• Nenhum resultado encontrado

GT 11 - Antropologia da Saúde e Direitos Humanos na América Latina: políticas públicas e agenciamentos sociais em saúde

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "GT 11 - Antropologia da Saúde e Direitos Humanos na América Latina: políticas públicas e agenciamentos sociais em saúde"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

GT 11 - Antropologia da Saúde e Direitos Humanos na América Latina: políticas públicas e agenciamentos sociais em saúde

Saúde, cuidado e vínculo familiar: Apontamentos iniciais sobre o Programa Criança Feliz em Rio Tinto/Paraíba, Nordeste do Brasil

Pedro Francisco Guedes do Nascimento - UFPB Amanda Gioriatti Lunkes - UFPB

(2)

Introdução – Pesquisando família, gênero, pobreza e práticas de governo

As questões trazidas neste trabalho surgem de pesquisa que tem por base a relação entre políticas públicas, família e gênero. Ao analisar essas políticas buscamos compreender como práticas de governo específicas estão comprometidas com certas moralidades relativas ao entendimento a respeito daqueles a que se dirigem: os pobres, as mulheres, as famílias, a população. Nas primeiras etapas da pesquisa buscamos compreender como são produzidos os enunciados sobre o Programa Bolsa Família (PBF) e suas condicionalidades, principalmente aquelas na área da saúde (NASCIMENTO, 2016). As condicionalidades do PBF foram compreendidas como tecnologias de governo utilizadas para o alcance de metas dos serviços de saúde. Mais que estímulo ao acesso a serviços percebemos as condicionalidades serem utilizadas como estratégias de controle da população baseadas, sobretudo, na ameaça de corte do benefício (NASCIMENTO; LIMA, 2018).

Ao ampliarmos o olhar para outras iniciativas locais no campo da assistência social, o Programa Criança Feliz (PCF) ganhou centralidade pela diversidade de questões que articula em termos de gênero e de noções acerca do desenvolvimento infantil, e por estar, ao mesmo tempo, vinculado ao Programa Bolsa Família.

Identificamos elementos de continuidade entre essas iniciativas, como a importância dos serviços de saúde para o contato com as famílias participantes do programa e a moralidade que orienta as ações. Considerando que cada visitadora (profissional encarregada pelas visitas semanais às crianças) precisa ter um conjunto de 30 famílias para acompanhar, percebemos que os dados disponibilizados pelas agentes comunitárias de saúde são centrais para a identificação dessas pessoas que precisam ser necessariamente beneficiárias do Bolsa Família para fazer parte do Programa Criança Feliz.

Temos buscado compreender a articulação entre estes dois programas governamentais, tendo como foco os pressupostos que orientam as ações voltadas especificamente para mulheres gestantes e as crianças e as moralidades que as orientam. A estratégia de campo inclui o contato sistemático com a equipe técnica e as famílias envolvidas, a partir do acompanhamento das visitadoras e sua interação com os demais integrantes da equipe. Levamos em consideração nesse processo as

(3)

ramificações do PCF em termos da compreensão global acionada acerca do que é a infância, a maternidade, e o lugar do cuidado para o desenvolvimento infantil, por meio do entendimento de que o estímulo à criança, promovendo o vínculo familiar, permite um futuro melhor para as crianças e suas famílias.

Nessa direção, nossa análise dialoga com o campo de estudos sobre políticas de Estado, os modos de governo e as práticas de poder onde o Estado é produzido em relações específicas em que racionalidade estatal e moralidades se mesclam na prática cotidiana (cf FERGUSON; GUPTA, 2002; SOUZA LIMA; MACEDO;

CASTRO, 2008; CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014; FONSECA; SCALCO, 2015). A abordagem foucaultiana de governamentalidade, na qual “racionalidades e tecnologias, pensamento e intervenção” são duas dimensões indissociáveis (MILLER; ROSE, 2012, p. 28) colabora para o entendimento das formas contemporâneas de governo das populações (FOUCAULT, 1988; 2005; 2008a;

2008b; ROSE; MILLER, 1992; RABINOW; ROSE, 2006; FASSIN, 2009). Nessa perspectiva está em jogo não apenas disciplina e controle, mas modos de subjetivação onde cada indivíduo, tomado como empresário de si, é também um aliado na busca por alcançar metas estatais que são percebidas igualmente como um propósito individual (FOUCAULT, 2008a). Esta perspectiva pode nos ajudar na compreensão de como as práticas contemporâneas de governo continuam a instrumentalizar categorias tradicionais para o alcance de objetivos pactuados globalmente com base em noções como direitos humanos e desenvolvimento (MOLYNEUX, 2006; MOLYNEUX; THOMSON, 2011).

Buscamos nos aproximar igualmente dos estudos da ciência e da tecnologia para fugir a polarizações correntes na análise de fenômenos sociais evitando reducionismos que insistem em separar natureza de cultura, fatos de valores, objetividade de subjetividade, e razão, de emoção, por exemplo (LATOUR, 2012).

Esta perspectiva permite lidar com uma compreensão de Estado partilhada por muitos autores a partir de suas práticas cotidianas onde racionalidade e moralidade interatuam - tanto da parte do "Estado", como da parte dos sujeitos a que as políticas se destinam e seus múltiplos mediadores. Esta abordagem tem inspiração na noção de coprodução desenvolvida por Sheila Jasanoff (2004) que nos leva a considerar os diversos sujeitos envolvidos na produção daquilo que investigamos -

(4)

em nosso caso específico, gestores, crianças, documentos oficiais, materiais educativos, visitadoras, técnicas, mulheres.

Esta forma de análise parte de uma abordagem metodológica focada em uma etnografia do Estado que é orientada pela compreensão foucaultiana de governamentalidade que, como mencionado acima, inclui mecanismos e racionalidades políticas e estatais que "administram e regulam populações, mas que, simultaneamente, convocam mentalidades e subjetividades, convidando o próprio sujeito, sob a tônica da autonomia, a participar ativamente na gestão e administração do poder". Dessa forma, compreender as tecnologias de governo produzidas nessas relações implica em considerar como sujeitos são produzidos na própria formação do Estado (FONSECA; MACHADO, 2015, p. 13), levando em conta elementos que alguns autores consideram pouco desenvolvidos por Foucault, como, por exemplo, o lugar da prática e a produção de desigualdades (FASSIN, 2009)1.

