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Rastros de Pierre Menard

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Academic year: 2021

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Ariele Louise Barichello Cunha

RASTROS DE PIERRE MENARD

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Jorge H. Wolff.

Florianópolis 2019

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Cunha, Ariele Louise

Rastros de Pierre Menard / Ariele Louise Cunha ; orientador, Jorge Wolff, 2019.

128 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós Graduação em Literatura, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. Literatura. 2. Pierre Menard. 3. Poesia brasileira contemporânea. 4. Performance da escrita. I. Wolff, Jorge . II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós Graduação em Literatura. III. Título.

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Ariele Louise Barichello Cunha Rastros de Pierre Menard

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof.ª Ana Carolina Cernicchiaro, Dr.ª Universidade do Sul de Santa Catarina

Prof. Luiz Felipe Guimarães Soares, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina

Prof.ª Telma Scherer, Dr.ª Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para a obtenção do título de Mestre em Literatura.

____________________________ Prof. Dr. Marcio Markendorf

Coordenador do Programa

____________________________ Prof. Dr. Jorge H. Wolff

Orientador

Florianópolis, 19 de agosto de 2019. Jorge Hoffmann

Wolff:60085649 953

Digitally signed by Jorge Hoffmann Wolff:60085649953 Date: 2019.08.28 09:45:04 -03'00' Marcio Markendorf:91573 483168

Assinado de forma digital por Marcio

Markendorf:91573483168 Dados: 2019.08.29 07:25:51 -03'00'

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AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e ao Programa de Pós-Graduação em Literatura pelo apoio à pesquisa.

Ao orientador Jorge H. Wolff, pela oportunidade de desenvolvimento destes estudos e pelas leituras críticas do trabalho.

À Susana Scramim, pela virada poética na pesquisa e na vida.

A Raúl Antelo, pelas indicações de leitura, especialmente de Sylvia Molloy e Tamara Kamenszain, que provocaram “un punto de inflexión” nesta pesquisa.

Às professoras membras da banca de defesa, Ana Carolina Cernicchiaro, pela leitura atenta, pelas palavras sensíveis e pela “lufada de afeto”, e Telma Scherer, pelos poemas antes, durante e depois. Ao professor Luiz Felipe G. Soares, pelas críticas pertinentes, pelo estímulo à escrita.

Às amigas Juliana Pereira, Berenice Ferreira e Eduarda da Silva, a graduação e o mestrado com vocês por perto foram muito melhores.

Às mulheres da coletiva Abrasabarca, que têm uma importância ainda inadjetivável na minha vida, pois fazem vida na escuta, na fala, no diálogo, na escrita poética.

À Celina Zelenko, minha irmã, por irmos juntas.

À Mariana Queiroz, pela força, pelas conversas, pelos poemas, pela psicanálise. Ao Diogo de Haro, pelo estímulo.

Ao Leonardo D´Ávila, pelas palavras encorajadoras.

Ao Dennis Radünz, por me relembrar do texto “Como se lê”, de Daniel Link, que acabou sendo muito importante para esta dissertação.

A todos os que me ouviram falar deste trabalho durante anos.

À Carla Trindade, ao Pedro Pessoa e a todos os que vieram antes, pelo yoga. Aos meus pais, por todo o apoio.

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No habrá nunca una puerta. Estás adentro

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RESUMO

Esta dissertação propõe uma leitura que parte do personagem Pierre Menard (1939), de Jorge Luis Borges, e vai além dele chegando ao presente contemporâneo na poesia brasileira. Isso foi possível por questões que o personagem suscita ao “escrever” “o” Quixote: a atribuição errônea e a anacronia, a ambiguidade e a ironia, indicadas pelo próprio narrador do conto; por elementos linguísticos identificados por grande parte da crítica, como a repetição, a cópia, a tradução, o jogo; pela análise dos capítulos do Quixote “escritos” por Menard, que trouxeram a questão do outro, do inimigo, da escuta. Além disso, a relação do personagem com o seu contemporâneo também foi fundamental como método desta dissertação, pois, no início do conto, Menard segue um método para “escrever” “o” Quixote, “ser Cervantes”, abandonando-o labandonando-ogabandonando-o em seguida, pabandonando-or cabandonando-onsiderar mais interessante escrever “abandonando-o” Quixabandonando-ote “sendabandonando-o Pierre Menard”. Esses elementos foram então reunidos pelas suas implicações mútuas entre história, identidade e linguagem e lidos em escritos contemporâneos. Esses escritos são Desarticulaciones (2010), de Sylvia Molloy, O eco da minha mãe (2012), de Tamara Kamenszain, Um útero é do tamanho de um punho (2013), de Angélica Freitas, Livro das postagens (2016), de Carlito Azevedo, e O martelo (2017), de Adelaide Ivánova.

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ABSTRACT

This essay proposes a reading that takes as a starting point the Jorge Luis Borges ́ character Pierre Menard (1939), and goes over reaching contemporary brazilian poetry. This path was possible because the character while “writing” “the” Quixote aroused many questions that were used as analytical tools that sewed the discussions along the text: the erroneous attribution and anachrony, ambiguity and irony, for example, were indicated by the stories narrator itself. It was worked with, as well, linguistic elements as repetition, copy, translation, play that were identified by a great part of the critic. Through the analyses of the Quixote chapters “written” by Menard questions about the other, the enemy, the listening were raised and discussed along the thesis. Besides that, the relation of the character with his historical moment was fundamental as a methodology of this dissertation, because in the beginning of the story, Menard follows a method in order to write Quixote, initially “being Cervantes”, for then forsaking him right after, for considering more interesting writing Quixote “as Pierre Menard”. These elements were gathered by their mutual implications among history, identity and language and read in contemporary writings. These writings are: Desarticulaciones (2010), by Sylvia Molloy, O eco da minha mãe (2012), by Tamara Kamenszain, Um útero é do tamanho de um punho (2013), by Angélica Freitas, Livro das postagens (2016), by Carlito Azevedo, and O martelo (2017), by Adelaide Ivánova.

Keywords: Pierre Menard. Contemporary brazilian poetry. Written performance.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ... 11 1 O VISÍVEL E O INVISÍVEL ... 17 1.1 “INVERTIENDO EL TRABAJO” ... 38 2 NO ESQUECIMENTO ... 45 3 DO ÚTERO ... 59

4 “A DELICADEZA INEGOCIÁVEL DA VIDA PSÍQUICA” ... 79

5 DE UM CORPO ... 95

REFERÊNCIAS ... 111

APÊNDICE A – Transcrição da performance poética de Adelaide Ivánova na Flip 2017, na série Fruto estranho ... 119

APÊNDICE B – Uma aproximação possível entre Giorgio Caproni, Guimarães Rosa, Carlito Azevedo e Jorge Luis Borges ... 125

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INTRODUÇÃO

O personagem Pierre Menard, escrito pelo argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1996) em seu conto “Pierre Menard, autor del Quijote”, publicado pela primeira vez em 1939 na revista Sur, retorna ao presente a partir desta leitura de escritos contemporâneos.

Esse personagem e seu autor ocupam lugares consagrados na literatura, sendo comentados ad infinitum em diversos países. Coloco-me entre essas múltiplas vozes que ecoam Pierre Menard, o personagem que, no início do século XX, não queria escrever outro Quixote, mas “o” Quixote, aquele escrito por Miguel de Cervantes e publicado em 1600.

O gesto de Menard, que “escreve” “o” Quixote sendo Pierre Menard, ou seja, não se deslocando de seu tempo, traz em si a repetição como questão sobre história, sobre narrativas e, assim, faz quem lê se perguntar sobre outras possíveis narrativas.

No conto borgeano, o personagem aparece por meio do testemunho do narrador e de citações feitas por este. Esse testemunho apresenta contradições ao ponto de a narrativa poder ser, em certo momento, relida de modo diferente, pois o narrador afirma que Menard tinha o hábito de dizer o oposto do que pensava, portanto tudo o que fora afirmado até então pode ser desmontado para ser montado novamente com outros sentidos.

