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História oral de vida de "ex-abrigadxs" : narrativas de vidas possíveis

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação TATIANA LIMA DE ALMEIDA

HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE “EX-ABRIGADXS”:

NARRATIVAS DE VIDAS POSSÍVEIS

CAMPINAS 2019

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HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE “EX-ABRIGADXS”:

NARRATIVAS DE VIDAS POSSÍVEIS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientador: PROF.ª DRA. NIMA IMACULADA SPIGOLON

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE

DEFENDIDA PELA ALUNA TATIANA LIMA DE ALMEIDA, E ORIENTADA PELA PROF.ª DRA. NIMA IMACULADA SPIGOLON

CAMPINAS 2019

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TESE DE DOUTORADO

HISTÓRIA ORAL DE VIDA DE “EX-ABRIGADXS”:

NARRATIVAS DE VIDAS POSSÍVEIS

Autor : TATIANA LIMA DE ALMEIDA

COMISSÃO JULGADORA:

Prof.ª Dra. Nima Imaculada Spigolon (Orientadora) Prof.ª Dra. Jackeline Rodrigues Mendes

Prof.ª Dra. Heloisa Andreia de Matos Lins Prof. Dr. José Luiz Pastre

Prof. Dra. Maria Teresa de Arruda Campos

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Dedico este texto à Áurea, que desde o início acreditou que esta escrita seria possível.

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Agradeço aos colaboradores que participaram deste processo comigo, por se revelarem tão participativos em suas narrativas.

À minha Orientadora inicial, Prof.ª Dra. Áurea Maria Guimarães, pelo incentivo, pela orientação, mas, principalmente, por acreditar em mim e neste trabalho desde o início.

À minha atual Orientadora, Prof.ª Dra. Nima Imaculada Spigolon, por aceitar o desafio de orientar um trabalho já iniciado, e principalmente pelas importantes contribuições ao texto.

À Prof.ª Dra. Fabíola Holanda Barbosa Fernandez pelas discussões e contribuições construídas com grande empenho e cuidado.

Aos membros da banca, Prof.ª Dra. Jackeline Rodrigues Medes, Prof.ª Dra. Heloisa Andreia de Matos Lins, Prof. Dr. José Luiz Pastre, Prof. Dra. Maria Teresa de Arruda Campos, Prof.ª Dra. Dirce Djanira Pacheco e Zan, Prof.ª Dra. Luzia Batista e Oliveira Silva, Prof.ª Alexandrina Monteiro por aceitarem participar e contribuir na construção deste trabalho.

Aos meus filhos, Léo, Pedro e Julia, por se mostrarem tão carinhosos e pacientes, respeitando e incentivando os momentos de silêncio, criação e escrita.

Ao meu marido, companheiro e amigo, Alexandre, por me apoiar, incentivar e estar ao meu lado em todos os momentos da escrita final.

A meu irmão, Davi, à minha mãe Edwiges e ao Lázaro, por toda ajuda nos momentos mais difíceis. Aos colegas do grupo VIOLAR, que contribuíram com a discussão e reflexão acerca deste trabalho. Às minhas amigas Elisa, Inda e Fabiana pelo apoio e discussões sobre o texto.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

À UNICAMP, aos funcionários e professores da FE.

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Esta tese busca pensar a respeito da História Oral de Vida de pessoas que viveram em instituições de acolhimento para crianças e adolescentes. O conceito de História Oral de Vida utilizado está baseado nos estudos do NEHO: Núcleo de Estudos em História Oral (USP), sob a coordenação do prof. José Carlos Sebe Bom Meihy. A proposta de trabalho foi a de realizar duas entrevistas, uma com um homem e outra com uma mulher, os dois adultos e desabrigados. As perguntas principais versaram sobre como teria sido se constituir dentro do abrigo e como foi constituir-se fora do abrigo, após o desacolhimento. A ideia foi viabilizar a escuta das narrativas nas quais os entrevistados pudessem se lembrar de suas histórias de maneira livre, sem uma ordem cronológica ou categórica. Neste trabalho, as narrativas foram gravadas, transcritas e textualizadas O texto apresenta quatro capítulos. No primeiro, a descrição das atividades desenvolvidas nas instituições de acolhimento. No segundo, o resgate da história do atendimento à infância e à adolescência no Brasil desde o período colonial até os dias de hoje. No terceiro apresento as narrativas textualizadas, acompanhadas da descrição dos encontros. No quarto capítulo uma reflexão sobre os conceitos de jogos de verdade, poder sobre a vida e resistências, tendo como norte os autores Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari. Ainda neste capítulo, uma tentativa em compreender de que maneira os conceitos acima se conectam com o poder sobre a vida e os corpos dos entrevistados, possibilitando ou não lutas e resistências que busquem novas subjetividades e trajetos para suas histórias. As considerações finais, assumem a forma de uma conclusão transcriada que entrelaça partes das narrativas com desenhos, frases, pensamentos e sentidos produzidos no momento da escrita.

Palavras-chave: História Oral de Vida; Acolhimento Institucional; Desacolhimento; Abandono; Resistências.

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and adolescents. The concept of Oral History of Life used is based on the studies of NEHO: Nucleus of Studies in Oral History (USP), under the coordination of prof. José Carlos Sebe Bom Meihy. The proposal of work was to conduct two interviews, one with a man and the other with a woman, the two adults and homeless. The main questions were about what it would have been like to be housed inside the shelter and how it was set up outside the shelter after the shelter. The idea was to make it possible to listen to the narratives in which the interviewees could remember their stories in a free way, without a chronological or categorical order. In this work, the narratives were recorded, transcribed and textualized The text presents four chapters. In the first, the description of the activities carried out in the host institutions. In the second, the rescue of the history of child care and adolescence in Brazil from the colonial period to the present day. In the third I present the textual narratives, accompanied by the description of the meetings. In the fourth chapter a reflection on the concepts of truth games, power over life and resistances, taking as the authors north Michel Foucault, Gilles Deleuze and Felix Guattari. Still in this chapter, an attempt is made to understand how the above concepts connect with power over the lives and bodies of respondents, allowing or not struggles and resistances that seek new subjectivities and paths to their stories. The final considerations take the form of a transcribed conclusion that interweaves parts of the narratives with drawings, phrases, thoughts and senses produced at the time of writing.

Palavras-chave: Oral History of Life; Institutional Reception; Unhappiness; Abandonment; Resistors.

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Figura 1 – Desenho de P.H...14

Figura 2 – Fotografia de Walter...74

Figura 3 – Rizoma...89

Figura 4 – Asilo dos Expostos Sampaio Viana...95

Figura 5 – Crianças em fila – Filme “The Wall”...96

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INTRODUÇÃO... 11

CAPÍTULO I – TRAJETÓRIA...15

CAPÍTULO II – INSTITUIÇÕES DE ACOLHIMENTO E HISTÓRIA...29

No Brasil colonial...29

Higienismo...33

Durante a ditadura militar...37

A Proteção Integral...39

Desafios...47

CAPÍTULO III – HISTÓRIAS ABRIGADAS, HISTÓRIAS NARRADAS...49

Encontrando Ana...49

História de Ana...50

Encontrando Walter...62

História de Walter...63

CAPÍTULO IV - JOGOS DE VERDADE, PODER SOBRE A VIDA, RESISTÊNCIAS...83

Biopolítica e poder sobre a vida: racismo de estado...87

Rupturas, resistências e as práticas de si como possibilidades de um aparecimento do sujeito...91 A biopolítica e a biopotência...93 NARRATIVAS POSSÍVEIS...99 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...112 BIBLIOGRAFIA ...118 REFERÊNCIAS DE FIGURAS...119 ANEXOS...120

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INTRODUÇÃO

Esta tese reflete sobre a História Oral de Vida de pessoas que viveram em instituições de abrigamento para crianças e adolescentes.

