de todas as coisas, o que Foucault (2008) criticou ironicamente, como “sono antropológico.” Esta expressão esboçava uma crítica na centralidade do ser humano, como a priori para a compreensão do mundo enquanto um pressuposto inadequado, visto que o sujeito é uma construção social, ou seja, o humano é sempre contingencial.

O autor se interessa, portanto, pela conformação do humano como objeto de investigação e das racionalidades que deram condição para sua emergência no discurso científico “como ocorre que o sujeito humano se torne ele próprio um objeto de saber possível, através de que formas de racionalidade, e de que condições históricas, e, finalmente, a que preço?” (FOUCAULT, 2008, p.318).

Assim, muito mais lhe interessava como se construíram discursos enquanto valores de verdade como alicerces da modernidade, estabelecendo diferentes epistemes,11 diferentes racionalidades do que a crítica pura da razão. Neste sentido, a modernidade é entendida pelo autor, dentre outros aspectos, pela preocupação com a compreensão da atualidade, pela edificação do sujeito autônomo, um período no qual houve transformações no sentido de fortalecimentos institucionais e de mudanças tecnológicas que alteraram a relação do ser humano consigo mesmo.

Em suma, considera-se o sujeito eminentemente racional e dono de si, perfeitamente responsável por suas ações, constituindo-se como fruto da aliança entre o projeto científico iniciado pelo Iluminismo12 – de lançar luz e de conhecer todas as coisas através da razão e de métodos objetivos – juntamente ao ideal liberal13 de autonomia individual e de cisão do sujeito com o mundo (DANELL, s.d; FOUCAULT,

11 A episteme é utilizada na obra de Foucault, sobretudo no período arqueológico quanto à formação de discursos, enunciados que separam o que seria cientificamente verificável, produzindo a separação entre verdadeiro e falso (CASTRO, 2009; FOUCAULT, 2008).

12 O Iluminismo surge no Ocidente, em meados do século XVIII, em oposição à idade e à ciência Medieval, com intenção de lançar luzes e esclarecimentos sobre o mundo, o ser humano e através dos rigores científicos e metodológicos chegar à verdade (FOUCAULT, 2008).

13 O liberalismo surgiu no séc. XVIII como um governo com a promessa de ampliação da liberdade (antes de mais nada, seria uma técnica de governo). Foi condição para o desenvolvimento das formas econômicas modernas, ou seja, do capitalismo (FOUCAULT, 2008d).

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2008; PETERS, 2000). Não obstante, o sujeito moderno permanece descolado de sua contingência histórica.

Hannah Arendt (2004)14 assevera que o conceito de um sujeito moderno único acarreta a delimitação de não sujeitos políticos, de minorias destituídas do direito à palavra e à ação, através da tentativa de supressão das diferenças. Questiona o ideal moderno de igualdade, que busca indispensavelmente normatizar.

Nesse cenário, concordamos ainda com Adriano León sobre a permanência, ainda hoje, dos referenciais da Modernidade, na qual “é estruturada a partir de uma linguagem que baliza as diferenças, nega as ambivalências e institui uma forma unidimensional de pensar o mundo e as criaturas” (LEÓN, 2012, p.9).

No âmbito acadêmico, um movimento intelectual denominado estruturalismo surgiu se preocupando com o mundo atual, a cultura, a compreensão da modernidade (FOUCAULT, 2008). Seria retratado como um novo modo de pensar, delineado por autores de diferentes áreas de conhecimento (psicanalistas, linguistas, antropólogos, dentre outros, destacando-se Lacan, Saussure, Lévi-Strauss e Karl Marx), que buscaram a compreensão do mundo, do Homem e da realidade (HALL, 2006).

Essa corrente realizou crítica à racionalidade, provocando alguns deslocamentos no sujeito humanista universal, ao destacar o ser humano construído socialmente, seja através das relações econômicas, do atravessamento da linguagem ou da organização cultural. Nesse sentido, rompe com a separação dual sujeito/ambiente ao buscar compreender o indivíduo e a realidade, a partir dos sistemas de significados culturais vigentes (FOUCAULT, 2008; HALL, 2006; PETERS, 2000).