Tais montagens e desmontagens são ainda complicadas pela mistura de vozes que acontece na narrativa. Essa mistura é primeiramente estimulada pelo próprio desejo de Menard de escrever “o” Quixote, e pela efetivação da escrita de dois capítulos e meio deste, o que põe em questão as práticas autorais na literatura, o lugar do autor, da cópia, da origem. Depois, é o narrador quem afirma os efeitos dessa mistura de vozes trazida por Menard, pois ele chega a ler o Quixote como se fosse escrito por Pierre Menard.

Os efeitos desses deslocamentos de vozes e de contextos provocam atenções redobradas do leitor para as montagens que estão postas e suas viradas, para os instantes nos quais outra montagem é proposta na e pela linguagem, compreendida como instância criadora, performática e instituinte, compreendida como instância política.

Por entender que esse personagem pode induzir o leitor a um exercício radical de releituras constantes com sentidos distintos sobre ele mesmo, entende-se que um problema de identidade também é colocado. Esse problema traz as nuances da mobilidade, do deslocamento, da plasticidade, da montagem, da relação, das múltiplas vozes, da coletividade

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com as quais esse conceito pode ser pensado, o que também nos leva a concepções mais rígidas de aspectos identitários, que abrangem dificuldades de deslocamentos e de desconstruções, vozes que se pretendem únicas, dificuldades de escuta e de fala.

Tais atritos que envolvem esses problemas de identidade e história são lidos a partir de Pierre Menard e além dele, na montagem de uma série composta por escritos contemporâneos. Esses escritos possuem semelhanças e diferenças entre si, ou seja, não constituem uma seleção homogênea, nem se pretendem assim, mesmo sendo aproximados pelos elementos já citados, que operam como premissas para tal montagem.

No primeiro capítulo, apresento o conto e perspectivas de leitura, com atenção ao que considero serem as partes mais performativas na linguagem: repetição, ironia, anacronia, ambiguidade. Essas escolhas linguísticas exigem de quem lê, no mínimo, uma segunda leitura de maneira distinta, ou seja, uma releitura que se pergunta sobre outros sentidos possíveis, que se coloca disposta a ouvir outros sentidos naqueles já dados.

Nesta seção, também destaco os dois capítulos e meio do Quixote “escritos” por Menard. Um deles trata do discurso feito por Dom Quixote sobre as armas e das letras, lidas com sentidos atentos para a implicação política na e da linguagem e da própria literatura, como lugar em que, ao menos teoricamente, “se pode dizer tudo”. O outro capítulo “escrito” por Menard traz questões sobre possíveis inconveniências ao se tentar falar por outros, prática muito destacada em nossos tempos, com criticidade, em relação a discursos produzidos hegemonicamente muitas vezes sem a participação daqueles que “são falados”. Já o terceiro e último capítulo do Quixote “escrito” por Menard é aquele que traz um segundo narrador para a história, o qual, apesar de ser considerado “o outro”, “o inimigo”, é fundamental para que a narrativa continue.

Ainda neste capítulo, apresento um subtítulo com breves resumos de algumas das apropriações do personagem Pierre Menard, em que ele atua como um procedimento, resultando no que se pode pensar também como uma composição coletiva.

No segundo capítulo, e iniciando as leituras em série de outros escritos, com Menard e além dele, faço a leitura de Desarticulaciones (2010), de Sylvia Molloy, e O eco da minha mãe (2012), de Tamara Kamenszain. Nesses livros, essas escritoras contemporâneas argentinas escrevem sobre experiências com entes queridas com Alzheimer. A repetição e o esquecimento são marcas profundas neles, que também sugerem certa ética da linguagem diante do desaparecimento do “eu” do outro, e com ele do próprio “eu”, na rearticulação que a linguagem faz dia após dia. Essa rearticulação aparece de maneira bastante explícita por causa

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da especificidade da doença e do cuidado que as escritoras demonstram com a questão, ou seja, não quer dizer que ela não aconteça em todas as situações mediadas por linguagem, mas nesses livros a exigência para tal é evidenciada. Para a conversa sobre esses processos, Paolo Virno, com seu texto “Multidão e princípio de individuação” (2009), traz reflexões sobre a individuação, que, segundo o autor, acontece com o decorrer do tempo e nas relações com a instância pública. Além disso, ela estaria sempre perpassada pela possibilidade de certa regressão.

No terceiro capítulo, leio Angélica Freitas e seu Um útero é do tamanho de um punho (2012). Neste capítulo, são postos problemas de identidade conforme Vincent Descombes explana-os em El idioma de la identidad (2015), com discussões sobre poder instituinte e identidades narrativas. Este capítulo adentra no contexto brasileiro, num movimento que “recolhe” da literatura contemporânea tanto discussões sobre identidade quanto marcas do processo histórico em que vivemos. Um útero é do tamanho de um punho vai constituir, junto com os outros dois livros lidos nos capítulos seguintes, uma amostra de nosso contexto.

No quarto capítulo, Livro das postagens (2017), de Carlito Azevedo, traz o passado histórico às leituras do presente, com ênfase na possível repetição histórica, na mescla de vozes, fantasmas que nos constituem. Para essa discussão, temos Josefina Ludmer, em Aqui América Latina (2013), Maria Rita Kehl, com O tempo e o cão (2009), e Giorgio Agamben, em Estâncias, a palavra e o fantasma na cultura ocidental (2007).

Por fim, no quinto capítulo, Adelaide Ivánova e O martelo (2017) conduzem as questões identitárias do discurso ao corpo, e traumas individuais e coletivos são pensados e repensados a partir deste. Neste capítulo, contaremos com Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves em Algo infiel, corpo performance tradução (2017), Anne Reichold e sua tese A corporeidade esquecida (2006) e Shoshana Felman e O inconsciente jurídico, julgamentos e traumas no século XX (2014).

Essa série poderia ser montada de outros modos, poderia ter outros cortes, pode ser lida de maneira independente, cada capítulo poderia ser um trabalho apenas, mas a escolha por narrá-la assim diz também do objeto de pesquisa, do personagem Pierre Menard. Primeiramente, porque o narrador também traz uma série, chamada de a obra “visível” de Menard, em que são listados os escritos do personagem numa montagem considerada de fácil

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enumeração segundo o narrador, não arbitrária segundo Borges; Sylvia Molloy (1999) diz que essa série, porque existe, está ali para ser lida inteira; Daniel Link (2002) relembra que a intervenção psicanalítica é feita no reconhecimento de uma razão na série e da redenominação a seguir. Segundo, de acordo com esta leitura, sendo identidade, linguagem e história as questões principais colocadas pelo personagem, a série montada aqui também denota o percurso do desejo de pesquisa, que vai aos poucos descolando-se do contexto argentino de “origem” sem, no entanto, desfazer-se dele, pois dele vêm as premissas para as discussões seguintes, cada vez mais imersas no contexto brasileiro contemporâneo, ou, nas palavras do conto, é mais interessante “seguir siendo Pierre Menard y llegar al Quijote, a través de las experiencias de Pierre Menard.” (BORGES, 2009, p. 844, v. 1). Portanto, linguagem, identidade e história, conceitos que podem ser relacionados a quaisquer textos que se lê, estão aqui como fios condutores de uma série fragmentária proposta como estudo literário mesclado à vida, ao contexto desta que escreve, como leitora-testemunha.

Ainda, pode-se dizer que a leitura tem essa potência de estimular a criação de relações entre significantes e significados, propriedade da linguagem. Pode-se dizer também que a literatura é produzida nesse diálogo infinito entre passado, presente e futuro, entre essas vozes que se mesclam sem cessar.