A proposta de trabalho foi a de realizar duas entrevistas, uma com um homem e outra com uma mulher, os dois adultos e desabrigados. As perguntas principais versaram sobre como teria sido se constituir dentro do abrigo e como foi constituir-se fora do abrigo, após o desacolhimento. A ideia foi viabilizar a escuta das narrativas nas quais os entrevistados pudessem se lembrar de suas histórias de maneira livre, sem uma ordem cronológica ou categórica. Na História Oral de Vida, conforme sugerida por José Carlos Sebe Bom Meihy, não há necessidade de documentos comprobatórios ou ainda, a verificação dos fatos narrados. Existem múltiplas definições e modos de se fazer H.O. No livro “Usos & Abusos da História Oral, organizado por FERREIRA e AMADO (1996), encontramos artigos que abordam as diferentes dimensões da história oral e expressam pontos de vista opostos. No Brasil, destacam-se os trabalhos pioneiros de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Ecléa Bosi que são referência para as pesquisas posteriores que se utilizam da H.O. Segundo Queiroz (1988, p. 16) “O relato oral está na base da obtenção de toda sorte de informações e antecede a outras técnicas de obtenção e conservação do saber; a palavra parece ter sido senão a primeira, pelo menos uma das mais antigas técnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita lhe sucederam”. Para Queiroz (1983, p. 46) a entrevista é uma técnica de pesquisa que registra com fidelidade, por meio do gravador, “ (...) os monólogos dos informantes ou o diálogo entre informante e pesquisador”. Foi uma das pesquisadoras brasileiras que mais contribuiu com sugestões valiosas para a realização de uma entrevista, defendendo as técnicas de relato oral por "captarem o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social" (1988, p.35). Além disso, a autora afirma que é importante captar o comportamento do indivíduo dentro da coletividade na qual está inserido. Neste aspecto a coletividade se sobrepõe a à singularidade, ou seja, o indivíduo deixa de ser considerado isoladamente, porque “o que se quer é captar, através de seus comportamentos, o que se passa no interior das coletividades de que participa. O indivíduo não é mais o ‘único’; ele agora é uma pessoa indeterminada, que nem mesmo é necessário nomear, é somente unidade dentro da coletividade” (QUEIROZ, 1988, p. 24-25). O coordenador do NEHO, José Carlos Sebe Bom Meihy (2005, p.46-52), por sua vez, ao se referir ao estatuto da H.O., destaca quatro possibilidades de se fazer H.O.: como ferramenta,

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seu uso se restringe a um mero recurso adicional, um acessório na exemplificação de casos; como técnica, as entrevistas aparecem como um apêndice, pois o objeto central da pesquisa são os documentos que integrariam a pesquisa; como método, supõe a formulação de um projeto e as entrevistas constituem o epicentro da pesquisa. Em torno delas atuariam o projeto, a escolha dos entrevistados, o processamento das entrevistas, a passagem do oral para o escrito, os resultados analíticos, o diálogo com outros documentos; como disciplina acadêmica, a história oral se configuraria como um território discursivo e político que daria sentido aos debates, às reivindicações e práticas atinentes à transformação social. Com objeto definido, com implicações filosóficas e fundamentos epistemológicos, a H.O. ganharia um estatuto independente. Minha pesquisa foi norteada pela H.O.V., enquanto método segundo os procedimentos do NEHO. Justifico essa escolha pelo fato de ser um trabalho que se realiza juntamente com o entrevistado. O pesquisador provoca o encontro, faz a primeira pergunta, assume publicamente a responsabilidade sobre o que está dito, gravado e usado, mas o entrevistado dá a sua versão dos fatos, confere o texto da sua entrevista, faz as alterações que desejar e autoriza ou não o seu uso, daí o emprego do termo “colaborador” uma vez que se estabelece uma relação de compromisso entre o entrevistador e o entrevistado (MEIHY, 2005, p. 124).

Dentro desta perspectiva, o colaborador pode trazer a sua história e construir a sua narrativa conforme as suas lembranças dos fatos, suas impressões, desejos e interpretações. Os depoimentos são privilegiados tendo as entrevistas como ponto de partida para as análises. Para Meihy (2005), o trabalho com o conteúdo das narrativas passa por três etapas. A transcrição, a textualização e a transcriação. A transcrição é a passagem da narrativa oral para a escrita, é “a passagem fiel do que foi dito para a grafia” (MEIHY, 1991, p. 30). Já a textualização é a reorganização do discurso. Nesta segunda etapa, a voz do entrevistador é anulada, ou seja, as perguntas são suprimidas. A textualização é o tratamento do texto com o objetivo de deixa-lo claro e compreensível ao leitor. A terceira etapa, a transcriação é a “...recriação da atmosfera da entrevista, trazendo as sensações provocadas durante o encontro”. (MEIHY, 1991, p. 30). Transformamos a fala do interlocutor em algo que Meihy descreve como:

Teatralizando-se o que foi dito, recriando-se a atmosfera da entrevista, procura-se trazer ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato, e como é evidente, isso não ocorreria reproduzindo-se o que foi dito palavra por palavra, (...) tem como fito trazer ao leitor a aura do momento da gravação. (HOLANDA e MEIHY, 2015, p. 160).

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Neste trabalho, as narrativas foram gravadas, transcritas e textualizadas. Após transcrição e textualização dos relatos, os mesmos foram analisados. A transcriação, no sentido atribuído à Meihy, foi elaborada nas considerações finais, momento em que procurei me aproximar mais livremente dos sentidos que os colaboradores deram às suas histórias percorrendo o intervalo entre o que eles diziam ser e o que eles gostariam de ser/viver. Entre a contingência e a singularidade, encontrar indícios de uma vida para além dos hábitos. Esse percurso foi composto por desenhos esboçados por mim a partir de lembranças das falas de cada entrevistado.

Esta tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro, descrevo a trajetória de trabalhos que realizei com as instituições de acolhimento. Ainda traço o caminho de estudos e projetos com os quais me envolvi durante estes anos de trabalho.

No segundo, resgato a história do atendimento à infância e à adolescência no Brasil desde o período colonial até os dias de hoje. Desenvolvi uma organização cronológica mostrando a criação dos internatos e as mudanças na legislação nacional entre os séculos XIX e XX, até chegar às atuais instituições de acolhimento.

No capitulo três apresentei as narrativas textualizadas, acompanhadas da descrição dos encontros.

No capítulo quatro proponho uma reflexão sobre os conceitos de jogos de verdade, poder sobre a vida e resistências, tendo como norte os autores Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari e Peter Pál Pelbart. O texto propõe um encontro entre as ideias destes autores com trechos das histórias narradas. Ainda neste capítulo, faço uma análise sobre quais jogos de verdade se mostram nas narrativas, e de que maneira eles se entrelaçam com o poder sobre a vida e sobre os corpos dos entrevistados, possibilitando ou não lutas e resistências que busquem novas subjetividades e trajetos para suas histórias.

Ao final, elaboro uma conclusão transcriada que entrelaça partes das narrativas com desenhos, frases, pensamentos e sentidos produzidos no momento da escrita.

Espero que esta tese ofereça possibilidades múltiplas de sentidos tanto aos leitores que desejam compreender as trajetórias de vida de ex-abrigados quanto àqueles que, para além das condições objetivas de suas práticas profissionais e dos limites institucionais a eles impostos,

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buscam perceber o quanto dessas vidas abrigadas permanece invisível aos nossos olhos ou são entendidas de modo único e reducionista. Que as histórias de Ana e Walter permitam enxergar o quanto essas vidas revelam de contradições, tensões, vitórias, fracassos e reinvenções, desestabilizando nossas certezas sobre as concepções de abandono e acolhimento institucional.