Foucault (2008), todavia, considera o estruturalismo15 uma categorização um tanto quanto arbitrária, por enquadrar e restringir pensamentos diversos, que tendem a agrupar autores interessados em compreender aspectos, como a linguagem, a influência das religiões, as organizações culturais (alguns deles nem se reconhecem enquanto tal ou quando elaboraram suas teorias não havia se formado essa noção).

Como consequência e produção de diferentes deslocamentos desse sujeito humanista, Michael Peters (2000) descreve o momento histórico, do ocidente, denominado de pós-modernidade. Este período pode se referir em seus diferentes

14 Apesar da autora não fazer parte da mesma linha teórica do pós-estruturalismo, utilizamos esse aspecto de sua abra conforme Deleuze incita a usarmos mais livremente dos conceitos e teorias, como ferramentas úteis para situadas finalidades (FOUCAULT, 2005b).

15 Para adensar a discussão sobre o estruturalismo, ver a obra de Foucault organizada enquanto Ditos e Escritos (2008).

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aspectos a um movimento artístico e cultural, com sua primeira definição na arquitetura. Seria um termo para definir uma nova época, um período ligado à contestação de meta-narrativas (teorias que se pretendiam universais), da razão e da liberdade – valores essenciais à modernidade.

Nessa fase, as metanarrativas são desconstruídas como explicações universais, na medida em que são percebidas em seus lapsos e em suas falhas. Tomaz da Silva (2011, p.258) demonstra que:

as metanarrativas, em sua ambição universalizante, parecem ter falhado em fornecer explicações para os multifacetados e complexos processos sociais e políticos do mundo e da ansiedade. A dependência em relação às metanarrativas políticas tem revelado uma tendência a produzir regimes totalitários e ditatoriais.

Assim, o autor nos alerta sobre as metanarrativas universalizantes e suas imbricações totalizantes, tendo como consequência última a aliança e a conformação de regimes totalitários, a tendência em apagar diferenças e em sufocar divergências.

Resumidamente, a pós-modernidade é considerada um período transicional, fortemente influenciado por movimentos sociais e culturais, tais quais: de feminismo, ecológico, de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), negro, indígena, pelas manifestações de arte contemporânea, pela queda dos governos socialistas e pelos estudos culturais. Período em que instauraram o questionamento das metanarrativas, com a desconstrução de identidades fixas e o borramento dos limites demarcados entre esferas públicas e privadas durante a modernidade (ARENDT, 2004; HALL, 2006).

Segundo Hannah Arendt (2004) e Stuart Hall (2006), o feminismo foi um dos responsáveis pelas rupturas pós-modernas do questionamento à democracia representativa, pela diluição entre público/privado, através da problematização das implicações políticas na dimensão privada e pela defesa da diversidade na construção de uma nova forma política da pluralidade. Esse movimento social reverberou no meio acadêmico, através da suspensão da racionalidade científica, sobretudo no tocante ao princípio da neutralidade (LOURO, 2004, 2011; GERGEN, 1993; HARDING, 1996). Pois, o feminismo revelou, claramente, a implicação relacional do sujeito-objeto na

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construção de seu saber e a importância de que esse saber esteja compromissado com transformações sociais, tal como descreveu Keneth Gergen (1993).16

Reforçando tal assertiva, trazemos à baila a crítica contundente ao conhecimento científico, proferida pela feminista Donna Haraway (2009, p.64), na obra Manifesto

Ciborgue (um dos marcos teóricos da teoria queer):

As tecnologias e os discursos científicos podem ser parcialmente compreendidos como formalizações, isto é, como momentos congelados das fluidas interações sociais que as constituem, mas eles devem ser vistos também como instrumentos para a imposição de significados. A fronteira entre ferramenta e mito, instrumento e conceito, sistemas históricos de relações sociais e anatomias históricas dos corpos possíveis (incluindo objetos de conhecimento) é permeável. Na verdade, o mito e a ferramenta são mutuamente constituídos.

Dentro de um contexto de construção de tecnologias, os discursos científicos, os mitos e as ferramentas funcionam, igualmente, como aspectos que se cruzam e se constituem, ao mesmo tempo em que criam realidades e moldam comportamentos.

Outrossim, o projeto feminista seria para Tânia Swain (2000) o de analisar a articulação entre sexo, corpo e sujeito na conformação de experiências “generizadas”, ou experiências de gênero, processo que é perpassado pelo discurso e saber-poder científico.