Em direção complementar, Fergson e Gupta sugerem dar mais atenção aos

“domínios menos dramáticos, múltiplos, banais da prática burocrática por meio das quais os estados reproduzem ordens espaciais e hierarquias escalares” (FERGSON;

GUPTA, 2002, p. 984). Uma análise do Estado deveria incluir não apenas as representações discursivas explícitas do estado, mas também as práticas implícitas, não marcadas, significantes: “Uma concepção orientada para a prática demanda uma abordagem etnográfica e deve atentar para como os corpos são orientados, como as vidas são vividas e como os sujeitos são formados” (FERGSON; GUPTA, 2002, p. 984).

Essa abordagem se cruza ainda com outras áreas de interesse da antropologia, como gênero e família (TRAD, 2010; SARTI, 2010; SCOTT, 2011) a partir da preocupação sobre a forma como as políticas públicas são cruzadas e orientadas por olhares marcados pelo gênero (FONSECA, 2012; DAL’IGNA; KLEIN;

MEYER, 2014), assim como um entendimento particular do que é a família (DONZELOT, 1986; FONSECA, 2005). Particularmente na área que nos interessa diretamente nesse trabalho, diversas pesquisas têm também apontado essa norma

1 Didier Fassin identifica quatro mudanças para que, segundo ele, as contribuições de Foucault continuem operativas para as pesquisas atuais: 1) Política não é apenas sobre as regras do jogo de governar, mas também sobre suas participações; 2) Mais do que o poder sobre a vida, as sociedades contemporâneas são caracterizadas pela legitimidade que atribuem à vida; 3) Ao invés de um processo de normalização, a intervenção na vida é uma produção de desigualdades; 4) A política da vida, então, não é apenas uma questão de governamentalidade e tecnologias, mas também de significado e valores (FASSIN, 2009).

(5)

de gênero nas políticas de inclusão social que estão comprometidas como certa moralidade e, dessa forma, colaboram para um processo mais amplo de politização da maternidade (MEYER, 2005) e educação para maternidade (KLEIN, 2010;

MEYER; KLEIN; FERNANDES, 2012; KLEIN; MEYER; BORGES, 2013) em que moralidades maternas configuram práticas institucionais (FONSECA, 2012; PIRES, 2013).

Programa Bolsa Família e o Programa Criança Feliz: histórico e articulações Antes de avançarmos na apresentação de nossos argumentos mais específicos, consideramos importante apresentar resumidamente elementos programáticos das políticas em análise e alguns marcos históricos de seu desenvolvimento. Isto se torna particularmente relevante para percebermos como se dão as articulações entre as duas iniciativas, do ponto de vista oficial, assim como suas atualizações na prática cotidiana das pessoas envolvidas em sua implementação local.

Programa Bolsa Família

O Programa Bolsa Família é uma política de transferência condicionada de renda criada em 2003, durante a gestão de Luís Inácio Lula da Silva, que unificou diversos programas de transferência de renda criados em governos anteriores como o Bolsa Escola, o Auxílio Gás, o Bolsa Alimentação e o Cartão Alimentação, tendo em vista a necessidade de melhorar o gerenciamento e a efetividade dos gastos sociais do Estado e aumentar o valor das transferências (SILVA, 2007).

São alvo do Programa as famílias em situação de extrema pobreza, com renda mensal per capita de até R$ 89,00, e as pobres que são aquelas que contam renda mensal de R$ 89,01 a R$ 178,00 por pessoa; as últimas precisam ter na composição familiar gestantes e crianças ou adolescentes entre 0 e 17 anos. O Ministério da Cidadania realiza mensalmente a seleção automatizada das famílias cadastradas e cabe ao responsável legal pelo benefício atualizar os dados do CadÚnico2 pelo menos a cada dois anos. O valor do benefício básico é R$ 89,00 e

2 O Cadastro Único é um sistema unificado de dados que dá acesso a programas e serviços de assistência social para a população considerada como em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Ao efetuar o cadastro o beneficiário recebe um Número de Identificação Social (NIS), que poderá ser usado, principalmente, para adesão a serviços e programas federais, mas que também pode funcionar como forma de seleção para os que são desenvolvidos a nível estadual e municipal.

(6)

pode ser acrescido de benefícios variáveis de acordo com a composição familiar: se possui gestantes, nutrizes, adolescentes etc.

As famílias selecionadas para receber o benefício são orientadas a cumprir certos compromissos, conhecidos como condicionalidades, que visam facilitar o acesso a direitos básicos como saúde e educação. As gestantes e nutrizes devem fazer acompanhamento pré-natal, comparecer a consultas regularmente nas Unidades de Saúde da Família (USF) e participar de palestras sobre aleitamento materno. O responsável pelo benefício, preferencialmente a mãe, deve manter o cartão de vacinação da(s) criança(s) em dia e fazer o acompanhamento nutricional da(s) mesma(s) até os 7 anos de idade. O monitoramento das condicionalidades é de responsabilidade das(os) agentes comunitárias(os) de saúde e das(os) enfermeiras(os) das USFs dos municípios.

Marco Legal da Primeira Infância e Programa Criança Feliz

Em março de 2016 foi sancionada pela Presidenta Dilma e promulgada a Lei nº 13.257, mais conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, que estabelece

“princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano [...].”

de forma integral, considerando como primeira infância o período de 0 a 6 anos de vida.

Prevê que políticas e programas voltados a esse público respeitem os diferentes ritmos de desenvolvimento e os contextos culturais e sociais nos quais as crianças estão inseridas. O Marco Legal toma como primárias para ação das políticas públicas as áreas da saúde, alimentação e nutrição, educação infantil, convivência familiar e comunitária, assistência social, cultura, brincar e lazer, espaço e meio ambiente, assim como a proteção contra qualquer forma de violência e pressão consumista.

A lei define que gestantes e famílias com crianças na primeira infância recebam “orientação e formação sobre maternidade e paternidade responsáveis”

aleitamento materno, alimentação saudável, desenvolvimento infantil integral e prevenção de acidentes. A expectativa é que assim sejam formados e consolidados vínculos afetivos e o desenvolvimento integral da criança. Oferece prioridade de atendimento das políticas sociais públicas para a população identificada nas redes

(7)

de saúde, educação e assistência social como em situação de risco ou com direitos violados que não permitam que as famílias exerçam seu papel de cuidado e educação na primeira infância. (BRASIL, 2016a).3

Um pouco depois da sanção do Marco Legal, em 31 de agosto de 2016 Michel Temer, até então vice-presidente da chapa, assume interinamente o cargo, após o impeachment da presidenta Dilma. Em 5 de outubro do mesmo ano a gestão promulga o Decreto nº 8.869 que institui o Programa Criança Feliz4, primeira medida do governo dentro das diretrizes do Marco Legal da Primeira Infância. O Programa busca atender gestantes, crianças de 0 a 3 anos e suas famílias beneficiárias do Bolsa Família e de até 6 anos quando assistidas pelo Benefício de Prestação Continuada ou afastadas do convívio familiar por violação de direitos (BRASIL, 2016b).