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CAPÍTULO I

TRAJETÓRIA

A minha trajetória entre as instituições sempre esteve permeada por perguntas e busca por respostas. Em 2001, durante o curso de graduação em Psicologia, ao procurar uma instituição para estágio em psicologia escolar e institucional cheguei até uma entidade de abrigo, próxima à minha casa.

Durante o período de observação percebi que as crianças não tinham momentos nos quais registrassem vivências, como diários, cadernos, e outras atividades que pudessem preservar suas histórias de vida a partir de seus próprios pontos de vista. A história era registrada por fotos e prontuários elaborados por profissionais, de maneira que, eu não conseguia observar a percepção da criança sobre os fatos e acontecimentos.

Mas porque a percepção da criança? De que maneira isso me afetava? Afetava pelo estranhamento, pela diferença, pois, lembrei-me de meu tempo de escola, em especial, a terceira série do antigo primeiro grau1. Na ocasião, havia uma professora que solicitava que narrássemos “contos familiares”. Eram casos engraçados, assustadores, intrigantes que deveriam ser contados por membros de nossas famílias a respeito da própria família. Na escola, estes contos eram relatados em grupo e redigidos por cada um da turma, cada um de acordo com a sua percepção e interpretação. Após a escrita, o mesmo caso era lido de maneira distinta por cada criança, o que permitia experienciar o fato de que cada um percebia e relatava a história a sua maneira. As histórias nunca tinham o mesmo resultado. Ora se nesta situação uma história poderia diferir de outra, porque não seria da mesma forma em relação às histórias de vida das crianças abrigadas? Pensei que as histórias de vida percebidas por estas crianças poderiam variar de acordo com a sua forma de compreensão, gerando sentidos 2distintos.

1 Refere-se ao segundo ano do atual Ensino Fundamental – Ciclo I atual

2 Segundo Vygotsky, o conceito de significado se caracteriza por ser uma zona de sentido precisa. Ainda que

haja alterações de sentido, o significado permanece estável, enquanto que o sentido é o elemento que media a relação do homem com o mundo, ele depende dos interlocutores, do contexto e do momento em que essa relação se dá. Esta compreensão de sentido se adéqua mais à metodologia da H.O. da maneira como a utilizo, uma vez que “(...) o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa

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O projeto de estágio

Retomando o estágio, ainda como estagiária no quinto ano do curso de Psicologia, pensei em um projeto de intervenção que trazia como proposta um conjunto de atividades, nas quais as crianças registravam suas experiências diárias e lembranças que quisessem ou que considerassem importantes. A ideia foi montar pastas individuais com histórias contadas e desenhadas por elas mesmas. O objetivo era proporcionar o registro de momentos que se perdiam durante o processo de institucionalização, como aniversários, passeios, doenças e outros fatos que julgavam importantes naquele momento.

Cada criança produzia o seu material, os temas envolviam assuntos como medos, alegrias, festas comemorativas, família, escola, abrigo e outros. Em relação aos bebês, registrava-se com tinta guache a palma das mãos e as plantas dos pés, com determinada frequência com o objetivo de criar arquivos que pudessem, futuramente, mostrar o desenvolvimento de cada um.

Uma dessas crianças em especial elaborou um desenho3 que me tocou profundamente, não pela imagem, mas pela história que contou sobre ela.

Solicitei que realizasse um desenho de si, uma vez que o objetivo era registrar e guardar uma representação de si naquele momento. Eu, apesar de estar em processo de formação em curso de Psicologia, me distanciei, nesse momento, das orientações de análise de técnicas projetivas4. Tinha como foco compreender que representação de si aquela criança erigia, sem realizar interpretações psicológicas.

Pedi a P.H.5, autor do desenho, que me contasse a história de sua produção.

consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata (VYGOTSKY apud BARROS, J. P. P., PAULA, L. R. C. de, PASCUAL, J. G., COLAÇO, V. de F. R. e XIMENES, V. M., 2009, p. 179)

3 Ver figura 1

4 As técnicas e métodos projetivos de avaliação psicológica podem ser considerados instrumentos de exame tanto da personalidade, quanto de elementos facilitadores da compreensão de vivências individuais, como dinâmica familiar e relações interpessoais.

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Fig. 1 – Desenho de P.H.

Relato de P.H. – “Ele tá feliz porque pescou um peixe, mas os peixes estão com raiva porque ele tirou o peixe da família e agora não adianta mais jogar ele na água porque ele está com o olho furado e vai morrer”

A partir da minha leitura da imagem a história tinha um sentido que era único e particular, com certeza distinto da história relatada por P.H.. Em minha compreensão, o homem desenhado seria ele, P.H.. No entanto, em seu relato deixou claro que ele seria o peixe preso no anzol, “tirado da família” e como agora estava fadado a morrer.

Refletia sobre como a história tem sentidos singulares para a pessoa, e que estes não eram registrados nos prontuários e relatórios técnicos das instituições.

O projeto teve duração de um ano e me possibilitou abrir uma janela de conhecimento e curiosidade que me fez tentar compreender como este processo estaria ocorrendo em outras instituições de acolhimento. Como estas crianças, na maioria das vezes não poderiam contar com a memória dos pais, de que maneira seria possível resgatar suas histórias, uma vez que, os profissionais envolvidos em seus cuidados, não seriam eternos naquele local.

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A minha trajetória passou a estar imersa no trabalho em instituições de abrigo e histórias de abandono. Nos anos seguintes continuei trabalhando com abrigos, com o olhar específico para as histórias de vida. Busquei formação tanto em cursos como com parceiros de trabalho. Em 2002 a partir de encontros intitulados “Dialogando com Abrigos” promovidos pela organização social CECIF6 – Centro De Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais, Voluntários e Ongs que Desenvolvem Trabalho de Apoio à Convivência Familiar tive a oportunidade de ouvir o depoimento de um adulto, ex-abrigado e professor da Faculdade de Educação da USP, Prof. Dr. Roberto da Silva.

Tenho como um marco importante esta data, pois suas palavras me impressionaram de maneira significativa. O fato dele relatar não ter lembranças anteriores aos sete anos de idade me remeteu a questões já levantadas anteriormente sobre como as histórias de vidas se perdem nestas instituições. Prof. Roberto narrou como em relação a estes primeiros anos de vida teria preservado apenas uma memória olfativa. E não fui capaz de compreender de que maneira isso seria possível.

Prof. Roberto descreveu com detalhes como ele e seus irmãos foram abrigados quando pequenos e sobre como cresceram na mesma instituição sem saberem que eram irmãos, sem poder compartilhar uma vida familiar. Ou seja, não lhes foi “dito” que eram irmãos. Me perguntei: “como isso é possível? ” Cada vez mais perguntas surgiam, não só dúvidas, mas também uma indignação com o funcionamento dos equipamentos de proteção à infância, e com os profissionais envolvidos neste processo.

Em 2003, me propus a integrar o grupo de professores do CECIF e trabalhar na formação de cuidadores que atuavam nestas instituições. Inicialmente passei a ministrar aulas sobre desenvolvimento e estimulação infantil, depois expandindo para outros temas. Os cursos de formação ocorriam, tanto no município de São Paulo, como em outras cidades e estados pelo Brasil a fora. Oportunidade na qual vivenciei diferentes contextos em regiões distintas, algumas mais e outras menos vulneráveis social e economicamente.

Paralelamente, a partir do contato com Prof. Roberto, passei a assistir aulas, como aluna ouvinte, sobre Direito à Educação na Faculdade de Educação da USP. Com o tempo, já em

6 A entidade que funcionava, na forma de uma OSCIP, em busca da implementação e promoção de ações que visavam a promoção dos direitos da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária.

