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Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas: reflexões sobre medicina, raça e território nacional em Gastão Cruls

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Academic year: 2021

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Andressa Marzani

Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas: reflexões sobre medicina,

raça e território nacional em Gastão Cruls

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Adriano Luiz Duarte

Florianópolis 2019

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Marzani, Andressa

Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas : reflexões sobre medicina, raça e território nacional em Gastão Cruls / Andressa Marzani ; orientador, Adriano Luiz Duarte, 2019.

273 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. História. 2. sanitarismo. 3. miscigenação racial. 4. modernismo no Rio de Janeiro. 5. Gastão Cruls. I. Duarte, Adriano Luiz. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.

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Andressa Marzani

Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas: reflexões sobre medicina,

raça e território nacional em Gastão Cruls

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Maria Teresa Santos Cunha, Dra. PPGH/UDESC

Profa. Maria Mezzomo Rodrigues, Dra. CCE/UFSC

Prof. Luiz Alberto de Souza, Dr. PPGH/UFSC

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em História.

____________________________ Prof. Dr. Lucas de Melo Reis Bueno

Coordenador do Programa ____________________________

Prof. Dr. Adriano Luiz Duarte Orientador

Florianópolis, 14 de outubro de 2019. Adriano Luiz Duarte:05045108867 Assinado de forma digital por Adriano Luiz Duarte:05045108867

Dados: 2019.10.29 12:21:56 -03'00'

Lucas de Melo Reis Bueno:151819188 67

Assinado de forma digital por Lucas de Melo Reis Bueno:15181918867 Dados: 2019.10.30 12:17:08 -03'00'

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Aos meus pais, Osmar e Maria, e as minhas irmãs, Carol e Tati. Vocês não sabem o quanto são importantes para mim.

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AGRADECIMENTOS

Ao longo do mestrado, contei com a ajuda de diferentes pessoas e instituições, sem as quais o processo teria sido muito mais difícil – quem sabe até impossível de ser executado. Em primeiro lugar, agradeço pelo apoio, compreensão e o amor da minha família, que desde o processo seletivo estiveram presentes me incentivando, apoiando minha mudança para outro estado, e me esperando com carinho a cada visita. Especialmente a Carol, cujo período como mestranda coincidiu com o meu, e nessa e tantas outras aventuras da vida dividiu comigo experiências, discussões, impressões de livros, dificuldades, alegrias, cafés e chocolates.

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Adriano Duarte, pela condução da orientação, pelas indicações de leitura e pela paciência. Por ter me apresentado novos autores e novos debates, com os quais eu ainda não estava familiarizada, trazendo outras possibilidades para a análise da literatura. Agradeço também aos colegas do Núcleo de Estudos de História, Literatura e Sociedade (NEHLIS) pelos encontros, pelas discussões, trocas de ideias e sugestões. Em especial ao Luiz, que além das conversas e afinidades, também foi uma importante companhia e, como “nativo da ilha” me apresentou a cidade e suas trilhas. A Dra. Marília Mezzomo Rodrigues, pela atenção desde as primeiras conversas no NEHLIS, as impressões sobre “curitibanices”, e pelos valorosos apontamentos, tanto em minha banca de qualificação, quanto na de defesa. As reflexões de sua tese e, principalmente, suas sugestões e comentários marcaram os rumos tomados em minha pesquisa.

Agradeço também aos professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, pelas discussões e pelo aprendizado. Aqui cabe um agradecimento especial à Professora Maria de Fátima Fontes Piazza, pela gentileza e alegria dispensada a seus alunos, e pelo interesse demonstrado por meu trabalho. Seus apontamentos e sugestões na banca de qualificação foram um alento para continuar a pesquisa, e uma indicação do caminho a seguir. Sou grata também aos debates trazidos pelos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura, durante as duas optativas da área de que participei. Por fim, um agradecimento aos membros de minha banca de defesa, que muito contribuíram para o formato final que este trabalho ganhou.

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Aos colegas e amigos que fiz no percurso do mestrado, sou grata pelos aprendizados compartilhados, pelas conversas e por todo o apoio: Natália, Lídia, Priscila, Natan, Rodrigo (Urso), Raisa, Thiago, Juan, Josy, Lucas [in memorian], Dani, Rodrigo Candido, Kelly, Cissa, André Luiz, Arielle, Jana, Jessica, Lê, Ana Carolina, Silvia, e tantos outros. O companheirismo que demonstraram foi essencial para que eu pudesse me sentir “em casa”, mesmo em uma universidade que me era até então desconhecida. Meu obrigado à Cecília, a Maíra e ao Bruno, por serem uma boa companhia tanto em manifestações de rua como em festas de final de ano, pelas risadas e por sua alegria. À Cassi, pelas palavras sempre gentis, pelas pedaladas e outras aventuras, que me ajudaram a suportar os dias mais difíceis. À Emily pela amizade, pelos cafés, pelas risadas e pelo apoio imenso, durante a dissertação e depois, em todos os caminhos que resolvi seguir.

Agradeço ainda aos moradores que passaram por aquela república na rua Luiz Pasteur em que vivi por dois anos: os colegas de mestrado André (Carrinho) e Isaac, Tales, Gustavo, Kath, Marie, Nelsinho, Rafa, Marina e também a Ana, com quem acabei convivendo só poucas semanas. Minha estadia na ilha não teria tanta graça se não eu tivesse dividido as alegrias e agruras do cotidiano com vocês. Muito obrigada pelas inúmeras conversas regadas a café, as sessões de série, as festas e todo o resto!

Meu obrigado aos amigos e familiares em Curitiba e região metropolitana, que devido à distância eu por vezes pouco vi, mas que tornaram as idas e vindas mais alegres. Entre tantos que os encontros e desencontros da vida proporcionaram, não posso deixar de citar: Carlos, Leda, Bruna, Nay, Nayamin, André, Monique. Os amigos Arlindo, Jones e Bárbara, sempre tão contestadores. Os companheiros de trilhas (e outras aventuras nada saudáveis) Gil, Yvy, Lize, Debora, e também o Jones, o Arlindo e meu primo Paulo Vitor. Sou grata ainda aos muitos tios, tias, primos e primas, que mesmo longe, sempre marcaram presença com seu carinho.

Ao Diego, que levou comigo esse último ano de escrita da dissertação, e me acompanha nos caminhos pelo sul do país e outros afora, me apoiando com seu amor, sua paciência e as delícias culinárias que prepara pra mim.

Essa pesquisa foi facilitada pelo apoio financeiro conseguido com a bolsa de estudos concedida pela CAPES durante o mestrado.

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“Por muito tempo fui uma pessoa dos livros: a realidade me assustava e atraía. Desse desconhecimento da vida surgiu uma coragem. Agora penso: se eu fosse uma pessoa mais ligada à realidade, teria sido capaz de me lançar nesse abismo? De onde veio tudo isso: do desconhecimento? Ou foi uma intuição do caminho? Pois a intuição do caminho existe...”