A política tem como objetivos a promoção do desenvolvimento da criança a partir do apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil na primeira infância, o apoio à gestante e à família para o nascimento e os primeiros cuidados com o bebê, o fortalecimento de vínculos familiares e o desempenho na função de cuidar e educar os filhos, bem como mediar o acesso dos assistidos às políticas e serviços públicos.

O decreto propõe a realização de visitas domiciliares realizadas por profissionais capacitados e com formação continuada e ações complementares de apoio ao público alvo. Deverão ser desenvolvidos materiais e conteúdos de apoio para atender intersetorialmente gestantes, crianças na primeira infância e sua família. Os estados, Distrito Federal e municípios devem oferecer suporte para a implementação do Programa e para a articulação intersetorial entre assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos, entre outras áreas. A coordenação geral do PCF foi atribuída ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário5, que encabeçava o Comitê Gestor composto também pelos ministérios da Justiça e Cidadania, da Educação, da Saúde e da Cultura.

3 Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.256, de 8 de março de 2016. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm.

4 Decreto do Programa Criança Feliz. Disponível em: https://bit.ly/2x7gcqp.

5 No dia 1º de janeiro de 2019 foi promulgada a Medida Provisória nº 870 que, entre outras medidas, transforma o Ministério do Desenvolvimento Social, o Ministério da Cultura e o Ministério do Esporte no Ministério da Cidadania, sob chefia do Ministro Osmar Terra, essas transformações afetaram também outros ministérios. Dentro do último, o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário foi reduzido a Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. As secretarias especiais de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário, da Aquicultura e da Pesca e da Micro e Pequena Empresa foram

(8)

Continuidades entre o PIM – Primeira Infância Melhor – e Programa Criança Feliz Conforme mencionado na introdução deste trabalho, nosso contato com o Programa Criança Feliz se deu como desdobramento das pesquisas realizadas sobre o Programa Bolsa Família. Não estava claro até então como o Criança Feliz se articulava com o Bolsa Família. As primeiras análises do lançamento do Programa Criança Feliz nos chegaram por meio do aspecto mais reforçado à época de seu lançamento: estar sob a gestão da Primeira Dama, Marcela Temer. De fato, as discussões que se seguiram por críticos do Programa destacavam que a alocação do Criança Feliz na pasta da Assistência Social traria à tona o primeiro damismo6. Não é possível aprofundar essa questão aqui, mas é importante trazer outros elementos para compreender a forma como este programa foi instalado e seu histórico que se estende para além desse período.

Em 2003 foi criado em Porto Alegre o programa Primeira Infância Melhor (PIM) com o propósito de colaborar no desenvolvimento de crianças até seis anos de idade. Naquele ano de sua implantação o secretário de saúde do Rio Grande do Sul era Osmar Terra que em 2016 assumiu na gestão do Presidente Temer o Ministério do Desenvolvimento Social e atualmente é o ministro da Cidadania no Governo Jair Bolsonaro7. Por que esse dado é importante para nossa argumentação? Em conversas iniciais da pesquisa com gestores locais ouvimos que o fato de o PCF ter sido alocado inicialmente “na área da Assistência Social” fez com que tivesse características diversas do PIM que, embora já nascido com a perspectiva da intersetorialidade, teria sido concebido como uma política centralmente da área da saúde e não das pastas de Desenvolvimento Social quando da transformação de extintas através da MP. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2019/Mpv/mpv870.htm.

6 No dia 7 de março de 2017, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) lançou a nota pública

“Por que dizer não ao Programa Criança Feliz”. Nesta nota, além da crítica ao retorno do chamado primeiro-damismo, o CFESS aponta a falta de diálogo do Governo Federal com a sociedade civil e com os conselhos das políticas da intersetorialidade do Programa e a priorização do “terceiro setor”, indo na contramão da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e a desresponsabilização do Estado pela oferta de serviços públicos de saúde e de educação com qualidade desde a primeira infância. Disponível em:

http://www.cfess.org.br/arquivos/2017-NotaPublicaCFESS-NaoAoProgramaCriancaFeliz.pdf.

7 O ministro possui formação em Medicina com especialização nas áreas de Saúde Perinatal, Educação e Desenvolvimento do Bebê e mestrado em neurociências. Foi presidente do Comitê para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância (CODIPI) durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2000, no qual permaneceu durante pouco mais de um ano, até assumir cargo de deputado federal como suplente. Foi eleito deputado federal em 2002 e afastou-se da função no ano seguinte, ano da criação do PIM, para assumir a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul até abril de 2006. Disponível em: http://www.fgv.br/Cpdoc/Acervo/dicionarios/verbete-biografico/terra-osmar.

(9)

uma experiência local (de um estado da federação) para uma experiência de abrangência nacional. O fato de o mesmo Osmar Terra estar à frente do Ministério que abriga o Programa Criança Feliz nos faz ficar atentos a esta consideração. Além disso, a análise dos princípios que orientam o Programa Criança Feliz indica a continuidade entre este Programa e o PIM (ver a análise do PIM feita por Carin Klein, 2010).

O ministro Osmar Terra, em matéria veiculada em 2018 afirmava que

“transferência de renda sozinha não reduz a desigualdade”8. Por esta razão, defende a necessidade de o Programa Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada (BPC), contarem com uma “ação de longo prazo voltada ao desenvolvimento humano”. Esta constatação não é exatamente novidade se levarmos em conta que o Programa Bolsa família já incluía em seus princípios a quebra do ciclo intergeracional da pobreza que, já se sabia, não seria possível apenas pela transferência de renda. Por esta razão, a inclusão produtiva e acesso a serviços essenciais, via condicionalidades, são propugnadas desde o início do PBF.

A produção do entendimento de que o investimento nos primeiros anos de vida, a primeira infância, é central para o desenvolvimento, com impactos no âmbito econômico e social, tem a colaboração de diferentes especialistas em um processo em que intervenções estatais têm o aval científico em sua legitimação. A coprodução deste entendimento e sua aplicação em diferentes contextos foram analisadas por Claudia Fonseca que de forma precisa as definiu como tecnologias globais de moralidade materna (FONSECA, 2012).