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2005, passei a integrar um projeto de pesquisa com oito linhas de pesquisa, coordenado por ele, com financiamento da FAPESP7 sob o nome de Recuperação de Fontes Seriais para a Historiografia da Criança Institucionalizada no Estado de São Paulo. Na época eu coordenava a linha da área de Psicologia Institucional, tendo como pesquisadores estagiários Marla Rejane Pereira de Jesus e André Félix Portela Leite. Realizávamos estudos acerca dos prontuários de crianças que foram institucionalizadas na antiga FEBEM/SP8:

Dentro do Projeto de Pesquisa “Recuperação de fontes seriais para a historiografia da criança institucionalizada no Estado de São Paulo” é possível identificar oito linhas de pesquisa, sendo a psicologia uma entre estas áreas, a qual é intitulada como Psicologia Institucional. Utilizando-se do referencial teórico-metodológico proposto por Goffman, Bleger, Lapassade, Mendel e Guilhon de Albuquerque, pretende-se melhor situar abrigos, instituições correcionais para adolescentes e prisões como objetos de estudo da Psicologia Institucional, sobretudo a partir da identificação da diversidade de modelos téorico-práticos para a intervenção institucional identificadas nos prontuários e das possíveis contribuições da Psicanálise e da Sociologia para a delimitação de um objeto específico da Psicologia Institucional. Para um conhecimento melhor aprofundado e histórico do que seriam as práticas psicológicas dentro de uma instituição total, este projeto permite um contato sistematizado com aproximadamente 300.000 prontuários de crianças e adolescentes abandonados que ficaram sob custódia do Estado no período de 1939 a 1990, prontuários estes que, além da história de vida pessoal de cada criança e adolescente, tem no seu registro todo o processo de evolução destas práticas. (LEITE, 2005, s/p).

Durante uma visita ao arquivo da antiga FEBEM-SP, na época localizado no Complexo Tatuapé9, tive contato com prontuários de crianças órfãs e abandonadas acolhidas ao longo das últimas décadas. Uma construção antiga com salas destinadas à guarda dos arquivos, muitos em grandes prateleiras, outros em pilhas no chão. Um ambiente fechado, pouco iluminado e com bastante poeira. Os prontuários tinham capas de papel cartão com folhas presas por grampos. Alguns finos, outros com mais papéis. Em geral, fichas de cadastro, relatórios de atendimento e documentos de saúde.

7 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

8 Antiga FEBEM/SP – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor que, a partir de 2006, com nova nomenclatura - Fundação CASA: Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente - deu início a um amplo programa de descentralização, com a construção de novas unidades no Interior do Estado de São Paulo. 9 O Complexo Tatuapé foi criado em 1902 para receber jovens abandonados e os que tivessem cometido algum crime. Naquela época, a antiga casa que havia no local foi desapropriada e, em pouco tempo, foi erguido um pequeno prédio para abrigar um instituto disciplinar para jovens. A construção foi batizada de Escola Correcional. Foi desativado em 2006.

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Tive a oportunidade de pegar em minhas mãos um prontuário de um bebê, com pouco tempo de vida, cerca de dois meses. Em suas folhas estavam indicados o local de nascimento, dados da genitora, motivos da internação e causa do óbito. Mas algo me chamou a atenção, não havia o nome da criança, no espaço destinado ao nome encontrei apenas um número com quatro dígitos.

Um nó no estômago e mais perguntas: Como esta criança era chamada? Será que alguém a chamou por algum nome? Será que alguém falou com ela? Qual história havia sobre este bebê? Sem respostas, remeti a uma comparação com o nascimento de meu primeiro filho, Leonardo. Impossível não usar a nossa vida como referência. Impossível fazer pesquisa sobre seres humanos sem que eles não atravessem a nossa história como ser humano.

Como uma criança poderia ser identificada apenas por um número? Também não poderia deixar de lembrar das teorias psicanalíticas do desenvolvimento, Melanie Klein, D. Winnicott que descrevem com tanta ênfase e competência a importância do bebê se sentir desejado, se sentir amado para que tenha um bom desenvolvimento. Qual o investimento de afeto teria sido feito nesta criança? Não foi preciso mudar de prateleira para manusear outros prontuários com a mesma situação.

Todas estas inquietudes tornaram-se o foco de meu trabalho, tanto nas instituições como na formação de profissionais e cuidadores de crianças e adolescentes em situação de risco, acolhidos nestes locais.

Ainda em 2005, como formação acadêmica, entrei em curso de Especialização em Violência Doméstica10pelo Instituto de Psicologia da USP. Além de participar de atividades como voluntária na Vara da Infância e Juventude de Santana/SP em busca de conhecimento técnico. No Fórum participei da elaboração e implementação de grupo de encontro entre abrigos da Zona Norte de São Paulo.

Em 2008, buscando compreender mais a fundo os processos de subjetivação e as violências que permeiam a vida destas crianças e adolescentes, procurei na Faculdade de Educação da

10 Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), do Instituto de Psicologia (IP) da USP - Especialização na Área da Violência Doméstica.

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Unicamp, no grupo de pesquisa VIOLAR11 – Laboratório de Estudos sobre Violência, Cultura e Juventude.

O mestrado

Em 2009 iniciei o mestrado em Educação vinculada ao VIOLAR tendo como tema da minha dissertação o registro de histórias de vida de adolescentes em acolhimento institucional. Nesta pesquisa procurei uma instituição com a qual não tivesse tido contato algum. Meu objetivo foi realizar uma intervenção com o registro de histórias de vida de adolescentes a partir de encontros coletivos. Um dos pontos importantes a ser destacado é o fato de que em minha proposta eu não estabeleci contato com a história oficial deles12, apenas com a história lembrada e narrada por cada um em encontros coletivos.

Durante o processo utilizei a técnica de encontros grupais nos quais os adolescentes complementavam a fala uns dos outros, constituindo mesmo uma forma de memória grupal, ou coletiva. Histórias que se confirmavam e se complementavam em um conjunto de relatos interligados. A questão da memória coletiva reflete um modo de pensar constituído em uma coletividade. Segundo Pollak (1989) a memória coletiva é caracterizada por uma reconstrução fundamentada em uma base comum. Para Maurice Halbwachs, a memória coletiva “(...) insinua não apenas a seletividade de toda memória, mas também um processo de ‘negociação’ para conciliar memória coletiva e memórias individuais” (HALBWACHS apud POLLAK, 1989, p. 3)

O trabalho ocorreu a partir de encontros grupais com temas geradores, nos quais cada um relatava a sua história. Os registros constituíram livros individuais, os quais denominei de hupomnematas, conforme descrito por Foucault (2006a).

11 VIOLAR - criado em julho de 2002 e coordenado, até julho de 2017, pelas professoras Dra. Áurea Maria Guimarães e Dra. Dirce Djanira Pacheco e Zan. Realiza pesquisas que se voltam para a problematização da cultura e dos sentidos da violência na relação com a educação. As pesquisas também estão focadas nos estudos da juventude, em especial da cultura juvenil e do cotidiano escolar, principalmente aquele vivenciado pelos jovens. As práticas em educação são estudadas no contexto das práticas sociais organizadoras da cultura como sendo o lugar da produção das diferenças, das relações de poder e dos conflitos sociais. A partir de agosto de 2017, o grupo Violar foi incorporado ao GPPES: Grupo de Pesquisa e Estudos em Políticas Públicas, Educação e Sociedade.

12 História oficial – faço referência à história descrita e registrada em relatórios técnicos, prontuários, processos judiciais e outros documentos.

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O conceito de hupomnemata,13 surgiu na Antiga Grécia, os gregos o descreviam como um caderno de notas, lembranças, conteúdos vividos e aprendidos como uma escrita diária, que deveria ser lida e relida como um exercício de si. Para Foucault, além de um exercício de si, uma escrita de si é um registro dos movimentos interiores, ou seja, aquilo daquilo que é dito, ouvido, observado. Permitindo-se desfrutar da própria companhia, segundo Foucault, a escrita é uma “prática da ascese como trabalho não somente dos atos, porém mais precisamente sobre o pensamento” (2006a, p.145).

