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Marcelo Ferreira de Assis Tráfico atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava, Rio de Janeiro c.1790- c.1830

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Tráfico atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava, Rio de Janeiro c.1790- c.1830

Marcelo Ferreira de Assis

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente de pós-graduação em História Social do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Orientação;

Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino

Rio de Janeiro Maio/2002

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Folha de Aprovação

“Tráfico Atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava, Rio de Janeiro - c.

1790- c. 1830.”

Marcelo Ferreira de Assis

Dissertação de Mestrado

Aprovada por:

__________________________________

Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino - UFRJ (Orientador)

_________________________________

_______________________________

Profa. Dra. Ana Lugão – UFRJ Prof. Dr. Suplente

_________________________________

_______________________________

Profa. Dra. Ana Maria Moura – UERJ Prof. Dr. Suplente

Rio de Janeiro 2002

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ASSIS, Marcelo Ferreira de.

Tráfico atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava, Rio de Janeiro c.1790 – c. 1830/

Marcelo Ferreira de Assis – Rio de Janeiro – PPGHIS - 2002 146f

Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS/PPGHIS, 2001.

Orientador: Manolo Garcia Florentino

1. Tráfico de Escravos – 1790 – 1830. 2. Impacto microbiano. 3. Mortalidade escrava. 4. História – Tese (Mestrado – UFRJ/PPGHIS). I. Título: Tráfico Atlântico, impacto microbiano e mortalidade escrava – c. 1790 – c. 1830.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer inicialmente à CAPES, que financiou essa pesquisa, sem o qual seria difícil cumprir o prazo estabelecido. Inúmeras pessoas participam da elaboração de uma dissertação, não será possível citar todas. Que me perdoem os não citados, mas foram importantes as dicas de inúmeros colegas com os quais tive a oportunidade de conversar a respeito desse trabalho.

Começo por Manolo Florentino, orientador sempre atento às possibilidades de erro que um trabalho como esse suscita. Em nenhum momento Manolo deixou de oferecer generosamente sua ajuda na empreitada e sem ele não seria possível realizar esse trabalho.

Aos colegas do LIPHIS Daniela Barreto, Carlos Engemann, Martha Hameister, Tufy, Tiago Gil. Um grande abraço para Alzira, que me ajudou bastante com o texto. Obrigado a todos pela força. Agradeço a Anna Elisa Penalber, com quem aprendo a encontrar o meu caminho, à minha mãe, Maria do Carmo, que deu suporte em alguns momentos cruciais. Meu pai, Christóvão Ferreira, outro que deu apoio importante durante toda a empreitada.

Termino por agradecer aos funcionários da Mitra Arquidiocesana de Niterói e da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, pela atenção dedicada.

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RESUMO

Este estudo observa a dinâmica da mortalidade escrava em áreas urbanas e rurais da província do Rio de Janeiro, de 1790 a 1830, tendo como pressuposto que o tráfico atlântico influenciava de forma intensa tal dinâmica. As migrações africanas, seletivamente homens em idade adulta, constituíram um elemento de propagação de doenças no cativeiro. Propagação que dizimava tanto aos próprios africanos, pois o processo migratório influencia no volume e na maneira da mortalidade, e aos crioulos recebedores das estranhas doenças transportadas pelos negreiros.

ABSTRACT

This study observes the dynamic of slave mortality in urban and rural regions on the province of Rio de Janeiro, from 1790 to 1830, having as a presuppose that the atlantic slave trade get a strong influence in this dynamic. The african migrations, selectively men in adult age, constituted one element of the propagation of diseases in captivity. Propagation which decimated the even africans, since the migration process influences on volume and ways of mortality, and still the creoles that received the foreign diseases transported by slave-traders.

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Lista de Tabelas e mapas

Mapa 1 : “Plano da cidade do Rio de Janeiro Capital do Estado do Brasil”; autor: José Custódio de Sá e Faria.

Tabela 1: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os escravos dos meios urbano e rural do Rio de Janeiro, 1790-1830

Tabela 2: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os escravos do meio urbano do Rio de Janeiro, 1790-1830

Tabela 3: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os africanos da população escrava urbana do Rio de Janeiro, 1790-1830

Tabela 4: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os crioulos da população escrava urbana do Rio de Janeiro, 1790-1835

Tabela 5: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os escravos do meio rural do Rio de Janeiro, 1790-1830

Tabela 6: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os africanos da população escrava rural do Rio de Janeiro, 1790-1835

Tabela 7: Incidência e tipos de doenças, por sexo, entre os crioulos da população escrava rural do Rio de Janeiro, 1790-1830

Tabela 8: Incidência e tipos de doenças por grandes faixas etárias da população escrava do meio urbano fluminense, 1790-1807

Tabela 9: Incidência e tipos de doenças por grandes faixas etárias da população escrava do meio urbano fluminense, 1810-1830

Tabela 10: Incidência e tipos de doenças por grandes faixas etárias da população escrava do meio rural fluminense, 1790-1807

Tabela 11: Incidência e tipos de doenças por grandes faixas etárias da população escrava do meio rural fluminense, 1810-1830

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Lista de Anexos

Anexo 1: Entrada de africanos no porto do Rio de Janeiro, 1790-1830

Anexo 2: Freqüências Anuais dos Óbitos de Escravos, Freguesia de Saquarema,1774-1819 Anexo 3: Freqüências Anuais dos Óbitos de Escravos, Freguesia de São José,1824-1850 Anexo 4: Freqüências de Mortalidade dos Inocentes escravos, Freguesia de Saquarema,1774-1819

Anexo 5: Freqüências de Mortalidade dos Inocentes escravos, Freguesia de São José,1824- 1845

Anexo 6: População adulta e inocente em Saquarema Anexo 7: População adulta e inocente, Matriz de São José

Anexo 8: Freqüências de Infecto-contagiosas por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

Anexo 9: Freqüências de Infecto-contagiosas por entre os escravos, Freguesias urbanas fluminenses,1789-1835

Anexo 10: Freqüências de doenças carenciais por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

Anexo 11: Freqüências de doenças carenciais por entre os escravos, Freguesias urbanas fluminenses,1789-1835

Anexo 12: Freqüências de doenças traumáticas por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

Anexo 13: Freqüências de doenças traumáticas por entre os escravos, Freguesias urbanas fluminenses,1789-1835

Anexo 14: Freqüências de doenças tumorais por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

Anexo 15: Freqüências de doenças tumorais por entre os escravos, Freguesias urbanas fluminenses,1789-1835

Anexo 16: Freqüências de doenças reumáticas por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

Anexo 17: Freqüências de doenças reumáticas por entre os escravos, Freguesias urbanas fluminenses,1789-1835

Anexo 18: Freqüências de doenças psico-sociais por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

Anexo 19: Freqüências de doenças psico-sociais por entre os escravos, Freguesias urbanas fluminenses,1789-1835

Anexo 20: Freqüências de má-formações por entre os escravos, Freguesias rurais fluminenses,1789-1835

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1. ESCRAVIDÃO, MORTALIDADE E TRÁFICO ATLÂNTICO:

HISTORIOGRAFIA E DEBATE POLÍTICO. 17

ESCRAVIDÃO 17

MORTALIDADE ESCRAVA E HISTORIOGRAFIA 26

O TRÁFICO ATLÂNTICO 36

CAPÍTULO 2. A MORTALIDADE NOS REGISTROS DE ÓBITOS: AS

FREGUESIAS DE SAQUAREMA E SÃO JOSÉ. 42

NOSSA SENHORA DE NAZARETH DE SAQUAREMA 45 MATRIZ DE SÃO JOSE DA CORTE DO RIO DE JANEIRO 65 CAPÍTULO 3. BICHADOS E PURULENTOS: O CAMINHO DA MORTE 78