(Svetlana Aleksiévitch, A guerra não tem rosto de mulher, 2015)

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RESUMO

A década de 1920 ficou conhecida por ser o período em que uma concepção de Brasil moderno ganhou corpo, formulando pontos de vista, diagnósticos e projetos que marcaram as gerações subsequentes. Contudo, o movimento da modernidade brasileira já estava sendo gestado desde as décadas anteriores, em um processo complexo de transformações, rupturas e continuidades. Nesse ínterim, uma parte importante dessas discussões esteve relacionada a questões médicas, diante das novas descobertas científicas e da ascensão de uma classe médica, que iria cada vez mais reivindicar para si a participação na construção dos rumos da nação. Nesse sentido, premissas médicas como saneamento, higiene, miscigenação racial, eugenia e saúde pública passaram a fazer parte dos debates mais amplos da sociedade. Entendendo que a literatura desempenhou importante papel na formulação dessas visões e projetos nacionais, o presente trabalho tem por objetivo analisar as primeiras obras do escritor e médico carioca Gastão Cruls (1888-1959), com o intuito de fomentar o debate sobre a relação entre as questões médicas, a produção literária e a construção de identidades nacionais desenvolvido entre as décadas de 1910 a 1930. Cruls formou-se em medicina em 1910, mas abandonou a profissão por volta de 1926, em prol de sua carreira como escritor. Contudo, sua produção literária está permeada pelas discussões médicas do período, como os limites éticos dos experimentos científicos, o sofrimento humano, a dificuldade de cura para algumas doenças, a morte. Desta forma, Cruls projetou, através da literatura, anseios, questionamentos e reflexões próprias do exercício médico. Do mesmo modo, expressou ideias e debates da medicina do período, entre eles o saneamento das zonas rurais e os projetos de melhorias para a nação. Assim sendo, este trabalho tentou observar as fontes literárias como chave para o entendimento das diferentes visões de Brasil em desenvolvimento.

Palavras-chave: Sertões. Sanitarismo. Miscigenação racial. Modernismo no Rio de

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ABSTRACT

The 1920 decade was known as the period in which a conception of modern Brazil took form, formulating points of view, diagnoses and projects as which would mark the subsequent generations. However, the movement of Brazilian modernity was already being developed from previous decades, in a complex process of transformations, ruptures and continuities. In this context, a important part of this new discussions passing by medical issues, new scientific discoveries and the rise of a medical class, based on the opening of colleges and the expansion of positions, would increasingly claim for themselves the participation in construction of the nation's directions. In this sense, medical premises such as sanitation, hygiene, racial miscegenation, eugenics and public health have become increasingly part of society's broader debates. Understanding that the literature played an important role in the formulation for national visions and national projects, this paper aims to analyze the first works of Gastão Cruls (1888-1959), born in Rio de Janeiro, in order to stimulated debate on the relationship between medical issues and the construction of identities developed between 1910 and 1930. The 1920s was known as the period in which a conception of modern Brazil took form, formulating points of view, diagnoses and projects that have marked the subsequent generations. However, the movement of Brazilian modernity was already being developed from previous decades, in a complex process of transformations, ruptures and continuities. In the meantime, an important part of these discussions was related with medical issues, new scientific discoveries and the rise of a medical class, would increasingly claim for themselves the participation in the construction of the nation directions. Therefore, medical premises for instance sanitation, hygiene, racial miscegenation, eugenics and public health became part of further debates of society. Understanding that the literature played an important role in the formulation for national visions and national projects, this paper aims to analyze the first works of writer and doctor Gastão Cruls (1888-1959), born in Rio de Janeiro, in order to stimulated the debate on the relationship between medical issues, the literary production and the construction of national identities developed between the decades of 1910 and 1930. Cruls graduated in medicine in 1910, but ended his profession by 1926, on behalf of his career as a writer. However, his literary production is permeated by medical discussions of the period, such as the ethical limits of scientific experiments, the human suffering, the difficulty of cure for some diseases, death. In this way, Cruls projected, through the literature, expectations, inquiries and reflections of the medical practices. Morover, he expressed ideas and debates of the medicine of the period, including rural sanitation and improvement projects to the nation. Consequently, this present study tried to observe the literary sources as a key to the understanding of the different views of Brazil developing.

Keywords: Sertoes. Sanitarism. Racial miscigenation. Modernism in Rio de Janeiro.

Gastão Cruls.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

1 A MODERNIDADE CARIOCA, DA “ALMA ENCANTADORA” (E BOÊMIA) DAS RUAS AO ESPIRITUALISMO CATÓLICO ... 25

1.1 MARCOS DE UMA CULTURA DO MODERNISMO NO BRASIL ... 29

1.2 O MODERNISMO NO RIO DE JANEIRO ... 44

1.2.1 “O Rio civiliza-se” ... 44

1.2.2 A vida literária carioca: um caldo de cultura heterogêneo ... 49

1.2.3 Quixotes e turunas ... 64

1.2.4 O Grupo de Festa ... 71

1.3 UM MÉDICO NO FANTÁSTICO MUNDO DAS LETRAS ... 78

2 INCURSÕES PELA AMAZÔNIA FICCIONAL DE CRULS ... 92

2.1 A IMENSIDÃO CÓSMICA DA AMAZÔNIA ... 97

2.1.1 Os contatos com grupos indígenas ... 104

2.1.2 O “duende” da Amazônia ... 110

2.2 INTERPRETAÇÕES DO BRASIL ... 114

2.2.1 De médico interessado na literatura a escritor interessado nas discussões médicas ... 117

2.2.2 A cidade das icamiabas ... 126

2.3 DESCOBERTAS... 135

2.3.1 Ficção e eugenia ... 148

2.3.2 A Festa das Pedras Verdes ... 174

2.4 OS LIMITES DO PROGRESSO E DA UTOPIA ... 179

3 FACETAS DA EXPERIÊNCIA MÉDICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: DAS EPIDEMIAS TROPICAIS ÀS REFORMAS SANITÁRIAS URBANAS ... 191

3.1 UM BANQUETE DE MORTÍCOLAS ... 194

3.2 DO HOMEM DE CIÊNCIA, A CRÍTICA À RELIGIÃO ... 215

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3.3.1 A doença como niveladora social ... 219

3.3.2 A gestão Oswaldo Cruz ... 223

3.3.3 O saneamento rural ... 227

3.4 A EXPERIÊNCIA DE GASTÃO CRULS NA COMISSÃO DE SANEAMENTO RURAL ... 234

3.4.1 O sertão ficcional de Cruls ... 234

3.4.2 Modernidade e decadência ... 241

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INTRODUÇÃO

Em tempos de crise política e econômica como o atual, forças antagônicas em disputa tomam emprestadas várias interpretações do país, remetendo a diferentes períodos de nossa história e ressignificando-os. Entram em conflito diversas visões do que é o Brasil, qual é o melhor caminho em termos de políticas públicas ou de economia a ser tomado, enfim, a que projeto se atentar. Permeando essas discussões, está a ideia de um país moderno – seja aquele que se moderniza porque flexibiliza suas leis trabalhistas, em prol de maior produtividade, ou aquele que é moderno porque concilia lucros e produção com preocupações com o meio ambiente ou com a qualidade de vida dos trabalhadores.

Diferentes contornos esse debate ganhou ao longo do século XX, não cabendo aqui uma discussão detalhada; contudo, sua gênese está, certamente, na década de 1920. Foi o período em que a concepção de Brasil Moderno tomou corpo, ganhando pontos de vista, hábitos e diagnósticos que marcariam várias gerações. A concepção de “moderno”, que já vinha se delineando desde fins do século XIX, emerge de maneira clara nesta década e na posterior. Influenciou não apenas “nossa maneira de ver e pensar o mundo, com enorme legitimidade, até, pelo menos, meados dos anos 60, como também nos forneceu retratos do Brasil com que temos lidado até hoje”1– sendo o limite para o “hoje”, para os autores, a década de 1970 em diante, considerada de início da crise desse modelo.

