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Políticas públicas de renda básica de cidadania – um dos meios para a justiça social no Brasil

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Curso de Mestrado em Direitos Humanos

DANIELLI ZANINI

POLÍTICAS PÚBLICAS DE RENDA BÁSICA DE CIDADANIA – UM DOS MEIOS PARA A JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL

Ijuí (RS) 2018

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2 DANIELLI ZANINI

POLÍTICAS PÚBLICAS DE RENDA BÁSICA DE CIDADANIA – UM DOS MEIOS PARA A JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL

Dissertação final do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, apresentado como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito

Orientador: Prof. Dr. Enio Waldir da Silva

Ijuí (RS) 2018

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Catalogação na Publicação

Ginamara de Oliveira Lima CRB10/1204 Z31p

Zanini, Danielli.

Políticas públicas de renda básica de cidadania : um dos meios para a justiça social no Brasil / Danielli Zanini. – Ijuí, 2018.

127 f. ; 29 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos.

“Orientador: Prof. Dr. Enio Waldir da Silva”.

1. Políticas públicas. 2. Renda básica de cidadania. 3. Teoria Tridimensional de Justiça. 4. Justiça social. 5. Direitos humanos. I. Silva, Enio Waldir da. II. Título.

CDU: 340.12

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4 UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

Programa de Pós-Graduação em Direito Curso de Mestrado em Direitos Humanos

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

POLÍTICAS PÚBLICAS DE RENDA BÁSICA DE CIDADANIA – UM DOS MEIOS PARA A JUSTIÇA SOCIAL NO BRASIL

elaborada por

DANIELLI ZANINI

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Enio Waldir da Silva (UNIJUÍ): _________________________________________

Prof. Dr. Edemar Rotta (UFFS): _________________________________________________

Prof. Dr. Walter Frantz (UNIJUÍ): _______________________________________________

Prof. Dr. Daniel Rubens Cenci (UNIJUÍ): _________________________________________

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5 AGRADECIMENTOS

A realização de um mestrado e a conclusão deste trabalho só foram possíveis porque tive o incentivo, o apoio e a compreensão de pessoas muito especiais.

À minha mãe Mara, meu esteio, dedico esta e todas as minhas conquistas, pois são fruto da semente que, com muito amor, plantou. Te amo.

Ao meu irmão Rafael, ao meu namorado Alexandre, aos meus afilhados Gui e Artur e aos demais familiares e amigos, agradeço a compreensão pelos momentos em que não pude estar presente da forma como gostaria. Tenham a certeza de que estas páginas foram escritas com o pensamento em vocês.

À minha colega Maísa, agradeço pela compreensão e paciência e, principalmente, por me ouvir dizer, em todos os dias de expediente, “eu tenho que terminar minha dissertação”.

Aos meus colegas e companheiros de jornada, Geci, Tocha e Vini, agradeço pelos conhecimentos e quilômetros compartilhados. Sem vocês o caminho seria o mesmo, mas a trajetória seria outra.

Ao meu orientador, professor Enio, agradeço pelas contribuições acadêmicas, fundamentais para a elaboração deste trabalho, pela delicadeza de compreender as minhas limitações e, pacientemente, seguir ao meu lado durante esta trajetória. Ao professor Daniel Cenci, agradeço por me incentivar a cursar o mestrado em Direitos Humanos e por me apoiar na escolha de seguir pesquisando o tema da Renda Básica de Cidadania.

Agradeço a oportunidade concedida pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UNIJUÍ de cursar o Mestrado em Direitos Humanos, tão importante para a reflexão acerca do contexto atual em que vivemos.

Aos professores do programa, agradeço pelas contribuições e conhecimentos transmitidos ao longo dessa trajetória. O amor que vocês demonstram pela docência e o tratamento humano entre professores, alunos e funcionários tornam o ambiente acadêmico um lugar onde se tem prazer em estar.

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6 “Curso básico de Injustiça. A publicidade manda consumir e a economia o proíbe. As ordens de consumo, obrigatórias para todos, mas impossíveis para a maioria, são convites ao delito. Sobre as contradições de nosso tempo, as páginas policiais dos jornais ensinam mais do que as páginas de informação política e econômica. Este mundo, que oferece o banquete a todos e fecha a porta no nariz de tantos, é ao mesmo tempo igualador e desigual: igualador nas ideias e nos costumes que impõe, desigual nas oportunidades que proporciona”.

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7 RESUMO

A prática de políticas públicas, horizonte da teoria política, é a forma de intervenção do Estado na realidade social. No entanto, considerando que a desigualdade é marca social brasileira, é preciso buscar saber se o que vem sendo praticado no Brasil contemporâneo aproxima-se ou vai em direção ao ideário de justiça social a ser promovida pelas governanças do Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, a justiça social por meio de políticas públicas o tema desta dissertação. Nesse sentido, a hipótese é a de que apesar de a diversidade de estudos que avaliam as políticas públicas brasileiras atuais indicarem momentos evidentes de melhoramento da qualidade de vida de muitos cidadãos, sobretudo a partir do programa Bolsa Família, estamos muito distante de ações governamentais e da sociedade civil que sejam capazes de projetar a justiça social de forma mais ampla e perene, bem como que contemplem as questões essenciais e substantivas das vivências sociais. Em razão disso, através de pesquisa bibliográfica exploratória, o objetivo é estudar como as políticas públicas de redistribuição de renda podem contribuir para a realização dos ideários contemporâneos de justiça social, considerando a redistribuição de renda enquanto forma de garantia da dignidade de vida, de reconhecimento de status e de representação política da real cidadania, ou seja, proteção aos direitos humanos. Nosso esforço reflexivo e argumentativo inicia por abordagens teóricas sobre justiça social, contemplando a justiça como equidade de John Rawls, a abordagem das capacidades de Amartya Sen e a teoria tridimensional de justiça de Nancy Fraser, realizando, por fim, uma análise comparativa entre os pressupostos das três teorias. O percurso teórico segue pela formação do Estado brasileiro e retomada da emergência das políticas públicas, em seus aspectos gerais, visando conectar esses pontos com a desigualdade, própria do capitalismo imerso na identidade nacional. A partir dessa compreensão, analisamos o impacto da redistribuição de renda realizada no Brasil, principalmente por meio dos resultados do Programa Bolsa Família, avaliando os avanços, as dificuldades e os desafios apresentados. Concluímos que, apesar dos avanços na política social e dos resultados positivos na vida dos brasileiros, o que está sendo praticado ainda não é suficiente para modificar a desigualdade existente em nosso país. Para tanto, a Renda Básica de Cidadania, com base na sua proposta de renda incondicional e universal e diante dos resultados apresentados nas experiências realizadas, se apresenta como uma alternativa potencial de progresso da justiça social brasileira.

Palavras-Chave: Políticas públicas; Renda básica de cidadania; Teoria tridimensional de justiça; Justiça social; Direitos humanos.

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8 ABSTRACT

The practice of public policy, horizon of the political theory, is the form of State intervention in social reality. However, considering that inequality is brazilian social brand, it is necessary to look for to know if what is being practiced in contemporary Brazil is approaching or going toward social justice ideals promoted by the governance of the democratic State of Right. In this sense, our hypothesis is that despite the diversity of studies that evaluate the Brazilian public policy clear moments indicate current improving the quality of life of many citizens, especially from the Bolsa Família program, we still need Government and civil society actions that are capable of projecting social justice more broadly and perennial, as well as covering the key issues and the substantive social experiences. In reason of that, through exploratory bibliographical research, our objective is to study how public policies of redistribution of income can contribute to the achievement of the contemporary social justice upon itself ideas, whereas the redistribution of income while it forms of warranty of the life dignity, status recognition and of political representation of the real citizenship, i.e., protection of human rights. Our reflective and argumentative effort starts by current theoretical approaches on social justice, including justice as fairness of John Rawls, the approach the capabilities of Amartya Sen and the three-dimensional theory of Justice of Nancy Fraser, performing, finally, a comparative analysis between the assumptions of the three theories. The theoretical path follows the formation of the Brazilian State and resumption of the emergency of public policies, in general aspects, in order to connect these points with the inequality, capitalism itself and immersed in national identity. From this understanding, we analyzed the impact of redistribution of income held in Brazil, mainly through the results of the Bolsa Família program, evaluating progress, the difficulties and the challenges presented. We conclude that, despite advances in social policy and the positive results in the lives of Brazilians, what is being practiced is not yet enough to modify the existing inequality in our country. Therefore, the Basic Income of Citizenship, based on your proposal of unconditional and universal income and on the results presented in the experiments, presents itself as a potential alternative to progress social justice brazilian.