No próximo tópico apresentaremos a forma como o PCF está estruturado em Rio Tinto, destacando como os principais enunciados acerca da Primeira Infância e as justificativas para a instalação do programa estão sendo vivenciadas localmente.

O Programa Criança Feliz em contexto

Nosso contato inicial com a equipe que desenvolve as atividades do Programa Criança Feliz em Rio Tinto se deu em fevereiro de 2019. A equipe é formada por uma coordenadora com formação em psicologia e 11 visitadores, nove mulheres e dois homens. Cinco desses visitadores trabalham desde a adesão da gestão municipal ao Programa Criança Feliz há dois anos, enquanto os demais

8 Matéria disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/pr-newswire/2018/03/07/osmar-terra-a- opcao-pelo-desenvolvimento-humano-para-reduzir-a-desigualdade.htm?cmpid=copiaecola

(10)

começaram a atuar em março deste ano, todos contratados pela Prefeitura de Rio Tinto. As exigências para contratação de profissionais para o Programa são ensino médio completo e pelo menos 18 anos de idade. Atualmente a equipe atende 308 beneficiários9. A equipe nos relatou que o processo de capacitação dura em média uma semana e é realizado na sede do PCF, prédio compartilhado com o Centro de Convivência do Idoso. Sobre o processo de formação continuada para os visitadores de que dispõe o Decreto que rege o Programa, a coordenadora argumentou em nosso primeiro encontro que o município passou por um período difícil por falta de verbas para os cursos, mas que nesse ano seria possível voltar a realizá-los.

Os visitadores recebem um salário mínimo (R$ 998,00) por mês para atender no mínimo 30 beneficiários entre gestantes e crianças de 0 a 32 meses. Recebem orientações da coordenadora para que mantenham o número de atendidos sempre acima da meta, pois os critérios para inclusão de usuários10 no PCF leva a uma constante rotatividade de famílias participantes. Nos últimos meses a coordenadora do Programa tem aplicado um sistema de controle de visitas que pode acarretar em descontos no valor recebido pelos profissionais; é operado por meio de listas que devem ser assinadas pela gestante ou pela(o) responsável pela criança ao final do atendimento a fim de atestar a realização da visita, evitando fraudes. Aos visitadores recém-contratados não têm sido exigido que cumpram o número de assinaturas, pois se encontram em fase inicial de contato com as famílias e os beneficiários cadastrados levam em torno de três meses para serem computados pelo Prontuário Eletrônico do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sistema utilizado pelo PCF para registro de informações a respeito da equipe, das visitas e outras formalidades administrativas.

O processo de adesão ao PCF é rápido e consiste em preencher uma ficha de cadastro junto à família para coletar dados básicos como nome da criança e da(o) responsável, RG, CPF e Número de Identificação Social (NIS), que posteriormente são inseridos no sistema11. Ao município são concedidas verbas federais de R$

75,00/mês por cada beneficiário atendido12 (BRASIL, 2018). No início deste ano a Prefeitura cedeu um carro e contratou um motorista para conduzir os visitadores até

9 Informações repassadas em conversas com a coordenação do Programa Criança Feliz.

10 Termo utilizado pela equipe para se referir aos beneficiários do Programa Criança Feliz.

11 Até o momento crianças atendidas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) não se encontram entre os cadastrados pelo Programa na cidade.

12 Portaria nº 2.496, de 17 de setembro de 2018. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/- /asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/41227841

(11)

as áreas de atendimento afastadas do centro, onde se concentra boa parte das famílias beneficiárias, porém as visitadoras têm se queixado que o carro quebra com frequência, prejudicando a periodicidade dos atendimentos às famílias. Antes disso as visitas eram feitas a pé por duas das profissionais da equipe experiente e os demais se deslocavam com veículo próprio.

Uma apresentação do Criança Feliz para a equipe de pesquisadores: “Já chega em desvantagem quando é pobre”

Em nosso primeiro contato com a equipe técnica do Programa Criança Feliz, ocorria um treinamento da segunda equipe de visitadoras que começaria na semana seguinte suas atividades. A coordenadora do programa, interessada em nos fazer entender os princípios e o funcionamento do Criança Feliz, nos permitiu gentilmente não apenas acompanhar parte do treinamento, como pediu também que as integrantes da equipe nos apresentassem sua compreensão do que vinham aprendendo ao longo da semana. Pediu também que as participantes veteranas nos apresentassem o material que haviam desenvolvido para a realização das visitas, que elas traziam em grandes mochilas com a logomarca e divulgação do programa.

Uma delas apresentou-nos rapidamente o Livro sensorial; um livro grosso emborrachado confeccionado em E.V.A com diversos materiais em cada página:

letras, números, figuras com texturas, cores e sons diversos. Mostraram-nos também a Caixa surpresa, que no tamanho um pouco maior que uma caixa de sapato, e colorida, tem um buraco com tiras cortadas para a parte interna da caixa por onde a criança deveria pôr a mão para pegar os objetos: em formato de bichinhos, objetos, como um guarda chuva. A visitadora orienta: “A mãe deve pegar o objeto, dizer o nome dele e recompensá-lo, parabenizando porque ele pegou o objeto”. Estes seriam exemplos de como as atividades deveriam ser conduzidas, e com quais recursos, para que se pudesse estimular a criança.

Essa demonstração se deu como fechamento da roda de conversas em resposta à pergunta da coordenadora para a equipe: qual a importância do vínculo familiar? As respostas incluíram “crescer profissionalmente” e “principalmente na escola”. Os cuidados na primeira infância seriam essenciais “principalmente para os mais carentes”, pois “já chega em desvantagem quando é pobre”.

(12)

As visitas

Tivemos a oportunidade de acompanhar a forma como essa produção de conhecimento é compartilhada nas interações com as mães e seus bebês nas visitas semanais, assim como nas conversas com as integrantes da equipe nos deslocamentos para as visitas ou em seu local de reuniões com toda a equipe.

Os atendimentos são domiciliares e agendados junto às famílias de acordo com a programação de visitas definida pela equipe para cada área do município.

Acontecem no turno da manhã e, eventualmente, à tarde quando algum beneficiário não foi encontrado em casa ou se alguma criança estava dormindo no momento da visita. São realizados atendimentos mensalmente às gestantes e semanalmente às crianças. Nessa primeira fase da pesquisa não acompanhamos os visitadores homens, mas sim a parcela da equipe feminina que dependia do carro disponibilizado ao Programa para acessar as áreas, mais distantes, que atendiam.