Esse movimento favoreceu ainda a desconstrução da universalidade do sujeito, denunciando o indivíduo representado universalmente como homem branco e as exclusões de outros sujeitos produzidos por essa imagem dominante. Demonstrando a abstração do conceito que mascara sua figuração, calcada na atribuição de diferenças e desigualdades e na hierarquização dos corpos. Nas palavras de Joan Scott (2005, p.23):

A ficção do indivíduo abstrato, desencorporado, é uma grande virtude da teoria democrática liberal; foi feita para garantir a igualdade completa perante a lei. Na sociedade, entretanto, os indivíduos não são iguais; sua desigualdade repousa em diferenças presumidas entre eles.

Ou seja, realiza uma crítica contundente à universalidade dos marcos políticos vigentes, ao desconfiar da igualdade prevista em leis, aspecto central no projeto democrático liberal, pois não dá conta das diferenças e desigualdades contingenciais e tende, ao contrário, a suprimi-las.

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Semelhantemente ao feminismo, o pós-estruturalismo desenvolveu-se como um discurso de crítica e de novidade aos valores e práticas vigentes (DANNER, s.d). Tem como características a crítica ao realismo; ao sujeito humanista e autônomo; à racionalidade científica; e ao projeto do iluminismo de descobrir a realidade, encontrar a verdade, produzir generalizações e construir universais (PETERS, 2000; SILVA, 2011). As correntes do pós-estruturalismo e do feminismo compartilharam nítidas críticas e ceticismo aos paradigmas filosóficos e políticos do século XX:

O pós-estruturalismo e o feminismo contemporâneo são movimentos de fins do século XX, que compartilham uma certa relação crítica autoconsciente diante das tradições política e filosófica estabelecidas (SCOTT, 1999b, p.203).

O pós-estruturalismo foi primeiramente nominado nos Estados Unidos da América para designar uma corrente de pensamento no âmbito acadêmico (DANNEL, s.d.; PETERS, 2000). Todavia, Dannel (s.d.) olha com desconfiança para a formação dessa noção, por se tratar de uma leitura a partir do âmbito da literatura estadunidense que esmaeceu os aspectos de relações de poder, resistência e as diferenças, tão caras e potentes nessas diversas teorias conclamadas “pós-estruturalistas.”

De toda forma, observando essa perspectiva podemos compreender o pós-estruturalismo como um “modo de pensamento, um estilo de filosofar, uma forma de escrita, embora o termo não deva ser utilizado para dar qualquer ideia de homogeneidade, singularidade ou de unidade” (PETERS, 2000, p.28). Convive, portanto, com teóricos diversos da literatura, feminismo, ciências sociais, filosofia, dentre outros.

Um emblemático autor, importante influência para esse campo, foi Friedrich Nietzche (2010, p.99). No tocante ao jogo de verdade, disparou sobre o conhecimento, golpeando a ciência:

A maior fábula inventada foi a do conhecimento. Gostaríamos de saber como são feitas as coisas em si: ora, não há coisas em si. Mesmo supondo que houvesse um “em-si”, um absoluto, por essa mesma razão não poderia ser conhecido. O incondicionado não pode ser conhecido; sem o que não seria mais incondicionado. Conhecer é sempre “entrar em relação com alguma coisa.”

Dessa maneira, pode-se entender que o conhecimento, por ser um ato relacional (na qual estamos implicadas/implicados), portanto, é sempre parcial. Por conseguinte,

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perde-se o álibi da neutralidade presente no pensamento iluminista, positivista, como ponto de apoio para ser a revelação inconteste da verdade.

Essa corrente de pensamento (pós-estruturalista) não nega ou repudia a existência do sujeito ao rejeitar o sujeito senhor de si, eminentemente racional, universal, autônomo, proveniente de uma herança liberal e iluminista, típica da modernidade (BUTLER, 1992). Não visa a sua morte, mas o aniquilamento dessas qualidades fixas, imutáveis, e o reposicionamento dos aspectos históricos e culturais. Desse modo, o pós-estruturalismo “enfatiza a constituição discursiva do eu – e a localização histórica e cultural do sujeito” (PETERS, 2000, p.36).