Keywords: Public policy; Basic income of citizenship; Three-dimensional theory of justice; Social justice; Human rights.

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9 SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS... 08 1 A JUSTIÇA SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE: UMA ANÁLISE

DAS IDEIAS DE JUSTIÇA SOCIAL DE RAWLS, SEN E FRASER... 13 1.1 A justiça como equidade de John Rawls... 13 1.2 A abordagem das capacidades de Amartya Sen... 19 1.3 A teoria tridimensional de Nancy Fraser: a justiça social por

meio da redistribuição, reconhecimento e representação... 33

2 ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORÂNEAS NO

BRASIL... 46 2.1 A formação do Estado brasileiro... 46 2.2 O Estado de bem-estar social e a emergência das políticas

públicas no Brasil... 62 2.3 Aspectos gerais de políticas públicas no Brasil... 70 3 JUSTIÇA SOCIAL POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA

CONTEMPORANEIDADE NO BRASIL... 85 3.1 Impactos das políticas públicas no Brasil: uma análise do

atual contexto... 85 3.2 Políticas públicas de redistribuição de renda: avanços,

dificuldades e desafios... 94 3.3 A renda básica de cidadania enquanto política pública de

aproximação ao ideário de justiça social... 104 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 116 REFERÊNCIAS... 122

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10 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As teorias políticas contemporâneas focam seus estudos nas políticas públicas visando compreender as dimensões dos esforços na promoção da justiça social e dos direitos humanos. É um tema transversal na avaliação da eficácia de atuação o Estado Democrático de Direito e de seus governos. No entanto, a justiça social como um ideal a ser perseguido, nos desafia a buscar como ela vem sendo compreendida e quais os esforços reais que vão em sua direção.

No Brasil, este ideal está expresso na Constituição Federal de 1988, em seu preâmbulo, no art. 3º, e mais precisamente nos arts. 170 e 193 como um valor supremo para o objetivo de se construir e ordenar a sociedade. Apesar da previsão legal, a justiça social vem se mostrando um ideal de difícil concretização, sobretudo, se considerarmos a histórica e permanente desigualdade social brasileira, razão pela qual se faz necessário este estudo, destacando o viés das políticas públicas como tentativas de diminuição das injustiças.

Assim, considerando que as políticas públicas existentes são uma forma de intervenção do Estado na realidade social para a resolução de seus principais problemas e que a justiça social tem como base a qualidade de vida de seus cidadãos, cabe questionar se o que vem sendo praticado no Brasil contemporâneo, em termos de politicas públicas de renda básica, aproxima-se do ideário de justiça social a ser promovida pelos governos?

É dessa pergunta central que advêm a necessidade de se compreender mais profundamente o significado de justiça social na contemporaneidade e como as práticas de Estado criam ações específicas para promovê-las. Há muitos discursos sobre as políticas públicas engendradas, mas nos resta apontar em que direção elas vão, segundo os analistas que avaliam sobre a dimensão de justiça social ali presente. Diante da diversidade de estudos que avaliam as políticas públicas brasileiras atuais e que indicam momentos evidentes de melhoramento da qualidade de vida de muitos cidadãos, sem, contudo, modificar a realidade estrutural da desigualdade social, evidencia-se que faltam ações governamentais e da sociedade civil que sejam capazes de projetar a justiça social de forma mais ampla e perene, contemplando questões essenciais e substantivas das vivências sociais. Portanto, a hipótese é a de que a renda básica seria a política pública eficaz na promoção da justiça social,

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11 promovendo aspectos de renda digna, reconhecimento e representação política dos cidadãos.

Buscamos aqui construir uma base teórica atualizada sobre a justiça social pesquisando a estratégia do Estado contemporâneo na elaboração de políticas públicas de distribuição de renda, estudando os documentos e as pesquisas que avaliam as políticas públicas no Brasil contemporâneo e, por fim, analisando os distanciamentos e as aproximações entre o ideário de justiça social e os efeitos das políticas públicas.

A justificativa científica liga-se a necessidade de estudo, nas Ciências Sociais Aplicadas, das condições de vida dos indivíduos, suas lutas por justiça social e o efeito destas na organização do poder. O Direito, de forma especial, dedica-se a compreender a legitimidade, a legalidade e o justo nas relações sociais que podem ser efeitos de agências e atores. Ou seja, as práticas de Estado, para promoverem a justiça social, precisam sempre ser estudadas de modo que se compreenda os espaços juridicamente qualificados que amparam a promoção da justiça social. Pesquisar as políticas públicas, portanto, é importante para o Direito porque permite estudar e avaliar formas de se reduzir a desigualdade social e a discriminação, bem como promover a cidadania e os direitos humanos.

Neste aspecto, a pesquisa também se justifica em suas dimensões práticas políticas, pois este estudo pode colaborar indicando orientações para que as políticas públicas sejam mais efetivas em suas táticas e estratégias de promoção da justiça social. O Brasil é um dos países que possui lei prevendo uma renda básica e universal, em que pese ainda não tenha sido regulamentada, bem como possui iniciativa de políticas públicas, mas carece de estudos mais profundos que apontem para seus limites e possibilidades na prática.

Uma justificativa mais acadêmica é a de que, para a UNIJUÍ, universidade na qual curso o Mestrado em Direitos Humanos, este estudo pretende contribuir para afirmar e ampliar a pesquisa da linha Fundamentação e Concretização dos Direitos Humanos. A reflexão feita neste estudo está diretamente ligada a elaboração de uma dissertação de mestrado, de forma a aprofundar a pesquisa do eixo em questão, abordando como é possível concretizar os direitos humanos, assegurando a dignidade da pessoa humana, pela redistribuição da renda, pelo reconhecimento das identidades e pela promoção da representação política do cidadão. É, pois, com o

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12 intuito de contribuir, senão para ver concretizada a justiça social no Brasil, ao menos para fomentar o debate e enriquecer a reflexão sobre o tema.

A metodologia utilizada na presente pesquisa é bibliográfica. Como pesquisa exploratória de abordagem hipotético-dedutiva, foram observados os seguintes procedimentos: (a) seleção de bibliografia e documentos pertinentes à temática, em meios físicos e eletrônicos, que sejam capazes de construir um referencial teórico coerente ao tema em estudo; (b) leitura, fichamento e sintetização compreensiva do material selecionado; (c) reflexão crítica sobre o material selecionado e (d) a escrita como exposição dos conhecimentos e resultados obtidos.

Os materiais foram selecionados de acordo com três momentos específicos da pesquisa, quais sejam: (1) estudar a teoria de justiça social, sendo abordadas as teorias de justiça social de John Rawls, Amartya Sen e Nancy Fraser; (2) tratar de políticas públicas e Estado Contemporâneo no Brasil, especificamente considerando as políticas públicas brasileiras a partir do ano 2000; (3) abordar as avaliações de políticas públicas brasileiras contemporâneas, particularmente o Programa Bolsa Família e, por fim, discutir os impactos das políticas públicas diante do ideário de justiça social e da realidade de desigualdade brasileira.