As visitas costumam durar em torno de 20 minutos e, segundo as visitadoras, seguem uma lógica de três etapas: o acolhimento da criança, o desenvolvimento da atividade e a conclusão da visita. Em campo pudemos observar como são postas em prática essas etapas. No primeiro momento a visitadora chega à casa da família e chama pelo nome da gestante ou criança, ou pelo nome da responsável no cadastro (a mãe ou outra familiar mulher em todos os casos que acompanhamos), faz algumas perguntas iniciais sobre o bem-estar de ambas e a conversa se desenrola de maneira descontraída, principalmente nas famílias que são atendidas já há algum tempo. Em seguida é proposta uma atividade a ser desenvolvida pela mãe junto à criança. A visitadora orienta que a cuidadora ajude a(o) filha(o) a realizá-la e recompense os acertos com elogios como “Muito bem!”, “Parabéns!”, entre outros, e corrija a criança quando necessário. Enquanto isso a profissional explica a função que aquele material tem no desenvolvimento infantil e orienta que a cuidadora reproduza-o com objetos disponíveis em casa, para dar continuidade à atividade durante a semana. Por fim, recolhe o material e pede a assinatura da beneficiária para a ficha de visita. Contam-nos que são raras as famílias que seguem a orientação de produzir em casa as atividades utilizadas nos atendimentos.

Informações sobre ocasionais problemas no cadastro do Programa Bolsa Família também são passadas no decorrer desse processo.

(13)

A busca ativa e a relação com demais programas e serviços locais

A convite da coordenadora do PCF foi possível acompanhar a busca ativa por famílias feita pelas novas visitadoras e o processo inicial de aproximação com os beneficiários. Nessa busca as visitadoras foram a um bairro da cidade identificado pelo grupo como área de vulnerabilidade socioeconômica e procuraram a Unidade de Saúde, pois, segundo a coordenadora, são as agentes de saúde que conhecem os beneficiários - em razão da proximidade que desenvolvem com as famílias - e poderiam passar as informações sobre as famílias crianças e/ou gestantes em sua composição. A enfermeira informou que no momento não conseguiria disponibilizar uma lista com nomes e endereços das famílias, mas que posteriormente poderia concedê-la.

As visitadoras recém-contratadas e ainda em processo de capacitação, juntamente com a coordenadora, buscaram no boca a boca as famílias com possíveis beneficiários, enquanto aguardavam os dados via agentes de saúde. Esse primeiro contato de pessoas da equipe, em formação, servia para que dúvidas sobre o procedimento fossem sanadas, como, por exemplo, a possibilidade de cadastrar ou não uma família na qual a criança faria 3 anos dali a 5 meses. O entendimento compartilhado ali era de se fazer o cadastro da família, mesmo nessa condição, pois depois poderia encontrar outra criança que pudesse substituí-la. Foi reforçada também a necessidade de cadastrar o máximo de crianças, dada a possibilidade de descontinuidade dos cadastros.

Mesmo tendo sido um contato inicial, chamava-nos a atenção a forma como eram identificados potenciais usuários do programa. Por exemplo, comentou-se que

“àquela hora”, por volta das 11h, havia muitas crianças brincando na rua, indicativo de que o local demandaria seu trabalho. Naquela oportunidade a equipe conseguiu que algumas famílias aderissem ao Programa, como uma mulher que aceitou receber o serviço para seus netos. Durante sua conversa com a visitadora ela conta que está em vias de se aposentar e quando isso acontecer perderá o PBF, por isso precisa que sua filha, mãe da criança, migre o benefício para seu nome. A conversa nos chama atenção, pois explicita o medo da mulher em fazer essa mudança e assim perder o benefício, indicando o desconhecimento da parte dos beneficiários, observado em fases anteriores da pesquisa, sobre as regras de funcionamento do Programa (NASCIMENTO, 2015; 2016; NASCIMENTO, LIMA, 2018). Não conseguimos acompanhar de perto quais são as informações passadas às famílias

(14)

sobre o funcionamento do PCF, pois sentimos que as profissionais estavam, naquele primeiro momento, desconfortáveis com nossa presença e possivelmente também com a presença da coordenadora, portanto mantivemos certa distância para não atrapalhar o trabalho do grupo.

O Guia de visita domiciliar (2017) do Programa Criança Feliz orienta que nas primeiras visitas seja explicitado à família o objetivo do Programa, cabendo ao visitador elaborar estratégias para fortalecer o vínculo com as famílias. É exigido também o preenchimento de quatro tipos de formulários: caracterização da família, caracterização da gestante e/ou caracterização da criança e diagnóstico inicial do desenvolvimento infantil. A coordenadora nos explica que, apesar de o programa orientar que sejam preenchidos dentro do primeiro mês de visitas, ela sugere à equipe aplicá-los gradualmente para que as famílias não se sintam intimidadas.

Na última visita que acompanhamos a três áreas rurais do município, as famílias reclamaram sobre as três semanas anteriores sem atendimentos. As visitadoras justificaram que não conseguiram cobrir toda a área dentro do turno que haviam marcado com as beneficiárias. Ao questionar a coordenação do Programa sobre o assunto foi apontado que problemas de transporte impediram a equipe de chegar aos locais durante esse período. Algumas dessas famílias se mostraram preocupadas em perder o benefício do Bolsa Família por conta do não cumprimento das visitas por parte das profissionais e outras fizeram perguntas sobre a relação do PBF com o PCF: buscavam saber se a participação no segundo seria uma condição para continuar a receber o valor referente ao primeiro. A precisão das informações dadas às famílias sobre a articulação entre os dois programas parece variar de acordo com o conhecimento que as visitadoras têm sobre eles e/ou a segurança que têm em relação à permanência das famílias que atendem: ao mesmo tempo em que algumas visitadoras, principalmente as experientes, dizem às beneficiárias que não se configura como mais uma condicionalidade a participação no PCF, uma profissional da equipe nova afirma que o Programa oferece maior segurança para o recebimento do benefício do Bolsa Família.

Durante o preenchimento dos formulários de diagnóstico dos beneficiários percebe-se certo receio das famílias em responder a perguntas sobre quais são os meios de transporte da família, quando possuem algum, mesmo que a visitadora esclareça, ao notar o nervosismo da pessoa, que as informações obtidas não serão passadas à gestão municipal do Bolsa Família ou ao sistema deste Programa.