Apesar de anterior, nos anos 1920 foi que a decepção com os rumos do regime republicano se tornou incontornável. Tratou-se de uma crise da oligarquia e descrença quanto à capacidade do excludente sistema liberal de criar uma sociedade nova. No âmbito dos debates intelectuais, questionamentos até então inéditos foram levantados, influenciando as décadas seguintes. E

não apenas concepções tradicionais são atacadas, mas também as instituições republicanas – identificadas com uma legalidade que não tem correspondência no real –, elevando o pathos de ruptura, trazendo à tona novos atores e a problemática dos direitos e da participação.2

1 HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 11.

2LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, Helena e COSTA, Wilma (org.). A década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: UNESP, 1997. p. 93-114. p. 95.

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Nesse sentido, o ano de 1922 é emblemático: foi o ano em que ocorreu a cisão intraoligárquica mais contundente, quando da indicação dos nomes para a sucessão de Epitácio Pessoa3; bem como o movimento dos 18 do Forte de Copacabana – dissidência militar que, apesar de logo sufocada, demonstrou o descontentamento de algumas camadas médias, e culminou no movimento tenentista. Além disso, eventos como a comemoração do Centenário da Independência, a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a criação do Centro Dom Vital, espaço da militância católica leiga, e o movimento modernista, implicaram em mudanças significativas do cenário político e cultural do país. No cerne desses acontecimentos, a necessidade de modernização da nação e seu futuro projetado, para a qual concorriam múltiplas e por vezes divergentes propostas4.

Parte importante desses projetos para o país passava por questões médicas: sanitarismo, saúde pública, higiene e eugenia, bem como a aplicação desses temas em áreas como urbanismo, educação e trabalho. Com as novas descobertas científicas, que permitiram avanços na área, além da abertura de Faculdades de Medicina e a ampliação de postos e cargos, as premissas médicas passaram a fazer cada vez mais parte do debate público, ao sabor de correntes de pensamento diversas, gerando acaloradas discussões e orientando políticas públicas.

Exemplo disso pode ser visto na importância que o discurso higienista deteve nas primeiras décadas do século XX. Muitas expedições foram enviadas aos lugares mais recônditos do país, em busca das raízes dos males nacionais – como as viagens empreendidas pelos médicos ligados ao Instituto Oswaldo Cruz. De acordo com Marília Mezzomo Rodrigues5, havia um esforço na divulgação em larga escala das informações recolhidas, bem como dos avanços da medicina de modo geral. Tentando levar a cura e a erradicação das doenças para diversas partes do país,

3 FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org). O Brasil

republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de

1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 387- 415.

4 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 49.

5 RODRIGUES, Marília Mezzomo. Filho de tigre sai pintado: medicina, hereditariedade e identidade nacional em textos de Érico Veríssimo. 2009. 184f. Tese (Doutorado em História) – Universidade

Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em:

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esses profissionais queriam também chamar a atenção das populações citadinas e das autoridades para a situação precária das regiões mais afastadas6.

Para Micael Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira, os especialistas dos saberes técnicos relacionados à medicina, à educação e à engenharia, em conjunto com a geração literária de 1920, elaboraram discursos paradigmáticos sobre a modernidade, cristalizados na década subsequente7. Por volta dos anos 1930, essa influência poderia ser mais claramente observada:

A eugenia e a miscigenação eram temas obrigatórios dos debates, a higiene já fazia parte dos currículos escolares e os médicos também queriam para si a missão de construtores da nação, partindo de ideias como saneamento, saúde e doença e seus reflexos no mundo do trabalho e na formação das futuras gerações.8

Considerando então essa efervescência política e cultural dos anos 1920, esse trabalho se propõe a analisar algumas obras literárias do médico e escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959), partindo das fontes para tentar entender as discussões sobre medicina do período, bem como sua relação com os projetos de nação emergentes. Entrei em contato com esse autor – hoje praticamente desconhecido fora de alguns meios literários e acadêmicos – pela primeira vez ainda nos anos finais da graduação, através de um capítulo da coletânea Nas tramas da ficção: História, Literatura e Leitura, de organização de Clóvis Gruner e Cláudio DeNipoti (2009). À época, meus interesses de pesquisa eram outros; no entanto, meu trabalho já contemplava a utilização de fontes literárias na pesquisa histórica.

O capítulo em questão abordava discursos eugênicos na literatura do início do século XX, trazendo-me um novo nome: Gastão Cruls, um médico que atuara também como escritor, e autor de um dos primeiros romances considerados de ficção científica (ou algo congênere) no Brasil, A Amazônia misteriosa (1925). Uma das coisas que mais me chamou a atenção em sua biografia, além da suposta “paternidade” de algum gênero, foi o fato de que Cruls iniciou sua carreira como médico, mas em algum momento trocou a medicina pelo exercício da literatura.

No entanto, a curiosidade ficaria guardada por algum tempo, até que, dois anos mais tarde, eu retornasse ao autor. Por conta de uma disciplina do curso de

6 Ibid., p. 15-16.

7 HERSCHMANN; PEREIRA, op. cit., p. 46. 8 RODRIGUES, op. cit., p. 9.

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Especialização em Literatura Brasileira e História Nacional da UTFPR, entrei em contato com alguns contos do autor9. A partir daí, decidi me aprofundar em sua obra, partindo da interessante relação entre medicina e literatura. Além disso, o fato de ser um autor ainda pouco conhecido fora dos meios acadêmicos e especializados (e ainda pouco estudado dentro desses) me motivou a dar continuidade à pesquisa.

Gastão Cruls se formou em Medicina em 1910, e atuou nos anos seguintes como médico sanitarista na Comissão de Saneamento Rural. Cultivou um interesse paralelo pela literatura, passando a publicar alguns contos na Revista do Brasil, por volta do fim da década de 1910, ainda sob pseudônimo. Com o tempo, acabou abandonando o exercício da profissão para se dedicar à literatura e a atividades culturais correlatas. Entre as décadas de 1920 a 1950, lançou três livros de contos e cinco romances, além de relatos de viagens, o estudo histórico Aparência do Rio de Janeiro, e de Antonio Torres e seus amigos, uma compilação de cartas e discursos do escritor mineiro.

O autor frequentou alguns círculos literários e manteve contato com nomes como Alberto Rangel, Antônio Torres, Gilberto Amado e Monteiro Lobato10. Além disso, durante a década de 1930 administrou a editora Ariel, juntamente com Agripino Grieco. A editora manteve, entre 1931 e 1939, o Boletim de Ariel, mensário de Literatura, Artes e Ciências – e segundo Lawrence Hallewel, “a revista literária mais importante da época”11. Ao falecer, em 1959, Cruls deixou ainda dois romances inacabados.

Desde os primeiros contos, sua escrita dialoga com suas experiências enquanto médico. Em alguns casos, o autor se utiliza de cenas que presenciou na

9 Para o artigo final dessa disciplina, selecionei à época o conto “G.C.P.A.”, do livro Coivara (1920). Neste texto, um enfermeiro fica doente e é internado na própria clínica em que trabalhava, passando a questionar procedimentos e cuidados que antes achava normal. Uma das mais expressivas narrativas de Cruls sobre as questões éticas que envolvem a medicina, apresenta em um dos trechos a expressão “[...] zêlo farisaico de mortícolas”, para se referir aos cuidados dos residentes com seus pacientes – mais interessados nas possibilidades de pesquisa científica, do que na cura das doenças (CRULS, 1951, p. 39). O termo aparece em outros momentos, geralmente relacionado a “banquete”, “carneada” e a outras palavras que imprimem o terror e o descaso ao atendimento médico do início do século no país; por isso, foi escolhido para figurar no título do presente trabalho.