Os referenciais teóricos foram escolhidos de acordo com a razão humanística da posição histórica que assumimos, partindo do pressuposto de que a verdadeira justiça só é possível com a igualdade plena de todos os indivíduos ordenada econômica, política e culturalmente na sociedade. Sabemos, no entanto, que isso significa a justiça apenas como uma questão de convenção, já que na dimensão real da organização jurídica da sociedade fica muito difícil argumentar que todos tenham a mesma parcela de tudo, inclusive dos castigos e prêmios. E mesmo que se assim o fosse, questiona-se sobre qual o critério geral a ser adotado para medir a igualdade como justiça? Não seria possível fazê-lo por sorteio, já que mesmo os igualitários poderiam não aceitar que assim fosse feito. Até mesmo os fundamentos racionais deste critério entram no beneficio da dúvida: são fundamentos filosóficos ou são bases de intuições pessoais? Pode-se pensar a justiça igualitária a partir das escolhas que as pessoas fazem diante da vida que querem levar? A matemática fará um cálculo e dividirá de forma a chegar a um mínimo (ou máximo) comum das necessidades de recursos que todos deveriam ter? Quem decidirá que certas necessidades são

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13 espúrias e devem sair do cálculo? Se não tivermos uma justiça social todos estariam dispostos a arcar com os custos pessoais para obtê-las?

De qualquer forma, para termos uma opinião clara sobre justiça é preciso compartilhar a que temos a fim de dialogar. E isto foi o que tentamos fazer aqui. Em uma sociedade capitalista, que não respeita minimamente os direitos de seus cidadãos, a distribuição dos recursos públicos pode ficar concentrada nas mãos de quem maneja o poder do Estado. Por trás disto estão os interesses e os direitos do mercado. O Estado é intervencionista na cidadania e no mercado, mas concentra as suas forças mais para o mercado. Disso emerge a injustiça. No entanto, a ciência política nos mostra que a política não precisa ser uma luta egoísta. Nesse viés, as pessoas precisam trazer as discordâncias existentes para uma arena de compreensão dos significados e de suas circunstâncias práticas.

Diante disso, ainda que a medição da justiça ou injustiça não tenha o significado vinculado unicamente ao direito e às leis, espera-se que a potência que cria a ordem jurídica possa atentar para a justa razão que espelha a vida digna dos cidadãos.

Assim, compreende-se que justiça, para nós, é aquela que logre êxito na promoção da igualdade de oportunidades, a partir do ponto de partida e que por ser menos institucionalizada e mais próxima da realidade dos cidadãos, promove as capacidades de acordo com as três dimensões da vida humana, quais sejam, de renda digna, de reconhecimento de participação política.

Políticas públicas são as formas de intervenção do Estado na realidade social. São o conjunto de ações, programas e planos do Estado que envolvem vários atores em resposta às demandas advindas da sociedade e com o objetivo de modificar a realidade social de acordo com o interesse coletivo.

As fontes teóricas que auxiliarão na reflexão mais profunda destas questões foram assim delimitadas e expostas: O primeiro capítulo apresentará três concepções de justiça, dos autores John Rawls, Amartya Sen e Nancy Fraser, respectivamente, sendo feita uma análise comparativa das três ideias de justiça para, em um segundo momento, utilizá-la como base para a análise das políticas públicas desenvolvidas no Brasil, na contemporaneidade.

Para o desenvolvimento da análise das políticas públicas contemporâneas brasileiras, no segundo capítulo, serão utilizados autores brasileiros como Jessé Souza, Milton Santos, Enio Waldir Silva e Ana Paula Ornelas Mauriel, dentre outros,

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14 que, de certa forma, possuem estudos sobre os dilemas do Estado Contemporâneo diante das lutas por justiça social. Nesse momento, serão abordadas a formação do Estado brasileiro, a emergência das políticas públicas e os aspectos gerais que marcam suas trajetórias atuais.

Por fim, e a partir do material exposto nos capítulos primeiro e segundo, o terceiro capítulo tratará mais especificamente da concretização da justiça social por meio de políticas públicas de renda básica na contemporaneidade no Brasil. Para tanto, serão estudadas as políticas públicas a partir do discurso presente na sociedade e nos documentos e avaliações dos programas e projetos implementados, em especial a partir dos resultados apresentados pelo programa Bolsa Família, visando observar as aproximações e as dificuldades existentes na promoção da justiça social. Ainda, a renda básica de cidadania é abordada enquanto política pública de aproximação ao ideário da justiça social, na medida em que, pela sua característica de universalidade e incondicionalidade, é capaz de promover a igualdade de oportunidades do ponto de partida e concretizar a justiça social tendo como critério as esferas de renda, reconhecimento e paridade participativa. Nesse sentido, a retomada de experiências realizadas em vários países e seus resultados ajuda a exemplificar o potencial da renda básica de cidadania na promoção da justiça social contemporaneamente.

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15 1 A JUSTIÇA SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE: UMA ANÁLISE DAS IDEIAS DE JUSTIÇA SOCIAL DE RAWLS, SEN E FRASER

John Rawls compõe o pensamento liberal contemporâneo como uma das mais importantes contribuições para a filosofia política, ao apresentar, em seu livro A

Theory of Justice ou, Uma Teoria da Justiça, publicado em 1971, uma ideia de justiça

baseada na justiça como equidade.

Após o surgimento da teoria de justiça de Rawls, o economista indiano Amartya Sen, no livro A Ideia de Justiça, publicado em 2009, apresenta uma crítica ao pensamento desenvolvido por Rawls, fazendo, a seu turno, uma abordagem das capacidades.

Por fim, a ideia de justiça apresentada por Nancy Fraser divide a teoria da justiça em uma abordagem tridimensional, passando, por sua vez, a abordar aspectos culturais e de reconhecimento a partir da paridade de participação.

1.1 A justiça como equidade de John Rawls

John Rawls representa o pensamento liberal e o paradigma da justiça social por meio da distribuição. A sua concepção de justiça é baseada na teoria do contrato social de Locke, Rousseau e Kant.

A teoria rawlsiana se apresenta como uma contraposição à concepção utilitarista predominante na década de 70, concepção que busca a maior felicidade do maior número possível de pessoas, já que, para a teoria utilitarista, o bem independe da justiça. Em contraposição, a teoria liberal de Rawls apresenta um conceito de justiça que independe do conceito de bem, uma justiça como virtude (OUTEIRO, OLIVEIRA E NASCIMENTO, 2016).

Em linhas gerais, Rawls apresenta a teoria da “justiça como equidade” a partir de princípios de justiça, princípios estes que são objeto de um consenso original realizado por indivíduos livres, racionais e que estão em uma posição de igualdade para serem aplicados na estrutura básica da sociedade (RAWLS, 1997).

A estrutura básica da sociedade, por sua vez, é o objeto primário da justiça social, tendo em vista que é essa a estrutura que apresenta as mais diversas posições sociais considerando as condições políticas, econômicas e sociais existentes. Ainda,

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16 nessa estrutura básica da sociedade determinados pontos de partida são favorecidos pelas instituições sociais, razão pela qual é de fundamental importância que se atribuam direitos e deveres fundamentais para concretização da justiça social e redução das desigualdades que são inevitáveis em qualquer estrutura societária (RAWLS, 1997).

Nesse ponto, fica evidente a preocupação do teórico com a igualdade a partir do ponto de partida, justificando assim a proposta de justiça social estabelecida em um consenso obtida em uma posição inicial e a partir do véu da ignorância, conforme será explicado adiante.

Dessa forma, o autor considera uma sociedade justa a partir do indivíduo como um ser moral, capaz de realizar a justiça social por meio dos princípios escolhidos a partir de um consenso, o que possibilitaria atribuir direitos e deveres, bem como definir a distribuição dos benefícios e encargos, garantindo, assim, que os interesses individuais não se sobressaiam ao bem geral (RAWLS, 1997).

