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BOLETIM CEDES JULHO-AGOSTO 2015 ISSN anos de Estatuto da Criança e do Adolescente: Capítulo importante da democracia brasileira

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20 BOLETIM CEDES – JULHO-AGOSTO 2015 – ISSN 1982-1522

25 anos de Estatuto da Criança e do Adolescente: Capítulo importante da democracia brasileira

Marcelo Baumann Burgos *

O efeito de uma lei não pode ser pensado como resultado de uma emanação dela mesma, de suas qualidades intrínsecas, pressupondo, antes, que se leve em conta a forma como ela é politicamente recepcionada, traduzida e transformada em práticas institucionais e culturais. Tampouco seus efeitos são necessariamente contínuos ou estáveis, afinal muitas vezes uma lei representa a expressão de lutas e conflitos entre valores e forças sociais, contrariando modos de agir e de pensar cristalizados.

Igualmente importante é considerar que leis cuja implementação exigem uma complexa articulação de atores, envolvendo diferentes entes da federação e da sociedade civil, bem como a organização de novas instituições e adaptações das já existentes, têm seus efeitos condicionados a um emaranhado de agentes e processos, que nunca deixará saber plenamente se é a lei que falha quando seus objetivos não são plenamente alcançados, ou, ao contrario, se o problema está na sua implantação. Apesar dessas dificuldades, é sempre necessário encontrar formas de mensurar e refletir sobre o impacto de leis consideradas importantes e estratégicas para o futuro das sociedades.

Os 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, que se comemora em 2015, representam um tempo consistente para se colocar no horizonte uma avaliação do impacto desta lei sobre o lugar da criança e adolescente na vida brasileira. Afinal, como se sabe, ela institui uma abordagem radicalmente distinta da prevalecente até então, colocando em vigor um novo paradigma, que tem sido denominado de “doutrina da proteção integral da criança”, em substituição à “doutrina da situação irregular – do menor” – que, durante sua vigência, tinha gerado “duas infâncias: (i) a infância escola-família-comunidade; e (ii) a infância trabalho-rua-delito”, reservando para a segunda “uma legislação de menores caracterizada pelo emprego

* Professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES-PUC-Rio)

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21 sistemático dos dispositivos típicos do controle social do delito (polícia, justiça e institutos de internação)” (BRASIL, 2006:18)

Enquanto a doutrina da situação irregular “só se preocupa com a proteção para os carentes e abandonados, e a vigilância para os inadaptados e infratores” (Idem:19), a doutrina da proteção integral da criança não se dirige a um determinado segmento da população infanto-juvenil, mas a todas as crianças e adolescentes, sem exceção alguma.

Essa profunda mudança no lugar da criança e do adolescente passa a exigir não apenas a criação de novas instituições como os conselhos de direitos da criança, o conselho tutelar e o sistema de socioeducação, mas também a revisão de práticas profissionais nas mais diversas dimensões, no campo do direito, no sistema educacional, em muitas outras áreas do poder público (quase todas lidam direta ou indiretamente com crianças e adolescentes) e, muito especialmente, a revisão das práticas familiares. Portanto, uma avaliação do impacto do ECA sobre a vida brasileira está a demandar um amplo e complexo esforço de pesquisa e reflexão.

Uma contribuição relevante nessa direção foi dada pelo estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, que acaba de ser publicado sob o título “Estatuto da Criança, 25 anos. Avanços e Desafios para a infância e a adolescência no Brasil”. Em linhas gerais, o estudo identifica muitos avanços em dimensões especialmente sensíveis para a criança e o adolescente. De modo mais específico, o UNICEF atribui ao ECA uma importância decisiva para explicar a queda da mortalidade infantil, a ampliação do acesso à educação escolar e a redução do trabalho infantil.

O estudo informa que, entre 1990 e 2012, a taxa de mortalidade entre crianças com menos de 1 ano de idade no Brasil caiu 68,4%. No que se refere à educação, identifica que o país avançou em todos os indicadores. De 1990 a 2013, o percentual de crianças com idade escolar obrigatória fora da escola caiu 64%, passando de 19,6% para 7%. No caso dos adolescentes de 15 a 17 anos, o Brasil tem avançado em relação ao número de matrículas no ensino médio: de 5,4 milhões, em 1995, chegou a 7,8 milhões de estudantes matriculados em 2014 em escolas públicas. Outro indicador valorizado pelo estudo é a queda na taxa média de analfabetismo entre brasileiros de 10 a 18 anos de idade, que caiu 88,8%, passando de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013.