As montagens feitas nesta série apresentada têm algo de barthesiano, e que pode ser evidenciado na pergunta feita em A preparação do romance (2005, v. 1, p. 36): “como escrever longamente, correntemente (de modo corrente, fluido, seguido), tendo um olho sobre a página e outro sobre ‘aquilo que me acontece’?” Essa pergunta-problema, feita no último curso ministrado por Barthes, em 1978-1979, traz duas “respostas”: a primeira: “A vida”: “idéia simples, e em suma intratável, de que a ‘literatura’ (pois, no fundo, meu projeto é ‘literário’) se faz sempre com a ‘vida’”; e a segunda: “Anotar”: “Pode-se escrever o presente anotando-o.” (BARTHES, 2005, v. 1, p. 36), ou seja, as escolhas dos escritos que compõem esta série estão relacionadas às contingências e exigências do contexto histórico brasileiro no espectro literário enquanto se realizava esta pesquisa, por isso o caráter fragmentário desta dissertação, algo de anotação, conforme destacado por Barthes.

A Notatio aparece de chofre na intersecção problemática de um rio de linguagem, linguagem ininterrupta: a vida – que é texto ao mesmo tempo encadeado, prosseguido, sucessivo, e texto superposto, histologia de textos em corte, palimpsesto –, e de um gesto sagrado: marcar (isolar: sacrifício, bode expiatório etc.). A Anotação: intersecção problemática? Sim: é o problema do realismo que é colocado pela anotação. [...] – Por outro lado, como passar da anotação, da Nota, ao Romance, do descontínuo ao fluxo (ao

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estendido)? Problema pra mim psico-estrutural, já que isso quer dizer passar do fragmento ao não-fragmento, isto é, mudar minha relação com a escritura, isto é, com a enunciação, e ainda com o sujeito que sou: sujeito fragmentado (= certa relação com a castração) ou sujeito efusivo (outra relação)? Ou ainda o combate da forma breve com a forma longa (BARTHES, 2005, v. 1, p. 37-38, grifos do autor).

Essa característica fragmentária da dissertação dialoga com a condição de sujeito fragmentado, com a “identidade” de Menard – que, defendo, enfatiza montagens e desmontagens possíveis – e também com as apropriações futuras feitas do personagem, tomado por outros escritores e artistas, de modos distintos e semelhantes ao que propusera Borges, que “aceitaram” o convite borgeano para um segundo Pierre Menard, “invirtiendo el trabajo del anterior” (BORGES, 1984, p. 450, v. 1). Tais apropriações, vistas em seu aspecto fragmentário, podem ser lidas separadamente ou em conjunto, podem ser montadas e desmontadas, podem ser lidas como uma composição coletiva do personagem, como uma série composta por autores distintos em que Menard se torna um procedimento.

O procedimento adotado nesta dissertação não passa diretamente pela perseguição do nome do personagem, mas por significantes que sinalizam certa metonímia, certas correspondências entre letra e vida, entre o conto borgeano e certa produção literária brasileira de hoje, certa constelação. De algum modo, Passagens1 de Walter Benjamin também aparece

num horizonte de leitura e de escrita, pela liberdade de montagem com que Benjamin se desloca associando significantes. Ou ainda pelo modo como Benjamin fala da narrativa em “O narrador”: “[...] uma nova história em cada passagem de história [...]” (1987, p. 211).

A principal metodologia utilizada neste trabalho consiste em análise da linguagem, e o recorte feito aqui parte da teoria dos atos de fala de John Austin em seu Quando dizer é fazer, palavras e ação (1990). Sua influência se dá, sobretudo, com os chamados atos perlocucionários, que são os atos de fala que produzem efeitos nos ouvintes de modo proposital ou não, estando esses atos de fala relacionados com a persuasão, a indução, o convencimento, sendo operados de modo indireto, oblíquo na fala. Esses performativos não foram muito bem definidos por Austin, pois suas possibilidades de uso acabavam sempre podendo fugir às regras percebidas, de acordo com os usos da língua, os falantes, o contexto;

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daí que, talvez, hoje tenhamos uma compreensão estendida da própria linguagem como performance, pois falar e ouvir necessariamente produzem efeitos, a linguagem é responsiva.

Também não podemos dizer que seguimos estritamente a teoria de Austin pois ele deixa claro que ela não se aplica à literatura, aplicar-se-ia apenas ao que ele denomina de atos ordinários de fala. Jacques Derrida responde a essa questão na conferência “Assinatura acontecimento contexto” (1991) trazendo o elemento da iterabilidade da linguagem. Ele destaca que

Todo signo, lingüístico ou não-lingüístico, falado ou escrito (no sentido corrente dessa oposição), em pequena ou grande escala, pode ser citado, posto entre aspas; por isso ele pode romper com todo contexto dado, engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não-saturável. Isso supõe não que a marca valha fora do contexto mas, ao contrário, que só existam contextos sem nenhum centro absoluto de ancoragem (DERRIDA, 1991).

Portanto, a citação, a repetição de todo signo, por ser parte constitutiva do funcionamento da linguagem, seria também, por isso, condição dos performativos. Disso se conclui, então, que os contextos excluídos por Austin, a saber, o drama, a poesia, o solilóquio, por serem constituídos também como contextos de uso de citações, devem ser considerados como analisáveis para esses usos da linguagem.

Diante da força dos efeitos da fala, faz-se necessário também citar de modo breve a influência da teoria psicanalítica de Freud e Lacan, talvez, sobretudo, na formulação lacaniana “o inconsciente é a política”,2 visto que esta complexa formulação aponta para as implicações

entre individual e coletivo colocadas nesta dissertação.

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1 O VISÍVEL E O INVISÍVEL

Sabemos sobre Pierre Menard pelo narrador do conto, embora, segundo Irma Zangara e Rolando Costa Picazo (2009b), há quem pense que o texto tem muito pouco de narrativa, sendo mais um conto fantástico. O narrador, que performa falar com propriedade sobre a “vida” de Menard, invoca sua autoridade por dizer saber a opinião de “amigos auténticos de Menard” (BORGES, 2009b, p. 842), fazendo-se presente em momento póstumo ao dizer que “ayer nos reunimos ante el mármol final y entre los ciprestes infaustos y ya el Error trata de empañar su Memoria...” (BORGES, 2009b, p. 842). Então, tece comentários a respeito da obra visível de Pierre Menard, “de fácil y breve enumeración.” (BORGES, 2009b, p. 842), e de sua obra invisível, dita adiante como “la subterránea, la interminablemente heroica, la impar. También ¡ay de las posibilidades del hombre! la inconclusa.” (BORGES, 2009b, p. 843-844).

A obra visível constitui-se do arquivo particular de Menard, “Examinado con esmero” (BORGES, 2009b, p. 842) pelo narrador; a invisível refere-se aos capítulos do Quixote escritos por ele: “IX y XXXVIII de la primera parte del Don Quijote y de un fragmento del capítulo XXII.” (BORGES, 2009b, p. 844).3 O narrador ainda conta com

recursos retóricos como o da humildade, dizendo que sua autoridade é muito fácil de ser recusada, por isso chama mais duas testemunhas.

Consideremos uma das propostas de Borges em “Pierre Menard, autor do Quixote”: a repetição, voltar a dizer, tornar a escrever palavra por palavra dois capítulos e meio do Quixote – que, por sua vez, já é de certo modo uma repetição diferenciada o bastante para ser considerada crítica a práticas literárias de sua época – e o que disse Deleuze, na introdução de Diferença e repetição (1988, p. 19), logo após falar sobre Menard: “[...] a mais exata repetição, a mais rigorosa repetição, tem, como correlato, o máximo de diferença [...].” Com isso, interessa-nos aqui pensar repetição e diferença por noções de performance da linguagem, ou performance da escrita, e suas relações com fantasmas da origem, ou seja: quais os efeitos

3 Lembremos que o texto e personagem principal de Miguel de Cervantes já haviam sido também apropriados

por outro escritor da época, repudiado pelo narrador de Dom Quixote na parte dois do livro, publicada em 1615, dez anos depois da publicação da primeira parte e um ano antes da morte do autor.