Para tanto, Rawls (1997, p. 17) divide a sua teoria em duas partes: “(1) uma interpretação de uma situação inicial e do problema da escolha colocada naquele momento, e (2) um conjunto de princípios que, segundo se procura demonstrar, seriam aceitos consensualmente”.

Em relação a primeira parte, a teoria rawlsiana destaca a “posição original” e o “véu da ignorância”. Nesse sentido, a posição original é um status quo onde qualquer consenso será justo, as pessoas são dignas e morais e o resultado não será maculado por contingências arbitrárias ou forças sociais. O véu da ignorância, por sua vez, é uma forma de deixar os indivíduos em situação de igualdade social e economicamente, de forma que, o fato de não saberem quem faz parte do grupo permita que seja tomada a escolha mais prudente, não prejudicando ou privilegiando alguém (RAWLS, 1997).

Nesse quadro, Outeiro, Oliveira e Nascimento (2016, p. 55) destacam o caráter procedimental da teoria rawlsiana:

A justiça como equidade é uma justiça procedimental pura, em que não há um critério independente do justo, mas há um procedimento adequado para chegar a um resultado justo, que é a posição original sob o véu da ignorância. Em outras palavras, trata-se de um método de determinar o que é justo de forma objetiva.

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17 Um aspecto importante da teoria rawlsiana ressaltado por Kymlicka (2006, p. 111-117) é que a concepção de igualdade encontrada na teoria rawlsiana, de prudência na escolha de princípios necessários ao equilíbrio da liberdade econômica, responsabilidade individual e circunstâncias sociais e naturais que não foram escolhidas “está na base da defesa da liberdade de mercado e da sua limitação. E é a partir de uma posição de prudência que os princípios de justiça são escolhidos”, informação importante para a análise comparativa desta teoria com as demais que serão apresentadas neste trabalho.

Nessa toada, Rawls (1997) afirma que são dois os princípios de justiça que promoveriam o consenso na posição original, um relacionado às liberdades básicas e outro às desigualdades sociais e econômicas, limitados por duas regras de prioridade, vejamos:

Primeiro princípio: Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais

abrangente sistema total de liberdades básicas que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Segundo

princípio: As desigualdades econômicas e sociais devem ser

ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades. Primeira regra de prioridade (a

prioridade da liberdade): os princípios da justiça devem ser

classificados em ordem lexical e portanto as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade. Existem dois casos: (a) uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos; (b) uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor. Segunda regra de

prioridade (a prioridade da justiça sobre a eficiência e sobre o bem-estar): o segundo princípio da justiça é lexicalmente anterior ao

princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença. Existem dois casos: (a) uma desigualdade de oportunidades deve aumentar as oportunidades daqueles que têm um oportunidade menor; (b) uma taxa excessiva de poupança deve, avaliados todos os fatores, tudo é somado, mitigar as dificuldades dos que carregam esse fardo” (RALWS, 1997, p. 333-4, grifo nossos).

Assim como observado por Outeiro, Oliveira e Nascimento (2016, p. 58), percebe-se que na teoria rawlsiana há uma predominância da liberdade sobre a igualdade. Nesse sentido, “todos têm um direito igual de liberdade e todos devem ter igualdade equitativa de oportunidades”, mas algumas liberdades, como a liberdade de

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18 pensamento não podem ser sacrificadas em razão de algum benefício socioeconômico.

Ademais, Rawls (1997) esclarece que os dois principais princípios de justiça social devem ser interpretados a partir de outros princípios, como o princípio da diferença, uma vez que, segundo o qual, deve-se distribuir a riqueza de forma igual na sociedade, excetuando-se no caso de a desigualdade, econômica ou social, ser mais benéfica aos menos favorecidos. Ainda, deve-se observar o princípio da igualdade equitativa de oportunidades, que prevê que deverão existir postos e posições que sejam acessíveis a todos considerando uma justa igualdade de oportunidades.

Dessa forma, livre e em igualdade de oportunidades no ponto de partida, os indivíduos poderão traçar objetivos e serão responsáveis pelas suas escolhas. Para tanto,

A concepção de justiça rawlsiana pressupõe a distribuição dos bens sociais primários como condição sine qua non para que uma pessoa possa realizar seu projeto de vida. Por isso, a interpretação destes bens como direitos fundamentais (civis, políticos, sociais e difusos) ajuda a lançar luz sobre o significado de dignidade humana: é o mínimo que uma pessoa faz jus para viver a vida que deseja, com dignidade (OUTEIRO, OLIVEIRA E NASCIMENTO, 2016, p. 60).

No entanto, Linhares e Santos (2014) atentam para o fato de que, para Rawls, “uma divisão não igualitária se justifica quando aquele que desejar uma parcela maior nos recursos materiais produzir um bem maior para as pessoas da comunidade da qual participa” e, portanto, de forma explicativa, estaria autorizado a ganhar mais do que a parcela mínima de bens, tendo em vista que seu trabalho melhora de forma substancial a vida dos demais, atendendo, assim, às disposições do princípio da diferença.

Outro elemento importante para a teoria de Rawls são as instituições. Para o autor, o estabelecimento de instituições básicas, na estrutura básica da sociedade, pelo governo, é condição essencial para a distribuição justa dos bens sociais e igualdade de oportunidades. Nessa linha, Rawls (1997, p. 303) dispõe que:

O principal problema da justiça distributiva é a escolha de um sistema social. Os princípios de justiça se aplicam à estrutura básica e regulam o modo como suas mais importantes instituições se organizam

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19 formando um único sistema. (...) O sistema social deve ser estruturado de modo que a distribuição resultante seja justa, independentemente do que venha a acontecer. Para se atingir esse objetivo, é necessária situar o processo econômico e social dentro de um contexto de instituições políticas e jurídicas adequadas. Sem uma organização apropriada dessas instituições básicas, o resultado do processo distributivo não será justo. Faltará a equidade do contexto.

Mas que instituições seriam essas? Esclarece o autor, portanto, que pela sua perspectiva, “a estrutura básica é regulada por uma constituição justa que assegura as liberdades de cidadania igual”. Ainda, “a liberdade de consciência e de pensamento são pressupostas”, bem como o “valor equitativo da liberdade política é assegurado”. No que diz respeito ao processo político, este é conduzido “como um procedimento justo para a escolha do tipo de governo e para a elaboração de uma legislação justa”. Ademais, o autor supõe que haja uma “igualdade de oportunidades equitativa”, o que significa que “além de manter as formas habituais de despesas sociais básicas, o governo tenta assegurar oportunidades iguais de educação e cultura”. Mais, o governo “reforça e assegura a igualdade de oportunidades nas atividades econômicas e na livre escolha do trabalho”, o que é possível a partir da “fiscalização de empresas e associações privadas e pela prevenção do estabelecimento de medidas monopolizantes e de barreira que dificultem o acesso às posições mais procuradas”. Por fim, “o governo garante um mínimo social, seja através de um salário-família e de subvenções especiais em casos de doença e desemprego”, ou por meio de um “suplemento gradual de renda (o chamado imposto de renda negativo). Para estabelecer essas instituições básicas o governo se divide em quatro setores” (RAWLS, 1997, p. 303-4, grifo nosso).

No caso do Brasil, considerando a nossa Constituição Federal, promulgada em 1988 e considerada uma das mais avançadas do mundo no que concerne a previsão de direitos e garantias fundamentais para uma sociedade mais justa e igualitária, bem como levando em conta a existência de processo político democrático pelo qual escolhemos nossos representantes, por que ainda somos um dos países mais desiguais do mundo? Nesse sentido, a teoria de Rawls sofre críticas, haja vista que, apesar da grande contribuição para a teoria da justiça, o teórico baseia a justiça social em pessoas morais e instituições justas, uma visão de certo modo utópica, já que, na prática, verifica-se que muitas vezes as pessoas e as instituições apresentam falhas

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20 morais, sendo injustas, bem como há que se considerar a grande influência da lógica de mercado econômico capitalista.