(15)

É importante salientar que não é feita nenhuma capacitação com a equipe técnica sobre o PBF, apesar de sua relação estreita com PCF. Para as famílias que moram em regiões mais afastadas do centro da cidade, onde está localizado o setor de cadastramento e gestão do PBF, os visitadores e as agentes de saúde são mediadores fundamentais para que esses beneficiários tenham acesso às informações sobre o Bolsa Família. Certas compreensões de que “o Bolsa Família é só para famílias com filhos” e “se alguém da casa tiver carteira assinada não tem direito a receber, mesmo que tenham 10 pessoas na família” são informações passadas pelas visitadoras que não condizem com o que o programa estabelece.

Esse medo do corte do benefício por parte das famílias que aderem ao Criança Feliz é uma constante em campo desde o início da pesquisa (NASCIMENTO, 2016), fruto da falta de informação em relação ao funcionamento e articulação dos dois Programas. O que se mostra como dado novo para nossa pesquisa é o medo das visitadoras novatas13 de que as famílias desistam dos atendimentos, decisão que pode refletir futuramente em seus salários e que faria com que tivessem que procurar uma nova beneficiária para substituí-la.

Atividades desenvolvidas pela equipe: “estimular” e “desenvolver” a criança e o

“vínculo familiar”

Durante o encontro com a equipe promovido pela coordenadora municipal do PCF, nos foi relatado que entre os novos visitadores encontravam-se uma oficineira e um oficineiro, responsáveis por conduzir as reuniões do grupo para elaboração de materiais. No decorrer da conversa os visitadores nos contam que antes mesmo de produzir as atividades, que devem se adequar a cada fase de desenvolvimento da primeira infância, cada um deles tem o dever conversar com as mães que atendem para saber quais são as dificuldades que a criança enfrenta e quais são as brincadeiras que prefere.

Além do Livro sensorial e da Caixa surpresa, dos quais já falamos anteriormente, produzem artesanalmente outros materiais. Os chocalhos são destinados aos bebês, assim como as atividades do Livro sensorial, para “estimular a coordenação motora” e o “desenvolvimento dos sentidos”; fantoches são usados para a mesma faixa etária, para que as mães se “habituem a conversar com os

13 Assim se referem aos visitadores recentemente contratados a parcela mais experiente da equipe e a coordenadora.

(16)

filhos” e assim possam” estimular o vínculo familiar através da troca de olhares, da conversa”.14 De acordo com o desempenho da criança as atividades vão se complexificando; brincadeiras para identificação de cores, vogais e numerais começam a ser trabalhadas. As visitadoras nos relatam que fazer uma atividade que prenda a atenção das crianças é bastante difícil e precisam renová-las semanalmente, recorrendo muitas vezes à internet para buscar novas ideias.

Até o momento o acompanhamento das visitas tem nos mostrado que para muitas das famílias as atividades são aplicadas de forma intuitiva. São propostas atividades que envolvem numerais para crianças de dois anos de idade, de reconhecimento de vogais para as de um ano e oito meses e assim por diante. As visitadoras que se dedicam ao desenvolvimento desses materiais nos contam que as fazem em casa algumas vezes por falta de material na sede e também porque boa parte de seu expediente é dedicado às visitas e ao preenchimento dos relatórios individuais de cada beneficiária. Uma das gestoras da assistência social da cidade destacou-nos a necessidade de uma capacitação continuada das profissionais que atuam no PCF, pois não acredita ser suficiente a formação que possuem para alcançar os objetivos do Programa.

*****

Entende-se que essas atividades feitas junto à família tenham a função de criar e fortalecer os vínculos familiares, estimulando o desenvolvimento infantil.

Porém, compartilhando os resultados a que Carin Klein chega em sua análise do PIM (KLEIN, 2010) a compreensão que se tem de família é resumida à relação mãe- bebê e acaba reforçando a visão essencialista de que a mulher-mãe deve se responsabilizar pelos cuidados com a criança e produz uma maternidade específica a ser exercida por elas (MEYER, 2015; KLEIN, 2010). O homem-pai não é incentivado a compartilhar aquele momento junto a sua família e também não toma iniciativa nesse sentido, por mais que se mostre interessado, como podemos observar em algumas situações, no diálogo que a visitadora estabelece com a mãe sobre a criança e os objetivos da atividade.

Além dessa questão, uma interpretação possível neste primeiro momento de aproximação ao Programa Criança Feliz é a forma como sua articulação com o Programa Bolsa Família pode estar contribuindo para consolidar mecanismos de

14 Entre aspas as orientações das visitadoras que são passadas às mães durante as atividades.

(17)

governo já identificados anteriormente. Como observamos, as dificuldades de compreensão sobre os mecanismos de funcionamento do Bolsa Família, somados aos usos que a gestão local faz das condicionalidades tem colocado como efeito direto uma permanente situação de insegurança e medo por parte das mulheres sobre a continuidade do recebimento do recurso do Bolsa Família – o medo do corte.

O fato de as mulheres usuárias do Programa Criança Feliz serem beneficiárias do Bolsa Família tem nos apresentado frequentemente relatos de medo que a não participação nas atividades do Programa Criança Feliz impacte na continuidade da condição de beneficiário do PBF.

Certamente esta não pode ser considerada a única, tampouco a principal, razão para a adesão das mulheres ao Programa Criança Feliz. A cobrança feita, por exemplo, como relatado acima, pela ausência das visitas em algumas semanas, além do compartilhamento, pelas mães, do entendimento da importância daquelas atividades para o desenvolvimento de suas crianças não deve ser desconsiderado. A compreensão de que a formação do Estado se dá de forma articulada entre os diversos sujeitos envolvidos indica exatamente o fato de que não haveria apenas controle sem haver compartilhamento das crenças sobre a importância desses conteúdos – afinal a preocupação com o futuro das crianças não foi instituído, apenas, por uma ação governamental. Além disso, o investimento comprometido da equipe técnica e sua preocupação com o contexto de vulnerabilidade em que as famílias atendidas estão inseridas faz parte da avaliação positiva feita por algumas das mulheres contatadas no trabalho de campo.

