240 O PRELÚDIO DA EDUCAÇÃO RUSSA NO PERÍODO
PRÉ-REVOLUCIONÁRIO A 1917
Ciro Mesquita de Oliveira
1Marcel Lima Cunha
2Isadora Barreto Paiva
3Natasha Alves Correia Lima
4Niágara Vieira Soares Cunha
5Ruth Maria de Paula Gonçalves
6Resumo
O presente trabalho articula-se a uma investigação em curso e examina o período histórico da educação russa que antecede a revolução socialista de 1917. O objetivo geral é explicitar de forma introdutória quais foram os fundamentos educacionais e as concepções pedagógicas que antecederam a educação pública da Rússia revolucionária. A análise articula-se com o referencial teórico-metodológico da ontologia marxiana, a qual permite compreender a relação entre as esferas particulares e os determinantes estruturais do real que constituem a totalidade social. Assim posto, o trabalho tem cunho teórico-bibliográfico, registrando os seguintes resultados preliminares: a educação pública anterior ao período da revolução socialista de 1917 estava ainda em regime de consolidação, lutando por estabelecer-se dentro de um Estado arcaico e autocrata; a educação escolar, na Rússia, ao longo do período considerado na pesquisa, foi marcada por um acirrado
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Mestrando do Curso de Mestrado Acadêmico em Educação da Universidade Estadual do Ceará – CMAE/UECE. Pesquisador-Colaborador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. Professor da rede básica de ensino de Fortaleza. E-mail:
ciromesquita@yahoo.com.br.
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Mestrando do Curso de Mestrado Acadêmico em Educação da Universidade Estadual do Ceará – CMAE/UECE. Pesquisador-Colaborador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. Professor da rede básica de ensino de Fortaleza. E-mail:
marcel_cunha2003@yahoo.com.br.
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Mestranda da Linha de Pesquisa Marxismo, Educação e Luta de Classes do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Pesquisadora-Colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. E-mail: isadorabpaiva@hotmail.com.
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Graduada do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Pesquisadora-Colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO / UECE. E-mail: natasha_acl@yahoo.com.br.
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Mestranda do Curso de Mestrado Acadêmico em Educação – CMAE/UECE. Pesquisadora- Colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO/UECE. E- mail: nyaggara@yahoo.com.br.
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Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Pesquisadora-Orientadora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário da Universidade Estadual do Ceará – IMO/UECE. E-mail:
ruthm@secrel.com.br.
241 embate entre as idéias dos educadores progressistas que se opunham à concepção autocrata czarista e aos defensores desta última. Tais educadores escolanovistas, mesmo que situados nos limites desta concepção liberal- burguesa, foram importantes na constituição de um sistema escolar soviético, que, no próximo período, viria, genericamente falando, tentar resgatar, no seio da escola, a transmissão do conhecimento e defender abertamente o princípio da relação entre teoria e prática articulada à constituição de um pensamento crítico e universal que apontasse para a formação humana plena e emancipada.
Palavras-chave: Educação russa. Revolução. Instrução pública.
THE PRELUDE TO THE RUSSIAN EDUCATION IN PRE-REVOLUTIONARY PERIOD TO 1917
Abstract
Te paper is associated to an ongoing research project and examines the historic period that precedes the 1917 socialist revolution. It aims to explicit, at an introductory level, the educational foundations and pedagogical conceptions which preceded revolutionary Russian public education. It’s based upon the theoretical and methodological frame of reference of Marxian ontology, which allows for the understanding of the relationship between the particular spheres and the structural determinants of social reality in its totality. The study takes on a theoretical and bibliographic character and indicates the following preliminary results: public education that preceded the 1917 socialist revolution period was still going through a consolidation process, trying to establish itself in an archaic and autocratic State; the period herein focused upon was characterized by the clash of different educational ideas and projects, with the progressive educators standing in opposition to the czarist, autocratic status quo and its advocates. Such educators, inspired by the beliefs of the New School Movement, despite the limits inherent to this liberal-bourgeois conception, played an important role in the constitution of a Soviet educational system, which, in the following period, would, generically speaking, try to rescue to the field of school education, the task of transmitting knowledge, openly defending the principle regarding theory-practice relationship associated to the establishment of a critical and universal thought aimed to full human emancipation.
Keywords: Russian education. Revolution. Public education.
Introdução
O presente texto tem como objetivo central, analisar o prelúdio da
educação russa no período pré-revolucionário a 1917. Num recorte mais
242 preciso, pretende-se estudar a quadra entre os anos de 1810 a 1917.
Justificamos o recorte histórico, pelo fato de que neste período iniciaram-se discussões relevantes sobre educação, as quais desaguaram no momento posterior, influenciando, anos mais tarde, os pedagogos e a educação do período soviético.
Tentemos apontar, de início, que a sociedade russa, segundo Daniel Aarão Reis (2004), nas primeiras décadas do século XIX era denominada de império russo, regido pelo czar. O Estado era uma poderosa autocracia, nesse sentido, o czar governava, conduzindo uma burocracia politicamente irresponsável, regida pelas relações de nobreza, cuja principal missão chauvinista era de manter a ordem interna e fazer a guerra de expansão no exterior.