Nesses termos é a crítica feita por Amartya Sen à teoria de John Rawls, asseverando que, na teoria rawlsiana, os “princípios de justiça” são definidos com base em “instituições perfeitamente justas”, apresentando, assim, um “institucionalismo transcendental”, perspectiva que se distancia da “comparação focada em realizações”, sendo esta última a perspectiva teórica de Sen, que será apresentada a seguir (SEN, 2009, p. 28-9).

Para o economista indiano, portanto, a linha de argumentação racional iniciada por Hobbes, no século XVII, seguida por Rousseau, Locke e Kant e adotada por Rawls, chamada de “institucionalismo transcendental” tem duas características distintas:

Primeiro, concentra a atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça. Ela apenas busca identificar características sociais que não podem ser transcendidas com relação à justiça; logo, seu foco não é a comparação entre sociedades viáveis, todas podendo não alcançar os ideais de perfeição. A investigação visa identificar a natureza do “justo”, em vez de encontrar algum critério para afirmar que uma alternativa é “menos injusta” do que outra. Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais que, em última análise, poderiam surgir. É claro que a natureza da sociedade que resultaria de determinado conjunto de instituições depende necessariamente também de características não institucionais, tais como os comportamentos reais das pessoas e suas interações sociais. No detalhamento das prováveis consequências das instituições, se e somente se uma teoria institucionalista transcendental as comentar, são feitas algumas pressuposições comportamentais que ajudam na operação das instituições escolhidas. (SEN, 2009, p. 26-7).

Nesse sentido, Sen (2009, p. 94) critica a abordagem transcendental da justiça, afirmando que não é possível, pela via transcendental, dar respostas sobre como promover justiça e comparar propostas de sociedade mais justa, sem “propor utopicamente dar um salto para imaginar um mundo perfeitamente justo”. Ao mesmo tempo, Sen (2009) não descarta totalmente como uma abordagem errada, conforme se verá adiante.

Por fim, antes de passarmos à análise da teoria de justiça de Amartya Sen, cumpre salientar que, ainda que alvo de críticas bem fundamentadas, a teoria

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21 rawlsiana foi de grande sucesso e impacto no Ocidente, como ressaltam Outeiro, Oliveira e Nascimento (2016), haja vista que a maioria dos princípios que estruturam a sua teoria da justiça podem ser aplicados nas sociedades democráticas que aqui existem.

1.2 A abordagem das capacidades de Amartya Sen

A perspectiva de justiça do indiano Amartya Sen, Nobel de Economia que contribuiu para a formulação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), resta clara através da análise do seu livro A ideia de justiça (2009), conjuntamente com

Desenvolvimento como liberdade (2004), sendo o seu objetivo a melhoria da justiça e

a remoção da injustiça, sem, contudo, ter a pretensão de oferecer uma solução enquanto justiça perfeita.

A teoria seniana faz uma análise das capacidades, uma vez que, segundo a sua concepção de justiça social, a redução das desigualdades se dá através das capacidades das pessoas, que podem variar, considerando a heterogeneidade existente entre os seres humanos e de acordo com as diferentes liberdades que podem existir. Nesse norte, uma mesma renda, para pessoas diferentes, com capacidades e liberdades diferentes, pode não significar a redução das desigualdades ou a promoção do bem-estar.

A busca da justiça pela abordagem das capacidades reflete a possibilidade de alcançar bem-estar e aumentar a oportunidade de se viver com dignidade. Isso porque, conforme é destacado pelo autor, aquilo que é realizado positivamente pelas pessoas “é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas” (SEN, 2004, p. 19).

Amartya Sen foi aluno de John Rawls e fez uma forte crítica à teoria rawlsiana, podendo ser ressaltados três pontos, vejamos. O primeiro ponto diz que uma teoria de justiça deve ser a base para uma argumentação racional em um domínio prático, em vez de, apenas, caracterizar sociedades perfeitamente justas. O segundo ponto, por sua vez, atenta para o perigo de uma “tolerância descomprometida”, uma vez que deve haver o debate da justiça em sociedades diferentes, de tradições diversas, ao revés de aceitar uma solução perigosa como “você tem razão na sua

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22 comunidade, e eu, na minha”. Por fim, o terceiro ponto que o autor observa é em relação ao institucionalismo, já que, para a sua teoria, muitas vezes uma injustiça remediável pode estar conectada a aspectos comportamentais das pessoas e não a defeitos institucionais, nesse sentido, critica a predominância de algumas teorias em buscar estabelecer “instituições justas”, atribuindo, dessa forma, papel secundário e acessório aos traços comportamentais (SEN, 2009, grifo nosso).

Portanto, pode-se dizer que as teorias seniana e rawlsiana se diferenciam de duas formas: enquanto uma é comparativa, a outra é transcendental; ainda, a primeira busca observar as realizações possíveis em sociedades reais, enquanto a segunda foca nas instituições e nas regras de uma sociedade idealizada.

É importante mencionar que a abordagem da “comparação focada em realizações”, foi feita por diversos teóricos além de Sen, dentre eles, Adam Smith, Marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, Karl Max e John Stuart Mill, e se contrapõem ao “institucionalismo transcendental” de Rawls, ainda que o institucionalismo transcendental seja a abordagem predominante atualmente na filosofia política, sendo a exposição mais influente e significativa a da obra de John Rawls, adotada também por outros autores, dentre eles, Ronald Dworkin, David Gautier e Robert Nozick (SEN, 2009).

Para ilustrar a complexidade da justiça, Sen apresenta o exemplo das “três crianças e uma flauta”, onde é preciso decidir qual das três crianças ficará com uma flauta pela qual estão brigando:

Anne reivindica a flauta porque ela é a única que sabe tocá-la (os outros não negam esse fato) e porque seria bastante injusto negar a flauta à única pessoa que realmente sabe tocá-la. Se isso fosse tudo o que você soubesse, teria uma forte razão para dar a flauta à primeira criança. Em um cenário alternativo, é Bob que se manifesta e defende que a flauta seja dele porque, entre os três, é o único tão pobre que não possui brinquedo algum. A flauta lhe permitiria brincar (os outros dois admitem que são mais ricos e dispõem de uma boa quantidade de atrativas comodidades). Se você tivesse escutado apenas Bob, teria uma forte razão para dar a ele a flauta. Em outro cenário alternativo, é Carla quem observa que ela, usando as próprias mãos, trabalhou zelosamente durante muitos meses para fazer a flauta (os outros confirmam esse fato) e só quando terminou o trabalho, “só então”, ela reclama, “esses expropriadores surgiram para tentar me tirar a flauta”. Se você só tivesse escutado a declaração de Carla, estaria inclinado a dar a ela a flauta em reconhecimento a sua compreensível pretensão a algo que ela mesma fez (SEN, 2009, p. 32-3).

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23 A partir do exemplo apresentado, o autor afirma que é possível decidir a questão de diversas formas, seja através da teoria igualitarista econômica, que avalia as disparidades entre meios econômicos e entregaria a flauta à Bob, seja pela perspectiva do libertário, que aprovaria a entrega da flauta à Carla, que a produziu, ou pela vertente hedonista utilitarista, que poderia sopesar que Anne fluiria o maior prazer, por ser a única a saber tocá-la, mas também poderia considerar que Bob, ao recebe-la, teria um ganho muito maior, em felicidade, soluções todas com sérios argumentos a seu favor (SEN, 2009).

Outro ponto de crítica do autor em relação a abordagem transcendental rawlsiana é a redundância existente na necessidade de se ter uma teoria que escolha políticas, estratégias e instituições de forma racional, ao mesmo tempo em que busca identificar arranjos sociais ideais ou justos.

No entanto, apesar da identificação desses pontos negativos, Sen (2009) admite a possibilidade de uma “teoria conglomerada” que avalie a justiça a partir das duas formas: (1) comparação entre pares de alternativas; e, (2) identificação transcendental.