OS MEIOS URBANO E RURAL 82

A PROVÍNCIA 83

O MEIO URBANO 89

OS AFRICANOS E A CIDADE 93

OS CRIOULOS E A CIDADE 96

O MEIO RURAL 98

OS AFRICANOS E O AGRO 102

OS CRIOULOS NO MEIO RURAL 105

A DIZIMAÇÃO QUE NUNCA CESSA 110

CAPÍTULO 4. “CRIANÇAS, ADULTOS E IDOSOS: O BANQUETE”. 113

DOENÇAS POR FAIXAS-ETÁRIAS DA POPULAÇÃO ESCRAVA NA CIDADE

DO RIO DE JANEIRO 115

DOENÇAS POR FAIXAS-ETÁRIAS DA POPULAÇÃO ESCRAVA NO CAMPO 120

CONCLUSÃO 126

ANEXOS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

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FONTES ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

BIBLIOGRAFIA ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

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Introdução

Neste trabalho, parto do princípio de que o impacto da chegada de africanos pode ser observado através da mortalidade escrava. Mais ainda. Crianças, adultos e idosos sofreram e morreram de formas diferenciadas, como também foram diversificadas as reações dessas populações, à migração compulsória proveniente da África. A amplitude dessa influência deve ser verificada através do quadro patológico da população escrava. Pois, acredito ser possível observar uma modificação na configuração de doenças dessa população de um período de menor desembarque de africanos para um posterior onde o volume de desembarcados foi muito maior.

Uma tal perspectiva leva em conta a possibilidade de se pensar o escravo como um suporte para o transporte de patógenos e microvidas de seu local de origem, a África, para seu destino, localizado do outro lado do Oceano Atlântico, no Rio de Janeiro, dois portos coloniais, unidos num sistema perverso.1 O comércio de escravos atlântico é observado como agente da migração de doenças e patologias. Pensar o tráfico dessa forma é dar-lhe mais que um caráter puramente comercial.

Tomar o escravo e a escravidão pelo ponto de vista da mortalidade, é observar um elemento dinâmico da população escrava. Sua variação poderia contribuir para o aumento ou decréscimo de uma tal população. Por outro lado, é remeter às condições de vida dos escravos, a insalubridade na qual sobreviviam e a sua parca alimentação. Enfim, é observar o terreno propício que deve ter sido o cativeiro para a proliferação de doenças, mais ainda as de tipo infecto-contagiosa, patologia principal presente nas embarcações comerciais.2

1 Discutirei o conceito de biota a partir da formulação de Alfred Crosby mais adiante.

2 Também discutirei a frente o papel das doenças infecto-contagiosas no desenvolvimento, ou ressurgimento, do comércio europeu no século XVI. Por outro lado, “... a estrutura por idade e sexo, de uma população em um momento dado, é o resultado de um efeito conjunto dos nascimentos, das mortes e das migrações que foram ocorrendo nos cem anos anteriores”. Cf. em BERQUÓ, Elza S. “Fatores estáticos

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A mortalidade, fator dinâmico da população, se efetivou num volume que a alguns autores pareceu um holocausto. Não é pra menos, todos os autores que se debruçaram sobre a mortalidade escrava no Brasil perceberam que pertencer ao cativeiro “fazia mal a saúde”, aproximava da morte como a nenhuma outra população ou situação. A idéia não é absurda.

Mas, pode cair-se no erro de um certo mecanicismo intelectual simplista e daí explicar a mortalidade escrava.

É certo que por inúmeras razões, pertencer ao cativeiro, era estar próximo da morte, pela fúria senhorial ou pelo descaso do mesmo senhor, pela inexistência de profilaxia e a sucessiva exposição da criança, adulto ou idoso (em diferentes momentos e formas) a infecções. Sobreviver aos primeiros meses de vida era tarefa para poucas crianças escravas nascidas no Brasil ou mesmo provenientes de África. Equilibrar-se no tenso ambiente da senzala por entre a maioria esmagadora de homens, alguns extenuados e doentes, também foi tarefa de poucos na história da humanidade. Homens que souberam conflitar e negociar com a sociedade escravista e entre si, inclusive.

O cativeiro foi o lugar do encontro entre diferentes, inclusive no que diz respeito aos aspectos biológicos. Esse encontro pode ter sido fatal, alertava Ciro Cardoso já em 1983.

Por isso, não acho possível pensar que a mortalidade e mesmo o decréscimo da população escrava (resultado de mortes, alforrias e fugas), derivasse de uma ação ordenada e minuciosamente tramada pelo senhor que tinha em mente um tamanho cálculo econômico (ver capítulo 1). Como se não existisse nada para além da relação de dominação senhor/escravo, ou como se o cotidiano não oferecesse a ambos a possibilidade de fugir desse esquema.

dinámicos (mortalidade e fecundidade)”. In: SANTOS, Jair F.; LEVY, Maria Stella Ferreira;

SZMRECSÂNYI, Tamãs. Dinâmica populacional: teoria, métodos e técnicas de análise. São Paulo,

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Penso que o caminho da morte para os escravos esteve diretamente relacionado às suas condições de existência e que a análise do quadro patológico dessa população pode ajudar a elucidar as questões relativas à altíssima mortalidade escrava. Recorri, por isso, a autores que haviam trabalhado com a classificação de doenças escravas e constatei que diferiam um pouco da minha análise. No entanto, as contribuições e o diálogo foram muito ricos.

Realizar um trabalho como esse de base quantitativa é suscitar dúvidas cada vez maiores. Trabalhar as variáveis corretas para que respondam as questões levantadas é um exercício constante. Ao final, pode-se ficar com a sensação de um trabalho incompleto, e não de todo errônea, pois os assuntos levantados apenas apresentam uma parte do problema.

Inicio o estudo tentando localizar a discussão sobre mortalidade escrava. Enfatizo a produção sobre o tema e tento entender o início da preocupação sobre os altos níveis de mortalidade escrava. Certamente, na intenção de defender as idéias abolicionistas, houve quem entendesse da dinâmica demográfica cativa, bastante diferenciada das populações brancas. Joaquim Nabuco é um exemplo. Há uma explicação para a mortalidade escrava que perpassa o pensamento intelectual brasileiro. A idéia de que o cativeiro cumpria uma tarefa destrutiva no tocante às vidas escravas, e que possuía uma lógica econômica senhorial. Tento debater um pouco com esse pensamento e matiza-lo.

O Capitulo 2, talvez o mais difícil de produzir, onde tentei estabelecer as variações das informações dos óbitos com as flutuações dos desembarques de africanos no porto do Rio de Janeiro. Existem softwares com possibilidade de fazerem cálculos mais apurados. Um deles é o de correlações entre as curvas de desembarque e as de mortalidade. O SPSS tem

Biblioteca Básica de Ciências Sociais, 1980, p. 21

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sido aproveitado para estes cálculos. No entanto, o tempo não foi suficiente para que eu pudesse aprender a manuseá-lo.

Procurei perceber a ligação diretamente proporcional entre o número de mortos da localidade e os desembarques de africanos, através das indicações das tendências. Utilizei o Microsoft Graph 2000, que ajudou a observar as tendências das mortes dos escravos com as variações de desembarques de africanos no porto do Rio de Janeiro. Achei relevante poder pensar esta perspectiva e experimenta-la.

A análise mostrou a igualdade entre a mortalidade de africanos e crioulos, a dinâmica dos nascidos no Brasil e na África possuíram pontos muito parecidos. O impacto atinge a todos, no entanto, os crioulos aparecem na análise como sendo a população que sofre mais.

Não que os africanos não sofram, longe disso. Mas, a dinâmica observada dá conta de que os crioulos sofreram mais.

Os padrões obtidos na análise dos meios (urbano e rural), comprovam que a dinâmica da populacional da população escrava não foi uniforme, embora tenha sido muito parecida.