É importante ressaltar que, comumente, são confundidos os limites entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Conceição Nogueira (2008) e Joan Scott (1999b), feministas com tão forte influência do pós-estruturalismo, que chegaram a se denominar pós-feministas,17 buscaram demarcar melhor as fronteiras entre estruturalismo e pós-estruturalismo, colocando a linguagem no centro de suas análises.

As duas teorias afirmam que a linguagem é concebida a partir do seu entrelaçamento com o sujeito e com a realidade, realizando uma mudança no foco do indivíduo para o seu redor: “Através da insistência na linguagem, como fonte para o significado da experiência, estruturalistas e pós-estruturalistas deslocaram o centro de atenção, da pessoa individual para a esfera social” (NOGUEIRA, 2008, p.236). Esta mudança desloca o sujeito racional preexistente à linguagem e demarca a sua emergência sob a condição sócio-histórica.

Entretanto, rompendo com a tendência universal dos estruturalistas, os pós-estruturalistas insistiram que as palavras e os textos não possuem um significado fixo e imutável, marcando e sendo marcados pelo seu contexto cultural e histórico (SCOTT, 1999b). Além do mais, os deslocamentos dos significados e as relações de poder assumem extrema relevância:

O significado é sempre contestável: isto quer dizer que em vez de a linguagem ser um sistema de sinais com significados fixos com os quais todas as pessoas concordam, é um lugar de variabilidade, desacordo e

17 O pós-estruturalismo influenciou o feminismo de modo tão intenso que Beatriz Preciado (1996) chegou

a delinear um pós-feminismo. Um movimento feminista atravessado pelo pós-estruturalismo e pelos estudos colonialistas, o qual se debruça sobre a interseccionalidade entre sexo, gênero, raça, nos processos de diferenciação, sem, obviamente, estabelecer essências.

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potencial conflito. E quando se fala de conflito, está-se a lidar inevitavelmente com relações de poder (NOGUEIRA, 2008, p.237).

A não fixidez dos significados no pós-estruturalismo se desdobra na alteração das noções de identidade, pois ela não é fixa, mas fluida e contingente, perpassada por relações de poder (FURLANI, 2005; NOGUEIRA, 2008). De modo geral, o sujeito pós-estruturalista pode ser notado como descentrado, “[...] maleável e flexível, estando submetido às práticas e estratégias de normalização e individualização que caracterizam as instituições modernas” (PETERS, 2000, p.33).

Dito de outra maneira, os modos de subjetivação estariam sempre em aberto, nunca completamente constituídos, mas continuamente produzidos e instaurados através de mecanismos de poder (BUTLER, 1992), observando que essa mecânica do poder não é fechada para novos jogos e subversões (BUTLER, 2009). Segundo Butler18 (2002b, p.167), o sujeito emerge dentre as regras, ao mesmo tempo em que o seu arranjo pode modificá-las.

a noção de sujeito carrega com ela uma duplicidade que é crucial enfatizar: o sujeito é aquele que se presume ser a pressuposição do agenciamento, como vocês sugerem, mas o sujeito é também aquele que está submetido a um conjunto de regras que o precedem.

Essa incompletude do sujeito19 desdobra-se no próprio fracasso da sua representação, pois “cada sujeito está constituído sobre diferenças, e o que é produzido como o ‘exterior constitutivo’ do sujeito nunca pode passar a ser totalmente interno ou imanente” (BUTLER, 2004, p.18).

Em consonância com o pós-estruturalismo, nos estudos queer, as identidades são categorias analíticas consideradas eminentemente nômades, fluidas e inexatas (LOURO, 2004). Em relação à subjetividade e às identidades, Wiliam Peres (2012, p.541) descreve:

Partimos do pressuposto de que a subjetividade se processa no registro do social e, como tal, é sempre datada historicamente, atravessada por relações de saber/poder/prazer evidenciadas por lógicas discursivas que tanto podem normatizar, como singularizar a fabricação dos sujeitos. Nesse sentido, a subjetividade não tem nada a ver com interioridade, com uma essência metafísica de constituição dos sujeitos, pois traz em seu bojo constituinte

18 Traduzimos a obra da autora ao longo dessa dissertação.

19 Adotaremos a noção de “formas de subjetivação” (FOUCAULT, 1995), proposta por Foucault, conforme descrito no item 1.6, p. 45, deste trabalho.