Nesse sentido, Outeiro, Oliveira e Nascimento (2016, p. 62) afirmam que a teoria seniana tem o condão de complementar a teoria de justiça rawlsiana, uma vez que a primeira não é tão abrangente quanto a segunda, haja vista que, na opinião dos autores, Sen restringe sua abordagem à “distribuição do ônus e bônus dos recursos escassos da sociedade e do desenvolvimento de políticas estatais, podendo ser chamada de igualdade distributiva”, sem tratar da “formação de uma sociedade com princípios de justiça e chegar a tratar de assuntos como a elaboração da Constituição Federal e de sistemas de poupança e de tributação progressiva” como acontece na teoria de Rawls.

Posto isso, passa-se à análise mais pormenorizada da abordagem das capacidades. Sen (2009, p. 35, grifo nosso) defende a teoria de justiça baseada na realização ao revés de limitar-se à escolha de instituições ou identificação de arranjos sociais ideias, a partir do forte argumento de que “a justiça não pode ser indiferente às vidas que as pessoas podem viver de fato”.

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24 Nesse sentido, o teórico deixa claro que, para a sua perspectiva de justiça social, a prioridade é dada às vidas reais, ficando em segundo plano as regras e as instituições que, apesar de importantes, não podem ser consideradas em detrimento das vidas que as pessoas podem ou não viver, vejamos:

A importância das vidas, experiências e realizações humanas não pode ser substituída por informações sobre instituições que existem e pelas regras que operam. Instituições e regras são, naturalmente, muito importantes para influenciar o que acontece, além de serem parte integrante do mundo real, mas as realizações de fato vão muito além do quadro organizacional e incluem as vidas que as pessoas conseguem – ou não – viver (SEN, 2009, p. 35).

Para uma melhor compreensão do contraste existente entre as duas abordagens de justiça até agora abordadas, Sen (2009, p. 36-7) apresenta uma distinção existente na literatura sânscrita para as expressões niti e nyaya que significam justiça. A primeira expressão, niti, era mais utilizada em relação a “adequação de um arranjo institucional e a correção de um comportamento”, enquanto

nyaya “representa um conceito abrangente de justiça realizada, ligada ao mundo que

de fato emerge, e não apenas às instituições ou regras”.

A partir dessa diferenciação, o autor explica que o termo matsyanyaya ou “a justiça no mundo dos peixes” significa que um peixe grande pode livremente devorar um pequeno. Para o teórico, evitar essa situação é um dos objetivos da justiça. Nessa linha, a realização da justiça de acordo com nyaya não se trata de julgar apenas as instituições e as regras, de forma que, por mais justas que as organizações possam ser, se ainda tiver um peixe grande devorando um pequeno, ainda haverá violação a justiça humana. Daí a argumentação de Sen a favor da perspectiva de justiça focada em realizações, uma vez que corresponde a uma forma de prevenir injustiças existentes no mundo a partir da realidade vivida nas sociedades, em vez de apenas buscar o perfeitamente justo a partir de instituições.

Portanto, ainda que o papel das instituições seja reconhecido por Sen enquanto elemento central de qualquer teoria da justiça, as instituições não devem ser tratadas como manifestações da justiça, mas sim como instituições que promovam justiça. Da mesma forma, a busca pela justiça não deve se limitar a escolha das instituições, é preciso que os resultados sejam observados,

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25 Na perspectiva inclusiva de nyaya, nunca podemos simplesmente entregar a tarefa da justiça a alguma niti das instituições e regras sociais que vemos como precisamente corretas, e depois aí descansar, libertando-nos de posteriores avaliações sociais (para não mencionar coisas como “estar livre da moralidade”, para usar a expressão vivaz de David Gauthier). Perguntar como as coisas estão indo e se elas podem ser melhoradas é um elemento constante e imprescindível da busca da justiça (SEN, 2009, p. 87).

Sen (2009, p. 68-9, 72-3) fortalece a sua crítica à teoria rawlsiana ao afirmar ser difícil imaginar as pessoas desempenhando seu papel produtivo tão-somente a partir dos princípios base de justiça escolhidos na posição original, sem qualquer regime de incentivos. Nessa linha, assevera que não há “um salto imediato” da aceitação de princípios de justiça, mas sim a busca da justiça a partir da “formação gradual de padrões comportamentais”.

A abordagem transcendental como via única de análise da justiça representaria, para Sen (2009), um salto utópico para um mundo perfeitamente justo, não sendo uma via suficiente, tampouco necessária, para se obter juízos comparativos de justiça.

Outra observação feita por Sen (2009) é que, a teoria rawlsiana limita a busca da justiça para os membros de uma determinada comunidade política, haja vista a concepção contratualista como forma de escolher os princípios na posição original. Nesse viés, considerando o crescente fluxo internacional e ausência de barreiras estatais, se tornaria muito difícil a concepção de um governo mundial capaz de administrar instituições justas para uma sociedade cada vez mais global.

Para Marin e Quintana (2012), o ponto central da perspectiva de justiça seniana é a participação pública e crítica no processo de escolha social nas demandas de justiça. Assim, baseado na visão do espectador imparcial de Adam Smith, Sen defende que o reconhecimento de países e culturas diferentes, mesmo que haja discordância em relação aos seus argumentos, resultará em um exercício de raciocínio sobre nosso próprio entendimento a partir das experiências estabelecidas em lugares diferentes dos nossos.

Nesse sentido, considerando que na teoria rawlsiana os princípios de justiça são escolhidos em uma “fase constitucional” e são os mesmos para todos seria possível que eles fossem aplicados em instituições de sociedades diferentes, com padrões de comportamento que variam de um lugar para outro?

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26 Diante desse questionamento, questão fundamental para a avaliação e compreensão da justiça social, na teoria de Sen, é o lugar da imparcialidade. Nessa linha, o autor distingue duas maneiras de se invocar a imparcialidade, quais sejam, a aberta e a fechada. Assim, para Sen (2009, p. 114), a imparcialidade fechada consiste no “processo de fazer juízos imparciais que invoca apenas os membros de dada sociedade ou nação, para quem os juízos estão sendo feitos”. Por outro lado, na imparcialidade aberta o “processo de fazer avaliações imparciais pode (e, em alguns casos, deve) invocar juízos, entre outros, de fora do grupo focal, para evitar o viés paroquial. (...) As visões imparciais podem vir de longe ou de dentro de uma comunidade ou nação ou cultura”.

Além disso, Sen (2009, p. 117-9) critica a “posição original” e o “véu da ignorância” de Rawls, uma vez que avalia que seria melhor o exercício da imparcialidade em sua forma aberta, a partir de um esforço pessoal para imaginar nossos sentimentos e motivações a partir dos olhos das outras pessoas (na expressão de Smith “olhos do resto da humanidade”), em vez de se fazer uma imparcialidade fechada, aproximada de um “blecaute de identidade” dentro dos limites de um determinado grupo, o que se aproximaria de uma justiça construída paroquialmente.

A partir desse raciocínio, ao se identificar com pessoas ou grupos diferentes, as pessoas estabelecem várias identidades sociais, o que representa uma forma de superar

(i) as dificuldades com a visão de indivíduos entendidos como ilhas autointeressadas e (ii) a concepção política de uma pessoa como cidadã de uma nação que pode afastar todas as concepções e consequências comportamentais de outras formas de associação de grupo (MARIN e QUINTANA, 2012, s.p).