10 MENEZES, Raimundo de. Verbete “Gastão Luís Cruls”. In: ___________. Dicionário literário brasileiro ilustrado. Vol. II. São Paulo: Edição Saraiva, 1969. p. 411-412.

11 HALLEWEL, Lawrence. O livro no Brasil: sua história; trad. Maria da Penha Villalobos e Lólio Lourenço de Oliveira, revista e atualizada pelo autor. São Paulo: T.A. Queiroz: Ed. da Universidade de São Paulo, 1985. p. 345.

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Paraíba do Norte12, enquanto médico sanitarista. Em outros, sua escrita suscita discussões sobre a capacidade de cura da Medicina, ou a face antiética que a ciência (ou seus profissionais) poderia apresentar. Expressando na literatura sua experiência enquanto profissional e seus contatos com a produção científica, Cruls constitui uma importante fonte de observação dos diversos debates, visões e projetos de nação que ganharam força durante a década de 1920.

O diálogo entre a produção do conhecimento histórico e a produção literária em âmbito acadêmico vem já de algum tempo. Este já ultrapassou antigas posturas que observavam, no caso dos estudos literários, a estrita contextualização histórica do período de em que a obra e seu autor estavam inseridos; e no caso da historiografia, a narrativa literária apenas enquanto “ilustração complementar” dos fatos históricos apurados. Outros enfoques enriqueceram essa relação, abarcando a complexidade das novas formas de percepção da realidade e novas definições sobre os limites de cada campo, ampliando as discussões sobre as proximidades e distâncias entre os mesmos.

No que se refere à escrita da História no Brasil, temos a partir dos anos 1980 o surgimento de diversas obras historiográficas que discutiram o literário, seja a partir do estudo da obra como ponto de inquirição pelo historiador, seja tomando a literatura como substrato para o estudo das percepções, sentimentos, representações, enfim, todos os aparatos de construção de um imaginário de determinada época13. Um dos primeiros exemplos nesse sentido é a obra Literatura

como missão, de Nicolau Sevcenko, de 1983. O autor aparece no cenário historiográfico brasileiro como o primeiro historiador a utilizar a literatura como ponto de partida para uma análise de determinado período, observando os embates, tensões e disputas sociais presentes na escrita, caminho que viria a ser ampliado posteriormente.

Em sua especificidade, a literatura compõe-se de forma expressiva ficcional alçada à condição de obra de arte por seu valor estético e narrativo, e cujo produtor figura atualmente como artista, em um processo de individualização. Trata-se de

12 Antiga denominação do atual estado da Paraíba.

13 CAMILOTTI, Virgínia, NAXARA, Márcia Regina C.. História e literatura: fontes literárias na produção historiográfica recente no Brasil. História Questões & Debates, Curitiba, n. 50, p. 15-49, jan./jun.

de 2009. Disponível em:

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criação que se utiliza, em maior ou menor grau, de resíduos da realidade, ficcionalizando-os, relacionando sentimentos, imagens e percepções com a preocupação com questões estéticas. A produção literária também pode ser considerada um processo histórico, visto que o texto só existe enquanto parte de uma dinâmica histórica, mutável. Uma obra não tem um sentido estático: seus significados e sentidos podem mudar ao longo do tempo, a partir de suas releituras, das críticas, de sua recepção, de sua própria materialidade enquanto objeto.

Deste modo, embora ficção assumida, a literatura contém elementos do real, diluídos em fronteiras flexíveis entre a invenção e as reinterpretações. Nesse sentido, partiu-se, aqui, do pressuposto de que a literatura também elaborou discussões fundamentais para o período, e não apenas se serviu delas como material. De acordo com Antonio Candido, as grandes expressões de pensamento e de sensibilidade têm no Brasil geralmente assumido a forma literária, caracterizando a literatura como “o fenômeno central da vida do espírito”14 do país, mais do que a filosofia ou as ciências sociais.

E completa:

[...] a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros.15

Reconhece-se, aqui, a literatura enquanto uma categoria social e histórica, sem diminuição de sua especificidade e importância, mas considerada em seus termos de forma particular de desenvolvimento social da linguagem, marcada por conflitos, mudanças e transições16.

Assim sendo, evitou-se fazer aquilo Candido chama de “ponto de vista paralelístico”17, que consiste em separar alguns aspectos sociais ou históricos, e encontrar seus correspondentes na obra literária, sem delinear a real interpenetração entre essas duas esferas. Para Candido, apenas uma análise

14 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. revisada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p.136.

15 Ibid., p. 138-139.

16 WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Penísula, 2000. p. 59-66.

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dialética da obra, que una texto e contexto, possibilitará sua compreensão de maneira abrangente. “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”18

A opção proposta neste trabalho foi a leitura de alguns contos das três primeiras publicações de Cruls: Coivara (1920), Ao embalo da rede (1923) e Quatuor – “quatro historietas ou que outro nome tenham [...] divulgadas pela Revista do Brasil (2ª fase), de fim de 1926 a começo de 1927”19, e presentes na coletânea Contos

reunidos, de 1951. Além disso, o romance A Amazônia misteriosa (1925) também foi analisado. Por outro lado, ficaram de fora da seleção os romances Elza e Helena (1927) e A criação e o criador (1928), bem como o livro de contos História puxa

história (1938) e as demais obras produzidas na década seguinte – que de certa

maneira marcam um novo momento, de teor psicológico20, que destoam de suas primeiras produções.

A leitura das obras ficcionais foi complementada também por correspondências trocadas entre o autor e outros escritores, disponíveis no acervo literário da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e outras fontes do período, como algumas críticas literárias, resenhas de livros publicadas em periódicos, e afins. Buscou-se também a relação entre as fontes e as discussões presentes no Boletim de Ariel, revista literária editada por Gastão Cruls na década de 1930, e outras fontes literárias brasileiras e estrangeiras do período.

Apesar de temática heterogênea, vários dos contos dialogam com as experiências do autor na área da saúde. Ao embalo da rede, por exemplo, parte da vivência de Cruls enquanto médico sanitarista na Paraíba. Em muitos, está a imagem constante da doença, por vezes associada a problemas sociais, à decadência moral, ou a questões de regiões específicas, geralmente áreas rurais. Não raro, está a figura do médico desiludido com sua profissão, o que parece ter sido uma constante em sua vida.

Em A Amazônia misteriosa, por sua vez, o personagem principal também é um médico que abandonou o exercício da medicina. Perdido com uma expedição em

18 Ibid., p. 13.

19 CRULS, Gastão. Contos reunidos. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1951. p. 7.

20MOISÉS, Massaud; PAES, José Paulo (Orgs.). Verbete “Gastão Luís Cruls”. In: _______________. Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967. p. 83.

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plena floresta amazônica, o protagonista trava contato com uma tribo peculiar, composta só de mulheres, a exceção sendo apenas um cientista alemão e sua esposa francesa, hospedados na aldeia. Ao longo de situações estranhas, o protagonista descobre que o cientista está conduzindo experimentos com as crianças do local. Com essa premissa, Gastão Cruls aborda as teorias evolucionistas, a miscigenação racial, a eugenia e a degenerescência, debates importantes e constantes da literatura produzida no período (RODRIGUES, 2009; IACHTECHEN, 2008; SILVA, Alexander, 2008).