Cidade e campo sofreram com a chegada dos africanos. A cidade mais, por propícia que era às enfermidades, por ser o local de maior circulação de estrangeiros, inclusive os africanos que ali chegavam primeiro. A continuidade crescente na curva de número de mortos na paróquia de São José é uma prova. Enquanto em Saquarema, não houve, para todo o período estudado, a mesma continuidade, de outro modo, o que há é uma descontinuidade no crescimento de número de mortos escravos.

Mostrar as diferenças entre as curvas de mortalidade da população crioula e africana também foi intenção deste capítulo. Fica clara a sub-enumeração dos óbitos quando se analisa a população crioula, posto que grande parcela não é assinalada como sendo nascida no Brasil

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– o que se constata quando se observa a curva dos inocentes, que são maioria crioula e isso não foi anotado na grande maioria dos registros de crianças escravas.

Esse capítulo mostra de perto o crescimento do número de mortos ao longo do tempo juntamente com a tendência de crescimento dos desembarques de escravos. Isso é particularmente verdade para a paróquia urbana de São José. No tocante a Saquarema, região sabidamente produtora de alimentos em finais do século XVIII, o crescimento não é contínuo, pois, há um momento em que as curvas de número de mortos começam a declinar.

Esse declínio pode ser explicado como o desligamento da região do mercado de homens, que se reflete principalmente na curva do número de mortos de africanos, que baixa sensivelmente.

O terceiro capítulo, “Bichados e purulentos: o caminho da morte”, tenta estabelecer a forma pela qual a mortalidade se consubstancia na cidade e no campo. Aqui entra na análise outra fonte: os inventários post-mortem, produzidos na cidade do Rio de Janeiro e nos ambientes rurais da província. Destes, retirei a parcela escrava doente, e dei continuidade, aprofundando em alguns casos a análise iniciada por Manolo Florentino, onde os sintomas foram classificados em determinadas patologias. Ao comparar o peso das patologias sobre os escravos, observei que “Traumas” e “Infecto-contagiosas” possuíam juntas mais de 50% das doenças, em todos os períodos. Dediquei especial atenção a esses dois tipos de doenças.

O segundo passo foi estabelecer períodos distintos, para melhor observar a reação da população escrava (através da manifestação de sintomas e o aumento das infecções) de um período para o outro. Os períodos em questão foram dispostos de forma a situar momento de menor desembarque (1790-1807) e outro de maior chegada de africanos (1810-1830).

Perceber o movimento das doenças de um período de menor desembarque para um de

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maior. O método empregado foi elaborado por ser a curva de desembarque de africanos ascendente.

As diferenças existentes nos diversos ambientes fluminenses não apagam o poder de proliferação de doenças. Tanto no campo como na cidade há propagação de doenças infecto-contagiosas. Quanto aos traumas, esses estão sempre presentes no ambiente escravista, devido ao trabalho pesado e à violência. Durante o primeiro período, traumas e infecto-contagiosas são equiparados, não há predominância de nenhum dos tipos de males no meio urbano. No meio rural, há nítido predomínio dos traumas no mesmo período. Com o passar dos tempos, entre 1810 e 1830, a realidade muda. Ambos os ambientes mostram um crescimento relativo das infecto-contagiosas frente aos traumas, provando que em fase de maior migração africana as infecto-contagiosas tomam vulto assustador.

Entre africanos e crioulos, há certa igualdade no tocante à propagação de infecto- contagiosas durante o período de maior volume de africanos desembarcados. Ambos os grupos de cativos são assolados pelas doenças infecto-contagiosas, a dinâmica das patologias apresenta o mesmo movimento, no entanto, o volume dos crioulos é maior que o de africanos.

A população residente sofre mais com as patologias do cativeiro, em especial as infecto- contagiosas, em épocas de povoamento das senzalas.

No quarto e último capítulo, “Crianças, adultos e idosos: o banquete”, tento observar o funcionamento das doenças por entre as faixas-etárias dos escravos. De fato, algumas conclusões podem ser tiradas sobre as crianças, adultos e idosos. Inocentes e idosos não possuíram a mesma propensão à doença, e nem todas as doenças possuíam o mesmo peso letal. Uma criança não possuía a experiência que os idosos tinham com os patógenos. Os

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adultos, por sua vez, alvo preferencial do tráfico e população a lotar os tumbeiros, foram os meios de transporte primordiais das bactérias da África para o Rio de Janeiro.

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Capítulo 1. Escravidão, mortalidade e tráfico atlântico: historiografia e debate político.

Escravidão

O debate intelectual que tomou a escravidão como objeto, esmerou-se em defender teses onde a condição cativa era a imoralidade e sua causa, a inferioridade da raça negra. Tal discussão, produzida em grande parte em finais do século XIX e inícios do XX, apresentou o escravo como expressão de uma raça inferior. 3

A origem dessa peculiar caracterização pode estar ligada ao surgimento de estudos antropológicos em pleno século XIX que, apesar de trazer à tona a discussão sobre o cativeiro, não distinguiu inicialmente escravidão de raça: de Nina Rodrigues a Gilberto Freyre, esse foi o tema em debate.4 O primeiro autor, referência de estudos médicos pioneiros, se debruçou sobre a população escrava e negra, e acabou por reforçar a idéia de que a promiscuidade da população escrava era decorrente da raça negra. Tal perspectiva baseava- se em estudos físico-antropológicos que adjetivava e “diagnosticava” negativa e patologicamente o homem negro.5 O segundo, acabou por retirar do homem negro o estigma da raça negra. Falaremos mais adiante. Comecemos por Nina Rodrigues.

O discurso de Rodrigues foi marcado pela influência européia. Conhecido por suas doutrinas raciais, o autor aliou a etnologia à medicina (daí o termo “diagnóstico” usado acima)

3 MOTA, José Flávio. Corpos escravos vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal - (1801- 1829). São Paulo: Ed. FAPESP/ANNABLUME, 1999 p. 180

4 Lilia M. Schwarcz mostra um interessante panorama das discussões que envolvem a escravidão no Brasil, ressaltando a dicotomia que surge no âmbito da historiografia sobre escravidão. Cf. SCHWARCZ, Lilia M. Retrato em branco e preto:jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo, Cia. Das Letras, 1987.

pág. 20-22; Cf. também: MOTA, Idbem.

5 SCHWARCZ, idem. pág. 23

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para concluir que a raça negra era inferior à branca. Entretanto, tal opinião foi, até certo ponto, marginalizada pelas principais correntes intelectuais da época. 6

Para a maioria intelectual não estava descartado o discurso da desigualdade entre raças. No entanto, havia um ponto conflitante entre as propostas de Nina Rodrigues e as da maior parte da intelectualidade brasileira. Bem mais otimista, essa parcela intelectual para a qual a mestiçagem era encarada de forma menos negativa no processo de formação da nação, não apostava nas teses radicais do médico oriundo da Escola Tropicalista Baiana. Ao contrário, defendiam a crença de que o “branqueamento” do Brasil aconteceria e que isso era positivo. A mestiçagem foi naquele momento duplamente encarada, de acordo com o segmento que se observe: primeiro, como mal que devia ser evitado; segundo, a miscigenação não era vista com bons olhos, mas poderia ser uma saída para a sociedade eminentemente negra, uma vez que possibilitaria o “branqueamento”.

O ponto comum entre essas visões um tanto dicotômicas, foi o fato de que o negro era considerado um elemento negativo na civilização,7 conseqüentemente havendo a superioridade da raça branca.8 Ambos pressupostos baseados no discurso europeu, provinham de duas matrizes distintas. A parcela intelectual, que não aprovava a mestiçagem, era ligada ao pensamento poligenista, acreditando em origens diferentes do homem; por isso a mistura não era vista com bons olhos. A mancha indelével da raça negra passaria para os brancos em caso de miscigenação.

Por outro lado, os homens que pensaram a mestiçagem como forma de branqueamento da sociedade, entendiam-na como possibilidade de um bom desenvolvimento

6 Idem. 22-23

7 Idem. pp. 25-26.

8 ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. Guerra e paz: Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30.