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da repetição em contextos distintos? O que a repetição suscita como questão? A repetição remete a uma possível “origem”? Se sim, que importa essa “origem” quando da repetição?

Em relação à originalidade, lembremos ainda que Gérard Genette4 lê em Pierre

Menard uma transição da poética da obra para uma poética da leitura, identificada como uma “[...] produção posterior e sempre renovada do leitor.” (MONEGAL, 1980, p. 70).

Graciela Ravetti em Nem pedra na pedra, nem ar no ar (2011), fala da repetição na performance como força historicizante:

A genealogia é uma força que conduz ao interior da própria cultura e a sua historicidade, quer dizer, às disposições culturais e estilos que estão fortemente assentados e arraigados nas instituições e na história do habitus locais. As práticas performáticas, quando se articulam umas com as outras, embora sejam de signos muito diversos – comportamentos afetivos, práxis de trabalho, criações artísticas, atos de resistência e oposição –, alcançam status de fatores de historicização. Em planos horizontais, geralmente atreladas essas práticas ao que de mais trivial, banal, corriqueiro tem a vida das pessoas, vão se delineando conjuntos mais e mais complexos, que evidenciam o que a performance tem de resistência ao efêmero, tanto por seu aspecto de repetição ritual quanto pelo que tem, precisamente, de efêmero, por ser objeto único e sem repetição possível. A performance é produzida na complexa imbricação, por um lado, de práticas discursivas e corporais de elementos que permanecem e são a matéria do que constitui a transmissão cultural endógena (por isso, genealógica) e, por outro, de elementos que fazem, a prática, única. Articulam-se os contextos entre si. Por um lado, produz-se uma gênese, uma origem de origens, a ficção de uma origem, novos procedimentos; e, por outro, essa articulação traz o mistério do arcano, do quem vem antes, de um espaço residual, delineado pela memória corporal, convocado pela memória performática e atávica (RAVETTI, 2011, p. 48).

A questão da originalidade na performance também é colocada por Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves em Algo infiel corpo performance tradução (2017). Os autores tratam especificamente da tradução como performance, e lembremos aqui que Maurice Blanchot, em O livro por vir (2005), fala do aspecto tradutor de Pierre Menard como um duplo, um espelho, uma tradução na mesma língua, uma cópia que acaba por extinguir o original e a origem, um reflexo no qual já não se sabe onde é começo e fim, onde é começo ou recomeço, refletindo a “infinita multiplicidade do imaginário” (BLANCHOT, 2005, p. 140). Segundo Flores e Gonçalves, há uma:

4 Sobre Genette, Julien Roger afirma, em “Genette, l’autre de Borges” (2012), que sua obra poderia ser uma

reescritura lateral da de Borges e sugere que o título Palimpsesto é inspirado em Menard: “[...] le titre de Palimpsestes [livro de Genette] viendrait de cette phrase de « Pierre Ménard, auteur du Quichotte » : « He reflexionado que es lícito ver en el Quijote ‘final’ una especie de palimpsesto, en el que deben traslucirse los rastros – tenues pero no indescifrables – de la ‘previa’ escritura de nuestro amigo».” (ROGER, 2012, p. 112).

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Desontologização permanente do texto, que se performa novamente a cada leitura. Essas propostas inscrevem-se na subjetividade histórica radical de toda a atividade humana, e a compreensão se liga ao modo como construímos as histórias de nossas vidas e como as narramos para os outros: “Entender as coisas significa contar histórias sobre as coisas. Nessas histórias, nós (re)fazemos e refazemos aquilo que dizemos que somos e aquilo que dizemos que o mundo é. Nas histórias, realizamos o equivalente adulto do prazer da brincadeira infantil” O diálogo é, então, peça fundamental de todo um sistema: “um ‘texto’ é, então, um mosaico de vozes com histórias culturais diferentes e específicas cujo significado é controlado por seus contextos de uso particulares; nessa troca contínua, ‘um enunciado jamais é originário em si’ e, da mesma forma, nenhum enunciado jamais será o último (FLORES; GONÇALVES, 2017, p. 114).

Os autores – numa organização textual que usa citações misturadas às suas falas, às vezes textos de outra autoria constituem capítulos inteiros do livro – aqui trazem o mosaico de vozes, o enunciado que não é originário e não será também o último, citando Walter Benjamin, que nos diz ainda muito sobre a passagem dos jogos infantis, a repetição, o “de novo”, aos hábitos adultos:

A criança age segundo esta pequena sentença de Goethe [“Tudo à perfeição talvez se aplainasse/ Se uma segunda chance nos restasse.”]. Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorar-se de terríveis experiências primordiais mediante o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e da maneira mais intensa, os triunfos e as vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início. Talvez resida aqui a mais profunda raiz para o duplo sentido nos “jogos” alemães: repetir o mesmo seria o elemento verdadeiramente comum. A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito. Pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira lúdica, com o acompanhamento do ritmo de versinhos. O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira. Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis o que são os hábitos (BENJAMIN, 2002, p. 101-102).

Benjamin traz a ideia de repetição tanto como aperfeiçoamento quanto como inculcação, tanto no processo de adquirir certos domínios sobre sua própria narrativa quanto

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na possibilidade, por vezes perversa, de condicionamento de comportamentos. Em relação a essa dinâmica ambígua e necessária, podemos lembrar do que George Steiner fala sobre “inconclusão” em “A viagem crepuscular de Walter Benjamin”, texto publicado no Brasil em 2001:

Inconclusão é a palavra-chave do modernismo. [...] Uma poética do fragmentário, dos ‘fragmentos que apóiam nossa ruína’, habita a literatura moderna. [...] No modernismo a forma não é um ato concluído, mas processo e constante revisão. [...] A inconclusão, o excesso de esboços, de rascunhos, anotações e emendas circundam, ironizam e subvertem o texto por meio da constante sugestão e implicação de decisões alternativas, do que ‘poderia ter sido’ [...] (STEINER, 2001).

A inconclusão aparece no conto como adjetivo da “obra invisível” de Menard, ou seja, dos capítulos do Quixote escritos por ele: “a inconclusa”. Ela também se faz presente na sugestão feita pelo narrador ao final do conto sobre a necessidade de um “segundo Pierre Menard”, como veremos adiante, o que acaba gerando outros textos a partir desse personagem.

A ideia de jogo, colocada por Benjamin com essa ênfase na repetição, também é posta por Michel Foucault de outro modo, em A ordem de discurso, ao falar de Pierre Menard:

Jogo, à moda de Borges, de um comentário que não será outra coisa senão a reaparição, palavra por palavra (mas desta vez solene e esperada), daquilo que ele comenta; jogo, ainda, de uma crítica que falaria até o infinito de uma obra que não existe [...] (FOUCAULT, 1999, p. 23).5

Foucault destaca o respectivo conto borgeano, mas também suas críticas, que proliferaram bastante no contexto francês.

No conto, o narrador, então, convoca duas testemunhas para que sua fala tenha mais credibilidade: “La baronesa de Bacourt” e “La condesa de Bagnoregio”. Vejamos certos aspectos da questão do testemunho como tratados por Jacques Derrida em Demorar, Maurice Blanchot (2015), conferência proferida em 1995. Nela, Derrida fala acerca de O instante de minha morte, texto autobiográfico de Blanchot, que remete ao ocorrido em 1944, quando o narrador esteve diante da possibilidade de fuzilamento por soldados que julgava alemães, posteriormente revelados russos, numa cadeia de enganos que conta a história da qual

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Blanchot sai sobrevivente. No prefácio escrito pelas tradutoras Flavia Trocoli e Carla Rodrigues, pode-se ler o tom da narrativa, com menção a Franz Kafka, que, segundo elas, perpassa o texto de Derrida:

Demorar – Maurice Blanchot [...] pertence a uma linhagem herdeira do século, o nosso breve século XX, que atou inextricavelmente a catástrofe – em sua dimensão traumática, em suas duas guerras emudecedoras, para mencionar apenas as fronteiras europeias – e a escrita. Desde Franz Kafka, que soube nomear o horror antes mesmo dele se tornar um acontecimento histórico, sabe-se que a grande vitória do totalitarismo é deixar suas vítimas sem expressão, retirando da linguagem sua potência metafórica, e, portanto, a tarefa estética e ética do escritor – na literatura, na história e na filosofia – é ressuscitar a linguagem e narrar a morte, a partir da cena intraduzível. Traduzir e testemunhar mostram seu ponto homólogo (DERRIDA, 2015, p. 10).