Desta forma, tendo como foco esse eixo temático, tentei aprofundar o debate sobre as questões que envolvem a saúde e o exercício da medicina, e sua relação com as discussões sobre a identidade nacional e os projetos de Brasil então emergentes. Embora a parca produção acadêmica sobre Cruls se volte majoritariamente para A Amazônia misteriosa, sua obra mais conhecida, o enfoque aqui proposto buscou iluminar aspectos do romance ainda pouco discutidos por outros estudiosos, relacionando-o também a outras produções do autor, em uma continuidade de temas e vieses que não podem ser dissociados nem de sua trajetória particular, nem das discussões mais amplas do período.

O recorte efetuado compreende as duas primeiras décadas do século XX, de efervescência do debate, e em cujos limites as obras selecionadas foram produzidas. Contudo, embora entendendo a década de 1920 como referência na emergência de um “Brasil moderno”, optei por tentar apreender o processo que levou a essa mudança em níveis políticos, econômicos, sociais e culturais – retrocedendo, portanto, ao fim do século XIX. Por outro lado, tentei também estender os limites do estudo até o início da década de 1930, tendo em vista os desdobramentos gerados por esses novos debates.

Do mesmo modo, falar sobre literatura brasileira na segunda década do século XX é falar sobre o modernismo e a Semana da Arte Moderna de 1922, seja o autor em questão participante ou não dos quadros modernistas. Deve-se levar em conta a dinâmica de relacionamento entre os diversos grupos no interior do movimento, as disputas modernos x anti-modernos/anti-modernistas, e as influências que o movimento exerceu na produção literária brasileira como um todo. Nesse sentido, fez-se necessário partir da problematização dos conceitos de modernidade e modernismo, reavaliando seus pontos de contato e dissensão, e reconsiderando a

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multiplicidade e a variabilidade de projetos, por vezes conflitantes, para os quais diferentes grupos e produções apontavam.

Assim sendo, o primeiro capítulo tentou dar conta desta problemática, repercutindo o atual debate historiográfico sobre a Semana da Arte Moderna de 1922 e o movimento modernista – em especial no que concerne ao modernismo no Rio de Janeiro, cidade em que Gastão Cruls nasceu e produziu grande parte de sua vida. Pois afinal, “a história dos primórdios da República é indissociável da história da cidade, que exerce influência significativa no mundo da cultura”21. Do mesmo modo, tentou-se também recriar a vida literária da cidade, inserindo o autor nela, a partir dos dados biográficos levantados sobre o mesmo.

De acordo com Raymond Williams, o ser social determina a consciência, e toda consciência é social. Endossando sua teoria, está a ideia de “determinação”. Não se trata, contudo, da ideia corrente que se tem do termo, geralmente associado a uma objetividade abstrata, em que os indivíduos não conseguem controlar o seu destino; mas sim, de limites dentro do possível histórico.

[...] la ‘sociedad’ nunca es solamente uma ‘cáscara muerta’ que limita la realización social e individual. Es siempre un proceso constitutivo con presiones muy poderosas que se expresan en las formaciones culturales, económicas y políticas y que, para asumir la verdadera dimensión de lo ‘constitutivo’, son internalizadas y convertidas en ‘voluntades individuales’.22 Tendo em vista esse pressuposto, foi que os dados sobre a trajetória do autor e sobre a vida literária carioca foram levantados e analisados. Deste modo, buscou-se refletir sobre a mudança de profissão por parte de Gastão, sua atuação na literatura, de que grupos participou. Como homem de seu tempo, Cruls vivenciou sua carreira e a compreendeu de determinado modo; suas acepções, sentimentos e frustrações não podem de todo ser dissociadas de uma vivência social do que era ser médico no período, considerando-se então todas as vicissitudes das mudanças tecnológicas e científicas, a que cada indivíduo respondia de maneiras variáveis ou até contraditórias.

Nesse sentido, um autor nunca é um sujeito desligado de seu meio. Mesmo quando parece um indivíduo único, “fora de seu tempo [histórico]” – expressão

21 VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 32.

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comumente usada para designar autores e obras conhecidos por sua originalidade e criatividade –, essa expressão se dá no convívio em sociedade. Não é possível, como afirma Raymond Williams, compreender a totalidade das vidas somente juntando uma experiência individual a outra23. Assim sendo, buscou-se aqui apreender as acepções dinâmicas da formação social, do desenvolvimento individual e da criação cultural relacionados a Gastão Cruls; e, ainda, as tensões e contradições reais das relações entre o indivíduo e a sociedade.

A reconstituição da vida cotidiana e literária do período foi feita tendo como fontes a obra de Brito Broca (1975), crítico literário e jornalista que viveu entre 1923 e 1961 no Rio de Janeiro, entrando em contato com os diversos movimentos literários e discussões estéticas do período; e os escritos de Luís Edmundo (2001), um jornalista e escritor carioca que atuou em diferentes áreas culturais (poesia, crônica, teatro) ao longo das primeiras décadas do século, participando ativamente do movimento chamado de “boêmio”. Além disso, tentei abarcar os debates da historiografia atual sobre o tema, sobretudo Monica Pimenta Velloso (1996; 2003) e Angela de Castro Gomes (1993; 1999). Esses elementos foram trabalhados conjuntamente, com o objetivo de apreender com quais correntes literárias Gastão Cruls dialogava, de que ideias partilhava, as redes de sociabilidade com as quais entrou em contato, etc.

No segundo capítulo, tentei dar conta da análise do romance A Amazônia misteriosa, tendo por balizas as discussões sobre gêneros narrativos, dado o romance apresentar elementos da narrativa fantástica (TODOROV, 1981), dos romances de aventura e do romance científico ou do que seria posteriormente caracterizado como ficção científica (CAUSO, 2003; SILVA, Alexander, 2008; SKORUPA, 2002). Do mesmo modo, a temática abrangente de romances sobre a Amazônia, diversa e profícua, possibilitou a relação entre diversas narrativas ficcionais que abordaram a região. Desde o primeiro contato com o ambiente amazônico até a leitura de outras obras sobre a floresta, tentei reconstruir um processo de contatos, amizades e leituras que fomentaram a criação ficcional da Amazônia de Cruls.

Seus contatos com a região foram muito além de sua escrita ficcional. De fato, o autor a conheceria em 1928, em comissão liderada por Candido Rondon, que

23 Ibid., p. 221-224.

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resultou no diário A Amazônia que eu vi, publicado em 1930. Retornaria em 1938, recolhendo o material que posteriormente seria publicado em Hiléia amazônica: aspectos da flora, fauna, arqueologia e etnografia indígenas (1944). Na impossibilidade de abarcar essas obras em minha análise, tentei me focar na produção ficcional do autor e em sua relação com outras produções do período.

A influência mais nítida notada nas obras de Cruls foi a de Euclides da Cunha. Não apenas as observações que o autor de Os sertões fez sobre a região amazônica, escritos derivados de sua experiência no Alto Purús, em 1904, e que só foram publicados postumamente em À margem da história (1909). Mas uma visão mais geral, presente tanto em sua obra máxima quanto nas publicações posteriores, que tentava recuperar positivamente a imagem do homem do interior, um discurso de denúncia do abandono e das péssimas condições em que viviam sertanejos, trabalhadores da borracha, homens simples do campo.