Rio de Janeiro, Editora 34, 1994 p. 29

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do país. Para eles, o homem possuía apenas uma origem (monogenistas), e dessa forma as diferentes sociedades (tribais, caçadoras/coletoras, que apareciam para o mundo de então) cumpriam etapas diferentes de um mesmo sentido rumo à evolução.9

Tais pressupostos foram importados. Não se criou um debate, em torno da questão sobre a escravidão, com formulações que levassem em conta a singularidade da formação étnica no Brasil. As únicas faculdades existentes eram, na época, as de Direito, Medicina e Engenharia – ditas profissões imperiais. Alguns autores enfatizam que o despertar para a Antropologia foi de certa forma influenciado pelas expedições estrangeiras à Corte, especialmente as alemãs. Apenas em 1876 seria fundado um laboratório de fisiologia experimental ligado ao Museu Nacional, mas foi na década de 1890 que Nina Rodrigues realizou o primeiro estudo etnográfico considerado sério a respeito do afro-brasileiro.10 Esses estudos aconteceram durante e após sua permanência frente à Escola Tropicalista Baiana, que foi um movimento iniciado por médicos estrangeiros que visava observar e tratar das doenças dos escravos, na Bahia, e que mais esteve próximo da realidade escrava.11

Segundo Pedro Motta de Barros, Nina Rodrigues constata que “não existe, na Bahia, possibilidade de se efetuar pesquisa rigorosamente científica, por falta de pessoal especializado (pricipalmente bacteriologistas com sólida formação), equipamentos de laboratório (microscópios etc.), materiais e recursos à altura da nova ciência que se

9Idem. pp.27-41; ver também: SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976 pág. 81-86; SCHWARCZ. op. cit. 24-25; Vale ressaltar que as idéias de desenvolvimento que sofreram influências do pensamento europeu podiam ser observadas na América Latina. Por exemplo, a ideologia dominante entre intelectuais peruanos em fins do século XIX, que proferiam a superioridade européia e propunham uma reconstrução do país tendo como base uma forte imigração de capitais e homens para

“refazer a nação”. cf em: MARCONE, Mario. “Indigenas e inmigrantes durante la republica aristocratica: poblacion e ideologia civilista.” In: Revista Historica. Puc-Perú, vol. XIX, nº 1 Julho de 1995

10 SKDIMORE, op. cit. pág 72-74.

11 PEARD, Julian G. Race place, and medicine. The Idea of the tropics in nineteenth-century brazilian medicine. Duke University Press. Durham and London, 1999 p. 20-21; BARROS, Pedro Motta de.

“Alvorecer de uma nova ciência: a medicina tropicalista baiana.”; In: História Ciências Saúde – Manguinhos. Vol. IV. N. 3; nov 1997 – fev. 1998. p. 440-441

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descortinava com as descobertas de Pasteur, Koch, Claude Bernard e outros”.12 O passo seguinte de Nina Rodrigues (que muitos consideram que tenha sido para trás) foi trabalhar de acordo ao pensamento estatal da época, deixando de levar em conta vários aspectos importantes para a constituição da comunidade escrava, inclusive sua demografia.

Havia pouca preocupação por parte dos intelectuais sobre a demografia da escravidão. Em nenhum momento o desequilibro seleto organizado pelo tráfico é analisado mais detidamente, além do fato de que as altíssimas taxas de mortalidade da população escrava não são levadas em consideração pela comunidade científica. Uma das poucas exceções a se preocupar com tal problema estava fora do âmbito da ciência: Joaquim Nabuco.13 Embora a discussão abolicionista, seja a de origem européia ou a desenvolvida nos Estados Unidos, partisse de argumentos filosóficos e cristãos, na tradição luso-brasileira a razão do discurso era política.14

Sua preocupação recaía sobre os diferentes movimentos e variáveis demográficas da escravidão. Isso pode ser observado através das dúvidas que expressava diante da diferença entre a taxa de decréscimo da população escrava em seu tempo, ou seja, tempo em que o autor escreve - quarto final do século XIX - e “seo decrescimento no passado”.15

12 BARROS, Idem p. 442

13 NABUCO, Joaquim. “A escravidão”; In: Revista do IHGB. Vol. 204, Rio de Janeiro, julho-setembro 1949,PP-100- 105; a Academia de medicina também se preocupou com o assunto. Tanto que produziu inúmeros trabalhos que serão analisados no decorrer desse estudo. No entanto, a intelectualidade que se debruçou sobre a escravidão no século XIX não levou em consideração os fatores deletérios da mortalidade infantil para a formação da comunidade cativa.

14 CARVALHO, José M. “Escravidão e Razão nacional”; in: Pontos e bordados, escritos de história e política. Belo Horizonte, UFMG, 1999, p. 35 A construção do discurso abolicionista tanto nos Estados Unidos, como em Inglaterra segue uma dinâmica um tanto diferenciada da tradição luso-brasileira. Quanto aos primeiros países, pode-se dizer que o discurso abolicionista se apóiou em bases filosóficas e religiosas. Os valores do individualismo, a quebra de uma visão comunitária e a construção do indivíduo são as bases do discurso abolicionista neste países. O que não quer dizer que não havia também razãp nacional, ou preocupação com a nação, com o mal que a escravidão podia causa-la. Sobre este assunto ver página 60.

15 NABUCO, Joaquim. A escravidão. Revista do IHGB, p.100

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O passado referido por Nabuco deve ser entendido como o período de vigência do tráfico atlântico – três séculos, cujo término foi em 1850 – que, segundo ele, manteve o equilíbrio populacional cativo, compensando o crescimento vegetativo negativo da população escrava. Dessa forma, Nabuco acabou por enfatizar que a reposição da população escrava, via tráfico, conhecia momentos distintos dependendo do período analisado. A demografia cativa apresentaria diferenças, como seriam diferentes os períodos em que houve vigência do tráfico e aquele posterior, em que já não mais existia.16

As soluções teóricas às quais recorria Joaquim Nabuco para o entendimento da demografia escrava podem ser observadas em várias passagens de suas obras. Segundo o autor abolicionista, tomando como parâmetro Pernambuco após forte epidemia em 1854, a população escrava deveria ter aumentado e esse dado seria comprovado pelo incremento na produção de insumos da localidade. Nabuco chama a atenção para o fato de que se isso não aconteceu: “...ou a lei de Malthus é falsa, ou há causas muito sérias que influem e determinão a extraordinária mortalidade da raça negra”.17

Buscando observar a evolução demográfica de épocas posteriores às crises, Nabuco percebe que o que havia era uma diminuição paulatina da população escrava. Foi justamente a mortalidade escrava em Pernambuco que o assustou, por mais que outros fatores pudessem influenciar no decréscimo daquela população, como alforrias e fugas. A população deveria crescer depois de uma época de crise, acreditava Nabuco; no entanto, ela diminuiria não fosse o tráfico negreiro. A população escrava conhecia seu equilíbrio a partir do incremento de homens provenientes de África.

16 Idem. Ibdem.

17 Idem. p.104

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Se a fonte da população não fosse a África, se fizéssemos outra cousa que não carregar de ferros á tribus inteiras e transporta-las para o nosso território, então poderíamos calcular esse augmento tão desfarovavelmente: a população negra, nós o confessamos, não se reproduz como a branca; uma série longa de causas deprimem-na, aviltão-na, suffocão-na, demasiado para que ella tenha poder de crescer em sua posteridade."18

É na preocupação com a demografia da escravidão, em finais do século XIX, que repousa a inovação de seu olhar. Maior expoente da literatura abolicionista, Joaquim Nabuco foi ativo manifestante de descontentamento com a escravidão. O anseio de uma liberdade ampla para os escravos era o mote principal dos abolicionistas que buscavam mostrar a importância social da liberdade para todos os escravos, não conseguida pela Lei do Ventre Livre, onde a liberdade foi apenas para os nascidos a partir de 28 de setembro de 1871.