Para Foucault o cuidado de si tem estreita ligação com esta construção da história e em como a escrita participa desta circunstância:

... em torno dos cuidados consigo toda uma atividade de palavra e de escrita se desenvolveu, na qual se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação com outrem (...). Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo: ela não constitui um exercício de solidão, mas sim uma verdadeira prática social. (FOUCAULT, 1985, p.57). Neste trabalho, o uso da Historia Oralse deu em grupo com adolescentes que desenhavam, escreviam e contavam suas histórias.

Ao final, tendo acesso aos prontuários e contrapondo histórias relatadas pelos adolescentes com as histórias oficiais neles registradas, foi possível observar a diferença de entendimento entre fatos ocorridos e o sentido deles para os jovens. Esta comparação não fazia parte da proposta principal do trabalho. O objetivo consistiu em buscar na narrativa deles as suas histórias de vida, contadas e sentidas por eles próprios. No entanto, esta discrepância me chamou a atenção, pois questões e indagações surgiram como por exemplo: quem contou a história para eles? Quais eram os fatos omitidos ou negligenciados nessas passagens dos acontecimentos aos quais os adolescentes não tinham conhecimento? Como eles construíam a sua história?

O caso do adolescente que não sabia a sua verdadeira história.

Neste processo, um dos adolescentes participantes tinha uma deficiência física e também queimaduras na pele nas regiões do rosto, braços e pernas. Ele descreveu a sua história

13 Para Foucault os hupomnêmatas eram utilizados pelos gregos como um livro da vida, “constituíam a memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas” (FOUCAULT, 2006a, p. 147).

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relatando que a sua própria mãe teria colocado fogo nele, por isso ele teria sido abrigado. Acometida pela história conversei com a equipe técnica do abrigo e descobrimos que, na verdade, havia ocorrido um grande desencontro de histórias. O adolescente foi levado ao fórum para ler o seu processo, lá ele constatou que a história era outra. Aos dois anos ele havia sido operado das pernas devido à poliomielite, em virtude deste evento estava com as pernas imobilizadas, preso à cama por não conseguir se locomover. A sua mãe teria saído para trabalhar, deixando-o sozinho, pois não tinha quem olhasse por ele. Nesta circunstância, o barraco que morava pegou fogo e não havia como ele sair, por isso as queimaduras. Devido ao fato de ter sido deixado sozinho em casa e ter sofrido este acidente a mãe perdeu a guarda e ele foi institucionalizado. Após saber de sua história o adolescente chorou e falou:

“- Então quer dizer que a minha mãe não quis me matar? ”

Esta é a história que ele sabia, ou porque alguém contou a história errada, ou porque ninguém contou a sua história. A omissão e o silêncio podem ser tão violentos quanto o agressor que ataca com palavras ou com a força física.

São estes os sentidos que me conduziram até este tema, oferecendo-me a possibilidade de realizar trabalhos que contribuam de alguma forma para as mudanças nas formas de atendimento e de olhar para estas pessoas que precisam ser ouvidas e precisam ouvir as suas histórias. Pressuponho que, essas mudanças serão possíveis sob um olhar cuidadoso para os processos de subjetivação dessas crianças e adolescentes, como também a iniciativa de se criar espaços nos quais suas subjetividades possam se manifestar.

Ao término do projeto, cada adolescente passou a cuidar de seu hupomnemata de vida. Meses depois, a administração da instituição me relatou a importância deste trabalho e sugeriu a continuidade na forma de grupos de atendimento.

Entendo que esta pesquisa de mestrado foi um trabalho de construção de espaços possíveis para o aparecimento das histórias. A narrativa sobre o que sente e percebe, constituiu a história dos sentidos que atribui aos eventos e não aos eventos em si. Para Barbosa (2006) privilegiar a narrativa do colaborador como núcleo documental principal nos nossos trabalhos, é indicativo de que a preocupação com a constituição desse corpus narrativo exige uma postura diferenciada diante do nosso entrevistado. Mais do que a mudança de sujeito-objeto para sujeito-sujeito, praticamos a colaboração, na qual o sujeito se transforma em colaborador e cuja fala será construída e autorizada por ele. O sujeito deixa de ser visto como objeto e

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abe-se espaço para os processos de subjetivação, “pode-abe-se com efeito falar de processos de subjetivação quando se considera as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo se na sequência eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes”. (DELEUZE, Gilles, Conversações, 2000, p. 217.).

Nossa interferência se dará num nível de mediação e não mais de autoria do texto, considerando que a:

... transcriação instaura um desequilíbrio e um estranhamento radical ao desmantelar o tradicional respeito e distância entre o sujeito e o objeto. (...) O conceito de transcriação traduz uma ação criativa e uma relação viva entre as clássicas dicotomias (sujeito-objeto, eu-tu, oral-escrito, documento-pesquisador) superando-as sem fazer-lhes concessões. (MEIHY e HOLANDA, 2015, p. 160)

É o momento em que o pesquisador se permite sair do modelo cartesiano de análise e penetrar na história, misturando-se com ela, vivendo o processo de construção do texto. Há uma ficcionalidade presente que envolve a narrativa com os seus sentidos, sentimentos e impressões para todos os envolvidos, pesquisadores e colaboradores.

Estaria aqui o encontro com a função terapêutica da História Oral? Se a prática da narrativa e da história de vida contada podem constituir um espaço que possibilita benefícios aos sujeitos não se trata apenas do registro da história. Trata-se da escuta da história sentida e percebida e de seus sentidos para o narrador. Lang (1995) aponta para o conceito de história oral de vida como:

... o relato de um narrador sobre a sua existência através do tempo. Os acontecimentos vivenciados são relatados, experiências e valores transmitidos, a par dos fatos da vida pessoal. Através da narrativa de uma história de vida, se delineiam as relações com os membros de seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, da sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. (p.34)

Neste contexto, a história oral de vida pode, entre outras possibilidades, tornar-se uma prática social e a entrevista uma disseminação de experiências e sentidos. E é por isso que o texto final é construído pelo pesquisador em concordância com o colaborador. Para Barbosa (2006) é importante que o entrevistado passe a atuar como sujeito nesta construção.

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Após a dissertação a pergunta que me provocou foi: “como poderia ser contada a história daqueles que não puderam contá-la? ” “Como vivem/sentem a situação de pós-desabrigado?”. A partir desse questionamento, o interesse da pesquisa assumiu a direção de compreender como se constituem as lembranças daqueles que já teriam saído das instituições.

O motivo desta tese

A ideia desta tese surgiu da curiosidade de ouvir e compreender estas narrativas e de entender como a vida desses colaboradores exemplificam a maneira como atuam as instituições de acolhimento. Ou, melhor dizendo, como a singularidade dessas vidas problematizam essas instituições, que possíveis práticas fazem ou não a diferença na história de vida de crianças e adolescentes institucionalizados. Em todos estes anos de atuação profissional, trabalhei em torno de histórias de vida de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. A minha inquietude é sobre qual a importância do trabalho de um psicólogo nestes locais? Será que faz algum sentido? O que vem depois de tudo isso? Entendo que a escuta dessas histórias pode reverberar sentidos da prática profissional e nos mostrar caminhos para o trabalho institucional a partir de uma outra perspectiva, a do diálogo, a de uma “ética do abandono” que nos ajude a compreender o estado de heteronomia no qual vivemos. Abandonar aqui é “permitir que o mesmo se torne outro, que o novo comece” (AIRA, 2007, p. 182). A expressão “ética do abandono” tomei emprestado de Eduard Marquardt em seu Posfácio feito para o livro de César Aira. A referência do autor à literatura nos inspira ampliarmos esse procedimento ético do abandono de modo a abandonarmos as “certezas da situação, do já-sabido, do existente e institucionalizado (...). Trata-se, antes, de uma desistência que não desiste de si” (p. 183).