Nessa linha, Sen (2009) argumenta que não é possível limitarmos nossa imparcialidade dentro das fronteiras de um Estado. Ademais, ressalta que nossa(s) identidade(s) é frequentemente concebida a partir das inclusões e exclusões de através das fronteiras físicas, não havendo como negar as relações internacionais, considerando que as ações de um país influenciam na vida de outros lugares. Por essa razão,

a avaliação da justiça exige um compromisso com os “olhos da humanidade”; em primeiro lugar, porque podemos nos identificar de

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27 forma variada com as pessoas de outros lugares e não apenas com nossa comunidade local; em segundo, porque nossas escolhas e ações podem afetar as vidas dos outros, estejam eles distantes, estejam próximos; e terceiro, porque o que eles veem desde suas respectivas perspectivas históricas e geográficas pode nos ajudar a superara nosso próprio paroquialismo (SEN, 2009, p. 120).

Ademais, é preciso pensar a igualdade e a diferença, uma vez que, por mais que se busque a igualdade de renda em uma sociedade, redistribuindo recursos até que todos estejam no mesmo patamar, ainda assim haverá desigualdade, uma vez que pessoas diferentes usarão os recursos de formas diversas. Tal observação não se dá apenas no exemplo da renda, sendo que há vários aspectos a serem considerados, como diferenças físicas e sociais que podem contribuir para situações de privação. Vale salientar, portanto, que, “os recursos ou bens sociais não são sinônimos de liberdade desfrutada, mas são meios para que uma pessoa atinja determinado fim” (OUTEIRO, OLIVEIRA e NASCIMENTO, 2016, p. 66).

A teoria da escolha social é a estrutura argumentativa escolhida por Sen (2009, p. 101-5) para a sua teoria de justiça, consistindo em focalizar as comparações, reconhecer a pluralidade de princípios, facilitar o reexame, permitir soluções parciais, permitir a diversidade de interpretações, enfatizar a articulação e argumentação precisas e especificar o papel da argumentação pública1.

1 (1) Focalizar as comparações, e não apenas o transcendental: (...) Uma teoria da justiça deve ter algo a dizer sobre as escolhas que de fato são oferecidas, e não apenas nos manter absortos em um mundo imaginado e implausível de imbatível magnificência; (2) Reconhecer a pluralidade inescapável de princípios concorrentes: (...) Essa pluralidade inescapável ou não pode levar a uma impossibilidade, gerando um impasse, mas a necessidade de levar em conta a possibilidade de conflitos duradouros de princípios não elimináveis pode ser muito importante na teoria da justiça; (3) Permitir e facilitar o reexame: (...) os princípios gerais de decisões sociais, que inicialmente parecem plausíveis, podem se revelar bastante problemáticos, uma vez que podem de fato conflitar com outros princípios gerais que também parecem, pelo menos incialmente, plausíveis; (4) Permitir soluções parciais: A teoria da escolha social permite a possibilidade de que mesmo uma teoria completa de justiça produza ordenações incompletas de justiça; Na verdade, a incompletude em muitos casos pode ser “assertiva”, produzindo afirmações como x e y não podem ser ordenados em termos de justiça. Isso contrasta com uma incompletude que é aceita como tentativa, enquanto aguardamos – ou trabalhamos nesse sentido – a conclusão, com base em mais informações, ou em um exame mais penetrante, ou usando alguns critérios complementares. (...); (5) Permitir a diversidade de interpretações e inputs: A estrutura da teoria da escolha social, que muitas vezes assume a forma de uma exploração das ligações funcionais, guiadas por conjuntos de axiomas, entre as ordenações e prioridades individuais, por um lado, e as conclusões sociais, por outro, está aberta a interpretações alternativas. (...) Em geral, a teoria da escolha social como disciplina, está interessada em chegar a juízos globais para a escolha social baseados em uma diversidade de perspectivas e prioridades; (6) Enfatizar a articulação e a argumentação precisas: (...) Dada a natureza complexa dos valores humanos e da

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28 Tais pressupostos argumentativos são escolhidos por Sen (2009) por que é importante para o autor que se transcendam as limitações da nossa perspectiva posicional, tendo em vista que muitas vezes a perspectiva limitada daquilo que observamos se apresenta como um obstáculo a nossa compreensão.

Dessa forma, pela objetividade posicional, “diferentes pessoas podem ocupar a mesma posição e confirmar a mesma observação; e a mesma pessoa pode ocupar diferentes posições e fazer observações dissimilares”, em outras palavras, a objetividade posicional significa a “objetividade do que pode ser observado a partir de uma posição específica” (SEN, 2009, p. 140-1).

Nessa linha, o téorico esclarece que está interessado em observar as variações relativas à posição e não à pessoa, tendo em vista que

A busca de algum tipo de compreensão do mundo que seja independente da posição é fundamental para o esclarecimento ético que pode ser procurado em uma abordagem não relacional. (...) O essencial aí não é a compreensão posicional, mas algum tipo de compreensão transposicional. Assumir um “ponto de vista desde lugar nenhum” seria, obviamente, a ideia adequada nesse contexto (SEN, 2009, p. 140-1).

Feitas essas considerações, fica evidente a necessidade de ser adotada uma compreensão transposicional de forma que sejam superados pontos de vista posicionalmente limitados, evitando discriminações. O conceito de objetividade posicional também está ligado aos conceitos de ilusão objetiva e falsa consciência, de Marx. Para ilustrar isso, Sen (2009) explica que em estados socialmente atrasados há uma consciência menor dos riscos e da precariedade em que se vive. Por isso, em Estados com alta expectativa de vida ao nascer, com bons serviços de saúde e altas taxas de alfabetização, como o Estado indiano Kerala, por exemplo, a autopercepção da morbidade é mais alta do que em Estados precários, uma vez que a população tem consciência das possíveis enfermidades. Ainda, destaca o autor que a ideia de objetividade posicional é especialmente importante na compreensão da desigualdade de gênero.

argumentação social, pode ser difícil captura-los com frequência em termos axiomáticos precisos; ainda assim, a necessidade de explicitação, na medida em que possa ser alcançada, precisa ter muito mérito dialógico (...); (7) Especificar o papel da argumentação pública: (...) como problemas podem ser enfrentados e quais variações devem ser contempladas e escrutinizadas.

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29 Considerando o exposto, pode-se concluir que é necessária a modificação da forma como as pessoas veem o mundo a fim de possibilitar uma nova visão de justiça social e, especialmente, explorar uma teoria de justiça social a partir de uma argumentação pública na compreensão das exigências da justiça.

O autor defende que deve ser privilegiada a escolha racional. No entanto, questiona se as pessoas são guiadas pela razão ou pela paixão e impulso? Conclui que as pessoas podem saber o que deve ser feito de forma racional, ao mesmo tempo em que deixam de agir de tal forma, um desvio de comportamento que sugere que a racionalidade ou suas exigências sejam modificadas (SEN, 2009).

Para tanto, é preciso que saibamos quais são as exigências da escolha racional. A hipótese de mais força, nesse campo, é de que as pessoas são mais racionais quando deixam de prestar a atenção apenas no seu próprio interesse e, assim, passam a reconhecer valores mais amplos. Nesse sentido, Sen (2009, p. 161) frisa que “mesmo que cada escolha real resulta ser sempre racional”, é preciso considerar a pluralidade da escolha racional como um obstáculo a obtenção de uma previsão única da escolha real.

No entanto, apesar de a teoria da escolha racional considerar que a racionalidade da escolha ocorre com base na busca inteligente do autointeresse, não se pode excluir a possibilidade de existência de simpatia ou empatia entre as pessoas.

Sen (2009) vai além da simpatia e apresenta a diferença entre simpatia e compromisso. Nessa linha, esclarece que a simpatia se relaciona ao comportamento autointeressado, enquanto o compromisso representa o afastamento do autointeresse. Para ficar mais claro, nas palavras do autor:

A simpatia é combinável com o comportamento autointeressado, e é perfeitamente compatível mesmo com o que Adam Smith chamou de amor-próprio. Se alguém tenta remover a miséria dos outros só porque – e somente na medida em que – afeta seu próprio bem-estar, isso não significa um afastamento do amor-próprio como a única razão aceita para a ação. Mas, se alguém está comprometido, digamos, a fazer o que pode ser feito para eliminar a miséria dos outros – seja o próprio bem-estar afetado ou não, e não apenas na medida em que seu próprio bem-estar seja assim influenciado – então isso é um claro afastamento do comportamento autointeressado (SEN, 2009, p. 165).