Apesar de ter sido, na opinião deste autor, uma espécie de redenção moral, era incompleta. A completude em termos de emancipação escrava só seria possível a partir da libertação de todas as gerações. Por isso, naquele momento, segundo Nabuco:

“...pela primeira vez, se viu dentro e fora do parlamento um grupo de homens fazer da emancipação dos escravos, não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política, a condição preliminar da sua adesão a qualquer dos partidos.”19

Essa literatura mostrou-se mais preocupada com as conseqüências que o cativeiro impunha a uma grande parcela da população residente no Brasil: os escravos. Afirmavam que:

“A raça negra não é (era) tampouco, para nós, uma raça inferior...”.20 Mais ainda, não desconheciam a importância de laços familiares e parentais na vida de escravos, infantes ou

18NABUCO, A escravidão... p.105. Grifo meu.

19 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo.Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000 pp-1 ; outros Abolicionistas:

André Rebouças, Joaquim Serra, Ferreira de Meneses, entre outros.

20 Idem. p.14. Grifo meu.

(24)

não. Isto pode ser constatado naquilo que seria preocupação fundamental dos abolicionistas:

os escravos e os ingênuos (seus filhos).

Postulava-se que, além do o crescimento vegetativo negativo já mencionado acima, as condições míseras de sobrevivência acarretavam altos índices de mortalidade escrava. A criança escrava, segundo Nabuco era um “enjeitado da humanidade, que antes de nascer estremece sob o chicote vibrado nas costas da mãe...”.21

Em termos políticos, sabia que a posição dos traficantes era fortalecida pelo papel por eles desempenhado numa sociedade dependente de homens. Por isso, segundo Nabuco, foi impossível acabar com o tráfico antes de 1850.22 A grande mortalidade escrava era suprida pelo fluxo externo, e barato, de homens que surge como variável responsável pelo equilíbrio populacional.23

Assim o discurso político abolicionista conseguiu sintetizar alguns aspectos demográficos da escravidão, mostrando a importância da obra de Joaquim Nabuco para o entendimento do cativeiro. Apesar da inovação intelectual acadêmica das décadas de 1920/30, a observação propriamente demográfica demorou ainda mais para ser iniciada no Brasil. A mudança das discussões intelectuais ocorridas na década de 30, deve-se em grande monta, à influência exercida pela escola culturalista norte-americana de Franz Boas sob a antropologia brasileira. O conceito de cultura acabou por superar as explicações ligadas á Biologia, que dominava o pensamento científico da época, na tentativa de explicação dos fenômenos sociais como a mestiçagem.

A perspectiva deixaria de ser eminentemente pessimista, já que transporia a explicação biológica/hereditária. A superação do racismo daria um caráter mais positivo ao

21 Idem. p. 27

22 Idem. pp.63-70.

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futuro da nação, reconhecendo como benéficos alguns elementos da cultura negra e indígena, ambos associados à cultura branca.24

Para Gilberto Freyre, o expoente máximo dessa nova vertente culturalista, a patologia referida ao homem negro não era de todo inexistente, porém isso não seria um problema da raça. Observa o autor que o comportamento “imoral” do cativo se dava pela transformação do homem em escravo. Desloca-se a imoralidade da raça negra para o sistema escravista, tendo como principal executor da promiscuidade o homem branco.25

Em Freyre consubstancia-se a herança de duas tradições que influenciaram a reflexão ocidental sobre a questão da escravidão, a saber: a clássica e a cristã.26 A primeira era originária da tradição grega no período clássico quando a relação senhor/escravo era mediada pelo despotismo, e se dava de forma a suprir as necessidades do senhor, e apenas para isso, ainda que o tratamento dispensado ao escravo não necessariamente fosse a violência.27

Também é verdade que o caráter mais ameno que por vezes transparece em Casa Grande e Senzala está, em grande medida, ligado à tradição cristã. A necessidade de ser escravo era o meio de apagar o pecado cometido por Cam, personagem bíblico que peca e recebe esta punição. O cativeiro era, portanto, meio de purificação.28 Percebe-se quão diferentes são as duas propostas: a cristã remete à uma relação onde há a preocupação com a purificação do escravo; enquanto a tradição despótica concentrava no senhor a razão de ser

23 Idem. pp.71-77

24 SCHWARCZ, op. cit. pp. 26-27. A autora ressalta os pioneiros estudos de Artur Ramos, “(...)que, apesar de bastante influenciado por Nina Rodrigues e pela concepção de evolução social, retomou o tema criticando antigas convicções e preocupando-se em trazer novas bases de estudo(...) Artur Ramos buscou inspiração e recursos na antropologia cultural largamente praticada em centros científicos do exterior(...)”

25 MOTA, Op. cit. p -181

26 ARAÚJO, op. cit. pp- 48-57

27 Idem. Ibdem.

28 Baseado no relato bíblico. Esse mito remete ao período posterior ao dilúvio, quando então Cam, filho de Noé, observou seu pai caído bêbado e despido, enquanto seus irmãos cobriram-no sem o fitar. Ao acordar, Noé teria amaldiçoado Cam por sua indiscrição. A maldição era que seus descendentes seriam servos, cativos. Escravidão aqui é diretamente associada a pecado, e serve como castigo cujo realizador é o

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da escravidão.29 Portanto, a obra de Freyre reúne fragmentos de duas das mais importantes tradições reflexivas sobre o cativeiro, onde a sociedade escravista possui um “ambiente tenso, mas equilibrado”, e a vontade senhorial esbarra no fim último da escravidão católica: salvar o cativo.30

Sob outra ótica, “Casa Grande e Senzala” acabou por retirar das costas do escravo o estigma da raça, passando a pesar sobre os ombros cativos “o fardo sociológico, também bastante pesado”. 31 No entanto, pontos importantes e que passaram a figurar na “sala de estar da discussão historiográfica” até os dias de hoje, como a família escrava e o tráfico de africanos, não ganham nuances profundas e análise pormenorizada. Estudos posteriores, entretanto, reconheceram esses dois pontos como fundamentais para o entendimento da sociedade escravista, como não poderia deixar de sê-lo. Mas, quanto à demografia escrava propriamente, não houve grandes estudos a respeito nesta época.

A produção historiográfica sobre o tema da mortalidade e da dinâmica populacional escrava, pode-se dizer, é recente. Durante muito tempo explicou-se a demografia escrava apenas a partir da seleção imposta pelo tráfico: mais homens (e jovens) e menos mulheres e crianças. Essa seleção explicava toda a realidade cativa.32 Uma realidade cuja superioridade masculina impossibilitava o crescimento vegetativo da população, já que dificultava a formação de famílias escravas. Ainda no início dos anos 70, havia grande circulação de trabalhos que perguntavam: para que estudar a demografia escrava? Ao mesmo tempo em

próprio senhor. Essa discussão em seus detalhes está em: ARAÚJO, op. cit. pág. 54-55

29 Idem. Ibdem.

30 Idem. pág.57

31 São exemplo desses autores: Gilberto Freyre, Emília Votti da Costa, Florestan Fernandes e Roger Bastide, segundo:

SLENES, Robert W. “Lares negros, olhares brancos; histórias da família escrava no século XIX”; In: Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, 1988, pág. 189-203

32 LIBBY, Douglas C. “Demografia e escravidão”. In: LPH Revista de História. V.3, N.1, 1992, pp. 267-268

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que esta indagação começava a ser respondida, a explicação clássica sobre a realidade demográfica cativa começava a ser posta em xeque.33

Douglas Libby localiza o pioneirismo na obra de Philip Curtin sobre o tráfico atlântico, quando então houve uma tentativa de esclarecer o volume de africanos transportados da África para as Américas durante três séculos. Constatou-se que foi a maior migração forçada da história, quando cerca de 12 milhões de almas deslocaram-se para as Américas, sendo o Brasil responsável por reter perto de 40% deste volume.34

Quais seriam os impactos causados? Nesse estudo, tento observar o impacto causado pelo tráfico de africanos sobre a mortalidade escrava e talvez seja bom começar pela historiografia que se debruçou sobre o tema.