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elementos de classe social, de raça/etnia, de sexo, de sexualidade, de orientação sexual, de gênero, de geração, de grupo, de nacionalidade.

Como se pode verificar nas definições acima, as subjetividades seriam, ao mesmo tempo, causa e efeito de relações de poder. Produzem sujeitos diferentes da perspectiva iluminista (sujeito ontológico, uno, autônomo e racional), ou seja, fabricam sujeitos parciais, fragmentados e contingentes.

Pode-se afirmar que a teoria queer foi construída com base no feminismo, nos estudos culturais, no pós-estruturalismo, nos ativismos anárquicos, questionando os conceitos tradicionais de sujeito, de identidade, propondo com isso percepções mais fluidas, denunciando padrões normativos (LEÓN, 2012; LOURO, 2004, 2009; MISKOLCI, 2009).

Essa linha de pensamento retoma os estudos de diferença em Derrida, as noções em Foucault de tecnologia, de poder, de norma (autores comumente considerados pós-estruturalistas) com o interesse pelos desvios, pelas estéticas negativas, pela denúncia e desconstrução de binarismos, das identidades como entidades isoladas e fixas (LOURO, 2009; MISKOLCI, 2009; PRECIADO, 1996).

A origem do termo Queer é capaz de ilustrar um pouco da sua proposta. A palavra é proveniente do inglês e tinha a conotação de insulto, podendo ser traduzida como estranho, esquisito, bicha. Esse uso foi reapropriado de maneira transgressora pelo movimento de putas, gays, lésbicas, negras, ao final dos anos 1980, nos EUA, que se denominou queer, ou seja, uma forma de posição subjetiva que busca estranhar o que é tido como normal (LOURO, 2004; PRECIADO, 1996).

Frequentemente, os estudos ancorados na teoria queer voltam-se para grupos socialmente estigmatizados, como travestis, transexuais, intersexos, com a intenção de compreender os processos de normatização nos quais estamos enredados e a produção e a subversão dos discursos totalizantes e autoritários (MISKOLCI, 2009).

Outrossim, a teoria queer enfatiza as relações de poder: “as teorias queer trabalham com uma noção de opressão transversal na qual o poder não se articula nem se resolve na forma de posições dialéticas” (PRECIADO20, 1996, p.400). Para a compreensão dos discursos totalizantes e na produção de resistências, a teoria queer inspirou-se também nos estudos pós-coloniais.

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Estes últimos tiveram como marco fundacional os estudos subalternos, no sul da Ásia, durante os anos 1970, com o questionamento das estruturas de dominação Ocidentais, os quais fizeram repensar as tradicionais binaridades colonizador/colonizado, Ocidente/Oriente (PRAKASH, 1994).

Prakash (1994), no seu artigo Estudos Subalternos como Crítica Pós-Colonial (trad. nossa), remete referências em Marx, Foucault, Gramsci e do pós-estruturalismo para esse movimento/corrente de pensamento. Apresenta como seu cerne a ênfase nas relações de exploração internacionais, relações de dominação sedimentadas (imperialismo, capitalismo), olhando para as suas falhas, os impasses, a formação de silêncios e suas reapropriações.

Desse modo, em lugar de enxergar a teoria queer como uma infiltração americana ou mais um modo de colonialismo, Preciado (1996) propõe o oposto, compreender tal teoria em continuidade com as teorias pós-coloniais. Richard Miskolci (2009) as chama de teorias subalternas,21 visto que procuram realizar traduções parciais, cópias inautênticas que podem desembocar em deslocamentos, descolonizações, por fazerem críticas aos discursos hegemônicos ocidentais e terem raízes nos estudos culturais.

Com isso, reconhecemos a importância dos estudos pós-coloniais para os estudos queer e para a nossa pesquisa, apesar de estranharmos a viabilidade do uso “pós” antes do “coloniais”. Pois, mesmo entendendo que esse prefixo indica uma posição crítica, pode acabar por passar, sem assim desejar, a ideia de que não mais existe uma continuidade nos padrões de dominação coloniais.