No entanto, mesmo esta sendo uma análise preliminar permitida por um trabalho de pesquisa em desenvolvimento consideramos pertinente atentar para os possíveis cruzamentos entre as duas ações governamentais aqui abordadas – Bolsa Família e Criança Feliz – como indicador da forma como essas práticas de governo se atualizam localmente. Uma possível linha de interpretação é que se antes cabia às agentes de saúde fazerem o monitoramento e chamada ao cumprimento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. Agora, no contexto do Programa Criança Feliz, esse cumprimento não depende mais de uma prática indireta daquela profissional, mas passa pela adesão da própria mulher-mãe a um programa que tem por objetivo exatamente aquilo que elas mais desejam – o desenvolvimento de seus filhos.

Claudia Fonseca, no artigo citado anteriormente (FONSECA, 2012), analisa o

(18)

processo no qual iniciativas da natureza do Criança Feliz apostam na relação familiar e, sobretudo, no cuidado da mãe, como elementos centrais para o desenvolvimento infantil. Ao citar críticas feministas a iniciativas dessa natureza, a autora observa que foi “especialmente com as políticas de austeridade dos anos 90 que a retórica sobre a centralidade de cuidados maternos passou a ser generalizada”. (FONSECA, 2012, p. 260). Além disso, observa como não apenas o desenvolvimento das crianças, mas o crescimento econômico e social das nações passa a ser tomado como efeito direto do investimento nos anos iniciais da criança.

Esta ampliação do escopo dessas políticas se dá no momento em que a economia, junto à neurologia, alcança lugar central na definição desses programas frente às agências de desenvolvimento, embora não haja consenso sobre o entendimento dessas questões. Está em jogo nessa orientação programática a opção por ações com foco no fortalecimento do vínculo familiar – leia-se mãe-bebê -, em países em desenvolvimento, em lugar de políticas universais, como garantia de trabalho e acesso a creches, por exemplo.

As razões por que esta forma de atuação do Estado - que privilegia o ambiente familiar em detrimento de ações com foco em outras formas de educação e políticas de espectro mais geral - se estabelece como regra para a definição de políticas públicas é uma pista instigante a ser seguida, como sugere Claudia Fonseca:

Assim, da mesma forma que existe uma hierarquia de classes para educação infantil no Brasil (creches para a classe alta, educação a domicílio para os pobres), existiria uma diferença lógica de políticas de educação infantil para os países mais e menos desenvolvidos [...]. Para os primeiros, investimentos pesados para assegurar creches e pré-escolas de qualidade.

Para os segundos, com a orientação entusiástica de organizações internacionais (UNESCO, UNICEF, Banco Mundial), programas “não- formais”, “alternativos” e “não-institucionais”, com alta instabilidade e parcos recursos públicos, usando equipamentos e materiais disponíveis “na comunidade” – programas que estimulam a permanência da criança junto à mãe como modelo ideal de cuidado (Rosemberg 2002; Rossetti-Ferreira, Ramon e Silva 2002; Freitas e Shelton, 2005; Campos e Campos, 2009) (FONSECA, 2012, p. 268-269).

Além de poderem ser interpretadas como uma solução pobre para os pobres, as iniciativas que focalizam o ambiente familiar acabam por delegar responsabilidades a uma equipe formada majoritariamente por mulheres que, usando os “equipamentos e materiais disponíveis”, acabam acumulando atribuições que, não é difícil associar, são muito próximas do cenário de precariedade nas condições de trabalho vivenciado pelas agentes comunitárias de saúde e aumentado

(19)

com as novas atribuições trazidas pelo Programa Bolsa Família.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Decreto nº 8.869, de 5 de outubro de 2016. Institui o Programa Criança Feliz. Brasília, 2016b. Disponível em:

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2016/decreto-8869-5-outubro-2016- 783706-publicacaooriginal-151185-pe.html>. Acesso em: 16 jun. 2019.

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Criança Feliz: guia para visita domiciliar. 2. ed. Brasília, DF: MDS, Secretaria Nacional de Promoção do Desenvolvimento Humano, 2017.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Processo Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho, a Lei nº 11.770 e a Lei nº 12.662. Brasília, 2016a. Disponível em:

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 16 jun. 2019.

BRASIL. Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da república e dos Ministérios.

Brasília, 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2019/Mpv/mpv870.htm>. Acesso em: 16 jun. 2019.

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Portaria nº 2.496, de 17 de setembro de 2018. Dispõe sobre o financiamento federal das ações do Programa Criança Feliz/ Primeira Infância no SUAS, no âmbito do Sistema Único de Assistência Social, e dá outras providências. Brasília, 2018. Disponível em:

<http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/4122784>.

Acesso em: 16 jun. 2019.

CASTILHO, Sergio R.; SOUZA LIMA, Antonio C.; TEIXEIRA, Carla C. Introdução.

Etnografando burocratas, elites e corporações. In: Antropologia das práticas de poder. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 7-31.

DAL’IGNA, Maria C., KLEIN, Carin; MEYER, Dagmar E. Mulher-mãe responsável:

Competências para educar filhos(as) saudáveis. In: BRITES, Jurema Gorski;

SCHABBACH, Letícia (Org.). Políticas para família, gênero e geração. Porto Alegre: UFRGS/CEGOV, 2014. p. 56-76.

DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

FASSIN, Didier. Another politics of life is possible. Theory, culture & society, Londres, v. 29, p. 44-60, 2009.

FERGUSON, James; GUPTA, Akhil. Spatializing States: Toward an Ethnography of Neoliberal Governmentality. American Ethnologist, [S.l.], v. 29, n. 4, p. 981–1002, 2002.

FONSECA, Claudia. Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica. Saúde Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 50-59, maio/ago. 2005. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 12902005000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 16 jun. 2019.

______, Claudia. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância.

(20)

In: FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabiola; MACHADO, Paula S (Org.). Ciências na Vida: Antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012, pp.

253-275.

FONSECA, Claudia; MACHADO, Helena. Apresentação. In FONSECA, Claudia;

MACHADO, Helena (Org.) Ciência, identificação e tecnologias de governo. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV, 2015. p. 9-18.

FONSECA, Claudia; SCALCO, Lucia. A biografia dos documentos: uma antropologia das tecnologias de identificação. In: FONSECA, Claudia; MACHADO, Helena

(Org.). Ciência, identificação e tecnologias de governo. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV, 2015. p. 21-37

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A vontade de saber. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

______, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).

São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 285-315.

______, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 117-153.

______, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008b, p.

297-327.

JASANOFF, Sheila. (ed.) States of knowledge: the co-production of science and social order. New York: Routledge, 2004.