Do mesmo modo, a narrativa me levou a entrar em contato com os debates sobre eugenia, raça e miscigenação, indissociáveis dos projetos de nação debatidos no período. Tentando entender as visões de mundo e proposições particulares presentes na obra, e relacionando-as à trajetória intelectual e particular do autor, retomei as discussões sobre eugenia feitas por Marília Mezzomo Rodrigues (2009), Nancy Stepan (2004) e Pietra Diwan (2007). Destarte, a tentativa foi entender como esses debates aparecem na obra ficcional de Cruls, associando-o ao seu contexto geral de produção.

Por fim, o terceiro capítulo concentra a análise de alguns contos dos livros

Coivara, Ao embalo da rede e as “historietas” de Quatuor, todos publicados nas duas

primeiras décadas do século XX. A opção escolhida foi fazer um recorte que privilegiasse as temáticas explícitas da medicina, como em “G.C.P.A.” e “A eutanásia”, ou que tocassem de alguma maneira experiências particulares de Gastão Cruls enquanto médico sanitarista, como os contos “Ao embalo da rede” e “Biró”, derivados de sua experiência na Paraíba. A partir das fontes, tentei brevemente elaborar uma história do exercício da medicina no início do século, me apoiando nas discussões feitas por Gilberto Hochman (1998), Luiz Antonio de Castro Santos (2004), Dominichi de Miranda Sá (2006), Simone Petraglia Kropf (2009), bem como várias discussões produzidas pelo Instituto Fiocruz.

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Assim sendo, os rumos dos debates acabaram por me levar entre a diferenciação entre cidade e campo, os diferentes tipos de projetos nacionais em questão, as visões por vezes antagônicas entre o habitante do campo e o morador da cidade. Ainda que rapidamente, tentei abarcar esse enfoque dentro da literatura, onde foi observada a predominância da visão euclidiana – que, aliás, estava em consonância com uma visão mais geral do movimento sanitarista do período – do sertanejo alquebrado por conta da miséria e do péssimo estado de saúde em que se encontrava. Nesse sentido, fazia-se necessário sanear os sertões, domá-los, levar a ideia de “civilização” aos lugares mais recônditos.

Tomando esse rumo, o presente trabalho tentou dar conta de entender parte da produção literária de um autor hoje desconhecido, e também ainda pouco discutido em meios acadêmicos, mas que, contudo, passou por relativo reconhecimento e popularidade nas primeiras décadas do século XX. Além disso, produziu obras ficcionais que perpetuaram ou endossaram visões sobre o Brasil, em cujas páginas se pode apreender um pouco mais dos debates e projetos de nação do período, que envolviam diferentes regiões do país, diferentes habitantes, e também diferentes alternativas para os problemas mais urgentes.

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1 A MODERNIDADE CARIOCA, DA “ALMA ENCANTADORA” (E BOÊMIA) DAS RUAS AO ESPIRITUALISMO CATÓLICO

“A paisagem que me rodeia, não é mais inédita: conta-me a história comum da cidade e a longa elegia das dores que ela presenciou nos segmentos de vida que precederam e deram origem à minha.”

(Lima Barreto).

A literatura produzida entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX está localizada pela crítica, de maneira geral, dentro do “Pré-modernismo”. Este termo está tensionado no período intervalar compreendido pelo desaparecimento da Geração de 1870 e pelo crepúsculo do Realismo, de um lado; e pela eclosão do movimento modernista em 1922, de outro. Compreenderia, sobretudo, uma produção literária conhecida por sua estagnação em termos temáticos e estéticos. Poucas obras teriam conseguido criar fissuras na consciência dominante, capazes de apreender as diferenças entre as várias regiões do país e destas com a cultura oficial24. No entanto, diversos estudos têm problematizado essa conceituação nos últimos anos.

Para Sergio Miceli25, o termo “pré-modernista”, consolidado em nossa historiografia literária, e intimamente relacionado a uma visão específica de “modernismo”, constituiu um “recurso político” sob o qual se uniformizou diversas tendências e uma produção variada. Desta forma, cristalizou-se uma imagem de estagnação literária, de escritores deslocados de grandes causas políticas. Na contramão dessa imagem, Miceli recupera sua importância para o desenvolvimento da profissionalização do trabalho intelectual. Para o autor, o período foi fundamental para a expansão da atividade intelectual no país, ajudando na construção do campo tal como o conhecemos hoje.

Do mesmo modo, discorre em outra obra:

Por força de uma série complexa de injunções atinentes ao poderosíssimo efeito de dominação simbólica exercido até bem pouco tempo atrás pelos competitivos “herdeiros” do movimento modernista, a maioria das leituras e

24 BOSI, Alfredo. Pré-modernismo e modernismo. In: ___________. História concisa da literatura brasileira. 3ª ed, 13ª tiragem. São Paulo: Cultrix, 1989. p. 341-428. p. 345-346; 375.

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interpretações da história cultural contemporânea no país – Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Fernando de Azevedo, Antonio Candido, Wilson Martins, os concretistas, cada uma dessas vertentes instituindo hierarquias distintas em seu panteão de “admirações” e “recusas” – mostrou-se inescapavelmente impregnada dos princípios e dogmas do cânon literário, podendo assim estender seus procedimentos aos demais campos de expressão artística, as artes plásticas em particular.26

Criou-se então um paradigma, retomado e consolidado ao longo das décadas de 1940 a 1960 por diversos intelectuais. Vale ressaltar que os próprios modernistas auxiliaram nessa construção, visto que se entendiam enquanto vanguarda, percebido tanto nas palavras de Mário de Andrade, para o qual “São Paulo tocou o sino”, quanto nas de Menotti de Picchia, de orientação estética diversa, que falava em uma “bandeira futurista” (e paulista) no país27. Nesse sentido, para Sergio Miceli construiu-se uma espécie de narrativa mítica, em que o modernismo aparece como marco que delimitaria uma ruptura não só estética, mas cujos efeitos abrangeriam outras esferas, como as instituições e até mesmo a política.

Por estar “atados em demasia à noção de ‘vanguarda’ (vanguardas estéticas, vanguardas revolucionárias, vanguarda do pensamento nacional ou consciência do ‘nacional-popular’”28, boa parte da crítica e da história literária endossou esse modelo interpretativo. Nesse sentido, aceitar o marco implica “se submeter a um padrão local – o Modernismo paulista – para avaliar um fenômeno nacional: a literatura moderna”29. Seguindo lógica similar, Monica Pimenta Velloso30 problematiza a conceituação, na medida em que ela delimita os diversos movimentos em função de um evento (posterior) elegido como chave para o entendimento de outros períodos (anteriores).

Velloso entende o modernismo como um processo contínuo, que vai desencadeando outros movimentos através dos tempos. E nesse sentido, propõe um novo olhar para seu significado, entendido em seus termos de simultaneidade, pluralidade e continuidade. Como afirma Anderson Pires da Silva, o desafio para não

26 MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 15.

27 Citado em GOMES, 1999, páginas 7 e 48, respectivamente.

28 HARDMAN, Francisco Foot. Antigos modernistas. In: NOVAIS, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 289-305. p. 290.

29 SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 15.

30 VELLOSO, Monica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs). O Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 353-386.