Dessa forma, não há nada de irracional em deixar de buscar exclusivamente por objetivos próprios para atender a desejos e objetivos dos outros, em se

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30 comprometer com a justiça, a humanidade, a generosidade, uma vez que “a insistência da chamada teoria da escolha racional na definição de racionalidade simplesmente como promoção inteligente do autointeresse dá pouco valor ao uso humano da razão” (SEN, 2009, p. 170).

Nessa linha, Marin e Quintana (2012) destacam a crítica seniana à perspectiva contratualista rawlsiana, onde a cooperação é tida como uma forma de se obter a vantagem ou o bem de cada participante, sendo que quem se envolver na cooperação o faz em busca do próprio bem. Dessa forma, o comportamento cooperativo, a partir de um véu de ignorância, é escolhido a partir do pressuposto de que a escolha conjunta de determinados princípios resultará no benefício de todos. Em sentido diverso à lógica contratualista do benefício mútuo, Sen (2009, p. 177-8) ressalta a perspectiva das obrigações do poder, apresentada por Gautama Buda, que diz que “se alguém tem o poder de fazer uma mudança que considera que reduzirá a injustiça no mundo, então há um forte argumento social para simplesmente fazê-la”. A concepção da obrigação unilateral em razão da assimetria de poder pode ser percebida, por exemplo, no ativismo pelos direitos humanos.

O essencial aqui é reconhecer a existência de diferentes abordagens da busca do comportamento razoável, e nem todas elas precisam depender necessariamente do argumento sobre a cooperação mutuamente benéfica baseada na vantagem. A busca de benefícios mútuos, na forma hobbesiana direta ou na forma rawlsiana anônima, tem enorme relevância social, mas não é a única espécie de argumento relevante para a discussão do que poderia ser considerado um comportamento razoável. (...) O benefício mútuo, baseado na simetria e reciprocidade, não é o único fundamento para pensar no comportamento razoável em relação aos outros. O poder efetivo e as obrigações que surgem dele de maneira unilateral também podem ser uma base importante para o raciocínio imparcial, que vai muito além da motivação pelos benefícios mútuos. (SEN, 2009, p. 178-9).

Aspecto importante da teoria seniana é o conceito de “capacidade”, uma vez que, para o autor, capacidade consiste “nas combinações alternativas de funcionamento cuja realização é factível” para uma pessoa, sendo a capacidade, portanto, um tipo de liberdade, enquanto “liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos” (SEN, 2004, p. 95).

Como características da abordagem das capacidades, Sen (2009, p. 200) destaca três pontos: “(1) o contraste entre capacidade e realização, (2) a composição

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31 plural das capacidades e o papel do exercício da razão na utilização da abordagem das capacidades, e (3) o lugar dos indivíduos e comunidades e suas inter-relações na concepção das capacidades”.

Vale ressaltar, além disso, que a abordagem das capacidades também possui complicações, como a sua incomensurabilidade, a possibilidade de juízos comparativos diversos e a individualidade das capacidades em detrimento das capacidades de coletividades como as comunidades.

Ademais, a incomensurabilidade, ou seja, a possibilidade de juízos comparativos diversos e a individualidade das capacidades em detrimento das capacidades de coletividades como as comunidades, não significa que os resultados sejam triviais ou impossíveis, uma vez que ainda há a possibilidade de buscar juízos comparativos, bem como a avaliação das escolhas dos indivíduos é o passo inicial para uma análise mais profunda da sua influência na sociedade, tendo em vista que “os seres humanos individuais, com suas diversas identidades plurais, suas múltiplas filiações e suas diversas associações são criaturas essencialmente sociais, com diferentes tipos de interações sociais” e não podem ser vistas apenas como “membro de um grupo social”, o que seria uma análise inadequada diante da “amplitude e complexidade de qualquer sociedade no mundo” (SEN, 2009, p. 208).

A liberdade, por sua vez, é valorizada por ambos os teóricos aqui comparados. Segundo Sen (2009), temos liberdade enquanto oportunidade de buscar nossos objetivos e liberdade como processo de escolha da forma com que vamos promovê-los. Dessa forma, poder agir com liberdade e ter capacidade de escolher representam o caminho para o bem-estar. No entanto, impera avaliar mais profundamente as condições da oportunidade, uma vez que ela pode ser variável de acordo com as capacidades que uma pessoa tem.

Nesse aspecto, Sen (2004; 2009) critica a avaliação das capacidades apenas pela renda e riqueza de uma pessoa, afirmando a necessidade do enfoque na qualidade de vida, ou seja, no modo como as pessoas vivem. Por isso, afirma que o foco rawlsiano nos “bens primários” no que concerne às questões distributivas trata apenas dos meios para se alcançar os fins da boa vida, ainda que, na análise de Rawls, os bens primários sejam mais abrangentes do que a renda, que é apenas um de seus constituintes, razão pela qual a abordagem das capacidades pode representar uma significativa ampliação do alcance avaliativo.

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32 O que o teórico quer dizer é que cada pessoa tem oportunidades completamente diferentes de transformar a renda e outros bens primários em boa vida e liberdade, variando de acordo com as características das pessoas e do meio ambiente em que vivem.

Assim, dentre as variações possíveis, as heterogeneidades pessoais são destacadas: as diversidades no ambiente físico, as variações no clima social e as diferenças de perspectivas relacionais. No entanto, a avaliação das capacidades vai mais além, segundo Sen (2009, p. 217)

Também pode haver algum “acoplamento” de desvantagens entre diferentes fontes de privação, e essa pode ser uma consideração de extrema importância para a compreensão da pobreza e a elaboração de políticas públicas para enfrenta-la. As desvantagens, como idade, deficiência ou doença, reduzem a aptidão de uma pessoa para ganhar uma renda. Mas elas também tornam mais difícil converter a renda em capacidade, uma vez que uma pessoa mais velha, mais inábil ou mais doente pode precisar de mais renda (para assistência, tratamento ou prótese) para realizar os mesmos funcionamentos (mesmo que essa realização seja, na verdade, possível). Assim, a pobreza real (com relação à privação de capacidade) pode facilmente ser muito mais intensa do que podemos deduzir dos dados sobre a renda. Essa pode ser uma consideração fundamental na avaliação da ação pública de assistência aos idosos e outros grupos com dificuldade de reconversão, além de sua baixa aptidão para obter uma renda. A distribuição de recursos e oportunidade dentro da família levanta complicações adicionais para a abordagem da pobreza com base na renda. A renda da família aumenta graças a seus membros economicamente ativos, e não a todos os indivíduos que a compõem, independentemente de idade, sexo e aptidão laboral. Se a renda familiar é independentemente de idade, sexo e aptidão laboral. Se a renda familiar é desproporcionalmente usada para promover os interesses de alguns familiares em detrimento de outros (por exemplo, se há uma preferência sistemática pelos meninos na alocação dos recursos dentro da família), então a extensão da privação dos membros negligenciados (as meninas, no exemplo considerado) pode não estar adequadamente refletida pelo valor agregado da renda familiar. Essa é uma questão crucial em muitos contextos. O preconceito de gênero parece ser um fator importante na atribuição dos recursos da família em muitos países da Ásia e do norte da África. A privação das meninas é mais facilmente e confiavelmente avaliada pela consideração da privação de capacidades que se traduz, por exemplo, em maior mortalidade, morbidade, desnutrição ou negligência médica do que pelos resultados encontrados com base na comparação entre as rendas das diferentes famílias.

A partir dessas considerações, a magnitude do problema apresentado é visualizada se levarmos em conta que das 600 milhões de pessoas que vivem com

Referências

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