Mortalidade escrava e historiografia

Talvez tenha sido Joaquim Nabuco um dos primeiros a formular uma explicação demográfica a respeito da escravidão.35 Como vimos, o autor aponta para o aumento da população escrava no Brasil como decorrência do fluxo externo de mão-de-obra, necessário para suprir a carência de homens provocada pela diminuição da população escrava. Mais ainda. De acordo com Nabuco, o estudo da dinâmica populacional cativa era prejudicado pelo descaso das autoridades governamentais com os dados censitários da população, numa demonstração de que a preocupação com as estatísticas e com a ciência era fundamental para

33 Idem. Ibdem.

34 Idem. P. 268

35 É possível que autores de inícios do século XIX já devessem apontar para o problema, no entanto a explicação dada por Nabuco contemplava aspectos que extrapolavam a mera apreciação do fenômeno e o ligavam à própria sociedade escravista em questão. Importante salientar que já no século XVII havia preocupação acerca da mortalidade escrava, um representante da nobreza portuguesa, Bernardo Ribeiro, ao observar o funcionamento de um engenho ainda em 1601, dizia que muitos morriam pelo trabalho

“grande”. Ver em: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial

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uma análise detalhada da vida no cativeiro. Chegava a esbravejar quando notava que: “...não há termos médios scientificamente fallando, a estatística está em seo período embryonario.”36

Esses parcos dados acerca da vida e da morte dos cativos não foram, no entanto, empecilho a maiores elucubrações sobre a demografia escrava. Segundo Nabuco, a inserção de africanos no Brasil tornou essa raça a verdadeira gênese da nação. A incapacidade, por vários fatores, de preenchimento demográfico pelos portugueses foi fundamental para a migração de africanos escravizados. Não fossem escravizados e a nação seria mais vigorosa, ainda que povoada de africanos.37 Essa assertiva tem por base uma crítica fundamental à própria escravidão. Livres, os negros africanos teriam mais cuidado no tratamento da terra, com os rendimentos dela provenientes, tratariam melhor do solo, ao invés do definhamento forçado da terra, e da lavoura, em várias regiões.38

A ocupação e o tratamento da terra são temas caros a Nabuco e fatores de importância para a produção de seu argumento político. O incremento demográfico em terras sertanejas, o uso do solo planejado e não exaustivo, a distribuição populacional mais equilibrada são elementos importantes no bom desenvolvimento de um país. A escravidão, no entanto, para o autor, impediu qualquer meio de organização territorial.39 O sistema brasileiro mais parecia um extenuador potente, levando terras e homens ao fim da produção.

Quanto à exaustão do solo, hoje é sabido que uma melhor adequação da mão-de- obra à terra, como também a aplicação de técnicas mais sofisticadas no plantio, podem render-lhe um maior tempo de vida útil. Por ser ampla, uma discussão sobre este assunto não

1550-1835. Cia. Das Letras, São Paulo, 1999, p.299 ver nota 60

36 NABUCO, A escravidão... op. cit. pp-100

37 NABUCO, O abolicionismo, pp.99-100. Na página 100 lê-se a seguinte afirmativa: “Entre o Brasil, explorado por meio de africanos livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explorado com escravos também por portugueses, o primeiro a esta hora seria uma nação muito mais robusta do que é o último.”

38 Idem.p.106

39 Idem.p.113

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cabe neste trabalho. 40 Quanto à exaustão de homens, nesse caso escravos, Nabuco está a preocupar-se com outra variável demográfica: a mortalidade.

A mortalidade dos escravos, segundo o autor, obedecia a uma lógica senhorial que calculava pormenorizadamente seus lucros. Tal lógica explicava a mortalidade escrava e conseqüentemente a mortalidade infantil cativa como resultado da atitude de descaso para com a manutenção dos escravos mais jovens, inclusive crianças.

O abolicionista concordava com as teses defendidas por seus correligionários e endossava a afirmação de que: “...a maior parte desses infelizes [os escravos importados] são ceifados logo nos primeiros anos, pelo estado desgraçado a que os reduzem os maus-tratos da viagem, pela mudança de clima, de alimentos e todos os hábitos que constituem a vida.”41 Nem a diferença de ambientes com suas doenças próprias escapou a Nabuco. Nesse sentido o escravo teria pouco tempo de vida, uma vez que os maus tratos e o sobre-trabalho somariam para o desgaste rápido de seu corpo e sua alma. Não seria um desperdício de capital a perda tamanha de homens? O custo da mortalidade cativa era sentido pelo senhor?

Joaquim Nabuco responderia que não. Ligando demografia e economia, o autor conclui que a morte do escravo possibilitava um lucro maior. O que se queria era demonstrar que o custo de manutenção do cativo acarretava uma despesa maior do que a compra de um outro escravo no mercado: “É fato incontestado que enquanto era baixo o preço dos escravos, raras crias vingavam nas fazendas.”42 As fazendas seriam, portanto, povoadas de

40 Existe uma bibliografia que discute o assunto. Cito aqui dois trabalhos que considero clássicos sobre o assunto: BOSERUP, Ester. Evolução agrária e pressão demográfica. HUCITEC, São Paulo, 1987; e CHAYANOV, Alexander V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visón

41 Esse discurso foi proferido por Eusébio de Queirós, na Câmara do Deputados, em 1852. apud. NABUCO, O abolicionismo... op. cit. p-71

42 Cristiano Ottoni, citado por Nabuco como exemplo de depoimento insuspeito. Apud NABUCO, O abolicionismo. op. cit. p-72

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africanos que substituíam, por preços relativamente baixos, o enorme contingente de escravos que morria.

Nabuco concordava com correligionários sobre os fazendeiros possuírem uma lógica econômica que acarretava na grande mortalidade escrava. Esse postulado era elaborado e enfatizado, principalmente, quando de reuniões entre fazendeiros. Possivelmente pelo que foi exposto em partes de sua obra, o conteúdo dessas reuniões não era desconhecido dos abolicionistas.43 Assim não valeria a pena criar pequenos escravos até a idade em que pudessem produzir. Ir ao mercado e comprar um escravo que imediatamente produzisse, seria melhor que investir numa cria que levaria anos de “manutenção” e despesa. Nesses termos, o cativeiro era também o lugar de extermínio.

Mas não foi apenas Nabuco, cuja radicalização do discurso possuía um fim absolutamente político, que enxergou o cativeiro como lugar de extermínio. Jacob Gorender iria sistematizar, na década de 70, uma tal lógica de mortalidade, para ele resultante de atitudes de descaso senhorial para com cativos. Esse desprezo pela vida do escravo, como em Nabuco, transforma o cativeiro em campo de extermínio. O descaso senhorial aqui e a mortalidade daí derivada obedeciam a uma lógica de mercado. Ao substituir as análises anteriores e, segundo ele, “simplistas” que ligavam os movimentos populacionais ao tipo de formação social, Gorender tentou avaliar os movimentos populacionais a partir do modo de produção característico.44

Comparando o sistema escravista colonial com o capitalismo europeu, o autor aponta diferenças na formação das respectivas populações. O capitalismo europeu tramaria para o

43 Cristiano Ottoni coloca que nas reuniões entre fazendeiros era comum dizerem que: “Compra-se um negro por 300$000: colhe no ano 100 arrobas de café que produzem líquido pelo menos o seu custo; daí em diante tudo é lucro. Não vale a pena aturar as crias que só depois de d ezesseis anos darão igual serviço”.