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repetir os velhos chavões consiste em deslocalizar o movimento31. Se for considerado em sua problematização da realidade, a “Geração de 1870”32 também pode ser considerada modernista. Sinais de uma modernidade já vinham despontando. Até mesmo o resgate do folclore e dos contos populares, tão caro a modernistas como Mário de Andrade, viu em Silvio Romero um dos primeiros expoentes.

Assim sendo, podemos questionar a utilização de termos como “pré(s)” e “vazio”, que acabam por reforçar a data de 1922 como marco. Não se trata, nesse sentido, de negar sua influência, mas sim de relativizá-la. Para Anderson Silva, as primeiras historiografias sobre o movimento, como Contribuição à história do modernismo, de Alceu Amoroso Lima (1939), ajudaram a cristalizar a literatura paulista (e em especial 1922), como marco da literatura moderna brasileira. Foi esse autor que cunhou o termo “pré-modernismo”, acabando por construir as “divisas oficiais” do modernismo33. Embora fosse utilizado com o intuito de inclusão – de determinados autores no rol dos “grandes” – o termo acabou por ser excludente.

Deste modo, Monica Velloso traça um percurso que recupera ações paralelas, mas de igual importância: a fundação de diversas revistas literárias em estados como Minas Gerais, o primeiro Congresso Regionalista do Nordeste, organizado por Gilberto Freyre em 1926 (ambos, portanto, fora do eixo cultural Rio-São Paulo), e a importância da cultura boêmia da então capital federal, bem como das charges e caricaturas das revistas ilustradas, que se utilizavam do humor para discutir os problemas sociais e políticos. E assim, reinterpreta-se o termo “modernista”, aqui reconsiderado não só em seu caráter de movimento artístico, mas em sua relação com a dinâmica do cotidiano na urbe, construída também em seus espaços informais e diversidade de expressões.

No mesmo sentido, afirma Angela de Castro Gomes: o modernismo pode ser entendido como “um movimento de idéias renovadoras que estabelece fortes conexões entre arte e política, e que é caracterizado por uma grande

31 SILVA, Anderson, 2009, p. 18.

32 A Geração de 1870, conjunto heterogêneo de intelectuais, ficou conhecida por sua atuação pela abolição da escravidão e no movimento republicano no Brasil. Dentre os participantes, destacam-se os nomes de Tobias Barreto, Graça Aranha, Silvio Romero, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha. A ela retornarei posteriormente.

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heterogeneidade”34. Por isso, a caracterização do período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e 1922 não como um intervalo à espera de renovação, mas por uma “cultura do modernismo”35, parte do mesmo processo de resposta às transformações que estavam ocorrendo, marcado por intensos debates.

Para Francisco Foot Hardman, “entre projeções futuristas e revalorizações do passado, escritores do Brasil na passagem do século tentavam fazer o que o modernismo, depois, adotaria como programa: redescobrir o país”36. De diferentes (e por vezes conflitantes) maneiras, os literatos, jornalistas e cronistas que atuaram no período problematizaram as questões de seu tempo, tentando entender um país em construção, convulsionado pela abolição da escravatura, pela mudança de regime político e transformado diariamente pelo advento das novidades tecnológicas e científicas nas grandes cidades.

Seguindo esse raciocínio, José Aderaldo Castello37 afirma, ainda, que uma melhor compreensão do Modernismo enquanto movimento estabelecido (com esta denominação) a partir de 1922 deve considerar as contribuições das duas primeiras décadas do século XX como um todo. Para o autor, trata-se de um período amplo e complexo, que deve ser reavaliado em suas nuances, rupturas e persistências com os diversos movimentos literários que o antecederam. Devemos repensar o início do século XX literário não perdendo o foco do processo de assimilação e continuação de soluções do final do século XIX, bem como no entrecruzamento de diversas e por vezes contraditórias tendências. Nesse complexo processo, devem ser considerados que há elementos dominantes, residuais e emergentes que se relacionam dentro do desenvolvimento cultural de maneira complementar, e por vezes também em oposição38.

34 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio...: os intelectuais cariocas e o modernismo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, p. 62-77, 1993. p. 63.

35 VELLOSO, 2003, p. 360. 36 HARDMAN, 1992, p. 289.

37 CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. Vol. II.

38 Esses conceitos se referem a estágios ou variações de todo o processo cultural hegemônico. O dominante, ou efetivo, compreende o hegemônico. Por sua vez, o residual é um elemento formado efetivamente no passado, contudo ainda em atividade dentro do processo cultural. Diferente, portanto, do “arcaico”, reconhecido como um elemento do passado observável e por vezes até revivido, mas como elemento já ultrapassado. Para Raymond Williams, “por lo tanto, ciertas experiencias, significados y valores que no pueden ser expresados o sustancialmente verificados en términos de la cultura dominante, son, no obstante, vividos y praticados sobre la base de un remanente – cultural tanto como social – de alguna formación o institución social y cultural anterior.” (2000, p. 144). Esses elementos são significativos tanto pelo que falam de si mesmo,

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Dito isso, propõe-se uma passagem por outras datas que também podem ser consideradas marcos do modernismo brasileiro, para então partir-se para reflexão das peculiaridades que marcaram esse contexto que antecedeu a Semana de Arte Moderna, especialmente na cidade do Rio de Janeiro.

1.1 MARCOS DE UMA CULTURA DO MODERNISMO NO BRASIL

Retomando a discussão feita por José Castello, proponho a utilização das balizas temporais propostas pelo autor, que auxiliam o entendimento do modernismo como um processo histórico: o interregno entre 1889/1902 e 1922. Além disso, insiro outras balizas, pautadas pela discussão feita por Monica Pimenta Velloso. A primeira delas se refere à Geração de 1870, considerada moderna por problematizar as questões de seu tempo de maneira inédita.

Como parte da dinâmica econômica internacional, a Guerra do Paraguai eclodiu em 1865, envolvendo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, e perdurando por cinco anos. O endividamento e o descontentamento provocados pela guerra auxiliaram na derrocada da monarquia, servindo o fim do conflito como “verdadeiro divisor de águas entre o tempo antigo e o moderno”39. Hardman também localiza o movimento como um momento original de ideias e reivindicações que renovaram o cenário intelectual brasileiro, e pode ser considerado, portanto, moderno40.

Ainda em 1870, lançou-se o Manifesto Republicano (ou Manifesto de 1870). O movimento teve como desdobramento o surgimento de uma nova elite de intelectuais, artistas, militares e políticos que propunham a modernização das estruturas econômicas e políticas vigentes. Esse grupo tinha como inspiração as premissas científicas oriundas da Europa e dos Estados Unidos.

Através da produção e crítica literária, o grupo proclamava a necessidade da abolição da escravidão, a opção pelo republicanismo, e a abertura da economia aos capitais estrangeiros. Guardava similaridades com seu homônimo português:

quanto pelo que indicam do dominante; em alguns casos, o elemento residual pode se relacionar

alternativamente ou mesmo em oposição ao hegemônico. Já o elemento emergente refere-se às novas práticas, novos valores, novos significados e novas relações criadas. Dada a dificuldade de distinção entre os elementos que constituem verdadeiramente uma nova fase da cultura dominante, e elementos que a ela se contrapõe, o autor prefere o termo “emergente” antes que simplesmente “novo”. Vale ressaltar, ainda, que as definições de emergente e residual só podem ser produzidas a partir de sua relação com o dominante.