Nas correntes de pensamento citadas, não existe neutralidade nos discursos e é fundamental a análise do poder e de seus efeitos (BUTLER, 1992; FURLANI, 2005; PETERS, 2000). A partir desses estudos, Butler (1992) questiona a pretensão estruturalista de encontrar estruturas universais comuns a todos os seres humanos. Assim, o termo universalidade toma um lugar fundamental para pensar os seus efeitos e evidenciar os processos de colonialismo, pois toda universalidade (tentativa de generalização, em escala global) é normativa e violenta, por necessariamente restringir a existência ao imprimir padrões (BUTLER, 2004).

Todas essas teorias e movimentos mencionados fraturaram as grandes teorias (metanarrativas), os universais, as fronteiras de nacionalidade, de ciência, de verdade,

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ao expor situações particulares e díspares e reposicionar a história e o saber científico, como possíveis modos de colonização e de dominação.

Diante dessas considerações, tentamos trilhar cautelosamente os caminhos dessa dissertação, com esse espírito de humildade e receio diante da constatação da ciência, como mais uma invenção humana e um possível aparato normatizador.

Com base nessas reflexões, buscamos questionar, nos inquietar. Olhar de outro modo coisas tidas como dadas apareceu-nos como um convite. Um convite ao repensar constante de nossos caminhos e descaminhos, à desnaturalização, à desestabilização, ao reconhecimento de nossa compreensão incompleta dos processos de construção e articulação dos conceitos, saberes, discursos e verdades.

1.2 Natureza da Pesquisa e suas implicações

Antes de adentrar, propriamente, nos meandros da natureza da pesquisa, se faz mister refletirmos sobre a metodologia e seus prováveis efeitos de verdade. Neste sentido, Lucía Rojas (2012, p.1, trad. nossa) nos alerta como uma ficção garantiria legitimidade, através da eliminação das incertezas dos processos de construção do conhecimento:

[...] uma metodologia é sempre uma ficção. Como uma biografia, um corpo, uma identidade. Quando penso a figura da metodologia, especialmente na academia, imagino como um algoritmo, um conjunto de regras sucessivas que têm como objetivo eliminar a dúvida em torno dos procedimentos. Ora, se a metodologia é uma construção humana, historicamente situada, artificial e forjada, nos parece evidente que ela é, possivelmente, falha. Em outras palavras, a escolha de instrumentos respaldados, cientificamente, não garante uma pesquisa eticamente viável ou que haverá a descoberta de uma resposta única, com valor de verdade absoluta.

É comum a definição da metodologia como um meio, um caminho em busca da verdade. Para Veiga-Neto (2007), essa concepção encontra-se embebida de toda uma assepsia e uma performance que lhe confere credibilidade. Nesta mesma direção, João Ferreira Neto (2008) considera que a metodologia envolve muito mais do que a mera descrição de passos, mas uma discussão com relação aos aspectos éticos e posicionamento da pesquisadora/pesquisador.

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Assim, Maria Cecília Minayo (2011) explicita a pesquisa qualitativa, apresenta como característica principal proporcionar uma interrogação e reflexão dos processos que ocorrem numa dada realidade. Além do mais, Cecília Minayo e Odécio Sanches (1993) destacam que a pesquisa qualitativa favorece a compreensão das dimensões da subjetividade e do simbolismo, voltando-se mais especificamente para as relações e atividades humanas.

O objetivo da pesquisa qualitativa não seria descobrir a realidade, que estaria lá fora, constante, estável e única à espera da coleta de dados ou da investigação esclarecedora do/da pesquisador/pesquisadora. Pelo contrário, seria muito mais produzir novas perguntas e reflexões.

Consequentemente, desconsidera o número de sujeitos na pesquisa qualitativa como estatisticamente representativo, ou seja, a quantidade de interlocutores não precisa ser, matematicamente, proporcional ao universo de sujeitos investigados (MINAYO, 2011). Outra característica importante deste viés de pesquisa é que ocorre e se reconhece uma aproximação entre sujeito e objeto, bem como possibilita “[...] aprofundar a complexidade de fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados” (MINAYO; SANCHES, 1993, p. 247).

A nossa pesquisa se alinha com a abordagem qualitativa do tipo interventivo. A obra Pesquisa Participante de Carlos Brandão (1984), um dos primeiros livros que procura definir a pesquisa participante no Brasil e na América Latina, salienta os usos sinonímicos dos termos pesquisa-ação, pesquisa intervenção, pesquisa participativa e observação participante.