Com a Constituição de 1988 e com o ECA, proíbe-se o ingresso precoce no mundo do trabalho - caminho até então inevitável para boa parte dos filhos das famílias populares – e desde

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22 então diferentes iniciativas governamentais e do Ministério Público passam a combater de forma sistemática a prática de exploração do trabalho infantil. O resultado dessas ações tem sido significativos. O estudo do UNICEF acusa uma redução de 73,6% do trabalho infantil entre 1992 e 2013: enquanto em 1992, 13,3% do total de crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos trabalhava, em 2013 esse percentual cai para 3,3%. O índice por faixa etária apresenta performances específicas que merecem ser pontuadas: em 1992, nada menos que 22,5% das crianças e adolescentes com 10 a 15 anos trabalhavam, caindo para 7,5% em 2013; já no universo de 5 a 9 anos, o trabalho infantil cai de 5% para quase zero. Em termos absolutos, 5,4 milhões de crianças e adolescentes trabalhavam em 1992, já em 2013, 1,3 milhões.

Mas há um dado dissonante em face desse processo de conquistas: a elevação da taxa de homicídios de crianças e adolescentes. Após a aprovação do ECA , o número de homicídios de brasileiros com até 19 anos de idade dobrou, passando de 5 mil em 1990 para 10,5 mil casos ao ano em 2013, o que significa que a cada dia 28 crianças e adolescentes são assassinados no país. O dado é tão alarmante que do total de óbitos de crianças e adolescentes neste período, nada menos que 36,5% decorreram de assassinatos. De acordo com o estudo do UNICEF, esse indicador situa o Brasil como o segundo país com maior número de homicídios de crianças e adolescentes, ficando a frente apenas da Nigéria. E aqui, vale a pena citar um trecho do estudo:

“O crescimento do número de homicídios de adolescentes é a mais trágica das violações de direitos que afetam crianças e adolescentes. As vítimas têm cor, classe social e endereço. São em sua maioria meninos negros, pobres, que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes cidades. A taxa de homicídio entre adolescentes negros é quase quatro vezes maior do que a verificada entre os brancos (36,9 a cada 100 mil habitantes, contra 9,6 entre os brancos)” (p.35).

O estudo do UNICEF não aprofunda a análise das causas do aumento de homicídios de crianças e adolescentes no Brasil, mas rejeita, como “equivocada”, a hipótese de que se possa justificá-lo pelos conflitos entre facções rivais e pelo tráfico de drogas (p.33).

Seja como for, a escalada do assassinato de adolescentes escandaliza a fragilidade e baixa eficácia dos mecanismos de proteção das crianças e adolescentes que mais precisariam deles, que são aquelas expostas aos efeitos violentos da segregação urbana típica das favelas e periferias metropolitanas brasileiras. Nesse sentido, a morte trágica por assassinato seria apenas a ponta mais visível de trajetórias marcadas pela privação de família e de escola, e pela alta exposição a

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23 formas e práticas violentas. E o fracasso dessas instituições responsáveis pelas formas primárias de socialização acaba sobrecarregando os mecanismos previstos para lidar com crianças e adolescentes em situação de infração.

Com a Constituição de 1988 e com o ECA, a criança e o adolescente passam a ser considerados penalmente inimputáveis, e a contar com uma legislação especial, que prevê medidas socioeducativas (associadas ou não a medidas de privação de liberdade). Mas o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) somente foi instituído em 2006, por uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), e ainda mais recente foi a sua conversão em lei, que se deu em 2012.

O Sinase estabelece que é de responsabilidade dos municípios a oferta de programas destinados à execução das medidas socioeducativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade), e que cabe aos estados a aplicação das medidas de privação de liberdade (internação e semiliberdade). Prevê também obrigação de intervenções específicas nas famílias dos adolescentes, entre outras medidas.

Por ser um sistema ainda em processo de consolidação nos estados e municípios, seria arriscado avaliar qual seu impacto efetivo na proteção das crianças e adolescentes. Contudo, alguns dos dados apresentados pelo estudo do UNICEF não deixam dúvidas de que seus potenciais beneficiários constituem um universo de crianças e adolescentes especialmente vulneráveis: em 2012, 57% não frequentavam a escola antes da internação, 86% não havia completado o ensino fundamental, e 75% eram usuários de drogas. E entre os atos infracionais, 40% havia praticado roubos, outros 25% estariam envolvidos com tráfico de drogas, e 9% cometido homicídio. De fato, a rota de ruptura com o circuito família-escola, e que pode levar à morte ou ao sistema socioeducativo, é de alto risco para todos, e o estudo do UNICEF adverte que o próprio sistema de socioeducação representa, ele mesmo, severos riscos para seus supostos beneficiários: em 2012, 30 adolescentes morreram em unidades de internação do sistema, vítimas de brigas e de suicídios!