Faremos um mergulho, portanto, na história desse período e encontraremos veremos vários autores
7que animaram o debate acerca da educação e suas concepções pedagógicas, evidenciando ainda teorias educacionais em voga que determinaram seus pensamentos sobre a educação. Dentre tais teorias, o movimento escolanovista merece destaque por aglutinar em torno de si neste momento muito das mentes dos educadores russos da época.
Anotações sobre a questão metodológica
Segundo Sader (2006), a Filosofia moderna é centrada no aspecto gnosiológico, que constituiu os parâmetros hegemônicos da racionalidade e da cientificidade. Essa perspectiva metodológica alicerçou o modelo filosófico burguês. Diante disso, a atividade científica, dentro deste modelo, é marcada pela crescente divisão social do trabalho refletida na categoria da “ciência”, na qual cada “ciência” trabalha com um momento isolado do ser.
Marx rompe com essa postura gnosiológica ao inaugurar a perspectiva onto-histórica:
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Tais autores como: Constantin Uchinski (1824-1870), Tolstoi (1828-1910), Lesgaft (1837-1909,
Kapterev (1849-1922), Vakhterov (1853-1924), Tikheeva (1866-1944), Shleger (1863-1942), Chatski
(1878-1934), Nadejda Krupskaia (1869-1939).
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O conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção da realidade, explícita ou implícita. A questão: como se pode conhecer a realidade?
é sempre precedida por uma questão mais fundamental: que é a realidade? (MARX apud KOSIK, 1976, p. 35).
No entanto, esclarecemos que a abordagem ontológica não torna irrisória a abordagem gnosiológica; Lukács esclarece esta afirmação ao afirmar que há
[...] muito tempo a gnosiologia foi um complemento e um acessório para a ontologia: sua finalidade era o conhecimento da efetividade existente em si, e por isso a concordância com o objeto era o critério de todo enunciado correto (LUKÁCS apud COSTA, 2009, p. 29).
Em Marx, compreender um objeto do ponto de vista ontológico é entender seu ponto metodológico central, ou seja, sua gênese e seu processo de desenvolvimento, “[...] o próprio objeto que fornece o universo categorial para o seu conhecimento [...]” (COSTA, p. 30, 2009). Neste aspecto, tentamos revelar o real enquanto algo existente dentro de nossa sociabilidade. Para a apropriação do conhecimento real, deve-se analisar o objeto desvelando a
“coisa-em-si”. Com efeito, Kosik (1976, p. 9) afirma tal posição ao dizer que o homem é “[...] um ser que age, objetiva e praticamente [...] um individuo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens [...]”.
Ressaltamos a importância da relevância do referencial marxista alicerçado na perspectiva ontológica, por considerarmos que os fundamentos marxianos são essenciais para a compreensão da totalidade social. Nesse sentido, em contraponto às interpretações de caráter economicista, determinista, positivista e dogmático da obra de Marx, fundadas no imperialismo gnosiológico ou epistêmico que dominou os estudos marxianos no período histórico vivido. Apoiamo-nos em estudiosos que entendem que o caminho mais adequado para o resgate do caráter revolucionário do marxismo implica em apreender o legado de Marx como uma ontologia do ser social.
Sobre isso, Lessa e Tonet (2008, p.18) reconhecem que, na teoria
marxista, a concepção de existência humana está unicamente atrelada à
transformação da natureza e que a reprodução da sociedade está relacionada
244 a este processo. Desta forma, os autores asseveram que “por meio do trabalho os homens não apenas constroem materialmente a sociedade, mas também lançam as bases para que se construam como indivíduos”.
O trabalho
8representa o salto evolutivo entre o humano e os demais seres vivos. De tal modo, defendemos que o trabalho, ato-gênese do ser social, é vontade humana posta em prática, uma vez que “[...] nenhum animal pôde imprimir na natureza o selo de sua vontade. Só o homem pôde fazê-lo.”
(ENGELS, 1876, p.7). Diferente dos animais, cuja vida é circunscrita pelos limites impostos pela natureza, o homem torna-se mais humano quanto mais faz recuar as barreiras naturais, conforme explicitou Marx. Nas palavras de Engels (1876, p.6):
Os animais, [...] também modificam com sua atividade a natureza exterior, embora não no mesmo grau que o homem; [...] a influência duradoura dos animais sobre a natureza que os rodeia é inteiramente involuntária e constitui, no que se refere aos animais, um fato acidental. Mas, quanto mais os homens se afastam dos animais, mais sua influência sobre a natureza adquire um caráter de uma ação intencional e planejada, cujo fim é alcançar objetivos projetados de antemão.