Pensar a práxis do profissional, seja ele cuidador, psicólogo, assistente social, que priorize a alteridade e a singularidade. A formação do profissional deveria então compreender e atuar conforme as habilidades necessárias à um educador/cuidador que considere as singularidades como parte de sua atuação profissional. Nesta perspectiva, é possível pensar de que maneira estes profissionais atravessam as histórias de cada abrigado, se são capazes de respeitar ou não o tempo, o espaço e os afetos14 de cada um, ou seja, os laços emocionais que aproximam os abrigados/desabrigados de pessoas e grupos.

14 Michel Maffesoli (1987, p.101-111) emprega o termo “afetual” para referir-se às relações que estabelecemos

com os outros ainda que tênues e efêmeras, sem contornos definidos. A “contaminação” pelo toque, pela palavra, pelo olhar constitui, para o autor, o reconhecimento e a experiência do outro, sem que esse contato esteja inscrito

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Torna-se possível ao profissional, mesmo que de maneira indireta, observar a própria atuação a partir das histórias de vida do outro. É a narrativa que traz os efeitos do funcionamento de todo o aparato de atendimento. São histórias atravessadas pelo convívio com educadores e cuidadores que trazem as suas subjetividades enraizadas em sua prática profissional, alimentando os processos de subjetivação dos acolhidos.

Neste sentido, o caminho foi traçado com base na história oral de vida que é descrita por Meihy e Holanda como:

... um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas. O projeto prevê: planejamento da condução das gravações com definições de locais, tempo de duração e demais fatores ambientais; transcrição e estabelecimento de textos; conferência do produto escrito; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados que devem em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas. (MEIHY e HOLANDA, 2015, p. 15).

Para Meihy e Holanda (2015) a história oral de vida revela o caráter subjetivo como essência do projeto, pois o que mais vale:

... são as versões individuais dos fatos da vida. (...) no caso da história oral de vida, o que a distingue é exatamente a independência dos suportes probatórios. As incertezas, descartabilidade da referenciação exata, garantem às narrativas decorrentes da memória um corpo original e diverso dos documentos convencionais úteis à História. Em particular, a história oral de vida se espraia nas construções narrativas que apenas se inspiram em fatos, mas vão além, admitindo fantasias delírios, silêncios, ilusões e distorções. (MEIHY e HOLANDA, 2015, p. 34).

O trabalho com história oral de vida como metodologia nos remete a mergulhar no universo do outro, perambular por suas lembranças e formas de compreender a sua própria vida. Flanar15 pela vida do outro é como entrar em um sonho que não é seu, conhecer espaços e histórias que são narradas com mais ou menos detalhes, com ênfases e omissões, coerências e contradições.

em alguma finalidade ou projeto político, a não ser o de “estar-junto” no interesse do aqui e do agora. Para Maffesoli (1984, p. 12-13), o instante não é expressão de puro espontaneismo, mas de um momento no qual novos valores poderão ser “fermentados”.

15 Inspiro-me aqui na figura do flâneur de Walter Benjamin (1989, p. 33-65). Abandonado na multidão, o flâneur

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Este trabalho buscou ouvir a história oral de vida de pessoas que viveram em instituições de acolhimento para crianças e adolescentes. As entrevistas foram realizadas com dois colaboradores, já adultos que viveram grande parte da infância e adolescência em instituições. Para tanto, foram entrevistados um homem e uma mulher que viveram nesta condição até atingirem a maioridade.

As questões que nortearam o processo das entrevistas foram: como essas pessoas sentiram e compreenderam a maneira como foram constituídas, enquanto viveram dentro do local de acolhimento e depois, quando tiveram de viver fora da instituição. Como as instituições aparecem e perpassam nessas histórias? Quais lugares estas instituições ocupam nas vidas, nos relatos, nas memórias, nos sentidos constituídos por cada um?

Quais as possibilidades de colaboradores e profissionais da instituição se reconhecerem e se repensarem em falas e trechos de histórias? Qual o papel desses profissionais como educadores? Qual o papel desta rede de atendimento?

Seria possível identificar quais ações se mostraram significativas nestas narrativas? O que é possível se construir a partir destes pontos? Como pensar instituições e práticas institucionais que contribuam de maneira positiva para as singularidades de cada um, tanto assistidos, como os profissionais envolvidos.

Não são perguntas a serem respondidas de maneira objetiva, não é este o foco deste trabalho. Mas, podem abrir escutas e entendimentos diversos durante a leitura das narrativas, permitindo ao leitor um questionamento acerca de todo o contexto envolvido. Neste ponto, é possível pensar na relevância em se contar estas histórias, pois a partir da narrativa daqueles que viveram estas intervenções é possível conhecer um pouco mais sobre as suas constituições dentro de tais experiências.

O trabalho com História Oral de Vida permite esta abertura em busca de sentidos diversos. Já são muitas as pesquisas que descrevem os efeitos devastadores da massificação e homogeneização dentro das instituições. O processo de mortificação do eu já foi descrito por Erving Goffman e outros autores. Não é a preocupação desta tese entrar nessa temática, mas sim compreender a via contrária a este processo. Como é possível identificar práticas não massificantes? Praticas que nomeiem um recém-nascido ao invés de numerá-lo. Elas já existem, já estão sendo desempenhadas por instituições que foram capazes de repensar suas práticas e se permitiram sair de territórios comuns, já conhecidos. Trata-se de um exercício

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continuo de refletir sobre os processos de subjetivação, tornando aquilo que é conhecido, unificante em algo a ser desconstruído.

É neste sentido que Guattari e Rolnik (1986) remetem ao conceito de desterritorialização, pensando em subjetividades que não se submetam ao controle, mas que se permitam perder-se sem se fixar apenas em um território

A presença do entrevistador, naquela situação, com aquele entrevistado, gera uma cena única, que não se repetirá, e que só será captada e preservada pela gravação.

Segundo Vangelista (2008) a condição e resultado da entrevista sempre serão únicos por se tratar de um momento distinto realizado por aquelas pessoas específicas, naquelas condições, naquele momento. A gravação é a busca pelo registro do que foi dito e vivido naquele momento. São os dados que farão parte da história registrada na transcrição e posteriormente transformados em um texto transcriado em comum acordo entre entrevistador e entrevistado. No texto “A transcriação em História Oral e a insuficiência da entrevista”, Evangelista (2010) repassa as etapas da construção de um processo de história oral e coloca ênfase na importância da negociação do entrevistador com o colaborador, principalmente “no momento de produção do texto final” (p. 178). De acordo com a autora a interação entre o oralista e seu interlocutor só pode ser feita daquela forma por aquelas pessoas ali presentes, sob condições estabelecidas no momento da entrevista.

Para isso, é necessário que sejam realizadas pesquisas que discutam novas diretrizes e orientações de atendimento, novas leis, que implementem programas adequados, que fiscalizem estes programas, reorganizem estas ações, revejam as posturas profissionais, institucionais, que se pensem em políticas públicas que permitam o olhar para o sujeito e sua constituição.

No capítulo II, lanço um olhar para a história das instituições de acolhimento no Brasil, com o objetivo de contextualizar de que maneira este tipo de intervenção se constituiu até os dias atuais.

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CAPÍTULO II

INSTITUIÇÕES DE ACOLHIMENTO E HISTÓRIA

A evolução do pensamento assistencial brasileiro, refletindo o avanço da consciência humanística, particularmente da Europa, foi acompanhada no Brasil também pela evolução do pensamento jurídico, no que diz respeito à criança não assistida.

Em um esforço de sistematização de vários trabalhos em uma vasta bibliografia, é possível entender que cada fase de desenvolvimento do pensamento assistencial sempre correspondeu a uma ideologia político-científica e filosófica, que se traduziu na educação por leis que estabelecem alguns parâmetros para o atendimento à infância e adolescência no Brasil.