Essa escrita atrelada ao trauma, à tradução, ao testemunho traz para a discussão “[...] a indissociabilidade problemática entre a ficção e o testemunho, entre a literatura e o direito.”, segundo as tradutoras (DERRIDA, 2015, p. 11). Literatura e Direito, e lembremos novamente de Walter Benjamin e da lei da repetição dos jogos, que conduz a criança ao adulto, a ludicidade ao hábito, as narrativas às normas. O inconsciente jurídico: julgamentos e traumas no século XX (2014), de Shoshana Felman, citado por Trocoli e Rodrigues, formula a seguinte questão: “O que na verdade é a justiça literária, em oposição à justiça jurídica? Como a literatura faz justiça ao trauma de uma maneira que o direito não faz ou não pode fazer?” (FELMAN, 2014, p. 28). Como resposta de Shoshana, as prefaciadoras resumem que “a literatura encarna concreta e inacabadamente o evento traumático em oposição à clausura conceitual a que o direito tentaria, em vão, reduzi-lo.” (Prefácio de DERRIDA, 2015, p. 11). Nessa tradição que “ata o escavar ao escrever”, de acordo com Trocoli e Rodrigues, “[...] se pode encontrar a palavra mágica que retira a mortalha do esquecimento e faz os resíduos se tornarem poesia da recordação [...]” (Prefácio de DERRIDA, 2015, p. 14). Elas comentam ainda A construção, de Kafka:

A voz narrativa de A construção está absolutamente só, nenhuma palavra a separa desse despertar horrendo que estilhaça o silêncio e que faz os cacos do espaço rangerem em mil pedacinhos, por toda parte, o ruído. Logo, sem palavra, sem significação, é imperativo se defender, escavar. [...] Há o buraco, o tormento do labirinto, a atenção desmedida ao ruído do animal que

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a qualquer momento poderá aniquilar aquele que escava, e que, no entanto, nunca o escutou, e nessa não escuta do outro, do inimigo, tudo continua inalterado (DERRIDA, 2015, p. 13-14, grifo meu).

Lembremos que Borges publica “Pierre Menard, autor do Quixote” em 1939. Há o contexto da segunda guerra, e nele está Walter Benjamin, escrevendo sobre o que vê e prevê. Benjamin, naquela época, já havia escrito sobre os soldados que voltavam emudecidos da primeira guerra, sobre a extinção das narrativas diante da violência. Em 1940, Benjamin se suicida. Ele deixa ainda escritos sobre a importância da narrativa dos “perdedores”, sobre a importância de não se ter cumplicidade com os “vencedores”: “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.”, diz a tese sete de “Sobre o conceito de História” (1987).

Esse contexto importa aqui porque a questão da história vai ser central para o conto borgeano, conforme veremos adiante. E assim o será exatamente porque aponta para outras possíveis histórias, que aqui podemos ler nessas histórias mudas, histórias dos mortos, dos suicidas, como apontava Benjamin. Segundo Felman (2014, p. 75):

É, portanto, por meio da repetição do trauma que o historiador lerá a história e o teórico a teorizará; é da repetição do trauma que Benjamin extrai sua crucial compreensão da “filosofia” da história como um processo constitutivo de silenciamento, um discurso cobrindo a mudez das vítimas e afogando em seu próprio ruído os reais acontecimentos de seu repetido silenciamento.

Em Demorar, Derrida fala da “experiência inexperienciada” da morte diante do inimigo e de modos de narrar de quem sobrevive a essa experiência. Também de como a testemunha – cujo “testemunhar, declarar [...] é sempre tornar público.” (DERRIDA, 2015, p. 39) – e o testemunho devem ser exemplares e singulares, “sou o único a ter visto esta coisa única, a ter entendido, ou ter estado na presença dela, num instante determinado, indivisível; e é preciso acreditar em mim porque é preciso acreditar em mim [...]” (DERRIDA, 2015, p. 49). Isso exige atenção a outros pontos, segundo o autor,

O que digo pela primeira vez, se é um testemunho, já é uma repetição, ao menos uma repetibilidade, uma iterabilidade, mais de uma vez em uma vez, mais de um instante em um instante, ao mesmo tempo, e o instante se divide sempre em sua extremidade, a extremidade de sua escrita. Ele está sempre na iminência de se dividir, de onde vem o problema da idealização. O instante singular, na medida em que ele é repetível, torna-se um instante ideal. Lá se

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encontra a raiz do problema testemunhal da tekhnè. A técnica, a reprodutibilidade técnica, está excluída do testemunho, que é sempre um chamado à presença da viva voz em primeira pessoa. Mas a partir do ponto em que o testemunho deve poder se repetir, a tekhnè está admitida, ela é introduzida lá onde é excluída. Para isso não é preciso câmeras, vídeos, máquinas de escrever e computadores. Desde que a frase seja repetível, isto é, desde sua origem, no instante em que ela é pronunciada e torna-se inteligível, então, idealizável, ela já está instrumentalizada e afetada pela tecnologia. E pela virtualidade (DERRIDA, 2015, p. 50-51).

Com a possibilidade de idealização do testemunho, Derrida problematiza as veredas que as narrativas testemunhais podem assumir, enfatizando os limites entre ficção e testemunho (DERRIDA, 2015, p. 65). Sobre o testemunho de Blanchot em O instante de minha morte – narrativa em que ele fala sobre seu quase fuzilamento –, publicado cinquenta anos depois do ocorrido, diz Derrida:

Aquele que diz e assina embaixo “eu”, nesta data, agora, não pode substituir o outro, ele não pode então se substituir a si próprio, quer dizer, o jovem homem que ele foi. Ele não pode mais substituí-lo, substituir a si mesmo, condição, portanto, prescrita a todo testemunho formal e não fictício. Ele não pode mais reviver o que foi vivido. E então, de certo modo, ele não sabe mais, ele tem uma memória do que ele não sabe mais [...]. Dito de outra maneira, ele testemunha por uma testemunha, num sentido diferente desta vez, no lugar da testemunha que ele não pode mais ser para esta outra testemunha que foi o jovem homem, entretanto, ele mesmo. O jovem homem foi testemunha da morte que advinha sobre ele. A testemunha dessa testemunha, que é a mesma, cinquenta anos depois, não pode substituir a testemunha pela qual ele testemunha. Por consequência, ele não pode analisar o que sentiu ele mesmo, este outro ele mesmo naquele momento lá (DERRIDA, 2015, p. 75, grifos do autor).

Passados cinquenta anos, as impressões de um jovem sobre determinada situação adquirem nuances de um renovado repertório de experiências que irão deslocar suas questões, o que, para Derrida, continua perpassando os limites entre ficção e realidade e aponta para possíveis dúvidas que a testemunha pode se colocar, diante do trauma, do crime, da tradução, deixando-se “assombrar [...], parasitar por aquilo que está excluído de seu interior, a possibilidade, ao menos, de literatura.” Segundo Derrida: “[...] Esse limite é uma chance e uma ameaça [...].” (2015, p. 39).