Portanto, se se pode afirmar que após o ECA houve um extraordinário avanço em diferentes áreas, que se reflete em indicadores importantes, também é verdade que o agravamento da violência contra as crianças e adolescentes nas últimas décadas sugere que ainda é necessário um vigorosa articulação dos nós da chamada rede de proteção à infância e adolescência. Não apenas tornando mais seguro e eficiente o sistema de socioeducação, mas,

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24 sobretudo, apoiando os diferentes atores envolvidos na socialização primária (muito especialmente a família e a escola), reduzindo com isso a própria necessidade do sistema de socioeducação. Aqui entram em cena atores como o conselho tutelar, o Ministério Público, diferentes setores do poder público (em especial nas áreas de saúde, assistência e desenvolvimento social, educação, cultura e urbanismo), além de ONGs especializadas em projetos com crianças e adolescentes .

Com o modelo implantado pelo ECA, a importância dessa rede de proteção é tão grande, que faz sentido sustentar que parte das causas que explicam a maior exposição de crianças e adolescentes à violência física nas últimas décadas – em trajetórias que muitas vezes começam com o abandono da escola e culminam com a situação de rua -, está relacionada à sua fragilidade e à baixa articulação entre os atores que a compõem1. Aliás, em muitas cidades sequer seria correto falar em “rede de proteção”, já que o que prevalece são conflitos e desencontros entre as ações por eles realizadas2.

Mas o que explicaria a fragilidade dessa rede, essa falta de articulação entre atores que trazem em suas mãos uma parcela tão decisiva de responsabilidade pelo futuro das novas gerações de brasileiros? Para além de explicações pontuais, que invoquem falta de orçamento ou ineficiência burocrática, parece haver uma questão de fundo, que precisa ser melhor compreendida. Pois apesar do ECA e da Constituição de 1988 (seu artigo 227 estabelece que a criança e o adolescente devem ser prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado) situarem a questão da infância como um problema público, diversas pesquisas têm evidenciado que os próprios operadores dessa rede de proteção permanecem refém de uma concepção privatista, que atribui quase exclusivamente à família a responsabilidade por cuidar da infância3. Se essa hipótese faz sentido, então seria forçoso admitir que o ECA ainda não cumpriu plenamente sua vocação democrática e republicana. Mas se nos falta essa concepção de que a infância é um problema público, também seria necessário reconhecer que não é tanto o ECA que fracassa, mas a própria experiência democrática naquilo que ela tem de mais essencial. Pois não é demais lembrar que, como ensinam as experiências mais exitosas, o futuro da democracia em

1 - Sobre isso, ver o estudo realizado por Canegal & Lima (2014), a partir do trágico caso do menino Alan.

2 - Em sua tese de doutorado, Oliveira (2015) analisa essa dinâmica de desencontros entre atores como o Conselho Tutelar e o Ministério Público, tomando como base empírica a cidade de Juiz de Fora. Em nossas pesquisas com o Conselho Tutelar no Rio de Janeiro, também temos encontrado fartas evidencias dessa falta de articulação entre atores que deveriam compor uma rede de proteção.

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25 qualquer sociedade está fortemente condicionado à vitalidade deste valor fundamental: o de que todos devem ter o mesmo direito à infância e às oportunidades para a plena realização individual, independentemente do que suas famílias possam fazer por eles.

Nesse sentido, o respaldo que o Poder Legislativo vem dando a essa tentativa de se reduzir o debate sobre a infância à questão da maioridade penal, e que mal esconde sua inspiração conservadora e familista, deixa muito nítido o tamanho do terreno político perdido em relação às conquistas democráticas que o ECA representou há 25 anos atrás. É por isso que a luta pelo ideário que o ECA sustenta se confunde com a defesa das melhores promessas que a Constituição de 1988 projetou para a sociedade brasileira.

Referências bibliográficas

BRASIL (2006) - Socioeducação : Estrutura e Funcionamento da Comunidade Educativa / Coordenação técnica Antonio Carlos Gomes da Costa. -- Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006.

BURGOS, Marcelo Baumann (coord.) (2014) – A Escola e o Mundo do Aluno. Estudos sobre a

construção do aluno e o papel institucional da escola. Editora Garamond, Rio de Janeiro.

CANEGAL, Ana Carolina & LIMA, Maria Larissa (2014) – “Entre a escola, a família e o Conselho Tutelar: estudo do vazio institucional a partir do trágico caso do menino Alan”. In: Marcelo Baumann Burgos (coord.), A Escola e o Mundo do Aluno. Estudos sobre a construção

do aluno e o papel institucional da escola. Editora Garamond, Rio de Janeiro.

OLIVEIRA, Rafaela Reis Azevedo (2015) – “Judicialização da educação infantil: desafios à política municipal e a exigibilidade de seu direito em Juiz de Fora”. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós Graduação em Educação, UFJF.

UNICEF (2015) - “Estatuto da Criança, 25 anos. Avanços e Desafios para a infância e a adolescência no Brasil”, capturado em www.unicef.org/brazil/pt/ECA25anosUNICEF.pdf

Referências

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