No Brasil colonial

Os portugueses ao chegarem ao Brasil implantaram um grande projeto de aculturação com o povo ali encontrado. Diante da resistência dos índios à cultura europeia e à formação cristã, a união da Igreja e do Estado no processo de manutenção do poder fez com que as crianças indígenas, consideradas “ almas menos duras” fossem o alvo da catequização. A Igreja Católica incumbia-se de catequizar os índios e, consequentemente, seus filhos, assim como de oferecer a educação para os filhos dos colonos. Com a chegada dos jesuítas ao Brasil, a Igreja estabeleceu aldeamentos, também conhecidos como –missões-, com o objetivo de afastar os índios de suas lideranças, converter os nativos ao cristianismo

A Companhia de Jesus, que fora fundada em 1534, tinha como proposta oficializar a catequese como forma de salvação e civilização dos índios. O conflito entre jesuítas e Portugal chegou ao ponto em que em 1759 os padres jesuítas foram expulsos do Brasil. Foram criadas as casas de recolhimento para meninos e meninas índias, administradas pelos padres jesuítas que cuidavam das crianças indígenas, batizando-as e incorporando-os ao mundo do trabalho (FALEIROS 2004) Tratavam-se de internatos educacionais, custeados pela Coroa portuguesa denominados Casa de Muchachos, implantadas entre 1550 e 1553.

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Com o tempo, estas casas tornaram-se úteis também para o acolhimento de órfãos e enjeitados de Portugal. Estes espaços eram utilizados para o aprendizado dos índios, até o século XVII, por meio de um modelo disciplinar rígido.

Philippe Ariès (1984) afirma que já no século XV, o sentimento em relação à infância cresceu consideravelmente e isso revelava a preocupação com sua existência, assumindo um lugar central na família.

No decorrer dos séculos XVI e XVII, os jesuítas fundaram colégios nas Principais vilas e cidades da época: Salvador, Porto Seguro, Vitória, São Vicente, São Paulo, Rio de Janeiro, Olinda, Recife, São Luís do Maranhão e Belém do Pará (MARCÍLIO, 1998).

Para Marcílio (1998) devido à miséria, à exploração e à marginalização, o período de colonização trouxe consigo a prática do abandono. Um modelo já existente em Portugal replicado na colônia. Estas crianças acabavam sendo agregadas ou assumidas por famílias que aproveitavam de seus serviços posteriormente:

(...) a maioria dos bebês que iam sendo largados acabavam por receber a compaixão das famílias que os encontravam. Elas criavam os expostos por espírito de caridade, mas também, em muitos casos, calculando utilizá-los, quando maiores, como mão-de-obra suplementar, fiel, reconhecida e gratuita. (MARCÍLIO, 2003, p. 55).

As câmaras municipais tinham a responsabilidade em manter o serviço de atendimento às crianças abandonadas. Grande parte do atendimento era realizado pelas Santas Casas de Misericórdia que acabavam contratando amas-de-leite para cuidar e alimentar as crianças. No século XVIII foram criadas as primeiras instituições de proteção à criança abandonada, as Casas de Recolhimento dos Expostos. Maria Luiza Marcílio (1998) descreve que o início da proteção à criança abandonada no Brasil surgiu no período colonial. A responsabilidade por esses cuidados era das Câmaras Municipais, que por meio de convênios, delegavam serviços especiais de proteção à criança a outras instituições, sobretudo às Santas Casas de Misericórdia.

Não diferentemente da situação indígena, os filhos de escravos negros também engrossavam a população de crianças órfãs e abandonadas, principalmente após a Lei do entre Livre. A escravidão no Brasil teve três grandes marcos: a Lei do Ventre Livre, a do Sexagenário e a da

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Abolição. O que nos interessa para este artigo é o primeiro e o último marcos. A lei do Ventre Livre determinou que crianças, filhas de escravos, tornar-se-iam pessoas livres após a maioridade, no entanto, permaneceriam sob a guarda dos senhores de engenho até completarem dezoito anos. Neste período, comumente, esses filhos de escravos eram abandonados e acabavam acolhidos em instituições de caridade. Após a Abolição da escravatura, a miséria e a pobreza alimentaram este grupo de crianças institucionalizadas. Crianças que eram abandonadas ou retiradas de seus pais tornaram-se um incômodo aos olhos da sociedade. A Igreja Católica encarregara-se de acolher e doutrinar esses sujeitos, mas os esforços necessitavam de melhores condições e maior organização, por isto foi criados as Casas dos Expostos por volta de 1726. Nestas Casas foram instaladas as Rodas dos Expostos. Em função das condições precárias e dos poucos recursos dessas casas, eram frequentes as mortes de crianças ali abrigadas. De acordo com Rizzini e Rizzini (2004) o Brasil passou a constituir uma longa tradição de internação de crianças e jovens em instituições asilares. No Brasil, foram implantadas as três primeiras rodas de expostos: em Salvador (1726), no Rio de Janeiro (1738) e em Recife (1789). Um cilindro oco com uma abertura em um de seus lados era colocado nos muros das Santas Casas, preso a um sistema giratório ele permitia que a criança fosse colocada pelo lado de fora e recolhida pelo lado de dentro. O sistema procedia da seguinte maneira: a genitora ou outrem encarregado de -abandonar- a criança na Roda a colocava na parte interior, em seguida girava a roda até que a parte da abertura se direcionasse para o lado interior da instituição, finalmente esta pessoa deveria tocar um sino que chamaria a atenção de algum funcionário ou freira para o fato de haver uma criança na roda. A criança era recolhida e cuidada pela Casa dos Expostos sem que a pessoa responsável pelo abandono fosse identificada: “A origem desses cilindros rotatórios vinha dos átrios ou vestíbulos de mosteiros e de conventos medievais, usados para outros fins, como o de evitar o contato dos religiosos com o mundo exterior.” (MARCÍLIO, 1998, p. 57).

Acreditava-se que com isso haveria a diminuição do índice de mortes por abandono, no entanto, a mortalidade continuava apresentando índices altíssimos dentro das Santas Casas e Misericórdia. Merisse (1997) relata:

... oferecia-se abrigo e alimentação às crianças órfãs abandonadas (por meio) de um trabalho realizado fundamentalmente sob domínio da Igreja Católica e de grupos leigos de caráter filantrópico, sob a égide da caridade. (...) As crianças que acolhia não tinham famílias ou alguém que quisesse ou pudesse delas cuidar. (A Casa da Roda) não conseguia contribuir para a queda das

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taxas de mortalidade infantil, tendo continuado muito alto o índice de crianças que morriam nessas instituições. (p. 28-29).

No Brasil, uma vez recebidas nas Santas Casas de Misericórdia seriam batizadas e encaminhadas às Amas de Leite contratadas que, além de fornecer-lhes o alimento necessário, encarregavam-se de seus cuidados, educação e encaminhamento para possíveis lares adotivos. A seleção das Amas de Leite não estabelecia critérios rígidos e em sua maioria eram camponesas ou mulheres das classes sociais mais baixas da sociedade e seus salários eram muito baixos.

De acordo com Kuhlmann e Rocha (2006, p. 599), “Houve uma forte resistência das amas em relação às noções básicas para melhor alimentação, aplicação correta dos medicamentos às crianças, limpeza, entre outras necessidades, fatores que aumentavam os índices de mortalidade infantil”. Esses índices eram atribuídos às condições de moradia e higiene das amas. Segundo os autores, o Relatório do Irmão Mordomo dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo indica que em 1909, de 126 crianças.

O atendimento de acolhimento se dividia por sexo e, em muitos casos, mediante a situação legal, desta forma, existiam instituiçõees somente para a proteção de órfãs pobres, filhas de casamento ilegítimo, e outros para indigentes, filhas naturais de mães pobres ou órfãs desvalidas.