39 VELLOSO, 2003, p. 354. 40 HARDMAN, op. cit., p. 290-291.

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Tratava-se do mesmo movimento auto-analítico, fundamento e estratégia de um projeto político ambicioso – (re) criar a nação –, cujo conteúdo crítico dirigia-se ao anacrônico sistema monárquico, aos modelos arcaicos de pensamento e de ensino e à produção e consumo de uma literatura, a romântica, considerada sentimental e escapista. Tanto a Geração de 1870 portuguesa, quanto a brasileira, indicavam a urgência em promover a superação dessas condições político-culturais para que se produzisse a renovação de suas respectivas sociedades, libertando-as da decadência, ou do atraso.41

Essa geração se inspirava nas correntes de pensamento denominadas cientificistas. A avultada industrialização, somada a um período de crescimento econômico geral, possibilitou o otimismo no progresso tecnológico e científico. Inaugurava-se, então, a era da sciencia: o “triunfo de uma certa modernidade que não podia esperar”, marcada pela velocidade, pelo desbravamento de fronteiras, pela superação de barreiras – as certezas da Belle Époque que marcavam presença.42 De fato, essas certezas só seriam solapadas pelas destruições e mortes ocorridas durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) 43.

Datam desse contexto o surgimento dessas novas correntes de pensamento, denominadas cientificistas, como o darwinismo social e o positivismo francês. A influência do impacto do desenvolvimento industrial e tecnológico nessas correntes era visível. Nesse ínterim, uma nova noção de tempo emerge, e com ela novas categorias para se pensar a sociedade:

41 MOTA, Maria Aparecida Rezende. A Geração de 1870 e a invenção simbólica do Brasil. Anais do

XXVII Simpósio Nacional de História – ANPUH, Natal, RN, 2013. Disponível em:

<http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364682113_ARQUIVO_AGeracaode1870eai nvencaosimbolicadoBrasil.pdf> Acesso: 06.maio.2016. p. 3.

42 COSTA, Angela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 9.

43 De acordo com Eric Hobsbawn, a Primeira Guerra transformou completamente a organização mundial até então conhecida, a ponto do autor delinear seu início como o verdadeiro começo do “breve século XX”. Foi este o maior combate envolvendo um número significativo de nações já visto. No século XIX, a maior guerra em números e proporção havia sido a Guerra Civil Americana, uma guerra interna, entre 1961 e 1965. Entretanto, o século XX observaria em seu alvorecer o sangrento conflito que deu fim à Belle Époque e assinalou o colapso da civilização ocidental em suas bases capitalista, liberal, burguesa e exultante da ciência. A guerra foi também o primeiro conflito em que os produtos do desenvolvimento científico foram utilizados exclusivamente para destruir e matar, caso da metralhadora, do submarino, do tanque de guerra, dos projéteis explosivos, o gás mostarda e tantas outras invenções de espantoso poder destrutivo. Mesmo seu fim, em 1918, não significou a paz. Diversamente, trouxe a desestruturação de diversos países, que se viram às voltas com revoltas, crises financeiras e profundas transformações políticas, cujos desencadeamentos culminariam com a Crise econômica de 1929 e o advento da Segunda Guerra Mundial. Cf.: HOBSBAWN, Eric. A era da catástrofe. In: ____________. A era dos extremos: 1914-1991; trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp. 29-222.

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Uniforme, rigidamente controlado, cada vez mais veloz e pautado pela eficiência, o tempo é visto como um continuum entre dois pólos que especificam seu ponto de partida e seu telos, situado no pólo que assinala a sempre renovada conquista do progresso e da civilização, marcado com um sinal de positividade e oposto ao pólo do atraso e da barbárie, negativado.44 Através dessas duas medidas, mover-se-iam as nações, que em maior ou menor escala tentariam encaixar sua imagem à de “modernas”, na medida em que conseguissem alcançar as descobertas e conquistas da época. Exemplo claro desse período são as Exposições Universais, que desde meados do século XIX serviam de espaço de exposição das novidades tecnológicas e descobertas científicas, com pompa e circunstância.

A visão predominante de nacionalidade que estava emergindo era, então, pessimista, pois considerava nossa mestiçagem como prejudicial e razão de nosso “atraso cultural”. Para esses intelectuais, isso só viria a ser modificado através do progresso científico, que integraria o país na marcha evolutiva internacional. Nesse sentido, caberia às elites intelectuais o papel de condução do povo para um novo momento histórico, utilizando-se do instrumental científico para tal. Essa linha de pensamento demonstra a raiz autoritária de nossa política. Contudo, embora ainda calcada por essa visão, o que mobilizava esses intelectuais era a busca pela identidade múltipla de nossa nacionalidade, configurando já um determinado avanço de interpretação do Brasil para a época45.

O ano de 1900 é também emblemático para essa reflexão sobre o moderno. Nesse ano, comemorou-se o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, favorecendo uma onda patriótica que varreu o país. Nesse ínterim, surge a publicação A pátria, de Alfredo Varella, e o livro Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso, ganha uma segunda edição (1901). Contudo, embora comemorada com pompa e euforia, a data trouxe também a reflexão sobre nossos rumos políticos. O pretexto para a comemoração parece ter explicitado nosso “atraso” frente à Europa; havia de fato uma angústia, um ensejo em ser moderno – embora

44 NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República na virada do século XIX para o XX. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília (Org.) O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente: da proclamação da república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 23.

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essa necessidade não apresentasse, então, um sentido muito definido46. E parte significativa dos intelectuais permanecia reticente ante uma república incapaz de verdadeiras transformações na sociedade.

Por sua vez, o ano de 1902 também é eleito por José Castello como marco, por seu significado essencialmente intelectual. Datam desse ano as publicações de Os sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha; bem como a edição revista e aumentada de História da literatura brasileira, de Silvio Romero. Para o autor,

Essas três obras, ao mesmo tempo fim-e-princípio-de-século, traduzem extraordinário esforço de penetração crítica na realidade brasileira, com base na formação do Brasil. Elas nos propõem, com grande repercussão, uma revisão autocrítica, alertando igualmente a criação literária para o compromisso nacionalista ou “regionalista”.47

Em sua narrativa, Canaã discute as questões relativas à imigração alemã no Espírito Santo. Trabalhando com as dificuldades de convivência entre imigrantes europeus e os demais grupos étnicos brasileiros, Graça Aranha apresenta as principais vertentes de pensamento que norteavam o processo de imigração no país, indissociáveis das interpretações de nação que estavam sendo desenvolvidas: a ideia de superioridade do elemento branco europeu versus a integração interracial. Sua abordagem mostra a violência e as contradições do processo. Seu autor, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, também acabou sendo um dos principais articuladores da Semana de Arte Moderna de 1922.

Já Euclides da Cunha, apesar de ser conhecido militante da causa republicana, acreditava que o advento da República por si só não modificaria a situação do país. Sua atuação como jornalista na Guerra de Canudos, de cujos escritos derivam Os sertões, aguça essa visão e o faz perceber as contradições do regime. Esta obra conseguiu expressar os conflitos, as contradições e os principais problemas da implantação da República e de um modelo de Belle Époque importado de fora e introjetado no país, à revelia de sua estrutura agrária, das condições de vida precárias da maior parte de sua população, das diferenças culturais.

De fato, o conflito entre sertanejos do sertão baiano e o Exército foi um massacre sem precedentes, e exemplifica essa tentativa de fazer com que o país

46 LAHUERTA, 1997, p. 96.

Referências

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