Nas raízes desse tipo de pesquisa, destacam-se dois marcos. Primeiramente, os trabalhos de Kurt Lewin (no hemisfério norte) sobre Pesquisa-Ação, que apresentaram os participantes da pesquisa como sujeitos ativos (SYSMANSKI; CURY, 2004). Em seguida, a Pesquisa Intervenção sugerida por Paulo Freire, que seria uma proposta teórico-metodológica explicitamente engajada na transformação social. Como nos fundamentamos, fortemente, nos escritos desse autor, preferimos adotar sua terminologia Pesquisa Intervenção.

Historicamente, ela é a preponderante na América Latina, sendo bastante influenciada pelos teóricos de esquerda, Karl Marx e Antonio Gramsci (BRANDÃO, 2006). Esta última vertente é aquela com que mais nos identificamos pela posição demarcadamente crítica e política das/dos pesquisadoras/pesquisadores em relação à sua realidade e pela finalidade interventiva de sua transformação.

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Esse tipo de pesquisa nasceu e cresceu na América Latina nos movimentos sociais, na educação popular, muitas vezes à margem das universidades, questionando as novas configurações coloniais e de hierarquização de saberes. No Brasil, além de ter surgido aliado à educação popular, estava ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao Movimento dos Sem Terra (MST) e ao movimento eclesial da Teologia da Libertação.

Assim como os estudos feministas, que têm compromisso com a transformação social, como indicam Mary Gergen (1993) e Sandra Harding (1996), a pesquisa participante problematiza as situações de opressão em direção a possibilidades de mudança, com o intuito de motivar e de instrumentalizar a comunidade para lidar com suas necessidades cotidianas com um maior repertório de atuação (BRANDÃO, 1984).

Sabemos ainda que “[...] todo pesquisar é uma intervenção, criação de sujeitos, objetos, conhecimentos, de territórios de vida” (MARASCHIN, 2004, p. 105), porém a pesquisa interventiva reconhece, especialmente, que o seu objeto é capaz de criar, de subjetivar e busca a utilização de um dos métodos que proporciona a troca entre seus envolvidos.

Nesse sentido, a pesquisa, para Julia Cammarota e Michele Fine (2008), é um processo de transformação na dimensão pessoal e social, a partir do qual se adquire um olhar mais crítico do nosso cotidiano. Em outras palavras, esse tipo de pesquisa costuma fomentar o desejo de provocar outras pessoas e pode se reverter em ações e mudanças, tanto em nós mesmos, quanto em nossas comunidades.

Além do mais, Mary Gergen e Keneth Gergen (2006) conferem à metodologia participante a possibilidade de aparecimento de múltiplas vozes, que descentram o conhecimento enquanto construção individual e igualmente propiciam a abertura para o desconhecido, o redesenhar de caminhos metodológicos e teóricos.

Enquanto Brandão (2006) a entende como um salto em relação à observação participante, pela implicação do intelectual com o locus da pesquisa, ao criar juntamente com os/as integrantes da pesquisa um ambiente favorável para trocas, havendo a relativização do papel do intelectual erudito.

Na reflexão sobre os limites e as potencialidades da metodologia participativa, Marisa Costa apesar de reconhecer as relações de poder inerentes à relação pesquisadora/pesquisador-pesquisada/pesquisado, enaltece as trocas como potencialidade de visibilidade, do transpassar de discursos e deslocamentos de poder: “a oportunidade do diálogo aberto, como virtual possibilidade de fusão de discursos e, quem sabe, de deslocamento de poder” (COSTA, 1995, p.136).

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Afinal de contas “Conhecer é pôr-se em relação com uma coisa,” sentir-se determinado por ela e, em troca, determiná-la. É, portanto, em qualquer caso, uma maneira de constatar, de designar, de tornar conscientes relações (não perscrutar seres, coisas, uns ‘em si’)” (NIETSZCHE, 2010, p. 99). Dito de outra maneira, a produção de saber não pode ocorrer senão a partir de relações entre pesquisadora/pesquisador e objeto de pesquisa e de oferecer um olhar, de uma relação e por isso mesmo não pode prescindir de uma afetação.