KLEIN, Carin. Biopolíticas de inclusão social e produção de maternidades e paternidades para uma “infância melhor”. Tese de Doutorado. Programa de Pós- Graduação em Educação. UFRGS. Porto Alegre, 2010. Disponível em:

<https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27048/000763049.pdf?sequence=1&is Allowed=y>. Acesso em: 16 abr. 2019.

KLEIN, Carin; MEYER, Dagmar E.; BORGES, Zulmira N. Políticas de inclusão social no Brasil contemporâneo e educação da maternidade. In: Cadernos de Pesquisa, [S.l.], v. 43, n, 150, p. 906-923, set./dez. 2013. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-

15742013000300009&script=sci_arttext>. Acesso em: 03 abr. 2014.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede.

Salvador: Edufba/Bauru, São Paulo: Edusc, 2012.

MEYER, Dagmar. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2. sem. 2005

MEYER, Dagmar; KLEIN, Carin; FERNANDES, Letícia P. Noções de família em políticas de “inclusão social” no Brasil contemporâneo. Revista Estudos

Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 433-449, mai/ago. 2012. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-

026X2012000200005&script=sci_arttext>. Acesso em: 03 abr. 2014.

MILLER, Peter; ROSE, Nikolas. Governando o presente. São Paulo: Paullus, 2012.

MOLYNEUX, Maxine. Mothers at the service of the New Poverty Agenda: Mexico’s conditional transfer program. Social Policy & Administration, [S.l.], v. 40, n. 4, p.

425-449, aug. 2006.

MOLYNEUX, Maxine; THOMSON, Marilyn. Cash transfers, gender equity and

women's empowerment in Peru, Ecuador and Bolivia. Gender & Development, [S.l], v. 19, n. 2, p. 195-212, jul. 2011.

(21)

NASCIMENTO, Pedro. Linguagem e comunicação entre a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania - SENARC e os beneficiários do Programa Bolsa

Família - PBF e inscritos no Cadastro Único. Relatório Final. Consultor/ Projeto – 914BRZ3002; Contrato Nº SA-2879/2014, 2015.

NASCIMENTO, Pedro. Saúde, Família e Políticas Públicas: uma investigação da persistência do discurso sobre a relação entre pobreza e natalidade. Relatório

Técnico - Projeto de Pesquisa: Processo 482213/2013-2 - Edital Universal 14/2013 – CNPq, 2016.

NASCIMENTO, Pedro ; LIMA, Márcia. O Bolsa Família tem ajudado muito a gente:

usos das condicionalidades da saúde no Programa Bolsa Família. In: Ednalva Neves; Marcia Longhi; Mónica Franch. (Org.). Antropologia da Saúde: ensaios em políticas da vida e cidadania. 1ªed.Brasília/João Pessoa: ABA Publicações, 2018, p.

117-151.

POR QUE dizer não ao Programa Criança Feliz. Nota pública do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). Brasília, 7 mar. 2017. Disponível em:

<http://www.cfess.org.br/arquivos/2017-NotaPublicaCFESS- NaoAoProgramaCriancaFeliz.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2019.

OSMAR Terra, a opção pelo desenvolvimento humano para reduzir a desigualdade.

UOL Economia, Brasília, 9 jan. 2018. Disponível em:

https://economia.uol.com.br/noticias/pr-newswire/2018/03/07/osmar-terra-a-opcao- pelo-desenvolvimento-humano-para-reduzir-a-desigualdade.htm?cmpid=copiaecola.

Acesso em: 16 jun. 2019.

OSMAR TERRA. In: Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil (CPDOC). Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro:

2009. Disponível em: <http://www.fgv.br/Cpdoc/Acervo/dicionarios/verbete- biografico/terra-osmar>. Acesso em: 14 jun. 2019.

PIRES, Flávia. Comida de criança e o Programa Bolsa Família: moralidade materna e consumo alimentar no semiárido. In: Política & Trabalho - Revista de Ciências Sociais, [S.l.], n. 38, p. 123-135, abr. 2013. Disponível em:

<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/14575>. Acesso em: 5 abr. 2014.

RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. In: Política &

Trabalho - Revista de Ciências Sociais, [S.l.], n. 24, p. 27-57, abr. 2006.

ROSE, Nikolas; MILLER, Peter. Political Power beyond the State: Problematics of Government. The British Journal of Sociology, [S.l.], v. 43, n. 2, p. 173-205, jun.

1992.

SCOTT, Russel Parry. As famílias que os programas de saúde constroem no Brasil.

In: NASCIMENTO, Pedro F. G; RIOS, Luís F (Org.). Gênero, Saúde e Práticas profissionais. Recife: Editora da UFPE, 2011. p. 13-50.

SILVA, Maria Ozanira da Silva e. O Bolsa Família: problematizando questões centrais na política de transferência de renda no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, [S.l.], v. 12, n. 6, p. 1429-1439, nov/dez. 2007. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- 81232007000600006&lng=en&tlng=pt>. Acesso em: 27 abr. 2015.

SOUZA LIMA; Antonio C.; MACEDO E CASTRO, João Paulo. Política(s) Pública(s).

In: PINHO, Osmundo; SANSONE, Livio (Org.). Raça: novas perspectivas antropológicas. 2. ed. Salvador: ABA/UDUFBA, 2008. p. 351-392.

Referências

Documentos relacionados

 Reflexão acerca da co-gestão nos serviços de saúde  Sentidos do trabalho em saúde: cuidado.  Construção do projeto

Pode-se afirmar que o Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu em 1993 dentro da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, sendo apontado como uma resposta ao Massacre

Custos de Transação • Um contrato de fornecimento de um insumo no mercado envolve quatro dimensões: – Preço (Ex. R$ / kg) – Quantidade (disponibilidade) – Qualidade (pode

Ao mesmo tempo, estas religiões buscam na atualidade ampliar sua participação na vida ativa, sobre como se dá a tomada de decisão por parte do poder

Quando  inicializamos  nosso  computador  alguns  programas  são  carregados  para  otimizar  sua  utilização,  é  o  caso  dos  antivírus,  programas  de 

crítica, quando existe uma prática educacional comprometida com o educando/trabalhador. Para viabilizar este trabalho percorro o seguinte caminho: apresentação e

As atividades de Iniciação Científica realizadas no Centro Regional Sul de Pesquisas Espaciais – CRSPE/INPE – MCT, em Parceria com o Laboratório de Ciências Espaciais

Capítulo I Defensoria Pública, direitos fundamentais e tutela processual coletiva: um novo paradigma de acesso à justiça em prol dos indivíduos e grupos sociais necessitados 1..