Idem. Ibdem

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crescimento da população que formaria quadros de reserva de mão-de-obra, já o modo-de- produção escravista colonial tramaria para o fim de sua população.45

Para a realidade escravista colonial, a dinâmica populacional era decorrente da lógica de um modo de produção específico. Quanto maior a produção gerada pelo escravo, mais rápido o investimento no cativo seria reposto pelo senhor. Gorender enfatiza: “o mecanismo econômico age tendencialmente no sentido da diminuição absoluta da população escrava e da criação de sua escassez”. Há o interesse em retirar o maior volume de produção por escravo, o que significa aumentar a carga de trabalho e, portanto, reduzir-lhe a vida útil.46

Tendo como destino um senhor com tal pensamento e atitude, o escravo deveria torcer pelo aumento maciço do preço de seus companheiros de cativeiro. Sim, pois, retardando ao máximo sua ida ao mercado, o senhor cuidaria um pouco melhor de seus escravos, quiçá de suas crias. Na realidade do modo de produção escravista colonial, o preço de compra do escravo era uma variável influente para a duração de sua vida útil.

Gorender supõe que seja essa a base para a explicação da demografia escrava.

Quando da vigência do tráfico e, portanto, com escravos a preços acessíveis, o modelo de superexploração do escravo reduzia-lhe a vida útil, mas, era mais vantajoso em termos de lucro para o senhor que podia substituir o escravo ineficiente por outro, proveniente do mercado. Por outro lado, esse funcionamento não traria a mesma vantagem em épocas de ausência do tráfico e conseqüentemente de preços altos de escravos. Aqui o movimento populacional cativo funciona de acordo ao preço do cativo no mercado. Temos duas realidades populacionais dependendo da época que se queira avaliar.47

44 GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. São Paulo, Ática, 1980, p. 318

45 Idem. P. 320

46 Idem. P.321

47 Idem. P. 322

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A primeira realidade (vigência do tráfico) explica que a vida do cativo tende a ser menor, pois com o seu custo baixo, não vale a pena para o senhor investir em sua manutenção que tende a ser onerosa com o passar do tempo. Com isso, aumenta-se a produção em tempo menor e diminui-se a vida do escravo que pode ser reposto. Extrai-se, portanto, a maior produção possível.48

A segunda realidade remete ao período em que não há mais tráfico de africanos.

Devido aos altos preços deste período, seria mais oneroso para o senhor comprar um escravo no mercado. Assim sendo, ao aumentar o tempo de vida de seu cativo isto deveria render-lhe maior lucro.49 Segundo Gorender: “...a experiência demonstrou que os escravistas preferiam a compra de escravos adultos e adolescentes ao risco de criar filhos de suas escravas ou de comprar molequinhos”,50 desequilibrando a população escrava como um todo.

A demografia escrava era formada pela: 1) tendência ao decréscimo da população cativa; 2) necessidade do fluxo externo de homens. Gorender acaba por concluir que: “o volume de abastecimento externo de mão-de-obra varia na razão inversa das variações do preço de aquisição do escravo e na razão direta das variações de sua rentabilidade”.51 Em análises mais recentes, a mortalidade é computada como um dos fatores relevantes para o cálculo da produção social do cativo na África. Percebe-se que a

48 O modelo A proposto por Gorender é exposto da seguinte maneira: Preço do escravo – 100; amortização anual – 10(10 anos de vida útil); custo de manutenção anual – 10; produção bruta anual – 70; produto líquido anual – 50; produto líquido em 10 anos – 500. Se por outro lado reduz-se a amortização e a produção (diminuindo o trabalho cativo e portanto poupando-o), e aumentasse a vida útil do escravo, a produção líquida cai. Cf. em: Idem. p-322

49 O modelo B, proposto por Gorender é o inverso do primeiro e é exposto da seguinte maneira: Preço do escravo – 400; amortização anual – 40 (10 anos de vida útil); custo do sustento anual – 10; produção bruta anual – 70; produto líquido anual – 20; produto líquido em 10 anos – 200. No entanto, se a amortização e a produção diminuem o resultado final é de um aumento no produto líquido. Idem. Ibdem.

50 Idem. p-323

51 Idem. p-324

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população fonte, na qual os captores africanos iriam abastecer-se de escravos, sofreu os abalos da mortalidade durante o processo de captura.

Trata-se da existência de duas populações: a dos captores e a dos chamados de

“fonte” (fonte dos escravos). Da população “fonte” se extrai os cativos. A população capturada sofreria perda por mortalidade no momento do apresamento; o contingente sobrevivente dessa etapa teria como destino ser escravo nas mãos de senhores africanos ou seguirem para as Américas. O contingente populacional que atravessava o Atlântico conhecia ainda mais um abalo por mortalidade, exatamente a que ocorria durante a travessia e que variava de acordo ao tempo de viagem e a quantidade de comida a bordo.52

Captores

Novos escravos domésticos

Pop. Fonte Mortalidade durante a travessia

cativos Novos escravos exportados Mortalidade durante a captura Exportados População cativa

Fonte: FRAGOSO E FLORENTINO, p. 145.

Um dos possíveis motivos para as diferenças de abordagens na historiografia sobre a escravidão no Brasil, pode ter sido a disparidade entre os números que as fontes estatísticas oficiais apresentavam, e as informações acerca das altas taxas de mortalidade escrava. Os registros oficiais, assim como os registros paroquiais, subestimavam essas mortes expressando

52 FRAGOSO, João L. R. e FLORENTINO, Manolo G. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, c. 1790. – c. 1840. Rio de Janeiro,

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números que diminuíam as taxas de mortalidade cativa. Por exemplo, a expectativa de vida, segundo os dados oficiais, era a mesma da Suíça em meados do século XIX. 53

Um dos motivos pelos quais J. Nabuco se indignava, era justamente a falta de uma acuidade com os dados trabalhados pelo governo. Algumas vezes esses dados eram organizados sem maiores informações anteriores, o que dificultava a veracidade dos dados obtidos. Assim, “O governo geral que recebe as informações e que as ajunte e lhes dá unidade não é assim mais que um calculador arbitrário: de tal forma os dados oficiais nenhuma fé inspirão”.54

A mortalidade escrava foi sub-relatada por vários motivos. Em relação aos registros paroquiais, há que se mencionar que o enterro dos escravos mortos nos terrenos da propriedade por ordem dos senhores constitui fator importante para a inexatidão dos seus registros de óbitos. O que não quer dizer que não se possa apreender a mortalidade escrava e sua dinâmica com o auxílio de outras fontes, neste estudo utilizarei mais a frente os inventários post-mortem. Robert Slenes, por exemplo, utilizou cruzamento de fontes diversificadas para analisar os níveis de mortalidade. 55

Além de servir-se de dados de outros autores para uma confrontação mais apurada, Slenes acaba por construir um minucioso quadro a respeito das taxas de mortalidade escrava para Campinas e São Paulo no período 1874-1881. Percebe-se, a partir daí, quão altos são

Civilização Brasileira, 2001, p-145

53 SLENES, R.W. The Demography and Economics of Brazilian Slavery, 1850-1888. Stanford, 1976. Tese de Doutoramento, Stanford University. 1976

54 NABUCO, A escravidão... op. cit. pp-101

55 A saída encontrada por Slenes foi a de confrontar as Matrículas de escravos de 1870, com inventários de períodos posteriores. Para então medir o que ele chama de “Taxa de desgaste do Plantel” ( Attrition Rate).

A partir da medição dessa taxa é que ele poderia identificar a mortalidade em seu interior, que conteria mais dois elementos: o nível de manumissões (alforrias) e fugas de escravos; SLENES, op. cit. pp-340-345 . Para salientar a dificuldade do autor, a análise se debruça sobre quatro proprietários, em apenas um pode- se inferir o nível de mortalidade, uma vez que este declarava as mortes dos cativos. Assim, o restante dos inventários não possuíam a mesma acuidade, podendo residir o desgaste também em fugas e alforrias.