O regime de funcionamento das instituições seguia o modelo do claustro (…), as práticas religiosas e o restrito contato com o mundo exterior eram características fundamentais dos colégios para meninos órfãos e dos recolhimentos femininos, sendo que, no segundo caso, a clausura era imposta com maior rigor. (RIZZINI, 2004, p. 24-7).

A partir de meados do século XIX, o sistema de contratação de amas de leite foi abolido, acusado de ser a principal causa do alto índice de mortalidade infantil dos expostos.

Durante esse século, as Casas de Misericórdia, vinculadas às Santas Casas de Misericórdia, foram gradativamente perdendo a autonomia, ficando a serviço do Estado e sob seu controle, já que dele dependiam financeiramente. Foi sobre essa base que se estruturaram as primeiras propostas de políticas públicas voltadas para a criança abandonada.

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Higienismo

A filantropia surgiu como modelo assistencial fundamentado na ciência. A ela atribuiu-se a tarefa de organizar a assistência dentro das novas exigências sociais, políticas econômicas e morais (MARCÍLIO, 1998, p. 76). Entretanto, isto não significa o atendimento das necessidades sociais, de fato:

O modelo conservador trata o Estado como uma grande família, na qual as esposas de governantes, as primeiras damas, é que cuidam dos “coitados”. É o paradigma do não direito, da reiteração da subalternidade, assentado no modelo de Estado patrimonial (...). Neste modelo, a assistência social é entendida como espaço de reconhecimento dos necessitados, e não de necessidades sociais. (SPOSATI, 2001, p.76).

Reforçada pelo movimento higienista e jurídico, passou a delimitar as formas de atendimento a infância e definiu a condição de –menores-. O Estado começou a participar do planejamento e implementação das políticas de atendimento a esta população (MARCÍLIO, 1998, p. 29). Reforçada pelo movimento higienista e jurídico, passou a delimitar as formas de atendimento a infância e definiu a condição de –menores-. O Estado começou a participar do planejamento e implementação das políticas de atendimento a esta população (MARCÍLIO, 1998, p. 29). Ao Estado caberia um papel interventor diante das mazelas sociais. A pobreza deveria ser combatida pela ameaça que representa à ordem do país. Começavam a ser vistas como desperdício de vidas a alta taxa de mortalidade infantil e o aumento de crianças e jovens nas ruas, bem podendo a nação aproveitá-los. O utilitarismo e o higienismo tornavam-se as referências para a construção de um sistema social produtivo. O primeiro como forma de otimizar as ações e os cuidados para prover o bem-estar da população e o segundo revelando a necessidade de manter determinadas condições de salubridade no ambiente da cidade nas quais a higiene passa a ser uma questão social. Foi neste período que a divulgação das pesquisas de Louis Pasteur, cientista francês, revelou que as causas das doenças estavam relacionadas à contaminação por meio de microrganismos.

Higienistas e eugenistas fortaleciam-se uns aos outros no sentido de –limpar- a sociedade das reproduções ditas mal sucedidas, ou seja, das crianças indesejadas pela sociedade. De acordo com Masiero (2005), para o eugenista Renato Ferraz Kehl era necessário controlar o instinto humano para poder, no futuro, alcançar uma raça nobre, equilibrada moral e fisicamente.

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Os programas de controle da natalidade e controle do crescimento populacional, melhor dizendo, da população pobre, ganharam força e embasamento teórico, difundindo a ideia de que pessoas consideradas “inferiores” não deveriam superlotar o mundo. Até a atualidade se dissemina esta ideia.

A biologia, por meio de Pasteur, atingia o terreno microscópico e, com isso, a compreensão de moléstias diversas tão comuns à época. A esterilização do leite passava a ser a exigência básica na alimentação das crianças. Estas descobertas tornaram a figura das amas de leite obsoleta, as crianças órfãs e abandonadas passaram receber alimentação artificial.

Em 1948, foi desativada a última Roda chegando ao fim da Era da Roda dos Expostos, no Brasil. Crescia o número de associações protetoras da infância, que procuravam levar para as famílias mais pobres orientações acerca dos cuidados com os pequenos. Instauravam-se campanhas de conscientização pública, através da distribuição de folhetos, edição de livros educativos, entre outros. A vida familiar ganhava atenção dos filantropos que a concebiam como estrutura primordial para o bom desenvolvimento da criança.

Esta também é uma época de criação de leis de proteção à infância. Aos pais que não garantissem condições salubres para seu filho seria passível a suspensão do pátrio poder (hoje denominado poder familiar) e o estabelecimento da tutela. O Poder Judiciário passa a controlar a vida familiar coibindo atos perniciosos a infância. A psiquiatria ganha terreno através de laudos que pudessem diagnosticar desvios de conduta ou personalidade nos membros da família. A medicina atribuiu a si a função profilática e social, enquanto a assistência pública procurou garantir a eficácia de sua política.

Em 1901, no Rio de Janeiro, sob uma configuração político social instável, ainda em adaptação ao panorama da República, é inaugurada a Colônia Penal Agrícola. No ano seguinte, em São Paulo é construído o Instituto Disciplinar de São Paulo e a Colônia Correcional, na antiga fazenda de Morgado Matheus, entre a Avenida Celso Garcia e o leito do Rio Tietê.

Por volta de 1920, o governo organizou o serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente e estipula:

...a construção de abrigos para o recolhimento provisório dos menores de ambos os sexos, que fossem encontrados abandonados ou que tivessem cometido crime ou contravenção; nomeação de juiz de direito privativo de

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menores, assim como de funcionários necessários ao respectivo juiz; providências para que os menores que estivessem cumprindo sentença em qualquer estabelecimento, fossem transferidos para a casa de reforma após sua instalação (FERNANDES, 1998, p. 22).

Em 1923 surgiu a primeira Declaração dos Direitos da Criança, também chamada de Declaração de Genebra16, que em conjunto com a Lei nº 4.242/21, influenciou na criação do Juízo Privativo dos Menores Abandonados e Delinquentes.

No Rio de Janeiro, em 1922, por meio do Decreto nº 17.943-A, foi fundado o primeiro estabelecimento público de atendimento a menores. Cinco anos depois foi outorgado o primeiro Código de Menores, também conhecido como Código Mello de Mattos, possibilitando a criação de um sistema público de atendimento. De acordo com a nova legislação, as instituições de acolhimento de menores estariam subordinadas ao juizado de menores.

Em 1924, em consonância com a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança surgia o Juízo Privativo dos Menores Abandonados e Delinquentes da Comarca de São Paulo, de acordo com a Lei Estadual nº 2059. Regulamentava-se a internação para os menores abandonados e pervertidos, por no mínimo três anos e no máximo sete anos de reclusão. Para os infratores, aplicava-se a condução para os Institutos Disciplinares da Capital, Taubaté ou Mogi Mirim.

Em 1927, é criado no Rio de Janeiro o primeiro Juízo de Menores do Brasil e aprovado o Código de Menores. O Juizado de Menores era um órgão centralizador do atendimento oficial ao Menor no Distrito Federal (RIZZINI e RIZZINI, 2004, p. 29). Por um lado, o Código de Menores garantia a internação e proteção dos menores e, por outro, poupava a população da convivência indesejada com esses meninos. Cuidavam da vigilância, regulamentação e intervenção sobre a população de menores abandonados e delinquentes. Insistia-se ainda na elaboração de um modelo não punitivo, mas disciplinar. Intento à parte, embora a punição fosse pelos mecanismos jurídicos do Código de Menores, dentro dos muros das instituições predominava a opressão física e moral. As punições constituíam o alicerce do processo

16 A Declaração de Genebra, como foi intitulada, foi aprovada pela segunda vez, em 1934, pela Sociedade das Nações. Após a II Guerra Mundial, em 1946, o Conselho Económico e Social das Nações Unidas recomendou a adoção da Declaração de Genebra. E, no mesmo ano, foi criado o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que passou a designar-se Fundo das Nações Unidas para a Infância a partir de 1950.

Referências

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