Desta forma, Maria Tereza Freitas et al (2003) propõe o rompimento dos termos, separados hierarquicamente entre objeto de investigação e investigadora/investigador, sugerindo que os sujeitos são coparticipantes e parceiros na construção da pesquisa. Semelhante a esse posicionamento e com um viés pós-estruturalista, acrescido das preocupações com as relações de poder, nas palavras de Peters (2008, p.196), “[...] tanto a pesquisadora/pesquisador quanto a pesquisada/pesquisado são seres constituídos, efeitos do discurso e dos regimes de verdade.”

Essa relação de poder é reconhecida a tal ponto que Foucault propõe ao intelectual uma função muito mais cautelosa e modesta, na qual sem a pretensão de elaborar teorias universais, volta-se para a construção de saberes locais com responsabilidade reflexiva (FOUCAULT, 2005b).

Quanto ao processo de elaboração e escrita da dissertação, a metodologia feminista e queer contribuem, ao propor, como uma das estratégias de subversão da escrita acadêmica, evidenciar o sujeito-pesquisadora/pesquisador, através da escrita ocasional na primeira pessoa (quando importante salientar essa dimensão).

A escrita, na primeira pessoa do singular, que por vezes adotamos, faz aparecer a/o pesquisadora/pesquisador em sua materialidade, como um elemento constitutivo desse olhar. Esta perspectiva encontra-se ancorada em Mary Gergen (1993), cuja concepção de pesquisa feminista deve ter consonância teórica e metodológica, ou seja, a visibilidade do/da pesquisador/pesquisadora é um posicionamento ético-político de desconstrução da neutralidade científica.

O intuito é evidenciar e desmistificar um narrador pretensamente imparcial. Esse tipo de escrita rompe com o distanciamento emocional, com a noção positivista de neutralidade e mitiga/borra os limites entre pesquisadora/pesquisador e pesquisa (SAMUEL-LAJEUNESSE, 2007). Além do mais, permite subverter a escrita formal, favorecendo o uso de uma estética e da linguagem literária, a qual evidencia toda a escrita científica como fictícia (AZEREDO, 2010).

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Somando a essa apreciação, tomamos o caminho de uma escrita mais despida de floreios, menos austera e formal do que a literatura científica normal. Afinal, a pesquisa participante faz uma tentativa de aproximar a pesquisa da vida das pessoas, usando uma linguagem intencionalmente mais acessível, que se contrapõe aos conteúdos inacessíveis e termos complexos restritos aos estudiosos (BRANDÃO, 1984).

Quanto ao nosso esforço em articular teoria e prática, nos aproximamos da concepção de Rosi Braidotti (1997, p.131) sobre a teoria feminista, que afirma ser “um modo de relacionar o pensamento com a vida.” Assim, o pessoal e o pensamento são eminentemente políticos.

Além disso, avançando nessa discussão, a visão latino-americana desenhada por Paola Ríos (2011, p.113, trad. nossa) acredita que tudo é político: “Se as feministas norte-americanas e europeias dos anos sessenta e oitenta ‘revelaram’ que o pessoal é político, os e as intelectuais de (LGBT) latino-americanos/as acentuam uma relação inversa: o político permeia tudo, determina tudo, limita tudo.”

Desta maneira, compreendemos que os relatos das vidas das coparticipantes são atravessados pelas dimensões histórica, política e social. Em consonância com o pensamento de Harding (1993) de que a vida social poderia ser um dos objetos de estudo dentro do feminismo, sem com isso pretendermos domesticar o campo feminista, ao propor um só objeto ou apenas uma metodologia possível.

Ao contrário, outro modo de transgredir as regras de uma escrita científica formal que favorece um status de verdade seria o uso instrumental de variadas técnicas e conceitos de autores de diferentes lugares epistemológicos, conforme a proposta de uma metodologia queer, uma metodologia transgressora (LEÓN, 2012).

A partir de todas essas perspectivas expostas, será alicerçada a relação entre a pesquisadora e as participantes, bem como delimitados os instrumentos metodológicos.

1.3 Encontro com o campo

A chegada ao Cabo e as oficinas não aconteceram de modo absolutamente controlado e dentro do planejado. A entrada no campo se deu através da parceria do Centro de Mulheres do Cabo que nos conferiu credibilidade e nos separou de um papel investigativo, policialesco (desconfiança pertinente ao âmbito da prostituição). Após a

Referências

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