Abertas essas questões sobre testemunho, visto que esse é elemento fundamental em nosso conto, pois o personagem e sua vida são testemunhados, passemos à enumeração que o

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narrador faz da obra visível de Pierre Menard, uma lista de “a” a “s”, “fácilmente enumerable” (BORGES, 2009, p. 842):

a) Un soneto simbolista que apareció dos veces (con variaciones) en la revista La conque (números de marzo y octubre de 1899).

b) Una monografía sobre la posibilidad de construir un vocabulario poético de conceptos que no fueran sinónimos o perífrases de los que informan el lenguaje común, “sino objetos ideales creados por una convención y esencialmente destinados a las necesidades poéticas” (Nîmes, 1901). c) Una monografía sobre “ciertas conexiones o afinidades” del pensamento

de Descartes, de Leibniz y de John Wilkins (Nîmes, 1903).

d) Una monografía sobre la Characterística universalis de Leibniz (Nîmes, 1904).

e) Un artículo técnico sobre la posibilidad de enriquecer el ajedrez eliminando uno de los peones de torre. Menard propone, recomenda, discute y acaba por rechazar esa innovación.

[...] (BORGES, 2009, p. 842-843).

Chama a atenção também a diferença entre o visível e o invisível. Borges aponta para aquilo que é de “fácil” percepção, visão, conhecimento, e para aquilo que fica oculto, subterrâneo, desconhecido, ou seja, outras possibilidades a serem consideradas.

No prólogo de Ficciones (1944), livro em que o conto “Pierre Menard, autor del Quijote” foi publicado, escreveu Borges: “lo es [irreal] el destino que su protagonista se impone. La nómina de escritos que le atribuyo no es demasiado divertida pero no es arbitraria; es un diagrama de su historia mental...” (BORGES, 2009b). Sobre essa obra visível, Sylvia Molloy fala-nos da série:

La obra visible del autor no es, como la pretende el narrador, “de fácil y breve enumeración” (F, 11). Tal como se presenta la serie – como tantas otras series en la obra borgeana – cuenta no sólo con el contraste sino con la tensión de la yuxtaposición, inquietante y necesaria, de múltiples elementos dispares: elementos no desordenados sino virtualmente inordenables. La serie no es arbitraria, como aclara Borges (F, 11), pero tampoco obedece a una autoridad que la justifique facilmente: no hay criterio que permita reorganizarla ni estabelecer jerarquias entre sus partes, y sin embargo la serie, desafiante, existe y tiene que ser leída entera (MOLLOY, 1999, p. 53).

Daniel Link, em Como se lê e outras intervenções críticas (2002), parte da citação de Borges em “Nota sobre (para) Bernard Shaw” (1951): “Uma literatura difere da outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto que pelo modo que é lida [...]” (LINK, 2002, p. 17) para chamar este “como se lê” de “máquina de ler”. Para isso, Link recorda o “Seminário sobre a carta roubada” (1955) de Lacan e diz que aí se define a intervenção analítica, quando Lacan

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“recorre a uma parábola, a do menino que, jogando com a astúcia da razão (do outro), adivinha uma e outra vez se uma quantidade determinada de bolinhas é par ou ímpar.” (LINK, 2002, p. 18). A intervenção analítica, para Link, é um “modo de entender a leitura [...] como prática radicalmente diferente da descrição [...] e da interpretação [...].” (LINK, 2002, p. 18). Diz Link:

Poderíamos começar cardinalizando os lugares de que falamos, antes de chegar ao texto lacaniano que me importa recuperar. O sujeito lê um objeto. Chamemos 1 ao objeto; 2 ao sujeito; 3 à relação entre sujeito e objeto: o que chamamos leitura é apenas a correlação de duas séries de sentido, uma inerente ao objeto e outra inerente ao sujeito (por acaso a escuta é outra coisa?). Se o que se impõe é apenas a série de sentidos “que vêm” do objeto e apenas do objeto, estamos diante de uma descrição. Se o que se impõe é a série de sentidos do sujeito (paradigmaticamente, o “Extrato de uma neurose infantil”, de 1918, a fascinante invenção freudiana sobre “O homem dos lobos”), estamos diante de uma interpretação. Não se trata de “desqualificar” a descrição (o 1) e a interpretação (o 2), mas simplesmente de declará-las limites da leitura (o 3) (LINK, 2002, p. 19).

A leitura, para Link, “necessariamente, surgirá da confrontação de duas séries de sentido” (LINK, 2002, p. 20). Seguindo rastros de Salvador Dali e Jacques Lacan – aquele propôs um método de leitura paranoico-crítico e este, na mesma época, estava fascinado “pela lógica do discurso paranoico” (LINK, 2002, p. 26) –, Daniel Link fala sobre o desejo de sentido na série, sobre o surgimento do sentido na série ao ser analisada em sua totalidade, sobre o sentido “deslocando-se na série”. A leitura, a terceiridade, pode, então, encontrar o sentido

(a regularidade, a regra, a capacidade preditiva) [...] porque há redenominação. A leitura como correlação de séries de sentido (a ordem dos signos está no objeto, a redenominação é uma operação do sujeito) permite que o sentido apareça objetivamente, sem que intervenha nenhuma capacidade interpretativa. [...] Primeiro vem o “momento delirante inicial”, o rapto, a paranóia, o desejo de sentido (trata-se de um lance de dados, um lance de moedas, uma imagem trivial, ou uma “vida”); a paranóia produz acaso objetivo, logo, desloca-se ao longo da série. Para poder predizer algo sobre o comportamento da série, e dado que o Real é tão impossível como a Primeiridade, devemos passar da relação meramente imaginária (o 2) com o texto, ao simbólico (o 3), ou seja: redenominar, cortar, escandir, pontuar de novo a sequência (LINK, 2002, p. 29).

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Da obra visível, chamada de série por Sylvia Molloy, seguimos com o narrador do conto para a obra invisível, “la subterránea, la interminablemente heroica, la impar. También ¡ay de las posibilidades del hombre! la inconclusa.” (BORGES, 2009, p. 843-844, v. 1). Veja, aquela que não é visível é a inconclusa. A obra invisível são os capítulos do Quixote “escritos” por Menard, a saber: o capítulo IX: “Onde se conclui a estupenda batalha que o galhardo basco e o valente manchego travaram.”; um fragmento do capítulo XXII: “Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desgraçados que eram levados contra a vontade aonde não queriam ir.”; e o capítulo XXXVIII: “Que trata do curioso discurso que D. Quixote fez sobre as armas e as letras.” (CERVANTES SAAVEDRA, 2012).

Menard “No quería componer otro Quijote – lo cual es fácil – sino el Quijote” (BORGES, 2009, p. 844, v. 1, grifos do autor). Para isso, escolheu um método: “Conocer bien el español, recuperar la fe católica, guerrear contra los moros o contra el turco, olvidar la historia de Europa entre los años de 1602 y de 1918, ser Miguel de Cervantes.” (BORGES, 2009, p. 844, v. 1, grifos do autor). Porém,

Ser en el siglo xx un novelista popular del siglo xvii le pareció una disminución. Ser, de alguna manera, Cervantes y llegar al Quijote le pareció menos arduo – por consiguiente, menos interesante – que seguir siendo Pierre Menard y llegar al Quijote, a través de las experiencias de Pierre Menard (BORGES, 2009, p. 844, v. 1).

Esse método primeiramente empreendido por Menard, “colado” à história (qual história?) e logo descartado parece ter relação com a tese sete de Benjamin:

Foustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressucitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico (1987, p. 225).

Pierre Menard apresentar-se-ia, então, como um exercício de leitura a contrapelo? Para Menard, na escolha e no abandono do método, impõem-se tanto o passado e a tradição literária (o Quixote), quanto o contemporâneo e a escrita autoral (ser Pierre Menard). Para Silviano Santiago,6 Menard apresenta-se como

[...] metáfora ideal para bem precisar a situação e o papel do escritor latino-americano, vivendo entre a assimilação do modelo original, isto é, entre o

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amor e o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue (SANTIAGO, 1978, p. 23).