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os níveis de mortalidade entre os escravos pela taxa de desgaste dos plantéis. Constata-se que o ciclo de vida cativa encerrava-se em média aos 27 anos, o que denota um nível de mortalidade altíssimo. Os níveis de mortalidade infantil também não passaram desapercebido do autor, para ele seria elevadíssimo o número de mortos com idade entre 1 e 9 anos. A conclusão maior de Slenes é que as taxas de mortalidade escrava eram altíssimas, muito maiores do que as dos homens livres.

***

Nos quatro séculos de escravidão no Brasil importaram-se cerca de 3.600 milhões de africanos. No entanto, em 1872, havia apenas 1.500 milhão. Percebe-se claramente o crescimento vegetativo negativo da população cativa. Comparando-se com o caso dos Estados Unidos, esses números tomam vulto assustador. Este país importou cerca de 400 mil almas apenas em quatro séculos; no entanto, em 1860, possuía 4 milhões de escravos. Um crescimento retumbante se comparado aos números brasileiros.56

Esses dados remetem à esperança de vida de um escravo brasileiro que poderia chegar à metade da esperança de um escravo nos Estados Unidos. Isso foi possível pelos elevados níveis de mortalidade apresentados por todos os grupos sociais do Brasil no século XIX. O escravo brasileiro em geral, possuía metade da expectativa de vida de um não escravo, enquanto nos Estados Unidos essa diferença era muito menor.57

Outro ponto importante: é raro serem os fatores responsáveis pela mortalidade infantil mais profundamente analisados, restando apenas a verificação dos seus altos índices para fins de constatação. Entretanto, a sua lógica pouco foi esmiuçada. Umas poucas exceções ficam por conta do estudo de Jurema M. Gertze que observa a mortalidade infantil escrava nos

56 Cf. MERRICK, Thomas W. e GRAHAM, Douglas H. População e desenvolvimento econômico no Brasil. ZAHAR, Biblioteca de Ciências Sociais, 1981, p.81

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Registros de Óbitos da Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande do Sul, durante o século XIX, além dos estudos sobre Vila Rica realizados por Iraci Del Nero e de Maria Luíza Marcílio para o Rio de Janeiro.58 Esses autores voltarão mais adiante, na tentativa de comparar metodologias empregadas e resultados obtidos.

Segundo Gertze, “a realidade das crianças negras escravizadas era bastante dura.

Quando sobreviviam ao nascimento estavam sujeitas a morrerem precocemente, devido ao precário atendimento que recebiam de suas mães”.59 É espantoso o número de crianças entre os escravos enterrados no cemitério da Santa Casa de Misericórdia de RS, nada menos que 55,48% dos óbitos. E isso não é tudo. Desse número, 60,77% eram recém nascidos, de 0 a 1 ano de idade.60 Outro dado importante é o fato de que a maioria das crianças enterradas no cemitério (65,4% do total de crianças), era de cor negra, contra apenas 1/3 de pardas. No entanto, deve-se salientar, a tendência da mortalidade das crianças é declinante no período posterior ao fim do tráfico atlântico, posto que no ano de 1850 morreram 136 crianças, passando para 89 em 1858, 79 em 1871 e 29 em 1872.61

Nota-se, nos autores lidos, uma certa tendência em se analisar a mortalidade escrava e conseqüentemente a taxa de decréscimo, no período posterior a 1850. No entanto, existem trabalhos que estudam a mortalidade escrava no espaço de três séculos. É o caso de um estudo de Stuart Schwartz que observa os séculos XVII ao XIX. Este estudo obteve um resultado muito parecido com o restante das análises já comentadas: a alta mortalidade

57Idem. pp-82-84

58 GERTZE, Jurema Mazhuy. “Notas para o estudo da Mortalidade Infantil entre a População Escrava no Rio Grande do Sul (1850-1872)”; In Estudo Ibero-Americanos. PUC-RS, XVI (1,2):137-159, jul. e dez., 1990;

ver tb. NERO, Iraci Del. Vila Rica: mortalidade e morbidade (1799-1801). Dissertação de mestrado.

FEA-USP. Ver referência

59 Idem. p-138

60 Idem. p-144

61 Gertze conclui que a Lei do Ventre Livre foi regulamentada apenas em 13 de novembro de 1872. p. 137

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escrava mais uma vez foi constatada. O declínio observado por Schwartz para a população escrava é de 1,3% ao ano.62

É bem provável que estes números estejam próximos da realidade, não descartando a hipótese de que em anos de pico da oferta de homens, a capacidade de auto-reprodução cativa fosse ainda menor. Além disso, as condições locais de morada de escravos também eram fatores importantes nas variações tanto das taxas de decréscimo da população quanto nas de mortalidade.

O Tráfico Atlântico

Do ponto de vista demográfico, vimos ser o tráfico encarado, desde o século XIX, como variável fundamental para a reprodução da experiência escrava no Brasil. Segundo a posição abolicionista, essa variável seria uma parte daquilo que foi chamado de “Trilogia Infernal” a qual constituía a escravidão como um todo: cativeiro seria, para Nabuco, composição de três elementos “...cuja primeira cena era a África, a segunda o mar, a terceira o Brasil”. Continua a afirmar que essa estrutura “é toda a nossa escravidão”. 63 Tal visão guarda algumas diferenças em relação a abordagens mais preocupadas em explicar as motivações econômicas que fizeram do Brasil o maior centro importador das Américas.

62 Todos os autores enfatizam o crescimento negativo da população escrava, no entanto os números do decréscimo estão longe de ser parecidos; enquanto Stuart Schwartz observa um decréscimo de 1,3% ao ano; Mircea Buescu em 1981 achou para o período posterior à 1850 1,6% de decréscimo para a mesma população: Cf. em: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo, Cia. das Letras, 1999 pp-299-300; ver também: BUESCU, Mircea. “’Natalidade e Mortalidade da População Escrava”; In: Revista do IHGB. Rio de Janeiro, jan. mar, vol. 334, 1982 pp-163- 167; para Buescu o valor de decréscimo de 1,3% era para a população livre, que como vimos morria menos que a escrava.

63 NABUCO, O abolicionismo.p-71

(38)

Os modelos clássicos explicativos da economia colonial assumem ser o tráfico um importante elemento para a reprodução da escravidão. A reposição de braços para o trabalho acabaria por satisfazer a necessidade de produção supridora da demanda do mercado internacional. Percebida dessa forma, em fase de maior necessidade de produtos coloniais no mercado europeu, a empresa escravista conheceria aumentos significativos de desembarques de escravos.64

Portanto, o tráfico de africanos para o Brasil era diretamente proporcional ao preço externo dos produtos tropicais coloniais. Essa posição pode ser observada em Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Fernando Novais. Tais autores não levam em consideração que a empresa traficante pudesse se auto-regular em momentos de baixa do mercado internacional. O tráfico surge como possibilidade de reposição de mão-de-obra para a produção de produtos coloniais que seriam revendidos por Portugal no mercado internacional. Uma mão-de-obra cuja origem não é ignorada pelos clássicos. No entanto, a África seria o celeiro de escravos baratos que possibilitaria ao comerciante de almas reproduzir a força de trabalho da América lusa, apenas isso. Finalmente, a historiografia entende que o tráfico de africanos é, de duas maneiras, um fenômeno exógeno à colônia: a) por ser formado por capital externo (não residente); b) por trazer mão-de-obra estrangeira.65

Em que pese as suas contribuições, alguns dos postulados vistos já foram exaustivamente discutidos e matizados. A historiografia recente sobre o assunto traz perspectivas novas que não só levam em consideração o tráfico em si, mas sua organização e seu papel no Brasil e na África.

64 FRAGOSO e FLORENTINO. Op. cit. pág. 38-39

65 Idem. ibdem.

Referências

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