[...] só o que podem fazer os animais é utilizar a natureza e modificá- la pelo mero fato de sua presença nela. O homem, ao contrário, modifica a natureza e a obriga a servir-lhe, domina-a. E ai está, em última análise, a diferença essencial entre o homem e os demais animais, diferença que, mais uma vez, resulta do trabalho. (ENGELS, 1876, p.7).
O trabalho é atividade vital consciente, ou seja, diferencia-se das demais atividades vitais dos animais porque é mediado pela consciência. Através do trabalho, o homem transforma o meio natural, promovendo, desta forma, a criação de suas próprias condições de existência. A transformação do mundo natural em um mundo humano revela a dinâmica auto-constitutiva do gênero humano.
Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material.
(ENGELS & MARX, 1846, p.3).
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Ver mais em: MORAES, B. M. Trabalho e individuação. In. FELISMINO, Sandra Cordeiro (et al...)
(orgs.).Trabalho e educação face à crise global do capitalismo. Fortaleza: LCR, 2002.
245 Ressaltamos que o trabalho está ligado, na sua essencialidade, à criação do novo pelo homem, pois, a cada novo ato de trabalho, cria-se uma nova situação objetivada que anteriormente só existia na sua consciência. Ao produzir incessantemente o novo, o homem cria novas possibilidades e novas necessidades, bem como são adquiridas novas habilidades e novos conhecimentos.
Deste modo, nossa pesquisa fundamenta-se no legado ontológico deixado por Marx e Lukács, através das contribuições de seus intérpretes, pois consideramos que esta é a perspectiva filosófica que supera o modelo filosófico liberal, o qual se afirma em uma propositura subjetiva de cunho ético-utópico.
A Rússia e o projeto educacional do período pré-revolucionário a 1917
Seguindo na esteira de Reis (2004) e de sua caracterização do estado russo imperial e autocrático, verificamos a divisão onde, de um lado está a nobreza que concentrava a riqueza e o poder e de outro a massa de camponeses servos
9que compunham aproximadamente 90% da população.
Os burgueses, os comerciantes, o clero, os funcionários, os quais constituíam as camadas intermediárias, nesse período das primeiras décadas do século XIX, não eram significantes em número, dada uma sociedade fundamentalmente agrária e precariamente urbanizada.
Examinando a situação da educação russa czarista e nos apoiando em René Capriles (1989), verificamos que na Rússia segundo o censo nacional russo de 1897 existiam somente 29% de homens alfabetizados e 13% das mulheres da totalidade da população. Vale ressaltar que em lugares como nas repúblicas de Tadjiquistão, Kirguizia e Uzbequistão o total de analfabetos representava 98% da população.
Sobre as escolas primárias e secundárias, evidenciamos que até a Revolução de 1917, eram instituições isoladas, e “dirigidas com critérios feudais, que, em termos nacionais, não relacionavam os seus respectivos
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Neste momento ainda não se tinha abolido a servidão. Somente em fevereiro de 1861
teremos a abolição de mais de vinte milhões de pessoas.
246 programas entre si”. (CAPRILES, 1989, p.18).
Praticamente não existia ensino público, uma vez que, em sua grande maioria as instituições de ensino eram de propriedade de alguns setores da grande burguesia nas áreas urbanas, por exemplo, a escola dos trabalhadores ferroviários na qual Makarenko
10irá ensinar. No campo, as escolas eram de propriedade dos latifundiários, somente uma pequena parte era do Estado.
Como se pode observar, quem controlava as escolas era majoritariamente a Igreja, “A Igreja, além de controlar maciçamente a instrução popular, também era proprietária de um significativo número de estabelecimentos educacionais”. (CAPRILES, 1989, p.18).
Já o ensino na escola primária clássica, a mais difundida no país, com cerca de 95% dos estudantes, tinha duração máxima de dois a três anos.
Quanto ao programa, geralmente todas as matérias eram ministradas por um único professor. Nessas escolas (paroquiais), o ensino se limitava a transmitir o dogma religioso, noções de leitura e escrita, elementos básicos de aritmética e, cotidianamente, o canto religioso. Num pequeno número dessas instituições, para ser mais exato, em apenas 5% do total, segundo as estatísticas oficiais, o ensino perfazia excepcionalmente, seis anos.
Diante dessa realidade, Constantin Dimitrievitch Uchinski (1824-1870) é o primeiro pedagogo a levantar a questão de uma reforma para a instrução pública em âmbito nacional. Uchinski e seus correligionários lutaram por décadas por um ensino leigo, desvinculado do comando da igreja. Este pedagogo vai inclusive influenciar Tolstoi (1828-1910), o qual se torna um grande literato russo, mundialmente conhecido por sua obra Guerra e Paz. O pedagogo se torna então, um referencial para Tolstoi tanto no campo da literatura quanto da educação como veremos a seguir.
A proposta de Uchinski era de uma reforma democrática no ensino, que visava não somente a criação de um grande sistema público de instrução, mas buscava especialmente, normalizar a formação de quadros pedagógicos capazes de continuar suas teorias sobre uma antropologia pedagógica.
Uchinski desejava uma educação baseada na cultura popular e nas tradições
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