A relação entre América-Latina e Europa está implicada em todo o processo de formação literária de Jorge Luis Borges, tanto por suas leituras quanto pela educação com influência inglesa recebida da família paterna. Borges, em sua juventude, vive durante alguns anos na Europa, acompanhando tratamento de saúde do pai, de onde retorna e publica Fervor em Buenos Aires (1923), não mais saindo para morar fora da capital argentina, tendo, no entanto, viajado intensamente a vida toda para além de seu país. Silviano Santiago coloca-nos, como latino-americanos, em um lugar crítico ao transcurso histórico de que somos parte, e Borges como esse escritor latino-americano por excelência. Seu comentário anda ao lado de certa concepção de herança posta por Derrida:

Os herdeiros autênticos, que se podem desejar para si, são aqueles que romperam razoavelmente com a origem, o pai, o testador, o escritor ou o filósofo, para, através de seu próprio movimento, assinar ou contra-assinar a herança. Contra-assinar é assinar outra coisa, a mesma coisa e outra para fazer advir outra coisa. A contra-assinatura põe em princípio uma liberdade absoluta. [...] Não se pode desejar um herdeiro ou uma herdeira que não invente a herança, que não a conduza a outro lugar, na fidelidade. Uma fidelidade infiel (DERRIDA, 1999, p. 60 apud NASCIMENTO, 2005, p. 16).

A Europa e sua literatura se fazem presentes explicitamente no conto via Dom Quixote, mas também, posteriormente, pelas idas e vindas dos escritos borgeanos, pois, se Borges repercutiu de modo intenso na crítica francesa, como já pudemos constatar com alguns franceses citados, isso não aconteceu de modo diverso na literatura, cujas apropriações explícitas do personagem Pierre Menard foram feitas, até o momento, principalmente entre franceses, como Michel Lafon, René Ventura, Pierre Huighe, Antoine Bello, o grupo Oulipo; temos ainda a continuação deste “jogo” proposto por Borges, ou pela própria literatura, com Enrique Vila-Matas e Bruno Moreschi, para citar alguns exemplos.

As questões da total identificação com um autor e ao mesmo tempo o distanciamento dele também são evidenciados no conto, como comentam Picazo e Zangara na edição crítica, o que também pode ainda ser relacionado à crítica de Silviano Santiago. Essas questões são também apresentadas pelo narrador-testemunha de “Pierre Menard, autor del Quijote”,

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Dos textos de valor desigual inspiraron la empresa. Uno es aquel fragmento filológico de Novalis – el que lleva el número 2005 en la edición de Dresden – que esboza el tema de la total identificación con un autor determinado. Otro es uno de esos libros parasitarios que situán a Cristo en un bulevar, a Hamlet en la Cannebière o a Don Quijote en Wall Street (BORGES, 2008, p. 533, v. 1, grifos do autor).

“Valores” desiguais inspiram Menard, diz o narrador, e tais inspirações manifestam-se no texto, tanto na total identificação com um autor como na “contra-assinatura” derridiana. Prossegue o narrador:

Como todo hombre de buen gusto, Menard abominaba de esos carnavales inútiles, sólo aptos – decía – para ocasionar el plebeyo placer del anacronismo o (lo que es peor) para embelesarnos con la idea primaria de que todas las épocas son iguales o de que son distintas (BORGES, 2008, p. 533, v. 1).

O narrador-testemunha afirma que as inspirações de Menard vieram de dois textos de “valor desigual", afirma ele que Menard abominava os segundos, como “todo hombre de buen gusto”. Se as inspirações de Menard vieram de lugares que ele abominava, ou ele estaria influenciado, como todos nós, pelas forças presentes em sua “realidade”, mesmo aquelas das quais talvez desejasse manter distância, ou seria Menard um mentiroso. A primeira hipótese problematiza a autonomia na escrita; a segunda põe em dúvida algumas certezas tidas até então sobre Menard. Mas há outras possibilidades: a opinião do narrador poderia estar equivocada a respeito de Menard, que já morto não poderia contestá-lo, ou seria o narrador um mentiroso; a primeira, além da tentativa de manter, por parte de quem conta a história, certo status quo sobre bom gosto, questiona a veracidade do testemunho do narrador, considerando que, segundo Derrida, “Um testemunho pode ser falso, isto é, errado, sem ser um falso testemunho, isto é, sem implicar o perjúrio, a mentira, a intenção deliberada de enganar.” (DERRIDA, 2015, p. 45); a segunda alternativa novamente desestabilizaria algumas certezas sobre Menard. Lembremos que, segundo Derrida, a testemunha e o testemunho devem ser exemplares e singulares, “sou o único a ter visto esta coisa única, a ter entendido, ou ter estado na presença dela, num instante determinado, indivisível; e é preciso acreditar em mim porque é preciso acreditar em mim [...]” (DERRIDA, 2015, p. 49). A seguir, diz o narrador:

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¿Confesaré que suelo imaginar que la terminó [a escrita de Quixote] y que yo leo el Quijote – todo el Quijote – como si hubiera pensado Menard? Noches pasadas, al hojear el capítulo XXVI – no ensayado nunca por él – reconocí el estilo de nuestro amigo y como su voz en esta frase excepcional: las ninfas de los ríos, la dolorosa y húmida Eco (BORGES, 2008, p. 534, v. 1).

Então, influenciado pela escrita de Menard, o próprio narrador, que supostamente identifica o “bom” e o “mau” gosto, e o bom gosto abomina investidas anacrônicas, passa a praticar a anacronia sugerida por Menard, além de atribuições errôneas, ao misturar as vozes dos autores, ou seja, se em “Pierre Menard, autor del Quijote” havia as vozes de Quixote, Cervantes, Menard, Borges –, agora em Dom Quixote há a voz de Menard. Sylvia Molloy diz:

“Pierre Menard autor del Quijote” es un llamado de atención sobre el ejercicio literario: propone una reflexión lúcida sobre los elementos que intervienen en todo acto de escritura, en todo acto de lectura. Marca ‘el instante en que el soñador, para decirlo con una metáfora afín, nota que está soñándose y que las formas de su sueño son él’ (D, 139). El soñador – léase autor, narrador, lector – cobra conciencia de que está dando forma al texto y a la vez que el texto le da forma (MOLLOY, 1999, p. 55-56).

Sobre a escolha de Quixote, em carta apresentada pelo narrador, esclarece Menard:

me interesa profundamente, pero no me parece ¿cómo lo diré? inevitable. No puedo imaginar el universo sin la interjección de Poe:

Ah, bear in mind this garden was enchanted!

o sin el Bateau ivre o el Ancient Mariner, pero me sé capaz de imaginarlo sin el Quijote. (Hablo, naturalmente, de mi capacidad personal, no de la resonancia histórica de las obras). El Quijote es un libro contingente, el Quijote es innecesario (BORGES, 2008, p. 535, v. 1).

Após empreender tanto esforço para escrever “o” Quixote, Menard diz que ele é “innecesario”? Pode ser que seja irônico, que minta, que sua relação com o Quixote tenha mudado a partir da escrita, que nunca tenha considerado o Quixote importante, que repita uma preferência canônica sem se atentar para o fato; não se sabe. Portanto, essas relações de Menard com suas escolhas parecem explicitar certa relação do escritor com a escrita literária.

Prossegue o narrador do conto: “No menos asombroso es considerar capítulos aislados. Por ejemplo, examinemos el XXXVIII de la primera parte, ‘que trata del curioso discurso que hizo Don Quijote de las armas y las letras’.” (BORGES, 2008, p. 536, v. 1).

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Es sabido que Don Quijote (como Quevedo en el pasaje análogo, y posterior, de La hora de todos) falla el pleito contra las letras y en favor de las armas. Cervantes era un viejo militar: su fallo se explica. ¡Pero que el Don Quijote de Pierre Menard – hombre contemporáneo de La trahison des clercs y de Bertrand Russel – reincida en esas nebulosas sofisterías! Madame Bachelier há visto en ellas una admirable y típica subordinación del autor a la psicología del héroe; otros (nada perspicazmente) una transcripción del Quijote; la Baronesa de Bacourt, la influencia de Nietzsche. A esa tercera interpretación (que juzgo irrefutable) no sé si me atreveré a añadir una cuarta, que condice muy bien con la casi divina modestia de Pierre Menard: su hábito resignado o irónico de propagar ideas que eran el estricto reverso de las preferidas por él (BORGES, 2008, p. 536, v. 1).

Segundo o narrador, que não é confiável, Pierre Menard tinha o “hábito resignado o irónico de propagar ideas que eran el estricto reverso de las preferidas por él”. Examinemos: então Menard teria o Quixote como um livro fundamental, o que é verossímil, e, para ele, as letras seriam superiores às armas. Mas, então, sobre as anacronias, de fato Menard as abominava? Ou estaria o narrador tentando justificar seus possíveis erros de julgamento sobre os gostos de Menard? Novamente, há desestabilização de certezas; se é verdade que Menard tinha esse hábito, grande parte da narrativa pode ser relida com outros sentidos. E como as vozes de Cervantes, Quixote, Menard, Borges, do narrador misturam-se, todas podem, então, ser relidas com a ironia de quem diz o contrário do que pensa. Portanto, essa escrita acaba causando um efeito de revisão de pontos de vista, de retorno ao “mesmo” para imaginá-lo “reverso”.

Consideremos, então, os outros capítulos escritos por Menard: o capítulo IX, “Onde se conclui a estupenda batalha que o galhardo basco e o valente manchego travaram”, conta-nos o momento em que o narrador, sem a continuação do livro, procura-a e encontra-a escrita em árabe: História de dom Quixote de la Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador árabe (CERVANTES SAAVEDRA, 2012, p. 122). Busca ele um tradutor para verter o texto ao espanhol; encontrando-o e tendo acesso aos escritos, antes de continuar a narrativa, faz as seguintes observações:

Se aqui se pode fazer alguma objeção sobre sua veracidade, não poderá ser outra além de ter sido seu autor árabe, já que é muito próprio dos daquela nação serem mentirosos; se bem que, por serem tão nossos inimigos, dá para entender que ele tenha antes se omitido nela do que exagerado. É o que penso, pois, quando poderia e deveria deixar correr a pena nos louvores a tão bom cavaleiro, parece que de propósito os passa em silêncio: coisa mal feita e pior pensada, havendo e devendo ser os historiadores minuciosos, verdadeiros e nada apaixonados, sem que o interesse ou o medo, o rancor ou

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a afeição façam-nos desviar do caminho da verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo [...]. Nesta sei que se achará tudo o que por acaso se deseje na mais agradável das histórias; e, se algo bom faltar nela, penso que foi por culpa do cachorro do autor, não por falta de assunto (CERVANTES SAAVEDRA, 2012, p. 124-125, grifos nossos).

Nesse capítulo específico do Quixote, há a entrada de um segundo narrador, que introduz não apenas outro suposto modo de pensar, mas que, segundo o primeiro narrador, é um mentiroso e inimigo. Novamente história, historiadores, narrativas, interesses, idealizações são colocadas em questão, com ironia.

Além disso, para continuar contando a história, o primeiro narrador precisa contá-la com as palavras, traduzidas, talvez falsas, de seu inimigo, ou seja, a escuta do “inimigo” é imprescindível para que a narrativa continue. Ouvir o outro – que é o contrário de tentar silenciá-lo e diferente de tentar lhe “dar” voz – para que a narrativa continue parece trazer uma implicação maior na relação entre as partes, pois considera não apenas a relação dialógica, mas também a necessidade de ouvir o outro como modo de continuar contando a própria história, que continua a partir de uma tradução.

É deste capítulo também o trecho que veremos adiante em que a escrita de Menard é cotejada com a de Cervantes, exatamente no ponto em que a história é colocada em questão, sendo (re)lida e/ou (re)escrita com ambiguidade. Destaco, o autor da versão traduzida é um historiador.

Eneida Medeiros Santos, no texto “É possível subverter sem o outro?” (2018), diz: “A alienação e a separação são duas operações de causação do sujeito que revelam o incrível paradoxo pelo qual o sujeito se constitui.”

o sujeito se constitui sendo inscrito pelos significantes do Outro e inscrevendo seu gozo no Outro. São as marcas dessa escritura que, persistindo enigmaticamente, ele vai ler, interpretar. Além disso, diante dela, ele também vai se angustiar. O sujeito como consciência de si não existe, “somos obrigados a nos conhecer por meio dos outros”. Tampouco o Outro existe, porque em seu interior também se inscreve um furo e é esse furo que vai permitir alojar tanto o objeto do gozo quanto o objeto do desejo. O desejo é a conjunção dessas duas faltas (SANTOS, 2018).

A questão do inimigo, do outro, do estrangeiro, no contexto espanhol de Cervantes, estava explicitamente relacionada aos árabes. No presente histórico, o inimigo continua

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aparecendo como o estrangeiro, o imigrante: mexicanos para (alguns) norte-americanos, venezuelanos para (alguns) brasileiros, sírios para (alguns) europeus.

Achille Mbembe, em Políticas da inimizade (2017, p. 8), faz algumas perguntas:

Tendo em conta tudo o que se passa, pode o Outro ser ainda considerado meu semelhante? Se aqui e agora nos encontramos rendidos aos extremos, o que deve, então, a minha humanidade à do Outro? Se o peso do Outro passou a ser tão esmagador, não seria melhor que a minha vida deixasse de estar ligada à sua presença, e a sua, à minha? Porque é que, contra todas as probabilidades, deverei velar pelo outro, estar o mais próximo possível da sua vida se, em contrapartida, ele só tem em vista a minha perda? Se a humanidade definitivamente só existe se estiver no mundo e se for do mundo, como fundar uma relação com os outros baseada no reconhecimento recíproco da nossa vulnerabilidade e finitude comuns?

Já não passa claramente por alargar o círculo, mas por tornar as fronteiras formas primitivas para afastar inimigos, intrusos e estrangeiros – todos aqueles que não são dos nossos. Num mundo mais do que nunca caracterizado pela desigualdade no acesso à mobilidade e onde, para muitos, o movimento e a circulação são a única hipótese de sobreviver, a brutalidade das fronteiras é agora um dado fundamental de nosso tempo. As fronteiras deixaram de ser lugares que ultrapassamos, para serem linhas que separam. Nestes espaços mais ou menos miniaturizados e militarizados, tudo se deve imobilizar (MBEMBE, 2017, p. 9-10).

Do texto literário de Cervantes ao texto filosófico-político de Mbembe, e seus respectivos contextos históricos, o outro, o inimigo, o estrangeiro, o fora continua repetindo-se. Segundo Mbembe:

Fanon compreendeu que só havia sujeito no acto de viver (capítulo 4). Estando vivo, o sujeito encontrava-se desde logo aberto ao mundo. Só compreendendo a vida dos outros seres vivos e dos não-vivos compreenderia a sua: que ele próprio existia como forma viva; e que podia assim corrigir a assimetria da relação, introduzindo-lhe uma dimensão de reciprocidade e de prestação de cuidados à humanidade. Por outro lado, Fanon considerava o gesto de cuidar uma prática de ressimbolização, na qual reside a possível reciprocidade e mutualidade (o encontro autêntico com o outro) (MBEMBE, 2017, p. 12).

Tal capítulo do Quixote levado a cabo por Pierre Menard coloca-nos, do modo como estamos analisando o conto até o momento, tanto a seriedade em ver um inimigo como inimigo quanto a ironia envolvida na impossibilidade da eliminação absoluta do outro. Achille Mbembe traz a proposta de antigas tradições africanas “da relação, da implicação mútua” como um modo de existência diverso do que ele denomina de “teologia da catástrofe”:

Referências

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